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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Agonia das Religiões-J. Herculano Pires

 

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J. Herculano Pires

Agonia das Religiões

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Philipp Runge

O descanso na fuga para o Egito

Conteúdo resumido

As religiões são seres sociais que nascem, crescem e morrem. São corporificações dos anseios de transcendência inatos no homem. Por que motivo podemos afirmar que as religiões do nosso tempo estão agonizando? O que virá depois delas? Este livro responde a essas indagações através de penetrante estudo do desenvolvimento e decadência das religiões contemporâneas.

Nesta obra Herculano demonstra que a decadência das religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada na Europa, e as religiões simplesmente se negaram a acompanhar essa evolução, mantendo-se na insistência de impor a fé cega ao ser humano.

As instituições religiosas não conseguem mais acompanhar a nova necessidade do ser contemporâneo, que deseja saber o porquê de todas as coisas, principalmente da sua própria existência e do seu objetivo final, que é a evolução infinita, em todos os ângulos – científico, filosófico e moral.

A Teoria do Conhecimento implica as áreas culturais da Ciência, da Filosofia e da Religião. Mas a partir do Renascimento a Religião se desligou desse contexto. Desenvolveu-se a cultura leiga e as religiões se encastelaram no conceito de sua origem divina, decorrente do dogma da Revelação. A Cultura dividiu-se em duas áreas conflitivas: a religiosa e a profana.

Descartes proclamou, no Discurso do Método, a existência de dois tipos humanos (homo sapiens): o dos homens mais do que homens, que recebiam a sabedoria do próprio Deus, e o dos homens simplesmente homens, que buscavam o conhecimento através da razão e da pesquisa. Kant sancionou, em sua Crítica da Razão, essa distinção que realmente se fazia necessária. Quais foram as conseqüências desse episódio cultural na crise religiosa contemporânea? E qual a solução possível para essa crise? Qual a situação atual das religiões?

O inicio da Era Cósmica já produziu profundos abalos e modificações nos dois campos. Haverá uma possibilidade de reunificar-se a cultura geral da nossa civilização? Qual a razão das súbitas modificações nas religiões tradicionais e em suas próprias teologias? O que significam as tentativas de elaboração de um Cristianismo Ateu?

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Introdução - Tempos de Agonia

O desenvolvimento da humanidade tem sido marcado por fases de agonia e de morte, seguidas de fases mais duradouras de ressurreição e reconstrução. As forças que determinam essa espantosa sucessão encontram-se na própria criatura humana. Seria inútil buscarmos uma explicação celeste, fundada nos pressupostos da Ira de Deus ou da Justiça Divina, como seria inútil procurarmos enquadrá-la nas brilhantes teorias relativas à influência dos ritmos telúricos. A própria doutrina aristotélica da geração e corrupção não poderia dar-nos os elementos concretos do fenômeno. Segundo Toynbee, as civilizações se desenvolvem nas linhas conceptuais de uma religião fundamental e entram em agonia quando se esvai o poder vital dessas religiões. A relação sociedade-religião parece perfeitamente válida, mas não nos oferece o segredo dessa estranha mecânica da agonia.

Os processos sócio-culturais de cada civilização têm a sua fonte no homem, pois a sociedade se apresenta objetivamente como um conglomerado humano. Parece evidente que o ritmo agônico deve estar ligado às entranhas e ao psiquismo do homem. Como estamos vivendo, agora, precisamente numa das curvas agudas desse ritmo – talvez a mais aguda por que já passou a humanidade – o momento é propicio para examinarmos o fenômeno ao vivo, tocando com os dedos os seus elementos determinantes. A agonia atual das religiões é geralmente considerada como resultante da situação crítica da sociedade em seu acelerado desenvolvimento tecnológico. O mundo do supérfluo, em contradição com o mundo da escassez, na estrutura social em que vivemos, levaria a civilização atual a um beco sem saída. As religiões agonizam porque o edonismo social e o correspondente pedantismo cultural esvaziaram igualmente as arcas de tesouros metálicos dos ricos, os baús de crenças e crendices dos pobres, as esperanças de sucesso das camadas medianas da sociedade, as fontes de riqueza do planeta e até mesmo o balaio de sonhos da Lua e as esperanças de um céu convertido em frios desertos siderais em que rolam mundos áridos e despovoados.

Inverte-se a tese de Toynbee. As religiões seriam produzidas e mantidas pelas civilizações, como o mel pelas comunidades das abelhas. Deus, filho do homem, está morto, segundo constatam os teólogos mais avançados. E enquanto os religiosos voltam a matar-se reciprocamente em nome do deus morto, as grandes potências da civilização sem perspectivas preparam os funerais atômicos da Terra. A opressão estatal esmaga o homem nas áreas capitalistas e socialistas. O Leviatã de Hobbes ameaça o mar, a terra e o céu. Como decifrarmos o enigma desses tempos apocalípticos, quando o próprio ato de pensar parece estar sujeito a controles telepáticos? Os defensores da liberdade transformam-se em terroristas e seqüestradores ou em líricos distribuidores de flores murchas, embalsamadas nas palavras mortas de paz e amor. A inocência das crianças desaparece na voragem da criminalidade infantil. E os velhos alquebrados, de olhos vazios, não encontram mais nos templos os signos da fé que os embalou na infância, na adolescência, na mocidade e na maturidade. Os padres sem batinas e as freiras sem hábitos, os monges sem escapulários e as santos cassados em sua santidade já não podem consolar os crentes.

O que acontece para que tudo se subverta dessa maneira total e violenta? Foi a morte de Deus que esvaziou o mundo ou foi o vazio do mundo que matou Deus?

As estruturas sociais são coercitivas. Do clã à tribo e à horda, e desta à civilização, a lei do aglomerado humano é uma só, mas se desenvolve num ritmo de pressão crescente. A coerção aumenta na razão direta da estruturação. Da cabana do pagé à sacristia a religião segue esse mesmo ritmo. A massificação do homem na sociedade moderna fez o caminho de retorno sobre as conquistas do individualismo ateniense. Esparta suprimiu Atenas. O sonho frustrado da República de Platão já prenunciava o Leviatã de Hobbes. O desenvolvimento tecnológico aumentou a pressão social sabre o homem, como o desenvolvimento da institucionalização religiosa gerou o totalitarismo eclesiástico das grandes civilizações orientais, leviatãs teocráticas, e forjou a engrenagem férrea do milênio medieval. Os sonhos da Renascença, um instante para respirar, apagaram-se impotentes nas garras de aço da tecnologia contemporânea. A torquês social da moral e da religião esmagou as gerações em nome da utopia conjugada de liberdade e civilização.

O desespero existencial de Kierkegaard e a náusea de Sartre foram os frutos amargos da escamoteação da natureza humana pela hipocrisia farisaica dos formalismos sociais e religiosos. O homem formalizado perdeu a naturalidade e só teve uma saída para a sua angústia existencial: matar Deus e rebelar-se contra a sociedade. O fato não é novo. Repetiu-se na História, com os episódios de repressão violenta dos rebelados nas civilizações teocráticas e massivas do Egito faraônico, da Mesopotâmia, de Israel com suas leis de pureza, da Idade Média e da Era Vitoriana na Inglaterra. Os libertinos medievais, a prostituição romana, o nudismo de comunidades religiosas que buscavam o estado de graça do paraíso perdido, o deslumbramento da Europa do Século XVI ante a suposta liberdade absoluta dos selvagens da América são antecedentes da era pornográfica que assinala a libertinagem do nosso tempo.

Bastam esses fatos para podermos tocar com os dedos a fímbria da verdade. Em Os Demônios de Loudun, Aldous Huxley oferece-nos um quadro portentoso das medidas eclesiásticas e das providências estatais, na Europa dos séculos XVI e XVII, com repercussões no Século XVIII, para aliviar a pressão moral e religiosa no caldeirão social. Informa Huxley: “Os prelados franceses e alemães estavam acostumados a receber o cullagium de todos os padres e informavam àqueles que não tinham concubinas que poderiam tê-las, se quisessem, mas que deveriam pagar para isso uma licença, e mais, que essa licença deveria ser paga mesmo pelos que não as tivessem.” O celibato forçado explodia de tal maneira que era conveniente regulamentá-lo, a fim de salvar-se pelo menos a aparência de santidade dos clérigos. Numa das notas de seu dicionário, Bayle conta como o Senado de Veneza tolerava os escândalos do clero para desprestigiá-lo na opinião pública, em favor das conveniências do Estado.

A deformação da criatura humana pelas exigências antinaturais das religiões dá-nos a chave do processo cíclico da morte das civilizações. Isso não quer dizer que tenhamos de aceitar as teorias atuais de uma psicologia libertina, mas que devemos compreender o erro e o perigo das repressões extremas em nome da moral e das religiões. Podemos compreender claramente que esse extremismo equivale á medicação de disfarce, que esconde o mal permitindo o seu desenvolvimento secreto no organismo social. A Inglaterra da moral vitoriana está hoje a braços com a explosão de situações incontroláveis. O seu Parlamento majestoso é levado à adoção de leis e medidas deletérias, como as referentes aos problemas da homossexualidade juvenil.

O ministério dos ciclos agônicos é facilmente decifrado quando levantamos a máscara de hipocrisia das sociedades antinaturais. O mesmo se dá no tocante às religiões repressivas, que acabam vencidas pela rebelião dos instintos naturais, agonizando no descrédito ou sendo substituídas por outras. Acusa-se o Cristianismo de ser o responsável pela universalização da hipocrisia, mas os próprios evangelhos atestam a atitude racional do Cristo em face dos que pretendiam lapidar a mulher adúltera. No caso de Zaqueu, o Cristo aceita a sua hospitalidade quando ele promete devolver aos pobres o fruto impuro dos seus roubos. Madalena arrependida tornou-se a seguidora dedicada e a escolhida para ser a primeira a vê-lo depois da ressurreição. Não há dúvida que os excessos repressivos do Cristianismo não foram determinados pelo Cristo, mas pelos seus apóstolos judeus, contaminados pela hipocrisia farisaica e de outras seitas judaicas. O Apóstolo Paulo, o que melhor compreendeu a posição do Cristo em tantos aspectos, não conseguiu escapar aos prejuízos do judaísmo, de sua formação judaica, quando se referia aos processos de repressão, tornando-os ainda mais agudos na religião nascente.

Explica-se a atitude paulina ante as abusos e excessos das religiões pagãs, mitológicas, em que as práticas fálicas, os rituais dionisíacos, toda a herança da velha Suméria, da Mesopotâmia, da libertinagem da Grécia e de Roma contaminavam as ingênuas comunidades cristãs, ameaçando com os seus excessos os princípios espirituais da religião nascente. Paulo, extremamente zeloso, apegava-se aos resíduos da sua formação farisaica, agindo com violência para impedir que os cristãos retornassem às práticas da irresponsabilidade moral. Mas há enorme distância entre as mediadas enérgicas de Paulo, que não usava a máscara da hipocrisia, e as medidas repressivas que mais tarde judaizaram as religiões cristãs. Ele, que combateu sem cessar os apóstolos judaizantes, incidiu no mesmo erro que tanto condenara, mas justificado pelas circunstâncias de uma época de ignorância e de costumes geralmente condenáveis.

O ponto crucial do problema religioso chama-se hipocrisia. E a hipocrisia resulta das atitudes egoístas, da falta de compreensão do verdadeiro sentido da Religião, que é caminho e não ponto de chegada da espiritualização do homem. Os religiosos que pretendem atingir a santidade do dia para a noite, que se revestem de pureza exterior, encobrindo a podridão interior, são os hipócritas condenados veementemente no Evangelho. A solução desse grave problema, que responde pela morte cíclica das civilizações, está na compreensão da verdadeira natureza do homem, do processo natural do seu desenvolvimento espiritual. Os artifícios purificadores só servem para mascarar os indivíduos pretensiosos. As práticas ascéticas não podem ser forçadas. As paixões e as instintos do homem são manifestações de forças vitais que, sob o controle da razão e do sentimento, podem e devem guiar o espírito nos rumos da transcendência.

Repetimos agora os ciclos agônicos do Oriente, da Grécia e Roma, de Israel, da Europa Medieval. A explosão pornográfica sobrepõe-se aos instintos vitais e aos controles sociais. E a agonia das religiões anuncia a morte da civilização tecnológica. Não obstante, há uma esperança para a brilhante civilização condenada. As forças do espírito reagem contra a derrocada moral. Como na queda de Bizâncio, enquanto os clérigos cantam e pregam em meio à derrocada, há vigias de uma nova era espreitando o futuro nas almenaras. É o que procuro demonstrar neste livro, num rápido confronto das estruturas envelhecidas com as novas estruturas que nascem da própria terra, sob os nossos pés. Poluída, envenenada, devastada, ameaçada, a Terra dos Homens, nossa mãe, convida-nos a subir com Saint-Exupéry para novas dimensões de uma realidade em que estamos perdidos.


Capítulo 1
Agonia das Religiões

As Religiões estão morrendo. Este é um dos fatos marcantes do nosso tempo, mais precisamente do Século XX. O poder das Religiões não é mais religioso, mas simplesmente econômico, político e social. As igrejas se esvaziam, os seminários se fecham, a vocação sacerdotal desaparece, o clero de todas elas recorre no mundo inteiro aos mais variados expedientes para manter seus rebanhos, fazendo-lhes concessões perigosas. Mas todos os expedientes mostram-se incapazes de restabelecer o prestígio e o poder religiosos, servindo apenas de remendos de pano novo em roupa velha, segundo a expressão evangélica. Começam então a aparecer os sucedâneos, milhares de seitas forjadas por videntes e profetas da última hora, na maioria leigos que se apresentam como missionários, taumaturgos populares, místicos improvisados e de olhos mais voltados para os bens terrenos do que para os tesouros do Reino dos Céus.

Esses bastardos do espírito, que pululam por toda parte, caracterizam o fenômeno sócio-cultural da morte das Religiões. O fato é bem conhecido dos que estudam a Sociologia da Cultura. Quando um sistema institucional esvazia-se no tempo, tragado na voragem das mudanças culturais, os aproveitadores invadem os domínios abandonados e socorrem a seu modo os órfãos em desespero. As grandes revoluções políticas e sociais mostram-nos como as tiranetes do populacho assumem as funções dos nobres decaídos, substituindo a autoridade tradicional pelo mandonismo dos clãs ressuscitados. Podemos aplicar ao caso uma paródia da explicação metafísica do horror ao vácuo, dizendo que as sociedades têm horror ao caos e preenchem a falta de autoridade legítima (ou pelo menos legitimada) pelo autoritarismo dos sátrapas.

Esse evidente sintoma de agonia das instituições tradicionais está presente em toda a área religiosa do nosso tempo. É o carisma das fases de mudança. Não há dúvida, portanto, de que as Religiões agonizam. E o responsável por esse fato alarmante, como sempre, é a própria vítima, que, pela imprevisão, pelo abuso do poder, pelo apego às comodidades institucionais, deixou-se levar na ilusão de sua indestrutibilidade. As próprias Religiões cavaram a sua ruína no desenrolar do processo histórico. Acomodadas em sua superioridade, confiantes no privilégio de sua origem e natureza sobrenaturais, recusaram-se a integrar-se na cultura natural, marginalizando-se a si mesmas. A evolução cultural alargou progressivamente o fosso entre a Cultura e a Religião, tornando irreversível a situação das instituições religiosas. Assim, dialeticamente, o conceito arbitrário do sobrenatural, que era o fundamento de sua segurança, tornou-se o motivo de sua decadência.

No Ocidente, os primeiros sinais da crise religiosa contemporânea surgiram em plena Idade Média, com o episódio trágico-romântico de Aberlardo, prenunciando a Idade da Razão. Essa nova fase, que se iniciou com o Renascimento, traria a revolução cartesiana, Rousseau, Chaumette e o Culto da Razão na Revolução, e posteriormente Augusto Comte e a Religião da Humanidade. No ano da morte de Augusto Comte, em 1857, Denizard Rivail iniciaria na França o movimento da Fé Racional. Assim, a França, que centralizava o processo cultural no Mundo Moderno, apresenta uma seqüência de tentativas para a integração da Religião no sistema cultural em desenvolvimento, sempre rejeitadas pela soberania eclesiástica apoiada no conceito do sobrenatural. Paralelamente aos movimentos renascentistas da França, desencadeou-se na Alemanha, no Século XVI, o movimento da Reforma, iniciado por Lutero.

No Oriente a reação às religiões tradicionais foi mais lenta e tardia, menos precisa e definida, com menores conseqüências, que só se acentuaram no Século XIX. Nem por isso deixou de produzir efeitos que se intensificaram no decorrer desse século até o presente sob influências ocidentais. Na Rússia, sob a inspiração francesa de Rousseau, Tolstoi promoveu a revolução religiosa do Século XIX, na linha luterana de volta ao Cristianismo Primitivo, fazendo uma nova tradução dos Evangelhos em sentido místico-racional. Todos esses movimentos revelam a insatisfação cultural no tocante à soberania das Religiões, fundada no conceito do sobrenatural, que as mantinham desligadas do processo cultural. Ainda no Século XIX a obra de Renan, na França, assinalava a tendência do espírito francês, no plano da História do Cristianismo, no sentido de estabelecer a verdade sobre os primórdios da Religião dominante e retirá-la do campo suspeito do sobrenatural.

Temos, nesse esboço de um vasto panorama histórico, a visão objetiva dos processos que vinham preparando, desde os fins do milênio medieval, a derrocada das Religiões. Em nosso século, o desenvolvimento acelerado das Ciências, a laicização do Estado e da Educação, a desagregação da família, a expansão cultural e a rápida modificação dos costumes e do sistema de vida pelo impacto da Tecnologia – abrangendo praticamente todo o mundo – fortaleceram a concepção pragmática e materialista, dando o golpe de misericórdia no sobrenatural e nos sistemas religiosos que nele se apóiam. A etiologia da decadência das Religiões torna-se palpável. Seria simples tolice querer negá-la.

Não obstante, o sentimento religioso do homem não foi aniquilado. Pelo contrário, ele subsiste e vem sendo considerado, particularmente nos países da área dominada pelo Marxismo, como um resíduo do passado que terá de desaparecer totalmente com o avanço irresistível da cultura. A própria URSS, que se desmandou em campanhas violentas contra a Religião, viu-se obrigada a fazer concessões significativas ao chamado ópio do povo. Nos Estados Unidos o Pragmatismo de William James e o Instrumentalismo de John Dewey temperaram a situação permitindo uma espécie de trégua na qual, segundo Rhine, as concepções antípodas do homem – a religiosa e a científica – podem encontrar-se ao pé do leito de um moribundo sem estardalhaço. Mas as atrocidades da II Guerra Mundial geraram na Alemanha um movimento de reforma radical das Teologias tradicionais, que se projetou nos Estados Unidos e vem penetrando sutilmente em toda a América, através de traduções de livros dos novos teólogos, que anunciam a morte de Deus e pregam a novidade do Cristianismo Ateu.

Os teólogos mais uma vez se enganam. A teoria da Morte de Deus, que eles procuram inutilmente explicar como um acontecimento atual, do nosso tempo, nunca se verificou nem pode verificar-se. Deus não é um ser nem é mortal, porque é o Ser Absoluto, o Bem, segundo Platão, a Idéia Suprema de que derivam todas as idéias e, portanto, todas as coisas e todos os seres. Os teólogos da chamada Teologia Radical da Morte de Deus, e seus companheiros de outros ramos teológicos subseqüentes, sofrem de um processo de alucinação por transferência. Quem está morrendo não é Deus, são eles mesmos e suas Teologias, eles e as Religiões formalistas e dogmáticas.

A concepção nova de Deus, que nasce dos escombros da concepção antropomórfica do passado, é a de uma Inteligência Cósmica que preside a toda a realidade possível. Os cosmonautas soviéticos, depois de umas voltas ao redor do grão de areia da Terra, declaram eufóricos que Deus não existe, pois não tiveram o prazer de encontrá-lo nos microscópicos subúrbios do nosso planeta. Fizeram como o estudante de Eça de Queiroz, em A Cidade, que, para provar a inexistência de Deus, tirou o seu relógio-patacão do bolso do colete, diante de colegas, e deu o prazo de alguns minutos para que Deus o fulminasse. Como não foi fulminado, declarou que estava provada a inexistência de Deus e guardou o patacão no bolso. Essas piadas servem apenas para mostrar-nos o estado de ignorância em que ainda nos encontramos; e para provar, isso sim, que estamos mortos em nossa estupidez diante da grandeza do Cosmos. Dizer que Deus morreu é como dizer que a vida se extinguiu. O fato de estarmos vivos e fazermos essa afirmação já prova o contrário.

Os teólogos radicais são tão radicais que não admitem a única explicação possível para a sua teoria da Morte de Deus. Essa explicação seria a de que o Deus convencional das religiões morreu, com a idéia hoje inaceitável. Mas eles se opõem a isso e dão explicações que ninguém pode entender, pois só entendemos o que é racional. O problema é mais sério do que pensam os teólogos, que fazem piada dizendo colocar o Cristo provisoriamente no lugar de Deus, do que resulta o Cristianismo Ateu, última novidade das Religiões no Século XX.

Apesar de tudo isso, verifica-se que o que eles pretendem é colocar o problema da existência de Deus em termos mais acessíveis à razão. Essa pretensão coincide com os objetivos do pensamento francês, na seqüência histórica mencionada acima. É pena que esses teólogos atuais não tenham a facilidade de expressão e a lucidez que caracterizam o pensamento francês. Se entre eles houvesse um teólogo gaulês, certamente lhes explicaria que o conceito celta de Deus devia satisfazê-los. Os celtas, que eram um povo monoteísta como os hebreus e viveram na Antiguidade, poderiam corrigir os teólogos atuais e dar lições de lógica às Religiões em agonia. Foram considerados bárbaros e sofreram na pele a barbárie dos civilizados romanos, mas Aristóteles afirmou que eles eram o único povo filósofo do mundo.

De todo o exposto parece evidente que a agonia atual das religiões nada tem a ver com a Religião. Sim, porque a Religião é uma das características fundamentais da natureza humana. Parodiando a teoria aristotélica do animal político, podemos dizer que o homem é um animal religioso. A falsa teoria do espanto do mundo como origem da Religião, que até mesmo Van Der Leuw ainda sustenta, não pode manter-se em pé diante da prova antropológica de que nunca existiu no mundo um povo ateu, desde os homens da caverna até os nossos dias. A idéia de Deus é inata no homem, como Descartes afirmou, depois de encontrá-la no fundo misterioso do cógito. É uma idéia evidente por si mesma e indispensável à compreensão de nós mesmos e do mundo.

Certas pessoas opiniáticas, muito ciosas de si mesmas, costumam dizer que Deus não existe porque ninguém pôde provar a sua existência. A própria Ciência ensina que a causa se prova pelo efeito. Basta-nos olhar uma flor ou um grão de areia para sabermos que Deus precisa existir, que existe necessariamente. O que não podemos aceitar é o Deus das religiões, porque esse Deus – ilógico e absurdo, como dizia Aristides Lobo – pertence a um passado remoto em que a humanidade necessitava dele. A essência da Religião constitui-se de apenas um núcleo e uma partícula, como o átomo de hidrogênio. O núcleo é a idéia de Deus e a partícula o sentimento religioso. A Religião verdadeira, que jamais agonizou e nunca morre, tem nesse átomo simples e puro a sua raiz simbólica.

Mas, para que a Religião possa desempenhar livremente o seu papel fundamental na evolução humana, é necessário que a reintegremos na Cultura Geral, como uma de suas áreas mais importantes. Para livrar o Conhecimento da dispersão produzida pelas especializações científicas, foi necessário criar-se a Filosofia da Ciência. Para livrar a Religião da pulverização sectária é indispensável libertá-la do formalismo dogmático, do profissionalismo religioso, do fanatismo igrejeiro. A agonia das religiões é determinada pela asfixia das estruturas antiquadas, do irracionalismo baseado no conceito do sobrenatural e da Revelação Divina. Os dois tipos de religião analisados por Bergson, o social e o individual, devem fundir-se na síntese da Religião do Homem, que ressalta historicamente das aspirações francesas e mereceu do poeta bengali Rabindranath Tagore um estudo lúcido e lírico. O Conhecimento é um todo, é global. Teoria e prática são verso e reverso de um mesmo processo. O homo sapiens e o homo faber são uma e a mesma coisa: o homem. As especializações são simples formas de divisão do trabalho, de acordo com as diferenciações de tendências individuais. Ciência e Técnica, Filosofia e Moral, Metafísica e Religião são apenas divisões metodológicas do campo do Saber, formas disciplinares do pensamento e da ação.

A Era da Comunicação de Massa, que segundo Mcluhan fez da Terra uma aldeia global, estourou o mundo chinês do passado, de muralhas e mandarinatos. A dicotomia kantiana, que negou a impossibilidade do conhecimento extra-sensorial, foi superada pelas conquistas físicas e psicológicas de hoje. O sobrenatural mudou de nome, é apenas o natural desconhecido que a investigação científica vai rapidamente integrando no Conhecimento Global da realidade una. Temos de adaptar-nos às condições novas e às novas dimensões do homem e do mundo. As próprias igrejas estão abrindo as portas dos conventos e dos mosteiros para não morrerem asfixiadas. As Ciências rompem com o passado, a Filosofia se livra dos sistemas para enfrentar com desenvoltura a problemática do pensamento, os tabus são esmigalhados pelo homem novo, os mestres e gurus se fazem discípulos da única fonte real de sabedoria que é a Natureza. O sacerdócio é uma espécie em extinção. Os teólogos foram confundidos por Deus, que não quis entregar-se em suas mãos inábeis.

Se quisermos salvar a Religião, nesse maremoto das transformações que afligem os passadistas, façamos urgentemente a liquidação das religiões em agonia e mandemos os seus artigos de fé, seus ícones e suas medalhas para o Museu do Homem, como simples testemunhos de um tempo morto.

Tudo isso é aflitivo para os espíritos rotineiros e acomodatícios, como a mensagem cristã era escândalo para os judeus e espanto para gregos e romanos. Mas os espíritos flexíveis, corajosos, lúcidos, empenhados na busca da Verdade – essa relação direta do pensamento com o real – não se atemorizam, antes se rejubilam com a libertação do homem. Esta é a verdade flagrante do momento que vivemos: o homem se liberta de seus temores, da ilusão de sua fragilidade existencial, do confinamento planetário, do embuste e da hipocrisia, para viver a vida como ela é, na plenitude das suas potencialidades corporais e espirituais.

O homem se emancipa e toma consciência da sua natureza cósmica. Diante dele está o futuro sem limite, a imortalidade dinâmica e demonstrável que se opõe ao conceito limitado da imortalidade estática e hipotética. Sua herança não é o pecado nem a morte, mas a vida em nova dimensão.


Capítulo 2
Religião como Fato Social

O homem contemporâneo, vivendo numa fase de crise universal, determinada por mudanças rápidas em todos os campos de sua atividade, defronta-se com um grave problema subjetivo: ser ou não ser religioso. Os estudos sobre a origem e o desenvolvimento da Religião, sua natureza, sua significação para o comportamento humano, seus efeitos na dinâmica social e nos processos de renovação das estruturas econômicas e administrativas da sociedade, bem como no desenvolvimento cultural e mais especificamente das pesquisas científicas, oferecem-lhe opções contraditórias que não levam a nenhuma solução, agravando a crise com o levantamento de novos conflitos aparentemente insanáveis.

Culturalmente marginalizada, a partir do Renascimento, a Religião se transformou numa questão opinativa. Para os materialistas e ateus é apenas um resíduo do passado supersticioso; para os pragmatistas, uma questão de conveniência; para os espiritualistas, um problema vital, do qual depende a própria sobrevivência da Humanidade. As posições opiniáticas, em todas essas áreas, geram a desconfiança e a indiferença no seio das massas populares, desprovidas de elementos para uma avaliação do problema e muito menos para a sua equação.

O que hoje se convencionou chamar de Ciência da Religião, abrangendo vários aspectos da questão religiosa em diversas perspectivas científicas, fora do campo religioso, apresenta-se como análise fria do processo religioso, com base nos dados objetivos da História. Mesmo a Psicologia das Religiões vê-se obrigada a pairar no plano das estruturas das escolas psicológicas, sem mergulhar na essência do fenômeno religioso, sob pena de perder a sua qualificação científica.

Acontece com a Religião o mesmo que verificamos no tocante ao problema da vida, cuja solução se busca no pressuposto de que o impulso vital se origina no campo dos aminoácidos. A matéria, considerada como a fonte de toda energia – apesar da comprovação cientifica atual de que é o produto da acumulação energética – mantém-se na posição de geradora da vida. Assim também se busca o segredo da Religião nas suas formas de manifestação, na sua estrutura e no seu funcionamento, como se ela se originasse das entranhas do homem e não das profundezas do seu psiquismo. A vida, a alma, o sentimento e o pensamento não seriam mais do que epifenômenos, efêmeras eclosões do fenômeno orgânico, destinadas a desaparecer com este.

Não pretendo promover uma revolução copérnica no assunto, mas apenas mostrar, se possível, a conveniência de uma mudança de posição. Basta encararmos a Religião como um fato social, segundo a tese de Durkheim, sem nos limitarmos aos aspectos puramente estruturais e funcionais do fato em si, para que as perspectivas da análise se tornem mais amplas e flexíveis. Religião e Sociedade se mostram conjugadas indissoluvelmente no plano histórico. Se tomarmos como exemplo o clã judaico de Abraão, do grupo étnico dos Habiru, na Caldéia, veremos que ali se formava ao mesmo tempo uma nova sociedade e uma nova religião que iriam exercer papel fundamental no desenvolvimento da civilização. Ambas, sociedade e religião, nasciam no seio de outra sociedade e outra religião, organizadas, tradicionais, e delas se distinguiam pelas características étnicas e pela destinação histórica tipicamente carismática, determinada pela tendência monoteísta do clã, sob o impulso de crenças que se corporificavam nas manifestações de entidades mitológicas. Abraão, Isaac e Jacó assumiram a direção do clã e o levariam, através do Egito, às terras de Canaã, na Palestina, na sangrenta epopéia dos relatos bíblicos.

Temos de distinguir no caso dois elementos conjugados que provocam o nascimento da nova religião: primeiro, o elemento étnico, determinante do agrupamento social; segundo, o elemento mítico, determinante da nova orientação religiosa. Este último não se mostra como subjetivo, mas caracteriza-se pela sua objetividade. É a intervenção ativa de influências exógenas na vida do clã, provenientes de manifestações concretas de entidades espirituais. Por mais que isso possa repugnar aos adeptos da interpretação psicológica dos fatos, que só aceitam as manifestações espirituais como de ordem subjetiva, os resultados das pesquisas modernas e contemporâneas no campo das Ciências Psíquicas, atualmente confirmadas pelas pesquisas parapsicológicas, com a anterior comprovação das pesquisas metapsíquicas, mostram que a intervenção espiritual poderia ter sido objetiva, segundo a descrição dos relatos bíblicos.

Admitindo-se a realidade dessa manifestação concreta, que corresponde a milhares de outras verificadas em todas as latitudes do planeta, podemos chegar à conclusão de que as religiões se originam de uma conjugação de fatores humanos e espirituais, nenhum deles podendo ser excluído da análise honesta do fato social, sem que se pratique uma violência contra a realidade mundialmente comprovada. Os fenômenos paranormais aparecem então como o elemento básico do fato social a que chamamos religião. E não é possível, nas condições atuais do desenvolvimento das Ciências, mesmo no plano da Física, opor a essa realidade o simples desmentido dos argumentos, sem provas científicas evidentes de sua impossibilidade.

Assim, a colocação do problema religioso de maneira opiniática, em termos materialistas, pragmáticos ou espiritualistas, nesta altura de nossa evolução cultural, corresponderia a uma verdadeira heresia científica. Não obstante, o desenvolvimento das religiões e sua institucionalização, em todo o mundo, oferecem motivos de suspeita aos espíritos objetivos, que pretendem analisá-las no seu estado atual. Nesse processo histórico inserem-se naturalmente os elementos do psiquismo comum, em suas manifestações pura-mente subjetivas e não raro de ordem patológica. Inserem-se também os elementos psicológicos, hoje bem conhecidos, que determinam a criação do sectarismo religioso e das ordenações institucionais, cujos objetivos são característicos dos interesses sociais. Posições psicológicas individuais ou de grupos, tradições, interesses políticos, preconceitos, superstições, interesses imediatistas, às vezes até mesmo pessoais e outros são elementos que se mesclam no processo de institucionalização das religiões, não raro a partir do próprio momento e da própria fonte em que elas nascem. Mais do que difícil, é quase impossível distingui-los e precisar a importância que tiveram no processo histórico.

As religiões se dividem em duas categorias fundamentais: as reveladas ou naturais e as inventadas ou artificiais. Independentemente das classificações existentes, podemos dispô-las nessas duas linhas de analise. A religião natural, neste caso, é a que surge espontaneamente, entre os povos primitivos ou civilizados, a partir do ensino de um mestre. As artificiais são criadas no meio civilizado, em momentos de crise religiosa, como no caso do Culto da Razão, de Chaumette, ou da Religião da Humanidade, de Augusto Comte. As reformas religiosas não criam tipos novos, apenas modificam os já existentes em virtude de divergências ou da verificação de distorções havidas no processo de institucionalização. A religião individual, da tese de Bergson, que corresponde à Moralidade da tese anterior de Pestalozzi, não se enquadra nesse panorama por constituir uma superação do plano social e uma libertação total de todo condicionamento institucional. Não obstante, pela sua conotação inevitável com a realidade social em que se insere, embora individualmente, não escapa à classificação geral de fato social.

Temos assim uma possibilidade maior de esclarecer o que se pode entender por religião como fato social. Não é apenas um fato isolado que ocorre na dinâmica de uma sociedade, mas um fato que brota da realidade social como expressão de sua própria alma, de suas tendências e suas aspirações, na forma de uma síntese conceptual que engloba, nas suas representações simbólicas e na sua estrutura racional, os elementos básicos do todo social concreto e os vetores ou direções do psiquismo coletivo. Sem essa compreensão intuitiva, e portanto global, do fato social da religião, todas as formas de encarar e interpretar o fenômeno religioso nos levarão fatalmente a condicionamentos restritivos e esquemáticos, que só poderão aumentar a confusão e agravar as erros cometidos na colocação do problema.

Essa complexidade do fenômeno religioso parece ,explicar de maneira mais profunda a marginalização cultural a que a Religião foi relegada a partir do início do mundo moderno. Confinada nas instituições igrejeiras, abastardada pelo profissionalismo clerical, transformada em ópio do povo e sustentáculo de situações sociais profundamente injustas, catalogada entre os produtos espúrios das fases de ignorância supersticiosa, revertida à condição de promotora de guerras, massacres e asfixia das liberdades humanas, utilizada como arma poderosa nas mais desumanas guerras ideológicas, responsabilizada pelas mais cruéis deformações da criatura humana, a Religião se constituiu em barreira de todo o progresso cultural e foi excluída do mundo da Cultura como indesejável.

Não obstante, graças ao poder subjacente nas estruturas formais das religiões e à conotação vital dos seus princípios com as exigências naturais da consciência humana, sua posição no processo cultural moderno e contemporâneo caracterizou-se pela ambivalência. Sua exclusão não pode ser total, nem mesmo nas áreas políticas dominadas pelo materialismo ideológico. Encarada ao mesmo tempo com ódio e respeito, numa estranha mistura de desconfiança e temor, encontrou na interpretação pragmática, utilitária, de mal necessário, o salvo-conduto que lhe permite a circulação tolerada nos meios culturais da atualidade.

Por outro lado, sua presença nos meios culturais é sempre conflitiva. Não há possibilidade de harmonização perfeita entre cultura religiosa e cultura secular, a não ser no plano da religião individual, que rompe o envoltório formal das religiões sociais e é encarada por estas como uma aberração. O resultado mais negativo dessa situação conflitiva foi o aparecimento de outro mal necessário, a implantação mundial da Educação Leiga, que frustrou as possibilidades de reelaboração da experiência religiosa pelas novas gerações e determinou a sedimentação interesseira da sua posição de ambivalência no mundo contemporâneo. Como não podia deixar de acontecer, essa posição ambígua, indefinida e contraditória em si mesma, levou a proporções catastróficas a crise das religiões em nossos dias.

Felizmente a natureza vital da Religião, as suas profundas raízes ônticas (e não apenas ontológicas) e a sua inelutável condição de síntese de toda a realidade social, determinaram o aparecimento de uma síntese cultural em que a Religião, reunificada à revelia da fragmentação institucional das religiões, ressurge entranhada na substância do progresso cultural. Não podemos tratar da crise das religiões em nosso tempo sem enquadrá-la nas dimensões desse fato cultural, onde todos os seus problemas se esclarecem de maneira coerente e profunda. As pessoas integradas no formalismo cultural do século, apegadas a princípios exclusivistas e alheias à recomendação cartesiana contra o preconceito e a precipitação, certamente rejeitarão como negativa e parcial a posição que assumo. Mas a coincidência com a verdade histórica (simplesmente incontestável) com a conflitiva realidade cultural dos nossos dias com as perspectivas científicas abertas por essa síntese cultural e já em parte realizadas, asseguram a validade desta interpretação, acima de qualquer facciosismo. Não seria possível desprezar a evidência dos fatos e das conotações de princípios filosóficos e científicos com o panorama real, objetivo, das mudanças que se verificam dia-a-dia aos nossos olhos, apenas para satisfazer a determinadas normas convencionais. Acima das convenções transitórias e das conveniências de acomodação ao impreciso espírito da época, deve prevalecer o amor à verdade.

Acelera-se o processo das mudanças. Ampliam-se os conflitos entre o velho e o novo em todas as áreas das atividades humanas. Descontrolam-se os sistemas de segurança em todas as instituições. As religiões até ontem mais sólidas e poderosas agonizam em seus leitos de riquezas milenarmente acumuladas. As teologias até ontem inabaláveis, como estrelas fixas do pensamento religioso, estremecem como a unidade pitagórica para desencadear a década de novos universos. Rasgam-se as fronteiras do tempo e do espaço. O homem se equilibra, nervoso e inquieto, na fímbria tenuíssima da crosta planetária, entre dois infinitos que se escancaram nos abismos do microcosmo e do macrocosmo.

Não é essa hora de concessões à ignorância (ilustrada ou não) nem o momento de cachimbadas líricas ao cair do crepúsculo. Estamos na hora da verdade, das proposições claras e precisas, da posição destemida de alerta e vigilância. Precisamos ver, sentir, perceber por todos os nossos sentidos e além dos sentidos, através da intuição e da percepção extra-sensorial, que as peças envelhecidas do xadrez cultural estão sendo mudadas no tabuleiro do mundo. Não há mais lugar para as contemporizações tranqüilas do passado, que acobertavam piedosamente os germes dos conflitos atuais. Agora os conflitos explodem e temos de enfrentá-los face a face.

Encarando a crise das religiões como um processo sócio-cultural integrado na realidade imediata, não podemos escamotear a verdade das soluções que já foram propostas para ela com grande antecedência histórica. Trata-se, por sinal, de um processo cíclico bastante conhecido dos estudiosos da História. Só há uma novidade na crise atual: a violenta ampliação das dimensões da crise, que se abre para visões dantescas do passado e do futuro. No passado, deparamos de novo com as regiões infernais percorridas pelo gênio de Dante; no futuro, com as revoadas angélicas da criação artística de Gustave Doré. Não há o que temer. O passado agoniza e o futuro nos arrebata, pelas mãos de Beatriz, às regiões celestiais. Estamos pisando no limiar da Era Cósmica e as constelações já brilham aos nossos olhos.


Capítulo 3
A Experiência de Deus

Sacerdotes e pastores, homens de fé, sinceros e bons procuraram demonstrar-me que as religiões não estão em crise. Sustentaram que a crise é do homem e não das instituições religiosas. As religiões continuam vivas e atuantes no coração dos crentes – disseram – mas os homens mundanos, que se entregam à loucura do século, conturbam a paisagem terrena. É necessário que os homens busquem a Deus, que tenham a experiência de Deus. E essa experiência só é possível quando o homem se desliga do mundo para ligar-se a Deus através da oração e da meditação. Falaram de milhares de pessoas que, no torvelinho da vida contemporânea, procuram todos os dias, a horas certas, o refúgio dos templos ou de um quarto solitário para tentar um encontro pessoal com Deus. Muitas dessas pessoas já conseguiram a audiência secreta com o Todo Poderoso. São criaturas felizes, iluminadas pela graça divina, que sustentam com sua fé inabalável a continuidade das religiões e garantem a sua expansão.

É bom que existam pessoas assim, dedicadas vestais que zelam pelo fogo sagrado. São os últimos abencerrages do formalismo religioso, flores de estufa cultivadas na penumbra das naves sagradas. Cuidam da fé como jardineiros especializados que cultivam uma espécie vegetal extremamente delicada. Acreditam que os seus canteiros floridos darão sementes para semeaduras ilimitadas por toda a superfície da Terra. Não percebem essas almas eleitas que cultivam exclusivamente a si mesmas, ocultam na aparência piedosa seus conflitos profundos e nada mais fazem do que fugir da realidade escaldante da vida. Não escondem a cabeça na areia, pois mergulham de corpo inteiro no sonho egoísta da salvação pessoal.

As práticas místicas do passado provaram mal a sua eficácia. Do Oriente ao Ocidente, multidões de gerações de crentes desfilaram sem cessar, através dos milênios, pelos templos de todas as religiões. convictas de haverem alcançado a salvação pessoal, enquanto hordas ferozes e exércitos em guerras de extermínio brutal cobriam o mundo de ruínas, cadáveres inocentes, sangue e lágrimas. Os que ouviram Deus em audiência particular não se recusaram a pegar em armas para estraçalhar seus irmãos considerados como réprobos e infiéis. Santos Bispos e Padres, pastores calvinistas, crentes populares, fidelíssimos e humildes, não acenderam suas lâmpadas votivas para iluminar as noites trevosas. Preferiram acender fogueiras inquisitórias e, quando o sol raiava, submeter piedosamente os hereges à morte redentora do garrote-vil, réplica religiosa à guilhotina profana.

Lembro-me do episódio histórico de Jerônimo de Praga. Depois de haver assistido, pelas grades da prisão, seu mestre João Huss ser queimado vivo em praça pública, foi também glorificado com a graça especial de uma fogueira semelhante. No momento em que as chamas começavam a iluminar a sua figura estranha, caridosamente amarrada ao palanque do suplício (para salvação de sua alma rebelde) viu uma pobre velhinha aproximar-se da fogueira com uma acha de lenha e atirá-la ao fogo. Era a sua contribuição piedosa para a salvação do ímpio. Jerônimo exclamou apenas: “Santa simplicidade.” Pouco depois estava reduzido a cinzas, para glória de Deus, e suas cinzas foram lançadas ritualmente nas águas do Reno.

Todas as formas de culto, todos os ritos, todos os sacramentos, todas as cerimônias religiosas, todos os cilícios foram empregados nos milênios sombrios do fanatismo religioso, para a salvação da Humanidade. E eis que agora chegamos a um tempo de descrença generalizada, de materialismo e ateísmo oficializados, de hipocrisia pragmática erigida em sustentáculo das religiões fracassadas. Deus falava diretamente com seu servo Moisés no deserto, falava-lhe cara a cara, ordenando matanças coletivas, genocídios tenebrosos, destruição total dos povos que impediam o acesso dos hebreus à terra dos cananeus, que seria tomada a fio de espada. Deus continua falando em particular a seus servos em nossos dias, para a sustentação das igrejas, enquanto o Diabo não perde tempo e alicia milhões de almas perdidas para as práticas do terrorismo, para a matança de crianças e criaturas inocentes, para assaltos e estupros em toda a face da Terra.

A experiência de Deus sustenta os crentes privilegiados e sustenta suas igrejas salvacionistas. E enquanto não chega a salvação, católicos e protestantes matam-se gloriosamente nas lutas fratricidas da Irlanda, em plena era das mais brilhantes conquistas da inteligência humana. Que estranha experiência é essa, que não revela os seus frutos, que não prova a sua eficácia? Deus estaria, acaso, demasiado velho para não perceber a inutilidade dos seus métodos de salvação pessoal em audiências privadas? E os seus servidores, os clérigos investidos de autoridade divina para implantar na Terra o Reino do Céu, porque não avisam o velho monarca da inutilidade milenarmente provada de sua técnica de conta-gotas?

Não seria mais certo tentarmos a revisão dos conceitos religiosos que nos deram a herança de tantos fracassos e tão espantosa expansão do materialismo e do ateísmo no mundo? Todas as grandes religiões afirmam a onipresença de Deus no Universo. Não obstante, todas consideram o mundo (criado por Deus) como profano, região em que as trevas dominam e o Diabo faz a incessante caçada das almas de Deus. É curioso lembrar que nos tempos mitológicos o mundo era considerado sagrado, a vida uma bênção, os prazeres naturais e as leis da procriação eram graças concedidas pelos deuses aos homens. O monoteísmo judaico, desenvolvido pelo Cristianismo, impregnou o mundo com a onipresença de Deus e o mundo tornou-se profano. Se Deus está presente num grão de areia, numa folha de relva, num fio dos nossos cabelos e numa pena das asas de um pássaro, como, apesar dessa impregnação divina, o homem se defronta com a impureza do mundo? Por que estranho motivo necessitamos de ritos especiais para purificar a inocência de uma criança, se Deus está presente no seu olhar puro e límpido, no seu choro, na meiguice do seu rostinho ainda não marcado pelo fogo das paixões terrenas? E porque precisa o cadáver de recomendação, com aspersão de água benta, se a ressurreição dos mortos se faz, como ensina o Apóstolo Paulo na I Epistola aos Coríntios e como Jesus exemplificou na sua própria morte, no corpo espiritual e não no corpo material?

São esses e outros muitos problemas acumulados nos erros milenares dos teólogos que levam o homem contemporâneo à descrença e ao materialismo, ao ateísmo e ao niilismo. São todos esses erros que colocam as religiões em crise e as levarão à morte sem ressurreição. Considerando-se, porém, esse estranho panorama religioso da Terra numa perspectiva histórica, à luz da razão, compreende-se facilmente que os erros de ontem, até hoje sustentados pelas religiões, foram úteis e necessários nos tempos de ignorância, em que os problemas espirituais não podiam ser colocados em termos racionais. Há justificativas válidas para o passado religioso, mas não justificativas possíveis para o seu presente contraditório e absurdo. A tese, mais do que absurda, do Cristianismo Ateu, com que teólogos rebeldes procuram hoje remendar as vestes esfarrapadas das igrejas, só vem acrescentar maior confusão ao momento de agonia das religiões envelhecidas.

O problema da experiência de Deus poderia ser resolvido com um mínimo de reflexão. Se Deus está em nós, e por isso somos deuses em potência, segundo a própria expressão evangélica, porque necessitamos de uma busca artificial de Deus para termos a experiência da sua realidade? Se fomos criados por Deus e se Deus pôs em nós a sua marca, como afirmou Descartes – a idéia de Deus em nós, que é inata – já não trazemos, ao nascer, a experiência de Deus? E se, no desenvolver da vida humana, o homem nada mais faz do que cumprir um desígnio de Deus, assistido pelos Anjos Guardiães, porque tem ele de buscar a Deus através de uma prática artificial e egoísta, procurando preservar-se sozinho num mundo em que a maioria se perde irremediavelmente? Moisés supunha ter ouvido o próprio Deus no Sinai, mas o Apóstolo Paulo explicou que Deus lhe falara através de mensageiros, que são anjos. As pessoas que buscam hoje a experiência de Deus em audiência privada serão mais dignas do que Moisés, não estarão sujeitas a ouvir a voz de um anjo, que tanto pode ser bom quanto mau, pois as próprias igrejas admitem que os anjos decaídos andam à solta pela Terra procurando roubar para o Inferno as almas de Deus? Quem estará livre, na sua piedosa tarefa de salvar-se a si mesmo, de ser tentado pelo Diabo, que tentou o próprio Jesus nas suas meditações solitárias no Deserto?

As práticas místicas do passado não servem para a era da razão, em que nos encontramos na antevéspera da era do espírito. Orar e meditar é evidentemente um exercício religioso respeitável e necessário em todos os tempos. A oração nos liga aos planos superiores do espírito e a meditação sobre questões elevadas desenvolve a nossa capacidade de compreensão espiritual. Mas o dogma da experiência de Deus através de um pretensioso colóquio direto e pessoal com a Divindade é uma proposição egoísta e vaidosa. Se Deus é o Absoluto e nós somos relativos, a humildade não nos aconselha a ter mais cautela em nossas relações pessoais com a Divindade? São muitos os casos de perturbações mentais, de obsessões perigosas, de lamentáveis desequilíbrios psíquicos decorrentes de exageradas pretensões das criaturas humanas no campo das práticas religiosas. A História das Religiões é marcada por terríveis experiências nesse sentido. Basta lembrarmos os casos de perturbações coletivas em conventos e mosteiros da Idade Média, onde os excessos de misticismo transformaram criaturas piedosas em vítimas de si mesmas, sujeitando-as não raro à própria condenação da igreja a que pertenciam e a que procuravam servir.

Os dogmas de fé, que formam a estrutura conceptual das igrejas, são as pedras de tropeço do seu caminho evolutivo. Partindo do princípio de que a Revelação Divina é a própria palavra de Deus dirigida aos homens, as igrejas se anquilosaram em seus dogmas intocáveis, pois a exegese humana não poderia alterar as ordenações ao próprio Deus. Na verdade, a alteração se verificou em vários casos, apesar disso, mas decisões conciliares puseram a última pá de cimento nos erros cometidos. As estruturas eclesiásticas tornaram-se rígidas e as igrejas confirmaram, no seu espírito, a ossatura de pedra de suas catedrais. Vangloriam-se ainda hoje da sua imutabilidade, num mundo em que tudo evolui sem cessar. Os resultados dessa atitude ilusória e pretensiosa só poderiam ser nefastos, como vemos atualmente no lento e doloroso processo de agonia das religiões. Incidiram assim no pecado do apego, contra o qual os Evangelhos advertiram os homens. Apegaram-se de tal maneira à própria vida, que perderam a vida em abundância que Jesus prometeu aos que se desapegassem. As liberalidades atuais chegaram demasiado tarde.

A palavra dogma é grega e seu sentido original é opinião. Adquiriu em filosofia e religião o sentido de princípio doutrinário. Nas Escrituras religiosas aparece algumas vezes com o sentido de édito ou decreto de autoridades judaicas ou romanas. Entre o dogma religioso e o filosófico há uma diferença fundamental. O dogma religioso é de fé, princípio de fé que não pode ser contraditado, pois provém da Revelação de Deus. O dogma filosófico é racional, dogma de razão, ou seja, princípio de uma doutrina racionalmente estruturada. O sentido religioso superou os demais por motivo das conseqüências muitas vezes desastrosas da sua rigidez e imutabilidade. Se falarmos, por exemplo, em dogmática, esse termo é geralmente entendido como designando a estrutura dos dogmas fundamentais de uma religião. Por isso, a adjetivação de dogmática, que implica também o masculino, corno nas expressões: pessoa dogmática, posição dogmática ou homem dogmático, significa intransigência de opiniões. O mesmo acontece com o substantivo dogmatismo, que designa um sistema de opiniões intransigentes.

Estas influências religiosas na semântica revelam a intensidade da rigidez a que as igrejas se entregaram, através dos séculos e dos milênios, na defesa da suposta eternidade de seus princípios básicos. Temos, portanto, no dogma de fé, um dos motivos fundamentais da crise das religiões em nossos dias. No Espiritismo, como em todas as doutrinas filosóficas, existem dogmas de razão, como o da existência de Deus, o da reencarnação, o da comunicabilidade dos espíritos após a morte. Muitos adeptos estranham a presença dessa palavra nos textos de uma doutrina que se afirma antidogmática, aberta ao livre exame de todos os seus princípios. São pessoas ainda apegadas ao sentido religioso da palavra. Não há nenhuma razão para essa estranheza, como já vimos, do ponto de vista cultural.

O problema da religião no Espiritismo tem provocado discussões e controvérsias infindáveis, porque essa doutrina não se apresenta corno religião no sentido comum do termo. Allan Kardec, discípulo de Pestalozzi, adotava a posição de seu mestre no tocante à classificação das religiões. Pestalozzi admitia a existência de três tipos de religião: a animal ou primitiva, a social e a espiritual. Mas recusava-se a chamar esta última de religião, dando-lhe a designação de moralidade. Isso porque a religião superior ou espiritual, segundo ele, só era professada individualmente pela criatura que superava o ser social e desenvolvia em si o ser moral. Kardec recusou-se a falar em Religião Espírita, sustentando que o Espiritismo é doutrina científica e filosófica, de conseqüências morais. Mas deu a essas conseqüências enorme importância ao considerar o Espiritismo como desenvolvimento histórico do Cristianismo, destinado a restabelecer a verdade dos princípios cristãos, deformados pelo processo natural de sincretismo-religioso que originou as igrejas cristãs.

Essa posição espírita manteve a doutrina e o movimento doutrinário em posição marginal no campo religioso. Para os espíritas, entretanto, a posição da doutrina não é marginal, mas superior, pois o Espiritismo representaria o cumprimento da profecia evangélica da Religião em espírito e verdade, que se desenvolveria sob a égide do próprio Cristo. A religião espírita não se organizou em forma de igreja, não admite sacramentos nem admitiu nenhuma forma de autoridade religiosa de tipo sacerdotal. Não há batismo, nem casamento religioso no Espiritismo, nem confissões ou indulgências. Todos esses formalismos são considerados como de origem pagã e judaica. Entende-se o batismo como rito de iniciação, que Jesus substituiu pelo batismo do espírito, sendo este considerado como a iniciação no conhecimento doutrinário, feita naturalmente pelo estudo da doutrina, sem nenhum ato ritual. Admite-se também que o batismo do espírito, segundo o texto do Livro de Atos dos Apóstolos sobre a visita de Pedro à casa do centurião Cornélius, no porto de Jope, pode completar-se, nos médiuns, quando se verifica espontaneamente, com o desenvolvimento da mediunidade.

Essa posição espírita no campo religioso causou numerosas dificuldades aos espíritas no tocante às relações de instituições doutrinárias com os poderes oficiais, particularmente para a declaração de religião em documentos oficiais, para o resguardo dos direitos escolares em face do ensino religioso, para a declaração de religião nos recenseamentos da população, até que medidas oficiais reconheceram esses direitos. Em compensação, o Espiritismo ficou livre das conseqüências da crise religiosa, que não o atingiram. Demonstrarei nos capítulos seguintes a posição da Religião Espírita em face dessa crise, que é evidentemente uma posição de vanguarda. Sua contribuição para a racionalização dos princípios religiosos, para a reintegração da Religião no plano cultural, particularmente no tocante aos problemas científicos da atualidade, é realmente substancial. No campo filosófico a posição espírita é também vanguardeira, pois desde o século passado sua filosofia se apresenta como livre dos prejuízos do espírito de sistema, conservando-se aberta a todas as renovações que decorrem de descobertas cientificamente comprovadas. Livre da dogmática religiosa e da sistemática filosófica, apoiada inteiramente na pesquisa cientifica, a doutrina está de fato a cavaleiro nas crises da atualidade.


Capítulo 4
Experiência no Tempo

O homem realiza a experiência de Deus no tempo, ao longo de sua evolução natural. Não se pode ter uma experiência artificial de Deus em alguns minutos ou algumas horas de meditação. Essa experiência é natural – e de natureza vital –, faz parte integrante da vida e da existência humana. Podemos lembrar a expressão de Descartes: A idéia de Deus no homem é a marca do obreiro na sua obra. Descartes foi o precursor de Kardec, como João Batista o foi do Cristo. Temos, assim, uma curiosa correlação histórica entre o advento do Cristianismo e o advento do Espiritismo, que se completa em numerosos outros aspectos.

Lembrando a teoria da reminiscência em Platão, em que as almas nascem na Terra marcadas pela recordação do mundo das idéias, compreenderemos mais facilmente a existência da idéia inata de Deus no homem. Essa idéia inata não é apenas marca, mas também o marco inicial e o pivô em torno do qual se processa todo o desenvolvimento espiritual da criatura humana. Podemos acompanhar esse processo desde a adoração dos elementos naturais pelo homem Primitivo (a partir da litolatria, adoração da pedra e de outras formações minerais) até à eclosão do monoteísmo, com a idéia do Deus Único, que Kant considerou o mais elevado conceito formulado pela mente humana. E vemos então que a idéia de Deus representa, histórica e antropologicamente, uma espécie de marca-passo de toda a evolução do homem.

No episódio do Cógito, da cogitação de Descartes sobre a realidade ou não da existência, temos o momento em que ele descobre, no mais profundo de si mesmo, uma idéia estranha, que é a da existência de um Ser Absoluto e portanto absolutamente perfeito. Essa idéia não podia ter sido originada pelas suas experiências de ser relativo e imperfeito. Descartes a considerou estranha porque só poderia vir de fora dele, da existência real desse Ser Absoluto. Descobria assim que tivera uma experiência de Deus, inteiramente independente de todas as suas experiências terrenas.

A importância desses fatos históricos e culturais foi negligenciada pela cultura leiga que se desenvolveu na Renascença e deu forma ao mundo moderno. O predomínio crescente das conquistas materiais da Civilização Ocidental asfixiou essas conquistas do espírito. O homem se esqueceu do significado desses fatos, desses episódios culminantes da cultura humana, e as religiões dogmáticas transformaram a idéia de Deus em simples crença desprovida de raízes experimentais. Coube ao Espiritismo restabelecer a verdade e colocar a experiência de Deus no seu devido lugar, no vasto panorama da evolução da Humanidade. Trata-se da mais importante e profunda experiência do homem, uma experiência vital que deverá levá-lo à compreensão da sua verdadeira natureza e do seu verdadeiro destino. Impossível reduzi-la a uma conquista particular e eventual de algumas criaturas que hoje se entregam a práticas de meditação.

Claro que com isso não pretendo negar nem diminuir o valor da meditação como disciplina mental e como recurso de elevação espiritual. Sustento apenas que a meditação é o produto e não a produtora da experiência de Deus, pois essa experiência já marcava o homem muito antes que ele houvesse adquirido o poder do pensamento abstrato e pudesse meditar. A vivência religiosa, pelo simples fato de ser vivência e não reflexão, é inerente ao homem desde o seu aparecimento no planeta. Essa é uma questão que hoje se coloca de maneira evidente.

A concepção espírita vai mais longe e mais fundo, negando ao homem atual o direito de isolar-se do mundo para buscar a Deus e, portanto, de buscar a Deus ou aos poderes espirituais através de processos artificiais. O meio natural de evolução, para o homem e para todas as coisas e todos os seres, é a relação. Se nos afastamos do relacionamento social e cultural para nos elevarmos, estamos nos colocando em posição errada e tomando um caminho ilusório. A busca solitária de Deus é um ato egocêntrico e preferencial. O místico vulgar não mergulha em si mesmo para encontrar em Deus a relação com o mundo, como o fez Descartes, mas, pelo contrário, para desligar-se do mundo e ligar-se isoladamente a Deus. Não é guiado pelo amor à Humanidade, mas pelo amor a si mesmo. Prefere elevar-se acima dos outros para encontrar em Deus o refúgio e a fortaleza em que poderá construir e usufruir sozinho a sua felicidade particular. Prefere a fuga ao mundo, em termos de superioridade pessoal e portanto egoísta, anti-religiosa, à ligação com o mundo e com Deus para a realização da unidade global que é o objetivo da religião.

A diferença absoluta entre a posição do Cristo e a Posição do Buda e das chamadas religiões orientais é precisamente essa. Enquanto o Buda abandona o mundo para buscar a Deus na solidão, o Cristo mergulha no mundo para religar os homens a Deus. A ação do Buda é subjetiva e contrária à experiência do mundo, enquanto a ação do Cristo é objetiva, considerando a experiência do mundo como necessária ao desenvolvimento da experiência de Deus no homem. Meio milhão de pessoas entregues à meditação para tentar a ligação pessoal de cada uma delas com Deus não representa um esforço coletivo de unidade – uma ação religiosa –, mas a simples coincidência de esforços particulares e isoladas, como vemos na busca do ouro nas regiões auríferas. Não se trata, pois, de uma ação coletiva e sim de milhares de ações individuais e egoístas.

Não quero de maneira alguma negar o valor espiritual do Buda, cuja posição correspondia á necessidade de orientação de uma comunidade de almas estranhas à Terra, exiladas em nosso planeta, que tinham por objetivo a volta aos seus mundos de origem. Nesse caso, a negação individual do mundo (do nosso mundo) tornava-se coletiva em virtude do objetivo comum do retorno ao paraíso perdido. A teoria espírita da migração entre os mundos – apoiada na teoria cristã das muitas moradas da Casa do Pai – é a chave indispensável à compreensão desse problema.

A evolução de cada mundo atinge o momento em que a sua população se divide em dois campos bem diferenciados, como vemos hoje na Terra. Um deles evoluiu o suficiente para integrar uma humanidade planetária superior, o outro continua em estado inferior. A população desse campo inferior precisa ser transferida para outro mundo que esteja no seu nível evolutivo, a fim de que as criaturas refaçam ali o tempo perdido. Quando essa população atingir ali, no outro planeta o nível de evolução necessário, voltará ao seu mundo de origem. Nessa situação, a vivência isolada nas práticas solitárias da meditação constitui uma recapitulação de aprendizado. Era a essas almas emigradas que o Buda dirigia a sua mensagem superior, como outros haviam feito antes dele.

Em nossa humanidade terrena somente a ação do Cristo – vencendo o mundo, segundo suas próprias palavras – impulsionou-nos ao aceleramento evolutivo que vem transformando a Terra não só nas áreas cristãs, mas em toda a sua extensão. O Cristianismo institucional, igrejeiro, absorvendo elementos espirituais das religiões orientais, que se opunham aos princípios de entrega ao mundo das religiões mitológicas, mergulhou no ascetismo das ordens monásticas do Oriente e no isolacionismo da concepção sócio-cêntrica de Israel. As seitas cristãs fecharam-se em si mesmas, desde a comunidade apostólica do Livro de Atos dos Apóstolos, estabelecendo uma divisão arbitrária entre os escolhidos de Deus e os abandonados por Ele. A prática do batismo do espírito, do tempo de Jesus, que dava à criatura a experiência direta da realidade espiritual, converteu-se nas formas de evocação ritual e privilegiada do Espírito Santo, que dá ao crente a ilusão de uma separatividade conferida pela graça. As igrejas cristãs transformaram-se em ilhas de santidade e pureza em meio à impureza do mundo, como a Israel antiga no mundo mitológico. A experiência de Deus, pessoal e intransferível, substituiu a experiência de Deus no mundo, a vivência universal do ensino e do exemplo de Jesus. É por isso que os cristãos de hoje se formalizam em grupos sócio-cêntricos fechados.

Ao contrário disso, a revelação espírita considera a graça simplesmente como a força que Deus concede ao homem de boa-vontade para vencer as suas imperfeições, seja ele desta ou daquela religião ou de nenhuma delas. O batismo exclusivista e sectário é substituído pelo antigo batismo do espírito, acessível a todos, não segundo o critério eclesiástico mas segundo o critério de Deus. Nada exemplifica melhor essa questão do que o episódio de Atos em que o Apóstolo Pedro, em Jope, se recusa a atender o centurião Cornélius, mas advertido pelo mundo espiritual o atende e descobre o sentido universal do batismo do espírito. Pedro, ainda imbuído dos princípios isolacionistas do Judaísmo, não podia entender que lhe fosse permitido socorrer uma família de romanos impuros em que a mediunidade eclodia. Foi necessário que o Espírito advertisse – a ele que seguira e ouvira o Cristo até o momento da prisão – de que Deus nada fizera de impuro, para que a sua consciência se abrisse à verdadeira compreensão da mensagem cristã.

O egocentrismo humano, essa centralização do homem em si mesmo, que gera e alimenta o orgulho, é uma decorrência natural das fases de formação da consciência, de formação do indivíduo como uma unidade espiritual específica, aposta à pluralidade e confusão do mundo. Mas esse egocentrismo, que deve abrir-se em altruísmo na proporção em que o homem amadurece, é alimentado pelo anseio de privilégios que as igrejas satisfazem com as suas concessões ilusórias aos fiéis. Tudo tem a sua utilidade em seu tempo, mas depois se torna inútil e até mesmo prejudicial. No próprio meio espírita essa tendência a conservar posições do passado ainda subsiste, particularmente no plano institucional, onde os postos de comando reacendem no espírito a chama de velhas e desvairadas ambições. O homem, espírito encarnado – envolto na neblina da carne, como ensina Emmanuel – está sempre e inevitavelmente propenso a reincidir em seus erros do passado. A volta às condições da vida material o coloca de novo ante a possibilidade de desfrutar as oportunidades que lhe foram úteis ou agradáveis no passado. As ilusões renascem no seu coração humano. As perspectivas espirituais se perdem no nevoeiro. Nas religiões formalistas esse apelo do passado adquire muito mais força.

A luta contra os resíduos do passado exige oração e vigilância, como Jesus ensinou. Não obstante a idealização do Diabo, como personificação mitológica do Mal, todas as grandes religiões reconhecem que a tentação está dentro de nós mesmos. Muito mais que a influência dos espíritos inferiores, o que nos arrasta de volta aos velhos caminhos do erro são as próprias tendências que trazemos em nosso íntimo. A oração consciente, feita com sinceridade e fé, areja o nosso íntimo, lança a sua luz sobre as escuras paisagens interiores da alma, fazendo-nos discernir o contorno real das coisas. Nada se modifica em nós, mas iluminamo-nos por dentro. E se mantivermos a nossa vigilância na intenção verdadeira de acertar, facilmente veremos o que nos convém e o que não nos convém. Poderemos então repetir com Paulo: Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém. E, seguindo assim o caminho que a prudência esclarecida nos indica, tudo modificaremos para melhor em nós mesmos, tornando-nos aptos a auxiliar os outros a se melhorarem.

Temos a cada instante, a cada minuto, diariamente em nossa vida a experiência de Deus. Porque a própria vida é, em si mesma, essa experiência. Desde o momento em que nascemos até o instante final da nossa existência estamos em relação permanente com Deus, não o Deus particular desta ou daquela igreja, mas o Deus em espírito e matéria que se manifesta numa haste de relva, na beleza gratuita de uma flor, no brilho de uma estrela, num perfume, numa voz, numa nota musical isolada, num aperto de mão e principalmente numa idéia, num sentimento, numa aspiração que brota do anseio de transcendência da nossa alma. O que nos falta é estar mais atentos, mais despertos para a percepção consciente desses múltiplos e infindáveis milagres da vida cotidiana. O homem sem Deus é somente aquele que se nega a aceitar a presença de Deus em si e em seu redor. Para esse homem, a meditação é um ensaio no campo da frustração, um mergulho no mundo opaco do sem-sentido.


Capítulo 5
Deus, Espírito e Matéria

Para melhor entender-se a expressão Deus, em espírito e matéria, que usei no capitulo anterior, – e melhor entender-se também o problema da experiência de Deus no tempo – julgo necessário tratar dos princípios da cosmogonia espírita, na qual se integra a teoria da gênese e formação do espírito. O contra-senso da afirmação bíblica de que Deus criou o mundo do nada, que tanto trabalho deu aos teólogos, é explicado na revelação espírita pela teoria da Trindade Universal. Deus, o Ser Absoluto, é a fonte de toda a Criação. Existindo essa fonte solitária, é logicamente necessário admitir-se um meio em que ela existia. Esse meio, que seria o espaço vazio, foi considerado o nada. Para tratar do Absoluto num plano relativo, como o nosso, é preciso usar expressões relativas.

A concepção espírita do mundo não admite a existência do nada. O Universo é pleno – é uma plenitude – não havendo nele nenhuma possibilidade de vácuo. Essa teoria espírita da plenitude está hoje sendo confirmada pela pesquisa científica do Cosmos. As regiões siderais que poderíamos julgar vazias mostram-se como campos de forças, carregadas de energias que escapam aos nossos sentidos. Esse pré-universo energético seria o que Buda definiu como o mundo sempre existente, que nunca foi criado. Pitágoras, em sua filosofia matemática, considerou Deus como o número 1 que desencadeou a década. O UM, número primeiro, existia imóvel e solitário no Inefável (naquilo que para nós seria o nada) e nesse caso o nada seria a imobilidade absoluta. Houve em certo momento cósmico, não se pode saber como nem porquê, um estremecimento do número 1, que assim produziu o 2 e a seguir os demais números até o 10. Completando-se a década, tivemos o Todo, a Criação se fizera por si mesma, o Universo surgira e com ele o tempo. É claro que não dispomos de recursos para investigar as origens primeiras, e essas teorias não passam de tentativas de explicações lógicas, destinadas a nos proporcionar uma base alegórica ou hipotética para uma possível concepção do mistério da Criação.

O Espiritismo sustenta a possibilidade de conhecermos a verdade a respeito, quando houvermos desenvolvido as potencialidades espirituais que nos elevarão acima da condição humana. Enquanto não chegarmos lá, essas hipóteses devem servir para mostrar-nos que dispomos de capacidade para ir além dos limites do pensamento dialético, além do conhecimento indutivo baseado no jogo dos contrastes.

Assim sendo, não podemos aceitar a alegoria bíblica da Criação ao pé da letra, como verdade revelada, nem contestá-la orgulhosamente com a arrogância do materialismo. Na posição do crente temos a ingenuidade e na posição do materialista temos a arrogância do homem, esse pedacinho de fermento pensante, como dizia o Lobo do Mar de Jack London. O espiritualismo simplório e o materialismo atrevido são os dois pólos da estupidez humana. O bom-senso, que é a regra de ouro do Espiritismo, nos livra da estupidez e nos oferece a possibilidade de chegarmos à sabedoria sem muito barulho e disputas inúteis.

Partindo do pressuposto de que o mundo deve ter uma origem e aceitando a idéia de que foi criado por Deus – pois assim o afirmam todos os Espíritos Superiores que se referem ao assunto e que revelam uma sabedoria superior à nossa –, o Espiritismo admite que a fonte inicial é uma inteligência cósmica. Mas porque uma inteligência e não apenas um centro de forças casualmente aglutinadas no caos primitivo? Porque o Universo se mostra organizado inteligentemente em todas as suas dimensões, até onde podemos observá-lo. Seria ilógico, absurdo, supormos que essa inteligência da estrutura universal, que se manifesta em minúcias ainda inacessíveis à pesquisa científica, desde as partículas atômicas até aos genes biológicos e seus códigos admiráveis, seja o resultado de um simples acaso. Nenhuma cabeça bem-pensante poderia admitir isso. A teoria espírita – teoria e não hipótese, pois esta já provou a sua validade através de todas as pesquisas possíveis – pode ser resumida neste axioma doutrinário: Não há efeito inteligente sem causa inteligente, e a grandeza do efeito corresponde à grandeza da causa.

Colocando assim o problema, sua equação se torna clara. O Espiritismo a elabora em termos dialéticos: a fonte inicial, Deus, existindo em meio ao inefável, constituído de matéria dispersa no espaço, emite o seu pensamento criador que aglutina e estrutura a matéria. Temos assim a Trindade Universal que as religiões apresentam de maneira antropomórfica. Essa trindade não é formada de pessoas, mas de substâncias regidas por uma possível Inteligência, constituindo-se assim: Deus, Espírito e Matéria.

O espírito que a constitui não é uma entidade definida, mas o pensamento de Deus que se expande no Cosmos em forma de substância. Essa substância espiritual penetra o oceano de matéria rarefeita, dispersa, e aglutina suas partículas, estruturando-as para a formação das coisas e dos seres. Da tese espiritual e da antítese material resulta a síntese do real, do mundo criado por um poder inteligente.

Qual a razão de ser, o objetivo, a finalidade e o sentido dessa Criação? O Espiritismo admite que não podemos conhecer tudo isso em nosso estágio de desenvolvimento, mas podemos, através da nossa inteligência humana, indagar, perquirir, pesquisar e chegar a resultados logicamente possíveis. Os dados científicos da Geologia, por exemplo, nos mostram a Terra como o resultado de um longo processo de formação, no qual é evidente a intenção de atingir um tipo de perfeição em todas as coisas e todos os seres. As formas imprecisas e grotescas das primeiras idades do planeta vão se aprimorando ao longo do tempo, numa sucessão nítida de fases de elaboração caprichosa. Os dados da Antropologia nos revelam o aprimoramento do homem nas civilizações sucessivas, a partir das selvas. Os dados da Psicologia nos desvendam os anseios da alma humana, na busca incessante de transcendência, de superação do seu condicionamento orgânico-material. Os dados da Estética revelam-nos o anseio de beleza, perfeição e equilíbrio que rege o desenvolvimento individual e coletivo, o indivíduo e a espécie.

Gustave Geley, em seu livro Do Inconsciente ao Consciente, propõe-nos uma visão dialética do mundo em que as coisas se transformam em seres e estes avançam em direção à consciência. É a mesma visão da teoria dialética de Hegel. Oliver Lodge considera o homem atual como um processo em desenvolvimento. O Existencialismo, em suas várias escolas, encara o homem como um pro-jecto, um vetor que se lança na existência em busca da transcendência. Para Sartre, o homem se frustra nessa busca e se nadifica na morte, se reduz a nada. Para Heidegger, o homem se realiza no trajeto existencial e se completa na morte. Para Jaspers, o homem consegue transcender-se em dois sentidos: o horizontal, na relação social, e o vertical, na busca de Deus. Para Léon Denis, todo o processo de transformação se explica por esta frase genial: A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem. Para Kardec, a transcendência humana nos leva ao plano da angelitude, pois os anjos nada mais são do que espíritos que superaram as condições inferiores da humanidade.

Temos assim o Universo, com a multiplicidade de seus mundos rolantes no espaço sideral, de seus sóis e suas galáxias, como um fluxo permanente de forças em transformação incessante, objetivando a formação dos seres e a elevação destes a condições divinas. Só a hipótese de Sartre admite a inutilidade como finalidade universal.

Os Espíritos Superiores, em suas comunicações, desmentem e rejeitam essa hipótese negativa, sustentando a natureza teleológica do Universo. Consideram a Criação como um gigantesco processo que só pode ser definido corno o fiat em sua fase inicial, quando a Mente Suprema emite o seu pensamento para unir essa emanação do seu espírito à matéria dispersa. Depois desse instante criador desencadeia-se o tempo e é nele que o processo criador vai desenvolver-se lentamente através dos milênios. E a superioridade desses Espíritos não é avaliada por medidas ou métodos místicos, mas por verificações racionais. Os Espíritos Superiores não ensinam apenas através de idéias, mas também de fatos. Provam, através da produção de fenômenos paranormais, que possuem uma ciência muito superior à nossa, um conhecimento do espírito e da matéria que estamos longe de atingir e uma compreensão de Deus que supera de muito as nossas interpretações antropomórficas da Inteligência Criadora. Além disso, as suas previsões se confirmam de maneira rigorosa, demonstrando que possuem recursos de futurologia muito mais avançados e seguros que os nossos. Suas proposições são ainda relacionadas com os nossos conhecimentos, completando-se na medida em que o nosso adiantamento permite que nos falem a respeito sem provocar dúvidas ou confusões em nossa mente.

A relação de Deus com o Universo não é apresentada em termos de mistério, mas de realidade verificável. Na Terra, o homem representa o ponto culminante do processo evolutivo. A criação do homem à imagem e semelhança de Deus explica-se em termos espirituais. Porque o homem é o único ser terreno que possui mente criadora, pensamento produtivo e continuo, psiquismo refinado e complexo, capacidade de percepção e de intuição que lhe permitem penetrar na essência das coisas, ultrapassando a aparência ilusória. Feito assim, como um reflexo da divindade, o homem se liga a Deus não apenas pelos laços do ato criador, mas também por afinidade psíquica e espiritual. É um herdeiro de Deus e co-herdeiro de Cristo, como escreveu Paulo, que se prepara para entrar na herança do futuro.

A relação de Deus com o homem começa, portanto, muito antes que ele se defina como criatura humana. Desde o momento em que o pensamento de Deus se une à matéria para modelá-la, e nas fases subseqüentes, em que espírito e matéria se fundem nas formas substanciais de que tratou Aristóteles, a relação de Deus com o homem se desenvolve em progressão constante. Quando se estrutura a consciência humana no ser em evolução, a marca de Deus ali está presente, na lei de adoração que é o sentimento inato de sua filiação divina e se manifestará no sentimento religioso, base de todas as experiências religiosas da Humanidade. Temos de dividir o conceito da experiência de Deus, em que tanto se apóiam as religiões formalistas, em dois tipos bem definidos de experiência: a de Deus, que começa no fiat, como elemento ontogenético (elemento constitutivo da própria gênese do homem) e a religiosa, que corresponde às tentativas de uma tomada de consciência de Deus através de formulações religiosas por meio de rituais, instituição de igrejas, sistemática litúrgica e sacramental, organização clerical, ordenações e elaboração dogmática. Confundir a experiência genética de Deus com a experiência formal da vivência religiosa é característica do pensamento superficial, que facilmente se acomoda no jogo aparencial das instituições humanas. Deus, espírito e matéria formam o triângulo fundamental de toda a realidade. A onipresença de Deus não implica o mistério de uma pessoa sobrenatural que se dispersa nas coisas, mas a participação do pensamento criador de Deus em tudo, desde a formação do átomo até a formação da consciência. Compreendendo que espírito e matéria são os dois elementos estruturais da realidade, compreendemos que Deus esteja presente em todas as partículas do Universo, como o poder criador, onisciente, controlador e mantenedor de todo o equilíbrio universal. Deus penetra o mundo e está nele, como a seiva no vegetal, mas não se reduz a ele, pois permanece inalterável como a fonte de que tudo emanou.

A Ciência atual está chegando rapidamente a essa constatação. Dizia o físico nuclear Arthur Compton, em seu ensaio sobre o lugar do homem no Universo, que descobrimos a energia por trás da matéria, mas já começamos a perceber que por trás da energia existe algo mais, que parece ser pensamento. A unidade, a coerência, a perfeição dessa concepção espírita do mundo e do homem passam despercebidos no tumultuar das teorias absurdas que, como escreveu Charles Richet, atravancam o caminho da nossa Ciência. Mas parece já próximo o momento em que o caminho se tornará livre.

Não há lugar, nessa concepção admirável, para o equívoco da contradição Espiritualismo-Materialismo em que até agora nos debatemos. Espírito e matéria aparecem sempre unidos, interligados e interatuantes, na dialética da Criação. E a negação de Deus, como observou Descartes, é tão absurda como pretendermos tirar o Sol do Sistema Solar.


Capítulo 6
A Criação do Homem

Concedo-me o direito de abstrair-me do problema de Deus para examinar a questão da criação do homem. Os cientistas se colocaram precisamente nessa posição e admitiram a existência de um processo evolutivo no qual o homem aparece como o resultado de uma filogênese fantástica. Dos animais inferiores até os superiores, num desenvolvimento progressivo e complexo, as forças naturais modelaram formas sucessivas de vida que deram como resultado o aparecimento da espécie humana na Terra. A superioridade do homem ante as espécies animais de que ele procederia suscitou dúvidas e debates que permanecem até hoje. Simone de Beauvoir, discípula e companheira de Sartre no campo da concepção existencialista sem Deus, admitiu que a palavra espécie não pode ser aplicada à humanidade, que não é uma espécie animal, mas um devir, algo em auto-evolução constante e irrefreável. Alfred Russell Wallace, êmulo de Darwin no campo evolucionista, opôs-se ao materialismo biológico daquele, sustentando uma posição espiritualista. De Spencer a Bergson a concepção evolucionista conseguiu firmar-se como a mais elevada interpretação da realidade, apesar da insistência das correntes dogmáticas-religiosas e das correntes irracionalistas em combatê-la, considerando-a simples teoria metafísica sem bases científicas.

Após a segunda guerra mundial e em conseqüência das atrocidades a que grandes nações civilizadas foram conduzidas, o pessimismo levou o homem a novas formas de dúvida. Passou-se a falar em mudanças, não em progresso ou evolução. Produto do susto e da decepção, esse recuo está sendo superado pelo próprio avanço científico, em que os processos da evolução se confirmam continuamente. Kardec já advertia, no século passado, que o mal das interpretações humanas está na falta de uma visão mais ampla e profunda da realidade. Os homens vêem apenas um ângulo do quadro geral da Natureza e se apegam a essa percepção restrita para a elaboração de seus pensamentos. Exemplo típico dessa restrição mental é a tentativa, hoje renovada, de separar a evolução biológica, considerada inegável, dos demais aspectos do processo evolutivo universal. Uma restrição arbitrária, característica da orientação analítica da pesquisa científica e oposta à visão de conjunto dos métodos conclusivos da reflexão filosófica.

Na Ciência, como em tudo, temos de reconhecer a oposição dos contrários. O método analítico é uma faca de dois gumes. Por um lado nos faculta a precisão objetiva no conhecimento de uma realidade específica, por outro lado nos impede a visão de conjunto. Foi exatamente por isso que se tornou necessário, após o aparente desprestígio da Filosofia, ante as conquistas inegáveis da pesquisa científica, recorrer-se à Filosofia das Ciências para evitar-se a fragmentação total do Conhecimento. Só no plano filosófico se tornou possível reajustar as conquistas científicas num quadro geral de interpretação da realidade. Mas existe outro fator determinante da desconfiança científica em relação aos princípios espíritas, que é o instinto de conservação, agente preservador da integridade do homem e das suas realizações. Esse instinto, bem manifesto no sócio-centrismo das instituições científicas ou de qualquer outra natureza, reage contra tudo o que possa modificar o saber já considerado como adquirido. Recentemente, o Prof. Remy Chauvin, do instituto de Altos Estudos de Paris, denunciou a existência no campo científico de uma alergia ao futuro, responsável pela rejeição liminar, sem exame, de toda novidade, mesmo que sustentada por cientistas categorizados. Essa neofobia tem produzido muitos mártires no campo científico e cultural em geral.

Pouco a pouco, porém, e hoje mais rapidamente do que no passado, essa posição acomodatícia vai sendo vencida pelas próprias exigências do progresso, da evolução científica. Em nossos dias, a descoberta da antimatéria, as pesquisas cósmicas, o reconhecimento dos fenômenos paranormais através da Parapsicologia, a recente descoberta do corpo-bioplásmico do homem e de todos os seres, o êxito, ainda incipiente mas já significativo, das pesquisas sobre a reencarnação, a constatação da existência de outras dimensões da realidade, a evolução do conceito de universos-paralelos para o de universos interpenetrados, a aceitação da pluralidade dos mundos habitados e da escala evolutiva dos mundos – proposta há mais de um século pelo Espiritismo – estão arrancando as corporações científicas de suas cômodas poltronas acadêmicas e lançando-as decisivamente em órbita, nas rotas giratórias do progresso.

Lembro-me de um poema de Rainer Maria Rilke, em que ele se compara a um falcão que gira em círculos crescentes em torno de uma torre secular, símbolo de Deus. É uma imagem feliz da evolução, que se processa em espiral. O retorno à barbárie na segunda guerra mundial não representa retrocesso da evolução humana, mas apenas uma curva decrescente da espiral que tocou os resíduos bárbaros do homem – a região subterrânea dos instintos animais – para uma espécie de catarse coletiva. Mas tudo serve para a exploração dos que se entregam ao comodismo e dos que ainda não conseguiram desprender o seu pensamento dos objetos materiais. A História da Matemática nos mostra que o pensamento dos primitivos era de tal maneira apegado ao concreto que, nas tribos selvagens, a contagem das coisas não excedia ao número de dedos das mãos, indo quando muito até à soma dos dedos dos pés. A posição dos anti-evolucionistas atuais assemelha-se, guardadas as distâncias culturais, à dos selvagens presos aos seus próprios dedos. Temos a prova da evolução em nós mesmos e em tudo o que nos rodeia, mas os espíritos sistemáticos e opiniáticos querem as favas contadas onde não há favas.

O Espiritismo ensina que tudo se encadeia no Universo, numa seqüência constante de relações. No item 540 de “O Livro dos Espíritos”, obra fundamental da doutrina, encontramos esta proposição: Tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até o Arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo. Assim, do átomo nasce o minério, deste o vegetal, deste o animal, deste o homem e deste o Anjo, o Arcanjo e quantas criaturas espirituais quisermos enumerar. Por isso, o sobrenatural desaparece quando admitimos o processo continuo da evolução. A Natureza nos mostra as duas faces da concepção de Espinosa, com sua teoria da Natureza naturata e da Natureza Naturans, equivalente ao conceito de mundo sensível e mundo inteligível, do pensamento de Platão, interligados e interatuantes. O que poderia existir fora da Natureza? Deus? Mas já vimos que a fonte originária, pelo fato mesmo de ser a origem de tudo está ligada ao Todo e nele se insere. Podemos, como os druidas (os sacerdotes celtas das Gálias) imaginar o Universo formado por três círculos: o de Gwinfid, em que Deus permanece; o de Abred, em que vivemos as nossas vidas carnais; o de Anunf, correspondente às regiões inferiores do plano evolutivo. Mas na concepção materialista o círculo de Gwinfid não pode existir, uma vez que Deus foi excluído. Como podemos considerar a criação do homem sem a ação de Deus? É o que tentaremos expor agora.

A união de dois princípios fundamentais, força e matéria, existentes no caos primitivo, determina o aparecimento das estruturas atômicas. Os átomos se aglutinam em formações diversas e produzem os elementos minerais. Mas estes elementos não estão mortos, não são estáticos. No seio da sua aparente placidez os átomos continuam em permanente agitação e produzem, quando as condições se tornam favoráveis, as primeiras formas vegetais. Nestas formas temos o nascimento da sensibilidade rudimentar, que vai desenvolver-se até a produção das primeiras formas animais. A atividade atômica transmite-se a essas formas produzindo a motilidade, a capacidade de movimentação própria, que arranca os animais do solo e os submete às experiências vitais. A sensibilidade se aguça e se aprimora através de milênios. Os cérebros rudimentares se desenvolvem e se enriquecem, o sistema nervoso (desenvolvimento do sistema fibroso vegetal) estrutura-se numa rede sensível, permitindo a organização de um aparelho cerebral que capta e reelabora os estímulos exteriores. Os animais evoluem até o aparecimento dos primatas, que assinalam o salto qualitativo do cérebro animal para o cérebro humano.

Eis, em linhas gerais, nesse esquema superficial, o processo de criação do homem. Quanto mais simples esse esquema, mais fácil para compreendermos a lenta elaboração da criatura humana a partir da noite dos primórdios. É de supor-se que essa criatura grosseira, elaborada a partir do mineral, não tenha qualquer outra experiência além das que enfrentou no processo de sua formação. Mas acontece que o homem se mostra dotado de uma inteligência criadora, capaz de desenvolvimento sem limites da sua imaginação e – o que mais assombra – dotada de um anseio crescente de elevar-se além da sua condição humana e atingir uma posição superior de que ele jamais podia ter tido algum vislumbre. Quanto mais se desenvolve, mais se acentua nele o contraste entre a sua condição primitiva – de bicho da Terra tão pequeno, como escreveu Camões – e os seus anseios insopitáveis de elevação e comunicação com planos e seres superiores, que ele nunca podia ter visto. De onde vem tudo isso? Supõem os materialistas que se trata de produtos da imaginação excitada pelo medo, num desejo natural de alcançar a segurança através de criações imaginárias. Mas como explicar a coerência dessas criações arbitrárias com os fenômenos paranormais, cuja existência está hoje cientificamente provada? Que dizer de uma idéia primitiva, como a de uma duplicata do corpo material que pode projetar-se à distância, que Spencer atribuiu simplesmente ao sonho, quando esse corpo hoje se confirma através da pesquisa cientifica no campo da Física e da Biologia, por pesquisadores materialistas?

Esse é o momento em que temos de voltar à idéia de Deus inata na criatura humana – o Ser perfeito de Descartes encontrado no fundo da sua própria imperfeição – à lei de adoração assinalada por Kardec e que exerceu papel decisivo na orientação do homem para a sua humanização. O acaso da concepção materialista transforma-se necessariamente numa inteligência cósmica a desafiar, por sua grandeza e sua inegável sabedoria na construção universal, a miserável inteligência humana, capaz de tudo atribuir a um jogo de forças cegas no seio de uma nebulosa. Não precisamos nem mesmo pensar nas formações complexas do homem ou do anjo. Podemos ficar nos primórdios, examinando apenas a estrutura do átomo, a construção infinitesimal desse universo microscópico, ou melhor, infra-microscópico. Mas se olharmos para cima e pensarmos nos sistemas solares, na galáxia e nas super-galáxias, o absurdo da concepção materialista se tornará simplesmente monstruoso. Sentiremos as orelhas de Midas substituírem, peludas e agudas, as nossas delicadas orelhas humanas.

E o que dizer da experiência de Deus procurada através de artifícios religiosos, depois dessa imensa extensão percorrida pela humanidade através dos milênios, numa experiência natural e vital em que as forças da vida vão brotando do chão do planeta e projetando-se às profundidades cósmicas? É como se milionários ensandecidos resolvessem juntar-se num quarto escuro, de portas e janelas fechadas, para contar os níqueis do bolso do colete a fim de avaliar quanto possuem, para terem a experiência do dinheiro. Basta isso para mostrar-nos a razão da crise religiosa do presente. Os homens começaram a descobrir que possuem muito mais do que as igrejas lhes podem dar.

Criado do limo da terra, segundo a alegoria bíblica, arrancado das entranhas do reino mineral, segundo a teoria evolucionista espírita, o homem está ainda em formação, em desenvolvimento, amadurecendo nas experiências que enfrenta na existência corporal. O corpo é o seu instrumento de evolução. Um instrumento vivo e ativo que ele precisa controlar pela força do espírito. Na proporção em que avança, o espírito se impõe ao corpo e o domina. A dialética da evolução torna-se nele um processo consciente. É o responsável único pelo sucesso ou fracasso do seu destino. Deus está nele como um poder mantenedor e orientador, mas não punitivo. Ele mesmo se castiga ante o tribunal da sua consciência. Quando se dispõe a progredir, o prêmio que recebe é a graça que o fortalece para que possa vencer o mal. Ninguém pode perdoar os seus erros, apagar as suas faltas. Dispõe da jurisdição de si mesmo e supera o seu condicionamento determinista pelas decisões do seu livre-arbítrio. Juiz e réu ao mesmo tempo, pode julgar-se com pleno conhecimento de causa.


Capítulo 7
Do Princípio inteligente

Tratei até agora da relação direta do pensamento de Deus com a matéria. Essa relação é necessária, da mesma maneira que é necessária a relação direta do pintor com o quadro que ele executa, e portanto do trabalho que ele realiza no quadro, orientado pelo seu pensamento. Na verdade, o seu pensamento se projeta no quadro e ali se materializa, passa do plano do inteligível para o plano do sensível. Ao completar sua obra, cessa a relação direta ou ativa, mas permanece a relação passiva ou indireta. Assim, a relação direta caracteriza o ato de pintar, ou de criar. Pode-se alegar a existência de intermediários: as mãos, a palheta e o pincel, a tinta. Mas convêm lembrar que todos esses instrumentos fazem parte da obra em execução, sobre a qual o pensamento do pintor atua diretamente.

Na ação de Deus sobre a matéria o processo é o mesmo. O pensamento divino aglutina a matéria, dando-lhe estrutura, através da qual temos a passagem do pensamento do plano do inteligível para o plano do sensível. Uso a divisão de Platão neste sentido: o inteligível é o intelecto divino e o sensível é o plano do sensório, das sensações humanas. Dessa maneira, Deus materializa o seu pensamento para atingir a sensibilidade do campo material em que o homem vai ser criado. No fiat ou ato inicial da criação temos a ação direta e ativa do pensamento divino estruturando a matéria. Uma vez formada essa estrutura, surge um elemento novo que é designado pela expressão princípio inteligente. O pensamento divino ligado à matéria adquire autonomia, sem com isso desligar-se da fonte que o alimenta. Transforma-se na mônada, elemento básico e estrutural da matéria, de que são compostas as próprias partículas atômicas. A palavra mônada procede de Pitágoras, foi empregada por Platão como idéia e desenvolvida modernamente por Leibniz e Renouvier como uma substância inteiramente simples (pura indivisível e refratária a qualquer influência exterior. A mônada é dotada de uma força interior que a transforma, de potencialidades que se desenvolvem continuamente e de capacidade de percepção e vontade. As mônadas são diferentes entre si no tocante a essas potências internas.

Estas correlações filosóficas são necessárias para entender-se o que é o principio inteligente da concepção espírita. Trata-se, como se vê, do princípio básico de toda a realidade, responsável pela formação dos reinos da Natureza, pelo desenvolvimento da vida e de todas as faculdades vitais e anímicas dos seres. O admirável poder de intuição dos gregos captou não só a existência dos átomos, como também a das mônadas, que a Ciência atual já está conseguindo atingir nas profundezas da misteriosa estrutura da matéria, na pesquisa sobre as partículas atômicas. A teoria espírita do princípio inteligente é explicada de maneira sintética no “O Livro dos Espíritos”. No item 23 dessa obra lemos o seguinte: Que é o espírito? É o princípio inteligente do Universo. Seguem-se outras explicações nas quais a inteligência se define como um atributo essencial do espírito. Geralmente confundimos a substância (espírito) com a inteligência, que é seu atributo.

Colocado assim o problema, parece-me explicada a razão pela qual os Espíritos Superiores não esmiuçaram essa questão fundamental. Na própria tradição filosófica, desde bem antes da era cristã, já dispúnhamos dos elementos necessários de intuições capazes de nos fornecerem os dados para uma equação futura. Faltava-nos, porém, o desenvolvimento, que só mais tarde poderia ocorrer, das pesquisas cientificas em profundidade. Atualmente já podemos compreender com mais clareza a dinâmica do processo criador. A teoria filosófica da mônada, que antes poderia ser considerada como simples hipótese inverificável, adquire hoje a condição de uma teoria científica ao alcance da comprovação pela pesquisa. Teorias como a do físico inglês Dirac, par exemplo, segundo a qual o Universo está mergulhado num oceano de elétrons livres, ou a dos físicos soviéticos, de que esse oceano parece ser de uma luz violácea proveniente dos primórdios da criação, mostram-nos as possibilidades novas que as pesquisas espaciais estão abrindo nesse campo. O mesmo se pode dizer da teoria dos campos de força que preenchem todo o espaço sideral.

É evidente que, diante dessas novas posições conceptuais, toda a nossa cultura entra em crise, prenunciando o advento de um novo mundo. A inteligência humana se abre para dimensões mais amplas e profundas da realidade universal, exigindo a reformulação de conceitos e estruturas culturais envelhecidas. Não podemos mais pensar em Deus como uma figura humana, nem do ponto de vista formal, nem do substancial. Só podemos considerá-lo como o Ser Absoluto, como a Inteligência Suprema, mas assim mesmo sem lhe atribuir nenhuma das limitações humanas. Os teólogos do Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da Morte de Deus, sentem isso na própria pele, mas faltam-lhes os dados para uma equação mais positiva do problema. Divagam através de suposições ameaçadoras e caem irremediavelmente num torvelinho de contradições. Se tivessem a humildade de consultar a Filosofia Espírita, essa pedra rejeitada da parábola evangélica, encontrariam nela a pedra angular do novo edifício a construir.

O Espírito a que a Bíblia se refere em numerosos tópicos e que nos Evangelhos toma o nome de Espírito Santo é o Espírito de Deus em sua manifestação universal. A Criação tem dois aspectos, o material e o espiritual. O sopro de Deus é o espírito criado no fiat e o homem de barro, o Adão terreno, o ápice da criação nos mundos em desenvolvimento, como a Terra. O sopro de Deus nas ventas do homem de barro, para infundir-lhe o princípio da vida e da inteligência, é a ligação do espírito com a matéria na formação da mônada. No pensamento divino todo o quadro da criação estava presente desde o princípio. E tudo era perfeito. A perfeição do ideal constituía o modelo da realidade (o mundo da rés, das coisas) que devia projetar-se no Infinito. Por isso, as mônadas diferenciadas, com características específicas, seriam semeadas no espaço, para a germinação lenta, mas segura e contínua, dos conteúdos essenciais de cada uma delas. A mônada é a semente do ser, da criatura humana e divina que dela surgirá nas dimensões da temporalidade.

Não se pode conceber, em nossa relatividade humana, mais grandiosa e perfeita concepção do ato criador. Podemos perguntar porque Deus, que é o supremo poder, precisa do tempo para realizar essa obra gigantesca. Mas o Espiritismo ensina que a nossa relatividade decorre de necessidades nossas e não de Deus. O que para nós são séculos e milênios, para Deus pode ser apenas aquele instante que, para Kierkegaard, era o encontro do tempo com a eternidade. Um instante de profundidade e extensão imensas, que resume para o homem todas as suas existências nas duas dimensões do Universo que hoje nos são acessíveis: a espiritual e a material.

É, sem dúvida, espantoso pensar, como Gustave Geley, que tudo quanto consideramos inconsciente, desde o grão de areia aos mundos que giram em torno dos sóis, possui a potencialidade da consciência em desenvolvimento no seu interior. Mas quando compreendemos que a mônada, síntese de espírito e matéria, é uma unidade infinitesimal, sobre a qual se apóia toda a realidade – o que corresponde à concepção atômica da Ciência em nossos dias –, nossa mente começa a abrir-se para um entendimento superior. Se o poder do átomo nos espanta, a potencialidade da mônada nos aturdiria. E ambos esses poderes nada mais são do que fragmentos do poder de Deus. Quando pensamos nisso, a teoria do princípio inteligente começa a revelar-nos a grandeza da doutrina espírita.

E no entanto os seus fundamentos estão nos princípios evangélicos, sobre os quais milhares de teólogos, filósofos, místicos e pregadores escreveram e falaram sem cessar, numa catadupa de páginas e palavrórios ao longo de dois mil anos? Essa opacidade da inteligência humana, esse embotamento da capacidade de compreensão poderia fazer-nos descrer das potencialidades do principio inteligente se não soubéssemos que o instinto gregário do homem o leva à imitação e à repetição dos papagaios. Quando Kardec se atreveu, utilizando-se de todos os recursos de sensatez e equilíbrio, apoiando-se na cultura do Século XIX – para não provocar reações precipitadas que lhe prejudicariam a obra – a publicar “O Livro dos Espíritos”, todos os anátemas da Religião, da Ciência e da Filosofia caíram sobre ele como as bombas norte-americanas sobre o Vietnã. Somente agora se abre uma perspectiva favorável, em todos aqueles campos reacionários, para uma possível compreensão do seu gigantesco trabalho de reposição das coisas em seus lugares. Mas então aparecem os que pretendem reformar, atualizar e tecnilizar as suas obras ao invés de estudá-las e aprofundar-lhes o sentido. Isso nos prova quanto necessitamos do tempo para que a mônada oculta se abra e se atualize em nós.

Todas as coisas têm sua origem no mundo das idéias, como Platão, levado pelas mãos de Sócrates, percebeu claramente. Nos planos superiores do Universo não se usa a linguagem articulada das hipóstases inferiores. Fala-se do pensamento, na linguagem telepática pura. Sócrates descobriu essa linguagem ao encontrar o conceito no fundo de cada palavra. Podemos assim conceber que a linguagem de Deus seja puramente mental. Na mente divina a idéia do Universo delineia-se perfeita, mas a projeção dessa idéia no plano inferior da matéria tem de vencer os obstáculos e as resistências da materialidade. Foi o que Hegel viu e descreveu com precisão em sua teoria estética, mostrando a luta do belo para se sobrepor, no tempo, às imperfeições materiais.

O mesmo se dá com o princípio inteligente, que, para vencer a opacidade da matéria, para inteligenciá-la, segundo Kardec, tem de lutar na temporalidade. Mas, podemos perguntar, porque Deus não fez em condições transparentes a matéria, ao invés de opaca? O Espiritismo explica que a matéria se torna transparente na proporção em que visualizamos as planos superiores, de tal maneira que a confundimos com o espírito. Isso nos mostra que a técnica dos contrastes desaparece naquilo que Buda chamou de Nirvana e que a nossa apoucada inteligência considerou como o Nada. Kant teve razão ao localizar os limites da razão humana no momento em que cessam as contradições dialéticas. Mas nesse momento, nessa linha divisória entre o mundo real e o mundo ideal, começa a razão angélica. Os homens transformados em anjos – não com asas nem com estrelas na fronte, mas com a mente e o coração purificados – passam a ver e a compreender a realidade pela intuição direta e global. Nesse momento descobrem a perfeição do Universo, aquela perfeição que, desde o princípio, estava na concepção ideal de Deus, mas que nas hipóstases materiais tornava-se irreconhecível como a Vênus de Milo coberta de terra e lama quando a arrancaram do subsolo.

O próprio tempo desaparece nesse momento. Não há mais necessidade do véu de Ísis da temporalidade para encobrir a verdade das coisas e dos seres. Mergulhamos no eterno, que não é estático e inerte como o supomos, mas tem a dinâmica e a lucidez de que o pensamento nos pode dar um vago exemplo. Kardec verificou, em suas pesquisas espíritas, que a esquematização do sensório humano, com a divisão das faculdades sensoriais em órgãos específicos e rigidamente localizados no corpo, não existe para os espíritos libertos das impressões materiais. Os espíritos percebem, vêem e sentem de maneira global, por todo o seu ser em sintonia com toda a realidade. As deslocalizações e transferências das sensações nas práticas hipnóticas comprovam, em nosso plano, a veracidade dessa descoberta efetuada nas suas pesquisas mediúnicas. Seu ensaio sobre a sensação nos espíritos, que se encontra no livro básico da doutrina, é uma peça de esclarecimento lúcido e didático desse problema.

As pesquisas atuais da Parapsicologia, que até agora só puderam refazer o caminho percorrido por Kardec, representam uma confirmação da validade das suas afirmações de mais de um século. Apesar disso, e no interesse inferior da defesa de posições sectárias, toda uma multidão de falsos cientistas se empenha na tarefa ingrata de desmentir o Espiritismo através de capciosos argumentos temperados na panela da mentira ou nos caldeirões da trapaça diabólica. Mas nada disso impedirá que a verdade triunfe, pois a verdade é, existe por si mesma e não pede licença a nenhum censor religioso ou ateu para se revelar como ela é, aos olhos de todos os que se fizerem dignos dela.


Capítulo 8
O Corpo-Bioplásmico

Quando falei pela primeira vez do corpo-bioplásmico na televisão, uma senhora estrangeira telefonou ao estúdio do Canal 13 (São Paulo) para me fazer uma advertência. Achava que a descoberta desse corpo do homem, dos animais e das plantas, feita por físicos e biólogos soviéticos, não passava de uma nova armadilha dos materialistas russos na luta contra a religião, com objetivos certamente políticos. Dizia que conhecera de perto a manha dos soviéticos, sofrera na pele a sua crueldade e não queria me ver enganado por eles, servindo como inocente útil para propagar as suas mentiras no Brasil. Respondi-lhe tentando explicar que se tratava de um problema científico e não político, que por sinal nos chegava através de informações universitárias procedentes dos Estados Unidos. Procurei mostrar-lhe que uma manobra dessa espécie seria hoje impossível, diante da dinâmica atual da comunicação e da possibilidade de comprovações ou desmentidos de meios universitários de todo o mundo. Nada disso convenceu a senhora, que insistiu de maneira angustiosa na sua advertência. Depois dela, vá-rios outros telespectadores, na maioria estrangeiros, telefonaram-me e procuraram-me pessoalmente para fazer advertências semelhantes. Isso equivale a uma demonstração da falência cultural do nosso tempo. Não obstante todo o nosso avanço científico e tecnológico, a praga da mentira na religião, na política, na administração e em todos os setores de atividades públicas leva as pessoas a duvidarem de tudo, a verem por toda parte o perigo de manobras com intenções ocultas.

No programa de televisão que deu origem a este livro, no mesmo Canal 13, a apresentadora Xênia insistiu na necessidade de sermos francos ao tratar dos assuntos em pauta. Chegou mesmo a declarar que alguém ali devia ter a coragem de dizer a verdade sobre o motivo da crise religiosa dos nossos dias. Segundo pensava, essa crise decorria simplesmente da mentira, como explicou num programa posterior. Na verdade, a mentira é um dos motivos da crise, mas não o motivo básico. Se eu pensasse assim, não teria nenhuma razão para contornar a situação. E que as mentiras pregadas pelas religiões nem sempre são mentiras, mas enganos decorrentes de falta de compreensão dos problemas essenciais do homem. Seria levar muito longe a desconfiança na natureza humana, acreditar que pessoas crentes em Deus organizassem as religiões com a finalidade de embair o povo. Mas essa é também uma prova do clima de desconfiança da nossa época. Encontramos nas religiões muitas pessoas cultas, inteligentes, honestas, que acreditam piamente nas coisas mais absurdas por aceitarem a infalibilidade dos dogmas e das interpretações escriturísticas.

O problema da descoberta do corpo-bioplásmico situa-se de tal maneira no quadro dos avanços atuais da Ciência, representando mesmo uma conseqüência lógica desses progressos, que não poderia suscitar dúvidas em ninguém medianamente informado. A descoberta da antimatéria, as pesquisas parapsicológicas, o desenvolvimento da medicina psicossomática, as sondagens cósmicas da astronáutica e outras prodigiosas conquistas do nosso tempo conduziam naturalmente o homem à descoberta da sua própria natureza. Imagine-se um mundo em que a Ciência houvesse provado a indestrutibilidade de todas as coisas mas continuasse aceitando o dogma materialista da destruição total e absoluta do homem pela morte. Imagine-se a cultura aberta desse mundo endossando o pessimismo doentio de Sartre que prega a nadificação do homem, a sua frustração total na morte e considera a doutrina da evolução, do pensamento de Heidegger, como uma queda no misticismo vulgar. O espetáculo do pensamento sartreano, tão rico em intuições filosóficas e tão decepcionante na sua conclusão ontológica, esse espetáculo desnorteante da cultura contemporânea seria um pingo d’água ante esse possível absurdo de âmbito universal.

O equívoco marxista do materialismo já foi ultrapassado pelo desenvolvimento científico e filosófico de nosso tempo. Não há mais lugar, na cultura atual, para os dogmas religiosos e os dogmas materialistas. Entre os cientistas soviéticos é evidente a existência de muitos dissidentes do oficialismo tipo século XIX. O interesse atual da URSS pelas pesquisas parapsicológicas é um indício claro, indício que a China Vermelha se incumbe de confirmar ao reagir violentamente contra ele. Todos sabemos que o Prof. Raikov e outros pesquisadores soviéticos, na Universidade de Moscou e em muitas outras da URSS, entregam-se à pesquisa científica da reencarnação, embora disfarçando-a em anomalia mental que tem de ser esclarecida no campo psiquiátrico. A verdade se revela em toda parte e, mais hoje, mais amanhã, tornar-se-á evidente.

As câmaras kirlian, de fotografias sobre campos imantados de alta freqüência elétrica, foram descobertas por acaso pelo casal Kirlian, e os cientistas soviéticos mais atilados logo perceberam o seu alcance. Adaptando-a a poderosos microscópios eletrônicos conseguiram descobrir, no interior dos corpos vivos de vegetais, animais, e homens, uma estrutura de plasma físico, constituída de partículas atômicas, que se apresentava como um corpo básico e sustentador da vida e das atividades vitais e psíquicas do corpo material. A importância dessa descoberta é de tal alcance que não poderia ser negligenciada, pois representa uma verdadeira revolução copérnica na Física, na Biologia e na Antropologia, para só ficarmos nesses três campos fundamentais. Mas é bom lembrarmos de passagem o que ela representará para a Psicologia, a Medicina, a Psiquiatria e a Psicoterapêutica em geral. Basta dizer que os soviéticos já chegaram a descobrir que o corpo-bioplásmico fornece elementos para a verificação do estado geral de saúde do corpo físico, permitindo também a prevenção de doenças e distúrbios nos seres vivos de qualquer natureza. Por outro lado, as pesquisas realizadas nos Estados Unidos confirmam a descoberta soviética.

Desde o século passado, vários cientistas se empenharam na descoberta de meios para provar a existência no homem do chamado corpo espiritual ou duplo-etéreo. Em 1943 Raoul Montandon publicou na Suíça. um curioso livro intitulado De la Bête a l'Homme (Do Animal ao Homem) relatando pesquisas psicológicas que mostram semelhanças significativas entre o reino animal e o hominal e pesquisas científicas que provavam a existência nos animais de um carpo energético. Essas pesquisas são relatadas no capítulo intitulado Sobrevivência Animal. Várias fotografias batidas com filmes sensíveis à luz infravermelha, de grupos de gafanhotos e insetos mortos com éter, revelavam ao lado dos animais mortos uma sombra semelhante ao corpo morto, enquanto ao lado dos que não haviam morrido, mas estavam em estado letárgico, não aparecia a mesma sombra. No capitulo das fotografias psíquicas, batidas ocasionalmente ou em sessões mediúnicas experimentais, os anais espíritas apresentam impressionante volume de casos significativos, cercados de todos os recursos de garantia da autenticidade do fenômeno.

No caso atual das pesquisas soviéticas, com aparelhagem técnica de precisão, a demonstração da existência desse corpo extrafísico (para usarmos a expressão parapsicológica atual) foi decisiva. Os soviéticos, operando em comissão científica oficial, na Universidade de Alma-Ata, no Casaquestão, fizeram experiências com moribundos e conseguiram verificar a retirada total do corpo-bioplásmico dos mortos, cujos corpos materiais só então se cadaverizavam. Não tendo sido possível fotografar esse corpo depois do seu desprendimento do cadáver, empregaram a técnica de pesquisa por meio de detectores de pulsações biológicas e verificaram, surpreendidos, que as pulsações captadas indicavam a presença do corpo-bioplásmico no ambiente.

Bastam esses dados sumários ao objetivo deste livro. Dados mais completos e minuciosos já foram divulgados entre nós com a edição da tradução do livro de Sheila Ostrander e Lynn Schroeder, pesquisadoras norte-americanas que entrevistaram os cientistas soviéticos na URSS, e cujo trabalho foi editado pela imprensa da Universidade de Prentice Hall (USA) e posteriormente pela editora Bantam Books, de Nova torque. A descoberta do corpo-bioplásmico constitui uma confirmação científica, proveniente do campo materialista, da teoria do perispírito. Segundo o Espiritismo, o perispírito é o corpo espiritual de que tratou o Apóstolo Paulo na I Epistola aos Corintos. Sua função é servir ao espírito como instrumento para a sua manifestação nos planos materiais. É através dele que o espírito se liga à matéria no processo da encarnação. Durante a Vida terrena ele é o agente das atividades orgânicas. Mantém a vida do corpo e serve de campo padronizador durante o desenvolvimento deste, a partir da fecundação, regendo a formação do embrião. Na morte, o perispírito se desliga progressivamente do corpo material, que só se cadaveriza com o seu desligamento total. Na maioria das pessoas o perispírito, após a morte, permanece nas proximidades do cadáver por tempo mais ou menos longo, em virtude da atracão que os despojos exercem ainda sobre o espírito. Esse corpo é considerado na doutrina espírita como semi-material, constituído de energias materiais e espirituais em integração. É o corpo da ressurreição, conforme já afirmava o Apóstolo Paulo.

Todas essas características do perispírito são confirmadas pelas observações dos cientistas soviéticos, que consideraram esse corpo como material, constituído por um plasma físico formado de partículas atômicas. Mas um fato intrigante aparece nas pesquisas soviéticas: esse corpo só pode ser visto e fotografado enquanto está ligado ao corpo material. Uma vez desprendido, não está mais ao alcance das câmaras kirlian. Somente os detectores de pulsações biológicas podem constatar a sua presença no ambiente. As câmaras kirlian, coma já vimos, só podem agir sabre campos materiais imantados por correntes elétricas de alta freqüência. Desligado do corpo material, o corpo-bioplásmico ou perispírito não oferece condições para isso. Parece-me evidente o motivo por que ele, então se torna inacessível. Não está mais revestido de um campo material, embora contenha em sua própria estrutura energias materiais. O próprio nome cientifico dado a esse corpo-bioplásmico, mostra a sua função vital e a sua natureza plásmica. Esse problema entretanto, não é somente físico. Na proporção em que o espírito, liberto da matéria, vai se integrando no mundo espiritual, seu perispírito vai se libertando dos elementos materiais.

A descoberta desse corpo pelos materialistas representa a maior vitória do Espiritismo e ao mesmo tempo a conquista mais importante da nossa era cientifica, pois com ela a Ciência terrena dá o primeiro passo para a sua futura fusão com a Ciência espiritual. Este é o mais significativo sinal de que estamos entrando na Era do Espírito. Oliver Lodge referiu-se ao túnel mediúnico, uma via de ligação do mundo material com o mundo espiritual, acentuando que esse túnel vem sendo cavado dos dois lados pelos homens e pelos espíritos. Quando os trabalhadores daqui e do além se encontrarem, o túnel estará aberto e a comunicação entre os dois planos se tornará tão fácil como as comunicações entre as várias regiões da Terra. Até agora somente os espíritas trabalhavam do lado de cá. De agora por diante, os cientistas também darão a sua cota de serviço.

A descoberta do corpo-bioplásmico e os estudos sobre as suas funções e a sua estrutura vêm também contribuir para que os enganos das religiões cristãs sejam corrigidos. Pouco a pouco a verdade se impõe e a mentira vai sendo afastada. A Religião, que constitui, como a Filosofia e a Ciência, uma das grandes províncias do Conhecimento, está prestes a retomar o seu lugar no plano cultural. Mas para isso as religiões sectárias deverão seguir aquela advertência de Jesus: perder a sua vida individual para fundir-se na vida coletiva, num processo livre de religiosidade universal que nos dará a Religião em Espírito e Verdade. Foi essa a profecia de Jesus à mulher samaritana.

Não há nenhuma outra saída para a crise religiosa do nosso tempo. As teologias artificiais, como a da Morte de Deus, são ensaios de vôo cego num céu vazio, nublado pela dúvida. A realidade é uma só. A confirmação positiva da existência do espírito, através da Ciência em desenvolvimento acelerado, porá um ponto final nas especulações religiosas. E não há nenhuma outra plataforma, na Terra, para a execução dessa reintegração da Religião no campo cultural, além da obra de Kardec. Os homens do futuro ficarão estarrecidos ao verem que tivemos todos os dados nas mãos para fazer essa integração em nosso tempo e não conseguimos fazê-la. Perguntarão a si mesmos o que nos faltou e talvez alguém lhes diga: humildade.


Capítulo 9
Dúvida e Certeza

A dúvida é uma encruzilhada nos caminhos da razão. Quando o pensamento se lança na busca de um objeto e depara com dois caminhos divergentes, pode ficar indeciso. Essa indecisão é a dúvida. Para Sexto Empírico a dúvida é a hesitação entre afirmar e negar, o que vale dizer entre aceitar e rejeitar. Descartes fez da dúvida a condição primeira da busca da verdade, considerando-a como uma suspensão do juízo para verificar-se se ele está certo ou errado. Para John Dewey a dúvida nasce de uma situação problemática estimulando a pesquisa. Dessa maneira, Dewey confirma a posição de Descartes, que iniciou a filosofia moderna com a prática da dúvida metódica. Mas como a dúvida criou muitas dificuldades ao pensamento dogmático, as religiões dogmáticas acabaram por condená-la como de origem diabólica. A frase de Tertuliano: credo quia absurdum (creio mesmo que absurdo) teve longo curso no combate às heresias. Como os dogmas eram considerados de origem divina, pontos fundamentais da revelação feita por Deus aos homens, estes não tinham o direito de duvidar, mesmo que os dogmas fossem aparentemente absurdos.

Ainda hoje essa posição é comum em numerosas seitas e religiões, até mesmo entre pessoas cultas. Alega-se que a sabedoria humana é loucura para Deus, como Paulo afirmou, o que vale dizer que a sabedoria divina pode parecer loucura para os homens. No Espiritismo a dúvida é considerada como condição necessária à busca da verdade. Kardec a aconselha como método de controle das manifestações mediúnicas e de estudo dos princípios doutrinários. Tendo mostrado que os espíritos são criaturas humanas desencarnadas, libertas do corpo material pela morte, e que muitos deles se manifestam para sustentar ainda opiniões erradas que esposaram na Terra, aconselha a análise constante e o exame atencioso das manifestações, que devem ser rejeitadas quando revelarem conceituações absurdas.

A crítica se torna, assim, elemento básico da filosofia e da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por pessoas que tenham condições de cultura e bom-senso para criticar. Descartes afirmou que o bom-senso é a coisa mais bem repartida do mundo, mas advertiu que o emprego do bom-senso depende de boa orientação do entendimento. Kardec oferece, em toda a sua obra, instruções e exemplos para o uso do bom julgamento e aconselha a consulta, em casos de dificuldade, a pessoas reconhecidamente capazes de resolver problemas com lucidez. Não havendo no Espiritismo dogmas de fé, tudo pode ser apreciado e discutido em termos de bom-senso ou boa razão. Descartes aconselhava a evitar-se dois elementos perigosos ao raciocínio, que são o preconceito e a precipitação. Kardec acrescenta a necessidade de vigilância no tocante à vaidade humana, que leva pessoas cultas ou incultas a considerar-se capazes de reformulações doutrinárias com base apenas em suas opiniões pessoais.

Estabelecendo o consensus gentium, de Aristóteles, como regra para aceitação de revelações espirituais, não o fez no sentido aristotélico do termo, mas em sentido espiritual, com o nome de consenso universal. A aplicação desse consenso não implica a aceitação da vox populi ou da opinião das gentes como verdade, mas apenas a coincidência de manifestações mediúnicas sobre o mesmo tema, par médiuns diversos, desconhecidos entre si, em locais diversos e no mesmo tempo. É esse um meio de controle a ser usado sob as condições de verificação racional do tema e de confronto do mesmo com os conhecimentos já adquiridos no meio espírita e na cultura geral. Levantou, assim, uma barreira à autoridade individual de um médium isolado que, por mais famoso e seguro que tenha sido em suas atividades, nem por isso está livre de se deixar empolgar por idéias errôneas. De um critério de verdade que era evidentemente de natureza opiniática, Kardec extraiu uma norma inegavelmente válida para facilitar o uso do bom-senso pelos espíritas.

A necessidade de certeza na orientação do conhecimento, num mundo em que tudo se passa no piano das relações, exige um critério cientifico de avaliação dos dados obtidos na prática doutrinária. Ao não aceitar a revelação espiritual de maneira gratuita, mas submetendo-a ao controle da razão, Kardec não violentou a intenção dos Espíritos superiores, que desejavam dele precisamente essa atitude. Tanto assim que desde o inicio o estimularam nesse caminho, esclarecendo que a Humanidade terrena atingira a maturidade suficiente para libertar-se do ciclo de revelações pessoais e locais, dadas sempre de maneira mística, através de um mestre, profeta ou Messias, numa determinada região e a um determinado povo. A última dessas revelações havia sido a do Cristo, que apesar de pessoal e local já se abria ostensivamente para a universalidade, escandalizando os judeus apegados a um sócio-centrismo milenar. A Terra entrava numa fase nova da sua evolução; as civilizações isoladas deviam fundir-se através de processos mais amplos e eficientes de comunicação; o mundo greco-romano chegava ao fim objetivado pelo seu desenvolvimento; um longo e doloroso processo de fusão de suas conquistas no campo do pensamento, do direito, da justiça e da espiritualidade deveria iniciar-se no caldeirão da História que foi a Idade Média, segundo a concepção de Dilthey. Essa fusão resultaria na Idade da Razão com o Renascimento, preparando o desenvolvimento da Era da Ciência e da Tecnologia, que levaria o mundo a um progresso cada vez mais acelerado. A influência do Cristianismo impregnaria todas as latitudes do planeta, arrancando da apatia nirvânica as grandes civilizações orientais e obrigando-as a seguir os padrões ocidentais. Era necessário que a passividade mística fosse substituída pela atividade racional, na luta dos homens em busca da compreensão de suas próprias responsabilidades na direção da vida humana.

Cumprida essa programação, a Terra já estava, em pleno século XIX, em condições de receber as luzes renovadoras de uma doutrina de unificação espiritual, capaz de guiá-la aos objetivos mais elevados de sua integração na comunidade cósmica. Muitas inteligências terrenas, aturdidas com as inquietações do nosso tempo, com as crises ameaçadoras de uma fase de transição acelerada, e portanto violenta, perguntam se não estamos errados ao aceitar essa previsão histórica. O mesmo aconteceu na fase de desenvolvimento do Cristianismo. Realmente, a Terra não parece ainda preparada para o salto cósmico que já vem tentando. Mas podemos notar, ao longo da História, que a técnica divina parece apoiar-se num principio de tensão-máxima para fazer-nos avançar. A preguiça humana, a tendência à acomodação, o apego à vida como ela é, só podem ser removidos por meios compulsórios. O chicote do Templo tem de ser vibrado contra os vendilhões que o transformam em mercado, que não pensam em Deus mas apenas no dinheiro. Só pelo impacto da dor o homem se liberta das suas mazelas para encontrar a vida em abundância de que Jesus falou. Os anos, os séculos, os milênios passam rápidos na direção da eternidade sem limites. Não podemos fermentar na Terra indefinidamente, como o faríamos se as leis divinas não nos forçassem a buscar com maior rapidez os objetivos reais de nossa existência.

Kardec viu tudo isso com extrema lucidez, como podemos constatar na leitura das suas obras. Por isso não converteu o Espiritismo numa nova religião estática, segundo o conceito de Bergson, mas ligou-o a todos os campos da cultura para que possa agir como uma religião dinâmica, aquela religião em espírito e verdade de que Jesus falou à mulher samaritana. Não há razão alguma para que a religião continue como um departamento estanque e privado, condicionada em sistemas arcaicos, marginalizada no campo cultural em favor de interesses sectários. A religião é um dos campos vitais da cultura e deve integrar-se nesta em plenitude. Seus princípios não podem manter-se alheios ao progresso geral. Por isso, o Espiritismo fundou a Ciência do Espírito, que agora está sendo confirmada pelas conquistas mais recentes das ciências da matéria. Chegamos tarde à complementação do fiat da criação, mas estamos agora no momento em que o espírito se liga à matéria no campo das concepções humanas.

A certeza, em nosso mundo, nunca pode ser absoluta. É também relativa, mas corresponde ao máximo possível de exatidão. Esse máximo é indispensável em todo o campo do conhecimento. Não poderíamos ficar no terreno das hipóteses inverificáveis ao tratar de assuntos tão graves como a origem do homem, sua natureza íntima e seu destino no sistema cósmico. Kardec, à maneira de Descartes, pôs em dúvida todo o conhecimento religioso. Os fenômenos espíritas, como ele mesmo observou, estavam na moda. Instigado por amigos que conheciam a sua capacidade científica, relutou a princípio – pois duvidara da veracidade desses fenômenos – mas acabou aceitando o convite para comparecer a uma reunião. Ali constatou a realidade, mas não aceitou a sua interpretação espiritual. Procurou explicar a chamada dança das mesas como possível efeito de forças conhecidas: a eletricidade, a gravidade, o magnetismo, um suposto poder emanado das pessoas reunidas para aquele fim e assim por diante. Mas não ficou nas hipóteses. Pôs-se a pesquisar. Seu encontro com as meninas da família Boudin, uma de 14 e outra de 16 anos, médiuns excelentes, permitiu-lhe uma série de experiências decisivas. Foi com elas que recebeu todo o texto de “O Livro dos Espíritos”. Pelas mãos dessas duas mocinhas nasceu o Espiritismo. E renasceu Allan Kardec, o druida das Gálias antigas, para substituir o Prof. Denizard Rivail (seu nome verdadeiro) o discípulo emérito de Pestalozzi e sucessor do mestre no desenvolvimento de sua Pedagogia Filantrópica. Dali por diante, numa seqüência de 15 anos, as pesquisas prosseguiram, dos quais 12 na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, por ele fundada e dirigida. Nesse período de 15 anos Kardec elaborou os cinco volumes da Codificação do Espiritismo, três volumes de introdução à doutrina, um manual de introdução à prática mediúnica, numerosos artigos para a imprensa e os doze volumes da Revista Espírita, contendo em média 400 páginas cada volume.

Em todos esses trabalhos ele foi sempre orientado pelos Espíritos superiores, como se pode ver nas suas anotações de Obras Póstumas. E sua conduta de pesquisador foi louvada pelo próprio Richet, o fisiologista do século, que discordava das conclusões de Kardec mas reconhecia, em seu Tratado de metapsíquica, o valor do homem que iniciara as Ciências Psíquicas na França e no Mundo. Partindo da dúvida, Kardec chegara à certeza psicológica da sobrevivência do homem à morte corporal. Richet fizera um caminho paralelo, o da sua especialidade científica, para chegar à certeza fisiológica dos fenômenos espantosos de materialização. Depois dele, outros muitos comprovariam a sua descoberta mas não ficariam em meio do caminho. Avançariam como Crookes, Notzing, Zollner, Ochorowicz, Gelei, Osty, Aksakov, até a certeza final de Kardec. Estava aberta nas Ciências a fronteira da imortalidade. Dali por diante, os que pretendem reduzir o homem a ossos e cinzas lutariam sem cessar – até mesmo nas religiões – contra a maior e mais fecunda certeza científica da cultura terrena. Do Espiritismo nasceram todas as ciências do paranormal, até a Parapsicologia contemporânea. Mas os inimigos da certeza ainda continuam, em nossos dias, diante da evidência fulminante das últimas descobertas científicas – físicas, biológicas, psicológicas e astronáuticas –, a insuflar com suas bochechas em fúria o fantasma superado da dúvida antimetódica. Fingem não perceber que esse fantasma é um balão furado e de mecha queimada.

A superação da dúvida no Espiritismo não se fez através dos métodos subjetivos da meditação religiosa e do êxtase místico, mas do método científico de pesquisa. Foi o que Richet reconheceu e louvou em Kardec, corno se vê logo no início do Tratado de Metapsíquica. Integrado na tradição da busca metodológica, que vinha do século XVI, com a revolução cientifica de Bacon e Descartes, Allan Kardec encarou o problema espiritual de maneira objetiva e, numa posição tipicamente existencial, criou o método apropriado à pesquisa dos fenômenos espíritas. Ao contrario do que alegam até hoje os seus contraditores, demonstrou de maneira exaustiva que os fenômenos espíritas podem ser repetidos quantas vezes for necessário para a confrontação dos resultados experimentais, como os grandes cientistas da época iriam comprovar logo em seguida e como as pesquisas parapsicológicas atuais novamente comprovaram e demonstraram.

Essa subversão metodológica no campo do conhecimento espiritual, até então submetido aos princípios da fé, despertou violenta reação que ainda hoje não se extinguiu. Kardec partia do homem vivo, do homem no mundo, da criatura de carne e osso para elevar-se a Deus através da indução lógica, desprezando os processos dedutivos da tradição. Atrevia-se a investigar o espírito dos mortos e dos vivos com a mesma naturalidade, sustentando que a alma nada mais era do que o espírito que anima um corpo. E ousava dar uma nova explicação da Gênese que incluía a criação do homem por Deus como um fato natural, dialeticamente explicável. A morte perdia o aspecto misterioso alimentado pelas religiões e os videntes e profetas eram considerados como criaturas em que uma faculdade humana natural, a mediunidade, havia se desenvolvido de maneira mais intensa.

Pacientes e incessantes pesquisas – e não revelações místicas – levaram Kardec à descoberta científica da natureza espiritual do homem. E a prova de que realmente o levaram foi dada posteriormente pelas pesquisas científicas desencadeadas em todo o mundo e hoje confirmadas até mesmo pelo avanço das investigações materiais, por cientistas modernos que alargam as dimensões das Ciências. É assim que a dúvida sobre a continuidade da vida após a morte foi vencida pela certeza no campo das investigações espíritas. As religiões que ignorarem esse fato culminante da evolução humana na Terra acabarão asfixiadas, por falta do oxigênio da verdade, em seus círculos estreitos de fanatismo e exclusivismo. Não há somente crise nas religiões. há sinais evidentes de agonia.


Capítulo 10
Magia e Misticismo

O homem primitivo não via o mundo, mas a magia da Natureza. Não tendo ainda o pensamento desenvolvido, o raciocínio metodizado, não podia sequer conceber o mundo. Tinha mais sensações do que emoções e mais emoções do que idéias. Seus sentimentos germinavam no plano larvar dos instintos. E os instintos animais o dominavam, sem dar lugar aos instintos espirituais. Era mais corpo que alma. Kardec assinala dois seres na estrutura humana: o ser do corpo e o ser espiritual. No homem atual esses dois seres se equilibram e a sua psicologia pode ser medida pela predominância de um ou de outro ou pela sua equivalência. As pessoas em que predomina o ser do corpo estão mais próximas do primitivismo. Aqueles em que os dois seres se equivalem apegam-se mais às coisas materiais e têm dificuldade em conceber a realidade do espírito. As pessoas em que predomina o ser espiritual dão mais importância às questões espirituais. As primeiras estão apegadas ao passado humano, as segundas à pragmática do presente e as terceiras tendem para o futuro. Mas entre uma e outra dessas posições evolutivas existem numerosas variações que podem ser classificadas em fases intermediárias de múltiplas nuanças. A escala espírita de “O Livro dos Espíritos” oferece-nos um quadro psicológico geral dessas talvez inumeráveis variações tipológicas.

A percepção mágica do mundo (restrita ao ambiente tribal ou do clã) levou o homem primitivo às práticas mágicas. Seu pensamento se desenvolvia na experiência, revelando-lhe progressivamente as relações existentes entre as coisas e os seres. Podemos supô-las assim, como simples dados exemplificativos: vida-alimento, bicho-mato, peixe-água, ave-céu, fruta-árvore, flecha-caça-inimigo, homem-mulher-criança, dia-sol, noite-escuro-lua. Essas relações primárias lhe davam a possibilidade de agir com eficiência no meio físico. Através delas ele começou a agir instintivamente no plano espiritual e nasceu a magia simpática ou simpatética, a arte incipiente de atingir o inimigo através de reproduções de sua figura em barro ou madeira e de evocar as forças benéficas através de símbolos correspondentes a elas. Nascia o feitiço e conseqüentemente o feiticeiro. E de ambos nasceriam mais tarde os ídolos, os sacramentos, os sacerdotes e as religiões com seus rituais. Esses processos rudimentares arrancavam o homem da selva e do gelo e o lançavam na direção da civilização. Um longo caminho a percorrer no aprimoramento dessas técnicas primitivas através dos milênios.

Mas os homens não estavam sós nem abandonados a si mesmos em nenhuma dessas fases. A idéia de Deus pairava obscura sobre o fundo nebuloso de suas experiências filogenéticas e a lei de adoração os levava a reverenciar o mistério da terra, das águas, do céu estrelado, das montanhas coroadas de nuvens. Do fundo escuro das matas surgiam o bem e o mal, as forças e os seres benéficos e maléficos. Muitos desses seres não tinham a consistência das criaturas de carne e osso. Apareciam e desapareciam como as chamas noturnas dos fogos-fátuos, Uns os auxiliavam e eram considerados deuses benfazejos. Outros os ameaçavam e eram os deuses malfazejos. Espíritos bons velavam pelas tribos e orientavam os seus chefes. Pagés e xanãs tinham o dom de evocá-los e consultá-los. Como nas cidades cósmicas da Grécia arcaica, de que tratou Durkheim, homens e deuses conviviam numa espécie de intermúndio. Essa situação perdurou nas civilizações agrárias, no ciclo das grandes civilizações orientais, no mundo clássico, gerando as religiões mitológicas com seus oráculos e suas pitonisas. No Judaísmo e no Cristianismo temos a sua continuidade, o que se pode verificar pelos textos bíblicos e evangélicos.

Já no Paganismo encontramos as práticas místicas dos chamados Mistérios, com rituais específicos para levar os iniciados à relação direta com o mundo espiritual e especialmente com Deus. No Egito antigo e nas religiões dos impérios americanos dos aztecas, maias e incas havia o emprego de sumos vegetais que originariam as drogas atuais como a mescalina e o ácido-lisérgico, para a produção do estado de êxtase, que é o fenômeno central dessas práticas. Pelo êxtase, provocado ou espontâneo. o místico se desliga de toda a realidade sensível, do mundo material, e mergulha no inteligível, no mundo espiritual.

O Misticismo tem suas origens remotas no êxtase dos pagés, que em meio às selvas procuravam o contato direto com os espíritos protetores das tribos. O pressuposto do misticismo nas eras civilizadas é a possibilidade humana de superação dos sentidos e da razão para obter-se o conhecimento superior nas fontes divinas. Esse pressuposto conduz os homens a uma fuga da realidade. No Espiritismo as práticas místicas são condenadas por dois motivos fundamentais: 1º) porque o homem está no mundo para viver o mundo com o fim de desenvolver, na experiência da vida de relação, as suas potencialidades internas; 2º) porque a ligação do homem com Deus se faz através do amor ao próximo, na prática da caridade (que é o amor em ação) e de maneira natural, sem a necessidade de práticas rituais ou do emprego de excitantes de qualquer espécie. As pessoas que consideram o Espiritismo como doutrina mística confundem a fenomenologia mediúnica com as práticas do misticismo. Não sabem que a mediunidade – como hoje está confirmado pelas pesquisas parapsicológicas – é simplesmente uma faculdade humana natural que permite a todos o exercício da percepção extra-sensorial. O misticismo nasceu das manifestações naturais dessa faculdade e da falta de condições culturais para o seu estudo racional. A mística experiência de Deus das religiões dogmáticas depende das práticas místicas e de uma concepção anti-racional do mundo e da vida. Por isso Ranzolli propõe a limitação do termo misticismo às filosofias religiosas, substituindo-o no campo filosófico geral por expressões como irracionalismo e intuicionismo ou sentimentalismo.

O Cristianismo – que os árabes chamaram religião do livro – utilizou-se, em sua origem, da mediunidade, mas sua posição em face das religiões anteriores foi nitidamente racionalista. Todos os ensinos de Jesus, mesmo quando ele se referia a Deus, chamando-o de Pai, são racionais. Sua condenação constante do irracionalismo judeu foi sempre seguida de explicações racionais, através de exemplos em forma de parábolas tiradas da própria vida diária do povo. Ao tratar do dogma judaico da ressurreição ele se referia claramente ao nascer de novo, usando exemplos históricos como a volta de Elias reencarnado em João Batista. Suas referências às potencialidades divinas do homem eram exemplificadas pelos fenômenos produzidos por ele mesmo e pelos seus seguidores. Nunca falou da sua ressurreição como um privilégio, mas, ligando-a à ressurreição de todos. O Apóstolo Paulo incumbiu-se de formular a teoria racional da ressurreição, não da carne, mas do espírito, explicando que o corpo espiritual do homem, hoje descoberto pelas ciências como corpo-bioplásmico, é o corpo da ressurreição.

Esse racionalismo foi posteriormente prejudicado pelas influências pagãs e judaicas do misticismo, que atingiriam nas igrejas cristãs um refinamento intelectualista paradoxal, opondo o intelecto a si mesmo. Todo o esforço de Jesus no combate à mitologia foi anulado pelos teólogos, que transformaram ele mesmo em novo mito,-fazendo de sua natureza humana uma espécie de simples manifestação pragmática da sua divindade. O Espiritismo retoma a tradição racionalista do Cristianismo primitivo e, da mesma maneira que os antigos cristãos, prova na prática os ensinos teóricos de Jesus através das manifestações espíritas, da prova concreta das materializações e das aparições tangíveis (como a de Jesus para os apóstolos no cenáculo) dos fenômenos de voz-direta (como o da voz que soou no espaço na hora do batismo) e dos casos pesquisáveis de reencarnação, hoje em pauta na pesquisa científica mundial. Nada disso se refere a misticismo, a práticas místicas através de processos mágicos, de excitantes específicos e de tentativas antinaturais de transformar o homem vivo em um morto-vivo que nega o mundo para viver como espírito desencarnado, desligado dos processos necessários da razão. O homem é deus em potência, não em ato, e não pode querer antecipar a sua atualização fugindo aos compromissos e experiências da vida terrena. Seus deveres estão aqui, neste mundo, por enquanto, e suas possibilidades de evolução, de transcendência, não se encontram na alienação, na fuga, mas na integração consciente em suas tarefas sociais.

O tempo das igrejas está chegando ao fim, como chegou o dos Mistérios na Antigüidade. Elas foram necessárias e tanto serviram como desserviram à Humanidade, revelando sua estrutura imperfeita como a de todas as obras humanas. Em vão se arrogaram investiduras divinas. A mente humana se abre hoje para novas dimensões e as igrejas não têm condições para acompanhá-la nesse avanço. A luta sem tréguas que sustentaram e ainda sustentam contra o Espiritismo e em especial contra a mediunidade provou a sua incapacidade para enfrentar os novos tempos. A dinâmica da concepção espírita se opõe à mecânica ritual das igrejas como a Física moderna se opõe à Física do passado. Na proporção em que as camadas retrógradas da população terrena vão sendo afastadas do planeta, na sucessão inevitável das gerações, cresce o esvaziamento das igrejas e os seminários vão sendo fechados por falta de alunos. Foi o que aconteceu com as religiões mitológicas do mundo greco-romano. Para poderem sobreviver, as igrejas têm de desigrejar-se, suprimindo o profissionalismo sacerdotal, as suas dogmáticas absurdas, as liturgias vazias de sentido. Antes que possam pagar esse preço demasiado elevado, as forças da evolução as varrerão da face da Terra. Isto não é uma profecia espírita, é uma profecia evangélica de Jesus, no episódio com a mulher samaritana. Que ninguém me acuse de responsável por essa previsão que elas mesmas, as igrejas, por dois mil anos fizeram ler no Evangelho em seus cultos sem a entenderem. Também não entenderam a questão das muitas moradas da Casa do Pai, nem a do batismo espiritual, nem a do nascer de novo, nem a condenação das exigências rituais dos fariseus. O que podem esperar ou reclamar agora?

Respeitáveis pensadores religiosos, reconhecidamente cultos, não conseguem ainda libertar-se da magia das selvas, cujos resíduos impregnam de misticismo as religiões em agonia. Esse apego os impede de socorrer as instituições religiosas no momento crucial. Desesperados, acusam o Espiritismo e os espíritas de incapazes de compreender as sutilezas da fé e exigem provas materiais do que não é material. Chegam mesmo a considerar como profanação a pesquisa espírita dos fenômenos mediúnicos. De outras vezes acusam o Espiritismo de práticas primitivas e o confundem com as formas do sincretismo-religioso afro-brasileiro. O materialismo, proclamam, leva os espíritas a quererem materializar espíritos. Perdem a perspectiva cultural do nosso tempo e mergulham no passado, acusando-nos de uma posição retrógada no campo do Espiritualismo.

Nossas ligações com a selva realmente existem e são as mesmas que constatamos nas religiões em agonia, mas há uma diferença fundamental entre a nossa posição e a delas: a reelaboração da experiência. Essa reelaboração não foi feita pelas religiões, que se limitaram a refinar as práticas selvagens e cobri-las com o verniz da civilização. Até mesmo a tentativa de submeter a Divindade ao poder misterioso dos pagés sobrevive em sacramentos das igrejas, dando aos sacerdotes o poder (que foi negado aos anjos) de obrigar o próprio Deus a materializar-se em substâncias materiais do culto, bem como o poder de obrigar o Espírito Santo a manifestar-se nos adeptos para o batismo do espírito.

No Espiritismo, o que sobrevive das selvas é o fenômeno, o fato natural da manifestação dos espíritos através da mediunidade, como todos os fenômenos físicos e químicos, botânicos e biológicos ou psíquicos sobrevivem obrigatoriamente nas ciências. Mas o Espiritismo não permanece apegado às superstições da experiência selvagem; reelabora essa experiência à luz da cultura e descobre as suas leis para poder usá-las em função do progresso. A capacidade humana de conhecer não tem limites e a divisão absoluta entre espírito e matéria já foi superada nas pesquisas físicas.

O materialismo morreu por falta de matéria, como afirmou Einstein, e as religiões agonizam, como podemos ver, por falta de espírito. Há mais apego à matéria nas práticas e nos conceitos das religiões em agonia do que nos ritos selvagens, pois nestes a crença ingênua e instintiva manifestava-se naturalmente, enquanto naquelas é puro artifício, tentativa de racionalização psicológica de heranças atávicas.


Capítulo 11
A Cura Divina

Para as camadas pobres da população e a gente simples dos bairros elegantes, onde a ignorância anda sobre tapetes de luxo, o Espiritismo não é mais do que uma seita de terapeutas obscuros, de curandeiros broncos. Acredita-se que a única finalidade do Espiritismo é curar por meio de processos mágicos. Mas a cura divina não é privilégio de ninguém. Encontramo-la em todas as religiões e seitas religiosas do passado e do presente. E mais ainda a encontraremos no futuro, mas então já reconhecida como um processo cientificamente explicável e não mais sujeito à exploração dos missionários por conta própria que hoje, nas grandes cidades, enriquecem-se à sombra da ignorância ilustrada e da miséria analfabeta, tendo por patrono o orgulho botocudo da alta medicina e o comodismo criminoso da burocracia dos órgãos oficiais de assistência social.

Ligo o rádio às 4 da manhã e ouço o locutor anunciar o programa de um missionário da cura divina. O missionário se apresenta declinando o seu título auto-concedido. Sua voz e suas expressões revelam o tipo de ignorância radiofonizada. É um ex-trabalhador braçal que descobriu em si mesmo o meio de superar sua condição inferior. Fala em nome de Jesus Cristo e faz desfilar pelo microfone várias criaturas dos bairros humildes que relatam as curas divinas com que foram agraciadas. A linguagem de todos é pitoresca e emocionante. Revela ao mesmo tempo a penúria cultural e a fé ingênua do povo. Algumas pessoas se curaram com o programa de rádio, outras com o disco de preces do missionário, outras nas reuniões tumultuosas da igreja, outras, levando peças de roupas de certos doentes ao recinto sagrado, conseguiram curá-los.

É um desfile impressionante de sofrimento e miséria, de ignorância e crendice pelos canais de comunicação da tecnologia moderna. às vezes, isso acontece também na televisão, embora em programas eventuais, o que acentua o contraste dos desníveis culturais da nossa época. Não se pode condenar essa revelação natural da realidade em que vivemos. O mais chocante é que não se pode nem mesmo condenar a indústria e o comércio dos missionários espertalhões, que bem ou mal atendem às necessidades de milhares de pessoas desamparadas.

A cura divina – hoje cura paranormal – é uma realidade inegável em todo o mundo. Mesmo os cientistas de cabeça-dura reconhecem a sua existência e procuram explicá-la através dos processos psicossomáticos, da influência de energias psíquicas sobre o físico. Essa influencia pertence, segundo o Espiritismo – e agora segundo as pesquisas parapsicológicas e a descoberta do corpo-bioplásmico pelos físicos e biólogos soviéticos – à própria estrutura psicofísica do homem. A vida se revela aos nossos olhos, nestes dias, como o resultado da ação do espírito sobre a matéria, e isso em todas as suas manifestações, como já ficou evidente no capítulo sobre o corpo-bioplásmico. Não se trata de nada excepcional ou sobrenatural, mas, pelo contrário, de um fato simplesmente natural. E precisamente por isso o problema da aura divina exige atenção imediata e acurada da Ciência, para que ela seja retirada das mãos ineptas e em geral gananciosas dos missionários por conta própria. Se isso não for feito, se os cientistas não levarem o assunto a sério e os médicos e suas associações profissionais não puserem de lado os seus preconceitos, enfrentando corajosa e dignamente o problema, serão vãs todas as tentativas repressoras por meios policiais e ações judiciais. Um fato deve ser encarado como fato e não como lenda ou superstição. Temos de usar a cabeça e livrar-nos da estúpida pretensão de superioridade cultural em área que não conhecemos.

A terapêutica espírita existe e vive em luta incessante em duas frentes. De um lado é atacada por associações médicas e de outro lado pelas igrejas. A burrice e o interesse profissional estão presentes nessas duas frentes. Entretanto, a terapêutica espírita não se apóia em pressupostos ingênuos nem se serve dos processos do curandeirismo. Suas bases teóricas são científicas e seus métodos psicoterapêuticos, como demonstrou Jean Ehrenwald, superam os da psicoterapia científica da atualidade. O que a prejudica aos olhos dos especialistas não está nela, mas neles: é o preconceito, a negação apriorística e portanto anticientífica da interferência de influências estranhas no psiquismo humano. Esse tipo de influências já não pode ser negado por ninguém, depois dos avanços científicos do nosso tempo. Somente pessoas desatualizadas cientificamente podem ainda insistir na negação de realidades cientificamente demonstradas e aceitas nos meios universitários mais conceituados do mundo.

Muitos dos casos relatados no programa de rádio do missionário a que me referi, apesar das circunstâncias simplórias em que se deram, são perfeitamente enquadráveis na terapêutica paranormal, admitindo-se ou não que o missionário seja um sujeito para-normal. Outros casos se explicam pelas próprias teorias da psicoterapêutica científica, sem necessidade dos dados da paranormalidade. Kardec utilizou-se várias vezes da contribuição de médicos para a verificação de casos da chamada mediunidade-curadora, como se pode ver pelas suas relações com o Dr. Demeure, relatadas minuciosamente na Revista Espírita. A médium observada pelo referido médico, em sua clínica, era uma jovem que curava pelos processos típicos do curandeirismo mais grosseiro, através de beberagens produzidas com ervas, mas sob a orientação de espíritos que a assistiam. O próprio Kardec foi médico e clinicou em Paris, como se pode ver pela sua recente biografia de André Moreil. Discute-se o problema da sua graduação em medicina, que não se conseguiu provar, mas seu contemporâneo Henri Sausse, que foi também o seu primeiro biógrafo, afirma que ele defendeu brilhantemente sua tese de doutoramento. O que não se pode negar é que conhecia profundamente ciências médicas e lecionou-as em Paris.

A terapêutica espírita não pretende superar a medicina, mas tão-somente contribuir para torná-la mais eficiente. O número de hospitais espíritas existentes em nosso país e o seu aumento constante, apesar das restrições e da má-vontade que encontram de parte dos poderes oficiais, é prova disso. Os hospitais espíritas não são construídos por uma igreja poderosa nem segundo um plano estadual ou nacional. São iniciativas de pequenos grupos ou instituições doutrinárias, geralmente desprovidas de recursos financeiros, que agem com absoluta autonomia. O móvel dessas iniciativas é o desejo de estender a todos os recursos da terapêutica espírita em conjugação com a medicina. Chega a ser emocionante o empenho nesse sentido, quando se sabe que os médicos não-espíritas, chamados a trabalhar em hospitais espíritas, criam dificuldades ao seu funcionamento e os serviços oficiais proíbem os simples passes e até mesmo as preces no recinto hospitalar. No caso dos hospitais psiquiátricos o que se passa merecia um longo estudo. O oficialismo médico e governamental, embora consciente das deficiências da medicina para curar a maioria dos doentes, fecha-se numa rigidez irracional, negando aos espíritas o direito de socorrer aqueles doentes com seus recursos próprios, que, no máximo, seriam inócuos. As alegações teóricas em contrário não resistem ao volume de fatos favoráveis aos espíritas e particularmente às conquistas atuais das ciências no tocante à realidade espiritual.

A finalidade do Espiritismo não é terapêutica, mas cultural. No seu aspecto científico, no campo específico da Ciência Espírita, o que importa é a descoberta das leis naturais do espírito, que não estão ao alcance das pesquisas materiais nem das indagações teológicas. Descobrir essas leis pela pesquisa espírita e os processos de sua relação com as leis dos fenômenos materiais é um objetivo que hoje se impõe como necessidade do próprio desenvolvimento científico. A descoberta da antimatéria pelos físicos mostrou a existência de outro mundo ligado ao nosso por um sistema evidente de interpenetração. A descoberta do corpo-bioplásmico mostrou que esse mundo antimaterial pode ser habitado por seres humanos dotados de corpos diferentes dos nossos. As pesquisas parapsicológicas mostraram, particularmente através dos fenômenos teta (relacionados com a morte e as manifestações espíritas) a existência de relações entre essas duas populações. O Espiritismo antecipou de um século as pesquisas sobre esses problemas, que são de interesse vital para toda a Humanidade.

A terapêutica espírita resulta naturalmente desse conhecimento antecipado, a que somente agora as ciências estão encontrando acesso. Ela não decorre, portanto, de superstições, hipóteses ou práticas tradicionais de cura envoltas em mistério, sustentadas por crenças populares. Seus fundamentos são racionais e científicos. É prova de ignorância lamentável confundir-se a terapêutica espírita com o curandeirismo ou com as práticas religiosas que se apóiam apenas nos estímulos da fé irracional. Já vimos que a própria fé encontra no Espiritismo explicação e definição diversas das que lhe são dadas na cultura materialista e na cultura religiosa. A fé não age nos casos de cura como um poder atuante, mas como uma base em que se apóiam os poderes do espírito para agirem com eficácia. O conhecimento dos fatores causadores da doença e a descoberta das leis que permitem a aplicação de processos curativos eficientes são os elementos essenciais da terapêutica espírita. Justamente por isso ela pode e deve complementar os recursos médicos, como a experiência secular tem provado.

Vejamos um caso típico de contribuição espírita em plano concreto. Richet, fisiologista e médico, prêmio Nobel de sua especialidade, descobriu o ectoplasma dos processos de materialização. Geley, também fisiologista – e espírita – deu prosseguimento às pesquisas de Richet. Ambos provaram, secundados por outros cientistas eminentes, entre os quais Crookes e Zöllner, que o ectoplasma é uma emanação do corpo do médium em forma de um plasma leitoso. Schrenk-Notzing, na Alemanha, conseguiu porções de ectoplasma, colhidas em sessões mediúnicas experimentais, e submeteu-as a exame histológico em laboratórios de Berlim e Viena, comprovando a sua natureza orgânica. Várias manifestações espíritas aludiram à possibilidade de aplicação terapêutica desse elemento para a reconstituição de tecidos vivos afetados ou destruídos por processos cancerosos. Experiências realizadas atualmente em sessões de materialização deram resultados animadores. Infelizmente não foram feitas em instituições científicas. Mas os médicos participantes dessas experiências entendem que, se pesquisadores categorizados tratarem do assunto, abrirão uma nova era no tratamento das recuperações consideradas impossíveis.

Pietro Ubaldi, que apesar de médium não era espírita, admite em suas obras que o ectoplasma pode ser um ensaio de nova forma de reprodução da espécie, um novo sistema biológico em desenvolvimento, que substituirá o sistema animal de reprodução sexual. Todas as pessoas envolvidas nessas duas hipóteses são dotadas de cultura científica. Nenhuma delas apelou para explicações sobrenaturais do fenômeno.

As campanhas clericais contra o Espiritismo, apoiadas muitas vezes pelas corporações científicas, alimentaram o preconceito antiespírita numa sociedade fechada, cuja cultura rigidamente estruturada não admitia incursões estranhas, nem mesmo quando lideradas por expoentes dessa mesma cultura. A luta de Pasteur contra os cabeças-duras do seu tempo é suficiente para mostrar as barreiras que se levantam quando uma novidade aparece no campo científico. Mas hoje essas barreiras já foram de tal maneira derrubadas dentro da própria fortaleza científica que podemos ter alguma esperança. Parece não estar longe o dia em que o sonho de Kardec será realizado: as ciências do espírito e da matéria se conjugarão.

Estamos às portas de uma revolução cultural decisiva. A terapêutica espírita exerce uma fascinação crescente sobre os cientistas e os médicos arejados, de mente aberta para as possibilidades novas. Que farão as religiões dogmáticas em face das transformações radicais que já abalam suas velhas estruturas? Continuarão apegadas aos seus dogmas envelhecidos ou flutuarão no vácuo das reformas teológicas baseadas em sofismas brilhantes? E qual a doutrina, qual a concepção do mundo que apresenta essas condições gerais de unificação do conhecimento e ampliação das dimensões da vida e do homem, além do Espiritismo?

O problema da experiência de Deus e o da cura divina se confundem, tanto em sua origem quanto em seu desenvolvimento histórico, em seus pressupostos e em sua prática. Suas raízes se entrelaçam no chão das heranças atávicas; ambos têm a mesma procedência remota, derivam das fórmulas mágicas e passaram pelos mesmos processos de elaboração mística nas coordenadas do tempo e do psiquismo em desenvolvimento. Fundam sua eficácia na fé ingênua que brota do sentimento religioso intuitivo (ou instinto espiritual) e requerem posturas corporais específicas e elementos materiais como veículos da graça celeste. As religiões formalistas se acomodam nesses processos da tradição milenar, esquecidas de que o homem já superou o uso de instrumentos rudimentares nas relações com Deus.

O complicado aparato das religiões mágicas, que auxiliou no passado o pensamento humano a desprender-se das entranhas da terra, atualmente impede esse mesmo pensamento de atingir a autonomia de que necessita para librar-se aos planos superiores da verdadeira vida espiritual. Enquanto os clérigos ilustrados retêm os seus adeptos no emaranhado das práticas rituais, impossibilitando-lhes a compreensão verdadeira dos princípios evangélicos, os missionários por conta própria capitalizam habilmente os resultados dessa retenção indébita através do comércio da cura divina. É uma espécie de conluio inconsciente, de que uns e outros não têm a percepção clara, e cujos resultados, úteis no plano especifico da prática, são entretanto prejudiciais no plano geral da evolução humana.

Imantar o psiquismo das camadas ingênuas da população, através de excitações emocionais, ao campo hipnótico dos mitos é o mesmo que incentivar o uso de psicotrópicos a pretexto de socorrer o desespero humano. Na própria Bíblia, os clérigos atuais (uma espécie social em vias de extinção) encontram a lição arrepiante de Moisés, que preferiu mandar passar a fio de espada os israelitas apegados à idolatria e à magia egípcia, a comprometer o futuro espiritual de Israel. Hoje não precisamos dessa violência assassina; basta um pouco de boa-vontade e raciocínio para se compreender que as raízes amargas do passado podem ser extirpadas com ensinos e exemplos de renovação mental.

O sentimento religioso do homem responde pelo impulso de transcendência que as filosofias existenciais são unânimes em reconhecer no devir humano, no instinto evolutivo da espécie. O desenvolvimento da lei de adoração, atestado pelas pesquisas antropológicas, o confirma. Não há mais tempo a perder com artificialismos superados.


Capítulo 12
Rito e Palavra

O formalismo das igrejas caracteriza-se principalmente pelos seus rituais. Mas todo rito implica o uso da palavra. Trata-se de uma conjugação de dois sistemas complementares de comunicação. A eles se junta o instrumento, na explicação clássica da evolução humana. Foi graças ao rito e à palavra que o homem ascendeu do primata ao sábio. Mas, para dar mais alcance ao processo de comunicação, o homem teve de inventar o instrumento. O fogo, a fumaça, penas de aves nas árvores, estacas no chão foram os precursores de todos os meios de comunicação à distância de que hoje nos orgulhamos. Mas pouca gente sabe, além dos círculos restritos de especialistas, que os animais também se utilizam de ritos e até mesmo de palavras em seus processos de comunicação. No tocante aos instrumentos, eles os trazem no próprio corpo, o que não impede que animais superiores se utilizem também de instrumentos naturais, como pedras e varas. Remy Chauvin, biólogo e entomólogo francês da atualidade, em seu livro Les Societés Animales, oferece-nos abundantes informações sobre este assunto.

A teoria da evolução criadora, de Henri Bergson, propõe-nos a tese da infiltração do impulso vital na matéria em duas direções: uma que leva ao desenvolvimento dos insetos sociais, outra que resulta no aparecimento das sociedades humanas. Chauvin chega mesmo a referir-se à civilização das abelhas, advertindo naturalmente que se trata de civilização de insetos e não humana. Ortega y Gasset discorda do uso do termo social para os insetos, mas Chauvin, que pesquisou o problema a fundo, não encontra explicação para o fato de não haverem os insetos sociais alcançado o plano do pensamento criador. Chega mesmo a supor que talvez em outro planeta o tenham feito. Tudo isso pode ser pouco lisonjeiro para o orgulho humano, mas nem por isso deixa de ser significativo para os estudiosos da evolução humana na terra. Chauvin é diretor de pesquisas do Instituto de Altos Estudos de Paris. Menciono esse dado da sua ficha para mostrar a sua qualificação científica.

O que nos interessa neste problema é verificar, através de dados científicos, que o formalismo religioso, como o social e o das chamadas sociedades ocultas não provêm de uma revelação divina, mas do impulso vital que, passando através das espécies animais, projetou-se e desenvolveu-se no homem. O sacerdote que se paramenta para uma cerimônia religiosa, o maçom que veste os seus símbolos para uma sessão da loja, o universitário que enverga a sua beca para a formatura talvez não saibam que repetem processos antiqüíssimos – evidentemente refinados pela tradição humana –, que procedem de ritos animais de milhões de anos antes da aparição do homem no planeta. Isso pode desapontar a nossa vaidade, mas servirá para nos lembrar a humildade. Não somos seres privilegiados na Terra. Somos os últimos rebentos de uma evolução multimilenar daquilo que, no Espiritismo, chama-se princípio inteligente, o espírito que estrutura a matéria e através dela se desenvolve, despertando suas potencialidades ocultas e fazendo-as passar de potência a ato, de possibilidade a realidade.

Num trabalho curioso sobre a origem dos rituais na Igreja e na Maçonaria, Helena Blavatsky explica a procedência agrária dos ritos principais das religiões e das ordens ocultas. Os estudos de James Frazer, François Berge, René Hubert e outros mostram a relação direta dos ritos humanos com os ritmos da Natureza: a sucessão dos dias e das noites, dos anos, das estações, das gerações. Esses ritmos naturais parecem refletir-se nos mecanismos da vida em formação e da inteligência em desenvolvimento. O instinto de imitação produz os ídolos grotescos das tribos e mais tarde as imagens artísticas das igrejas, enriquecidas pela imaginação criadora. Pestalozzi tinha razão em dividir as religiões em duas categorias: as animais e as sociais, que correspondem às primitivas e às civilizadas. Nas primeiras ainda imperam os instintos animais, nas segundas as forças centrípetas da aglutinação social, gerando o sócio-centrismo das culturas antigas. Todas essas religiões são de elaboração telúrica, ligadas aos ritmos da terra. Mas Pestalozzi, mestre de Kardec, admitia uma religião superior, desligada dos elementos materiais, a que chamava apenas de Moralidade, para não confundi-la com as anteriores. Essa a religião espiritual que seu discípulo iria formular, com base nas revelações dos espíritos. Nela, por ser espiritual, não há ritos nem mitos, nem sacerdotes nem altares, nem mesmo dogmas de fé, pois a religião espiritual se fundamenta na razão e se liberta dos ritmos telúricos que impregnam a emotividade humana. Bergson colocou o mesmo problema em seu estudo sobre as fontes naturais da moral e da religião.

Passar do rito à palavra é rodar no mesmo círculo. Ambos pertencem ao campo da linguagem. Quando falamos de linguagem abrangemos todas as formas de expressão. Se perguntarmos como nasceu a linguagem, a resposta nos leva à mesma origem do rito. A diferença é apenas de forma. Enquanto o rito pertence ao campo da mímica, da gesticulação e portanto das expressões por meio de sinais corporais, a palavra pertence ao campo do som, da voz articulada. Por isso, a partir das pesquisas de Pavlov sobre psicologia animal e da formulação teórica de Watson sobre a psicologia do comportamento (Behaviorismo) predominou a tese da linguagem corporal, segundo a qual não falamos apenas com palavras, mas também com os movimentos do corpo. Não obstante, a palavra conserva o domínio da expressão do pensamento, tendo a mímica e a gesticulação como elementos acessórios de expressão. Não importa que a mímica ou a atitude de quem fala possa, não raro, modificar o própria sentido da palavra. No centro do processo de comunicação permanece a palavra como seu elemento essencial.

O problema da origem da palavra confunde-se com o da origem da mímica e do rito. Se apontamos com o dedo um objeto estamos nos referindo a ele. A palavra faz o mesmo: refere-se a um objeto. Surgiu, portanto, com o desenvolvimento da inteligência e a necessidade de comunicação. Cada palavra é um signo, um sinal, um gesto oral. Não apareceu milagrosamente na Terra, mas pelo esforço do homem na elaboração dos seus instrumentos de comunicação.

As religiões formalistas dão à palavra um caráter divino e consideram os textos religiosos como a Palavra de Deus. Mas é evidente que Deus, o Ser Absoluto, não necessita dos meios relativos de comunicação de que necessitamos. No Espiritismo considera-se a linguagem dos seres superiores como apenas mental. Os espíritos falam por telepatia. A linguagem telepática é a do pensamento puro que costumamos traduzir em palavras. Por sinal que a palavra telepatia não quer dizer apenas transmissão mental de palavras, mas transmissão do pathus individual de cada um, de seus pensamentos e suas emoções, de todo o seu estado psíquico num dado momento. Basta isso para nos mostrar a riqueza da linguagem telepática. A palavra de Deus, ou seja, a sua forma de expressão, teria de ser ainda muito mais complexa e rica.

Psicologicamente podemos figurar assim o mecanismo da palavra: temos uma sensação provocada por estímulo exterior ou interior, essa sensação produz em nosso íntimo, em nossa afetividade, uma emoção e em nossa vontade uma volição, um impulso de expressá-la, que provoca na mente uma idéia daquilo que sentimos, um conceito que se traduz em um ou vários sons articulados que constituem uma palavra. Se quisermos gravar essa palavra temos de recorrer às letras de um alfabeto. Servimo-nos assim da linguagem oral e da linguagem escrita para dizermos alguma coisa. O pensamento foi traduzido em sons e depois em letras. Como podemos aceitar que a palavra de Deus esteja num livro? Isso equivale a submeter Deus ao nosso condicionamento humano.

Por outro lado, costumamos dizer que a palavra é criadora, tem o poder de criar. Por isso acredita-se que Deus criou o mundo pela palavra. Trata-se de uma alegoria, de uma simples imagem, mas as igrejas exigem que aceitemos essa imagem como realidade. A imagem é bela e podemos aceitá-la coma imagem. Deus disse: Faça-se a Terra e ela se fez. Mas se tomarmos isso ao pé da letra caímos no absurdo. Deus fala em nossa consciência e em nosso coração, mas não fala por palavras, nem em linguagem humana. Fala em sua linguagem divina, em sua linguagem de Deus. Podemos compreender isso? Sim, se prestarmos atenção à voz de Deus em nós, que nos fala por intuições, pressentimentos, emoções. Ele toca as nossas teclas internas e soamos como um piano. Mas quem poderia escrever o que Ele nos diz? Nós mesmos não o pode-ríamos fazer.

Muitas pessoas ilustradas, doutoradas, ordenadas em cerimônias religiosas não compreendem isso. Esperam a voz de Deus como a de alguém que falasse através da linguagem humana. E podem ouvir uma voz que lhes fala no silêncio, como milhões de pessoas ouvem diariamente. As pesquisas atuais da telepatia mostram que isso é possível e até mesmo natural. Podemos receber comunicações telepáticas de criaturas vivas e criaturas que já morreram. E se esperamos a voz de Deus como voz humana, certamente aceitaremos que Deus nos falou. Esse o perigo dos que procuram comunicar-se com Deus através de processos artificiais. Deus nos fala naturalmente, quando estamos em condições de ouvir a sua voz. Mas só ele sabe quando estamos nessas condições. Os que querem ouvir a voz de Deus a qualquer preço geralmente acabam pagando o alto preço do fanatismo ou da obsessão por uma voz de espírito inferior. Uma experiência de Deus que pode mandar-nos ao inferno das perturbações aqui mesmo, na Terra.

Mas se estamos pensando em Deus, dirá o leitor, como podemos ser assediados por vozes intrusas? Quando pensamos em Deus com pretensões descabidas, desejando ser melhores que os outros, separar-nos do rebanho dos impuros, arriscamo-nos a ficar sozinhos. Os fariseus orgulhosos oravam no Templo e nas esquinas das ruas, julgando-se os privilegiados de Deus, mas Jesus os chamou de hipócritas, sepulcros caiados e cheios de podridão por dentro. Deus não faz acepção de pessoas.

De nada valem os rituais pomposos que só nos lembram as épocas de falso esplendor dos homens que se diziam ungidos e coroados por Deus. De nada vale a leitura dos livros sagrados para a nossa salvação pessoal, ajeitando-nos comodamente no carro particular dos eleitos. Deus não quer a fidelidade forçada dos filhos que ele criou para a herança divina através das experiências da vida. Seu plano está evidente no espetáculo do mundo. Passam as gerações e as civilizações na roda das ilusões, mas Deus espera paciente por cada um de nós. Precisamos compreender que somos criaturas em evolução e que se Deus nos colocou no mundo não foi pelo pecado ingênuo de Adão e Eva, mas porque precisamos evoluir através das experiências da vida. Todos nós fomos feitos do mesmo barro, segundo a alegoria bíblica que o Espiritismo explica de maneira tão grandiosa e tão lógica. Somos partes da obra de Deus e não fomos destinados à perdição, mas à salvação. Mas não é através de ritos e palavras que podemos livrar-nos de nossos erros. Temos de acertar, de corrigir-nos. Deus nos espera.

Não devemos extraviar-nos nas ilusões da Terra, para não retardar a nossa evolução para Deus. Entre essas ilusões estão a da santidade fácil, a da hipocrisia que nos leva a considerar-nos melhores que a maioria, a da pretensão de podermos passar através de ritos e sacramentos ao mundo dos eleitos, a audácia de querermos ouvir a voz de Deus em particular, enquanto ela soa no mundo para todos ouvirem. O maior pecado é o da fuga à vida, às experiências que nos desafiam. Nascemos para viver a vida e precisamos vivê-la sem apego às coisas do mundo, mas sem rejeição ao mundo, que é obra de Deus. Esse difícil equilíbrio é o objetivo da nossa ginástica existencial. Jesus preferiu Zaqueu e Madalena aos doutores do Templo, não condenou a mulher adúltera nem a enviou aos juizes do Sinédrio, aconselhando-a apenas a afastar-se da vida desregrada. Não adianta buscarmos a Deus em longas meditações, recusando o caminho que ele mesmo nos deu para irmos ao seu encontra: o da vida honesta e cheia de amor e compreensão para todos os nossos companheiros da existência terrena. A Terra é a nave celeste que Deus nos deu para alcançarmos as muitas moradas da Casa do Pai.


Capítulo 13
Revolução Cósmica

Em meados do Século XIX ocorreu uma abertura cósmica para o homem em todos os sentidos. Três séculos após a Revolução Copérnica, que começara a demolir o geocentrismo de Ptolomeu, Kardec rompia o organocentrismo da concepção científica do homem, que tinha em seu apoio a tradição religiosa judeu-cristã. Nicolau Copérnico escrevera em latim o seu tratado De Revolucionibus Orbium Celestium (Das Revoluções das Orbes Celestes) que só foi publicado em 1543, após a sua morte, e condenado pelo Papa Paulo V. Kardec publicou “O Livro dos Espíritos”, em 1857, que também não escapou à dupla condenação da Igreja e da Ciência.

A concepção da vida como inerente às estruturas orgânicas foi o último refúgio do geocentrismo. Já que a Terra não era o centro do Universo, o homem sustentava a sua vaidade e o seu orgulho considerando-se o centro da vida. Isso é evidente ainda hoje, transparecendo na luta desesperada das religiões contra a concepção espírita do homem e na desesperada resistência das Ciências à evidência resultante de suas próprias conquistas. Na América e na Europa de hoje as declarações positivas de Rhine, Soal, Carington e outros sobre a existência de um conteúdo extrafísico nos seres humanos e de sua sobrevivência à morte orgânica são combatidas ferozmente e classificadas como ridículas. É um curioso espetáculo na arena intelectual, em que vemos o homem lutando, por orgulho, para sustentar que não é mais do que pó e cinza.

Podem os clérigos argumentar que nas religiões não se passa o mesmo, pois os princípios religiosos sustentam a concepção metafísica do homem. Entretanto, pode-se aplicar às religiões a advertência de Descartes quanto ao perigo de fazer-se confusão entre alma e corpo. Enquanto para o Espiritismo a alma é o espírito que anima o corpo, havendo nítida distinção entre um e outro, as religiões admitem a unidade substancial de alma e corpo, de tal maneira que a ressurreição se verifica no próprio corpo. A complexa teoria de matéria e forma, de Aristóteles, deu muito pano para manga na teologia medieval, resultando na doutrina da forma substancial, em que forma é substância e substância é forma. Em conseqüência, matéria e forma se misturam e não se sabe como explicar o homem sem a sua estrutura orgânica de matéria, pois chega-se mesmo a sustentar que o homem é pó e em pó se reverterá na morte.

Opondo-se a essa posição restritiva, que reduz o homem á condição de bicho da terra, segundo a expressão camoneana, o Espiritismo o reintegra na dignidade de sua natureza espiritual e reajusta a sua imagem no panorama cósmico. A manifestação dos mortos, demonstrando que continuam vivos e atuantes noutra dimensão da vida, e que continuam a ser o que eram apesar de não mais possuírem o corpo material, não deixa nenhuma possibilidade de dúvida sobre a diferença entre conteúdo e continente, entre espírito e corpo. A confusão de forma e substância resolve-se com a demonstração da estrutura tríplice do homem: o espírito é a substância, a essência necessária, o ser do primado ôntico de Heideggar; o perispírito (corpo espiritual ou bioplásmico) é a forma da hipótese aristotélica, o padrão estrutural dos biólogos soviéticos; o corpo é a matéria que nos dá o ser existencial. Essa é a tese espírita dos dois seres do homem: o ser do espírito e o ser do corpo.

E o não-ser, como queria Hegel, não é um ente especifico e autônomo, oposto ao ser, mas inerente ao ser de relação ou existencial, ligado a ele na existência como contrafação, determinado pela oposição da existência ao ser. É o que vemos no problema da relação Deus-Diabo, em que a figura do Diabo só é tomada em sentido mitológico, nunca real, como personificação das forças do passado, que pesam sobre o ser existencial, embaraçando-lhe o desenvolvimento. O não-ser é o que não quer ser, não quer atualizar-se na existência, mas permanecer o que era, apegado aos resíduos das fases anteriores ao ser. Uma das funções do ser é absorver o não-ser para levá-lo a ser, segundo a tese da passagem do inconsciente ao consciente, de Gustave Geley.

É assim que o homem se reintegra, pela concepção espírita, na realidade cósmica. Não é mais um ser isolado na Criação, privilegiado pela inteligência e amesquinhado pela morte, não é mais aquela paixão inútil de Sartre que o tempo consome e reduz a nada. O homem é a síntese superior produzida pela dialética da evolução criadora de Bergson nos reinos inferiores da Natureza, a partir das entranhas da Terra. No seu curso de milhões e milhões de anos, a partir da mônada oculta na matéria cósmica, impulsionado na ascensão filogenética das coisas e dos seres, passando pelas metamorfoses de uma ontogenia assombrosa, ele atingiu a consciência e descobriu a marca de Deus em si mesmo. Herdeiro de Deus e co-herdeiro de Cristo, segundo a expressão do Apóstolo Paulo, o homem não está condenado à frustração da morte, mas destinado à vida em abundância na plenitude do espírito.

Não é fácil à mentalidade necrófila desenvolvida pelas religiões da morte, sob o peso esmagador da escatologia judaica e da tragédia grega, compreender essa visão nova do homem como um ser cósmico. Por isso acusa-se o Espiritismo de reativar antigas superstições e voltar à concepção da metempsicose egípcia elaborada pelo gênio de Pitágoras. Não percebe essa mentalidade que a teoria pitagórica da metempsicose impunha-se ao sistema do filósofo por uma intuição do seu próprio gênio e pela necessidade lógica. O homem pitagórico antecipou o homem do Espiritismo na medida possível das grandes antecipações históricas. Era um homem cósmico por antevisão, tão integrado e entranhado na realidade universal que não podia escapar do círculo vicioso das formas se não despertasse em seu íntimo os poderes secretos da mônada. O conceito do homem em Pitágoras é infinitamente superior ao das religiões atuais e ao das filosofias do desespero e da morte em nosso século.

Quando Pitágoras falava da música das esferas não se embrenhava nas superstições, mas abria a mente de seus discípulos para a visão real do Cosmos, que só em nosso tempo se tornaria acessível a todos. Mais tarde, Jesus também anunciaria as muitas moradas do Infinito e ensinaria o principio da ressurreição e das vidas sucessivas, estarrecendo um mestre em Israel que não sabia dessas coisas. Já numa fase mais avançada da evolução terrena, Jesus não se referia à metempsicose, mas à palingenesia do pensamento grego, à transformação constante dos seres e das coisas no desenvolvimento do plano divino. Nesse mesmo tempo, nas antigas Gálias, os celtas, que para Aristóteles eram um povo de filósofos, divulgavam esses mesmos princípios pela voz dos seus bardos, poetas-cantores das tríades sagradas. E entre eles, como um druida, Kardec se preparava para a sua missão futura na França do Século XIX.

Vemos assim duas linhas paralelas na filogênese humana: de um lado temos a evolução do principio inteligente a partir dos reinos inferiores da Natureza, onde a mônada, a semente espiritual lançada pelo pensamento divino, desenvolve as suas potencialidades numa seqüência natural em que podemos perceber as seguintes etapas: o poder estruturador no reino mineral, a sensibilidade no vegetal, motilidade do animal, o pensamento produtivo no homem. A este esquema linear temos de juntar a idéia do desenvolvimento simultâneo de todas essas potencialidades, num crescendo incessante, num processo dialético de dinamismo tão intenso e complexo que mal podemos imaginar. Foi isso que levou Gustave Geley, o grande sucessor de Richet, a considerar a existência em todas as coisas de um dinamismo-psíquico-inconsciente que rege toda a evolução. Que abismo entre essa concepção da gênese universal que o Espiritismo oferece e a gênese alegórica das religiões! E mesmo em relação à gênese científica podemos notar a superioridade da concepção espírita, que não se restringe à idéia de um processo dinâmico de forças desencadeadas no plano superficial da matéria, mas penetra nas entranhas do fenômeno para descobrir o número, a essência determinante do processo e os objetivos graduais e conscientes que são acessíveis à nossa percepção e compreensão. A criação do homem, a sua natureza e o seu destino tornam-se inteligíveis. Édipo decifra os mistérios da Esfinge.

Apesar disso, há criaturas que acusam o Espiritismo de doutrina simplória, de simples abecê da Espiritualidade, curso primário de iniciação nos conhecimentos superiores da realidade universal. Enganam-se com a linguagem simples das obras de Kardec, através da qual o mestre francês colocou ao alcance de todos, graças a um processo didático dificílimo de se atingir e aplicar, os mais graves problemas que os sábios do futuro teriam de enfrentar, como estão enfrentando neste momento. A simplicidade de Kardec é tão enganosa como a de Descartes. À maneira do Discurso do Método, “O Livro dos Espíritos” é um desafio permanente à argúcia e ao bom-senso dos sábios do mundo. Esses dois livros nos lembram a simplicidade enganosa dos ensinos de Jesus, que os teólogos enredaram em proposições confusas, não compreendendo o seu sentido profundo e impedindo os simples de compreendê-lo.

Mas voltemos às duas linhas paralelas da filogênese humana, para tratar da segunda. Na primeira tivemos o processo natural de desenvolvimento das potencialidades do princípio inteligente, que podemos comparar ao crescimento da criança e aos primeiros cuidados com a sua educação. Temos de aguardar o desenvolvimento orgânico da criança para que as suas possibilidades mentais se revelem. E temos então de orientar as suas disposições naturais para o aprendizado escolar. O que vimos na primeira paralela foi exatamente esse processo. Quando as potências da mônada atingiram o desenvolvimento necessário à sua individualização definitiva, como criatura humana, e a consciência mostrou-se estruturada, começou então o processo da sua maturação e do seu aprendizado. O clã, a tribo, a horda, a família e as formas sucessivas de civilização representam as etapas da segunda linha paralela, em que se verifica o desenvolvimento cultural. A inteligência, já formada, vai ser cultivada ao longo do tempo, nas gerações sucessivas. As diferenciações monádicas intuídas por Leibniz, como as diferenciações na constituição atômica verificadas pela Física atual, respondem pelas características diversas e diversificadoras das criaturas humanas em substância e forma. Essas diferenciações não são apenas individuais, mas também grupais, determinando por afinidade os grupos familiais e raciais. Os elementos da natureza, do meio físico, e as miscigenações, as misturas raciais e culturais, contribuirão para acentuar as diversificações no decorrer do tempo. Nota-se a existência de um dispositivo protetor das raças e culturas em desenvolvimento, nas primeiras fases do processo, com o isolamento dos grupos afins nos continentes. Mas esse dispositivo não é artificial, entrosa-se naturalmente no processo evolutivo, em que todas as condições necessárias decorrem das variantes evolutivas. São inerentes ao processo.

Quando os vários grupos amadureceram suficientemente e conquistaram um grau relativamente elevado de civilização, inicia-se a fase das conquistas, da dominação dos grupos mais poderosos sobre os mais fracos, numa longa e penosa elaboração de novas condições de vida e cultura. Kerschensteiner coloca o problema da cultura subjetiva e da cultura objetiva, a primeira correspondendo ao plano das idéias, da elaboração intelectual, a segunda ao plano da prática, do fazer, das realizações materiais.

E Ernst Cassirer mostra como a cultura objetiva conserva em suas obras materiais, gravadas nos objetos, as conquistas subjetivas de uma civilização morta. A Renascença, por exemplo, revela como as conquistas espirituais do mundo clássico greco-romano foram arrancadas das ruínas e dos arquivos aparentemente perdidos e reelaboradas pelo mundo moderno. Dewey, por sua vez, acentua a importância da reelaboração da experiência nas gerações sucessivas.

Mas quando chegamos ao ponto em que hoje estamos, prontos para um salto cultural de natureza qualitativa, ainda não podemos considerar-nos como obra concluída. Como observou Oliver Lodge, o homem ainda não está acabado, mas em fase talvez de acabamento. Sim, talvez, porque o nosso otimismo e a nossa vaidade podem enganar-nos a respeito do nosso estágio atual de realização. A própria situação da Terra, isolada no espaço e só agora tentando a expansão cósmica, deve advertir-nos de que ainda não estamos preparados para ingressar na comunidade dos mundos superiores. Somos ainda um obscuro e grosseiro subúrbio da Cidade de Deus e só à distância podemos vislumbrar o esplendor da luminária celeste na imensidade cósmica. Nossos próprios meios de penetração no espaço sideral são demasiado rudimentares e precários. Nossos corpos animais não nos permitem viver em condições superiores às da Terra. O desenvolvimento de nossos poderes psíquicos está ainda começando e nossa capacidade mental, condicionada por um cérebro de origem animal, não vai muito além dos processos indutivos e dedutivos, mal arranhando o litoral esquivo do mundo da intuição. Como assinala Remy Chauvin, nem mesmo conseguimos atingir uma organização social superior, permanecendo ainda num plano de barbárie, estruturado em princípios ilógicos decorrentes da selva, com o predomínio da força sobre o direito.

Não obstante, estamos avançando mais rapidamente do que nunca. E se a nossa vaidade e o nosso egoísmo não nos cegarem por completo, se formos capazes de reconhecer no Espiritismo a doutrina que encerra o esquema do futuro, a plataforma espiritual, política e social do novo mundo que temos de construir no planeta – não mais a ferro, fogo e sangue – mas a golpes de inteligência, compreensão e fraternidade, então poderemos atingir a maturidade humana. Caso contrário retornaremos à selva, recomeçaremos de novo o nosso aprendizado desde o princípio, reiniciaremos o curso desperdiçado das instruções superiores. E não teremos mais em nossa companhia os que souberam vencer, pois cabe-lhes o direito de se transferirem para os cursos universitários da Cidade de Deus, em que o Pai certamente os matriculará. A escolha nos pertence, a decisão é nossa. Deus nos concedeu, com a consciência, o direito e o dever das opções.

Kardec sabia o que fazia, quando evitava a confusão do Espiritismo com as religiões dogmáticas e formalistas, sem entretanto negar ao Espiritismo o seu aspecto religioso. Teve mesmo o cuidado de não cortar em excesso as ligações da doutrina com a tradição religiosa, pois sabia que a evolução não pode sofrer, sem graves perigos de solução de continuidade. O princípio espírita do encadeamento de todas as coisas no Universo estava presente em sua mente. Poucas obras revelam uma compreensão tão clara e profunda da natureza orgânica do Universo, como a Codificação. E por isso, e não por sectarismo ou fanatismo, que não podemos fazer concessões ao passado no campo das atividades doutrinárias. Avançamos para um novo mundo que só o Espiritismo pode modelar, pois só ele revela condições para isso em sua estrutura doutrinária. Mas se não procurarmos compreendê-lo em toda a sua grandeza, é certo que o reduziremos a uma seita fanática de crentes obscurantistas. Evitemos essa queda no passado, para nós mesmos e para o mundo. Tenhamos a coragem de avançar sem muletas e sem temor para a Civilização do Espírito.


Capítulo 14
O Problema da Violência

Chamamos Civilização do Espírito aquela em que os poderes espirituais regerão a vida social. Para isso é necessário que a sociedade seja constituída por seres morais, criaturas formadas nos princípios da moral-consciencial. Essa moral corresponde ao que Hubert considera as exigências da consciência. Não se trata, pois, de um conceito de moral metafísica, de uma formulação utópica de sonhadores. Mesmo que o fosse, a definição da utopia por Karl Mannheim nos socorreria quanto à sua validade. Se as utopias são, como quer Mannheim, percepções antecipadas de realidades futuras – possibilidade provada pelas pesquisas parapsicológicas – nem assim estaríamos tratando de hipóteses vazias. Mas quando aludimos à consciência estamos pisando na terra e não olhando para o céu. A consciência é um dado positivo, uma realidade antropológica e social que ninguém se atreveria a contestar. Ela rege a nossa vida, o nosso comportamento nas relações humanas e por isso se projeta de maneira inegável no plano do sensível.

Sabemos que a consciência varia de graus no tocante à sua estrutura e à sua coerência. E sabemos também quais os perigos concretos de uma consciência imatura, ainda não suficientemente definida, e portanto frouxa ou incoerente, contraditória, que pode produzir catástrofes no âmbito da sua influência ou do seu domínio. As variações da moral entre os grupos humanos e as próprias civilizações decorrem mais da posição da consciência dominante na sociedade do que dos fatores mesológicos e suas conseqüências econômicas. No plano religioso a consciência é um fator determinante da realidade religiosa. A consciência judaica de Saulo de Tarso fez dele um perseguidor sanguinário dos cristãos primitivos, o lapidador cruel de Estevão. Mas, ao ajustar a sua consciência aos princípios cristãos, ele se transformou no Apóstolo dos Gentios e no maior propagador do Cristianismo.

As exigências da consciência são sempre as mesmas em todos os homens. As variações de graus e de coerência decorrem do processo de maturação e das condições de meio e educação. A consciência amadurece na proporção em que as experiências vão revelando ao espírito o seu anseio latente de transcendência. A vontade de potência, de Nietzshe, é o primeiro impulso que leva o homem, ainda na selva, a querer sobrepujar os outros, elevar-se acima das condições gerais do meio. Esse impulso se prolongará no processo evolutivo. O homem se envaidece com a sua capacidade de subjugar os outros, de mandar, de impor medo, respeito, submissão aos demais. Sua consciência se abre no plano individual, fechada nos limites de si mesma. É o reconhecimento do seu poder que naturalmente o embriaga e o levará a excessos perigosos. Mas na proporção em que os liames do clã se desenvolvem, o parentesco, a simpatia e as afinidades se revelam, a embriaguez do poder vai sendo atenuada, contida pela percepção dos limites inevitáveis. Depois, o esgotamento progressivo das forças físicas e o perigo das doenças, das competições com iguais ou mais fortes, e por fim a certeza da morte irão abatendo a sua arrogância. Nas reencarnações sucessivas essas experiências se renovam, mas o impulso de transcendência se acentua, levando-o a procurar outros meios de superação: o poder social, a hipocrisia, a estratégia das posses materiais e das posições de mando. Só lentamente, ao longo do tempo, sujeito às reações que o enredam em situações difíceis, muitas vezes torturantes, sua consciência começa a abrir-se para o respeito aos direitos dos outros. A interação social, na recíproca das obrigações e das necessidades, na transformação dos instintos em sentimentos, irá pouco a pouco despertando-o para novas dimensões consciênciais.

A violência do homem civilizado tem as suas raízes profundas e vigorosas na selva. O homo brutalis tem as suas leis: subjugar, humilhar, torturar, matar. O seu valor está sempre acima do valor dos outros. A sua crença é a única válida. O seu modo de ver o mundo e os homens é o único certo. O seu deus é o único verdadeiro. Só o que é bom para ele é bom para a comunidade. Os que se opõem aos seus desígnios devem ser eliminados pelo bem de todos. A violência é o seu método de ação, justificado pelo seu valor pessoal, pela sua capacidade única de julgar. Tece ele mesmo a trama de fogo do seu futuro nas encarnações dolorosas que terá de enfrentar. As religiões da violência fizeram de Deus uma divindade implacável e os livros básicos de suas revelações estão cheios de homicídios e genocídios em nome de Deus.

Não obstante, misturam-se às ordenações violentas estranhos preceitos de amor e bondade. São as lições de consciências desenvolvidas lutando para despertar as que, endurecidas no apego a si mesmas, asfixiam os germes do altruísmo nas garras do egoísmo. É um espetáculo dantesco o de uma alma vigorosa dotada de intelecto capaz de entender as suas próprias contradições, mas empenhada em negar a sua condição humana, rebaixando-se aos brutos ao invés de buscar a elevação moral a que se destina. Nos momentos de transição, como este que estamos vivendo, a violência desencadeada exige a oposição vigorosa e sacrificial dos que já atingiram o desenvolvimento consciencial da civilização. A cumplicidade com as práticas de violência, por parte de consciências esclarecidas, retarda a evolução coletiva e rebaixa o cúmplice a posições indignas. O mesmo acontece no tocante à aceitação de princípios errôneos por conveniência. O espírito se coloca então em luta consigo mesmo, negando o seu próprio desenvolvimento consciencial e ateando em si mesmo a fogueira dos remorsos futuros.

A Civilização do Espírito se torna, assim, o resultado de um parto doloroso. Mas, como todos os partos, tem de ser feito. E se acaso for possível o aborto, a civilização se fechará sobre si mesma e todos os responsáveis mergulharão com ela nas trevas da miséria moral. As fases de transição, na evolução dos mundos, são também fases de julgamento individual das criaturas que os habitam. Daí o mito do Juízo Final, em que todos serão julgados. Mas não haverá um Tribunal Divino nas nuvens, porque esse tribunal está naturalmente instalado na consciência de cada indivíduo. A presença do julgador é onímoda e fatal, porque cada qual será juiz implacável e inevitável de si mesmo.

A agonia das religiões é a agonia de um mundo. Por isso a Terra inteira participa dessa mesma agonia. A queda dos deuses mitológicos do mundo clássico foi também a queda dos grandes impérios. Em vão César procurou desligar-se de Júpiter e aceitar o Deus Único. A conversão do Império foi a sua própria morte. A Idade Média procurou restabelecer o reino da violência em nome de Jesus. Durou um milênio, pois a integração dos bárbaros na ordem cristã exigia uma reelaboração demorada e um reajuste penoso das contradições culturais. O Renascimento marcou o advento do que parecia ser, na verdade, uma civilização cristã. Mas os resíduos da violência continuaram a fermentar nas novas estruturas sócio-culturais. A prova histórica de que a carga de violência era enorme está hoje aos nossos olhos, na explosão de violências em todos os níveis do mundo contemporâneo. Nossa esperança é a de que essa explosão seja a catarse final. O homo brutalis vai desaparecer. Mas para isso é necessário o despertar de novas dimensões na consciência atual. Não será sustentando e justificando as estruturas religiosas envelhecidas, submissas às ordenações do passado bíblico, que facilitaremos o advento da nova era. Muito menos pela negação da própria essência, do homem, através de ideologias materialistas. A busca da intimidade pessoal com Deus, em termos fantasiosos, ou a negação de Deus em nome de uma razão ilógica são formas contraditórias de asfixia da consciência. A rejeição do Evangelho ou a manutenção de sua interpretação sectária equivalem igualmente à negação dos valores espirituais do homem. A estrutura moral da consciência está delineada de maneira indelével nas páginas do ensino moral de Jesus. Temos de aprofundar o seu estudo e procurar aplicá-lo em nossa vivência social. A civilização Cristã vai sair agora do tubo de ensaio, concretizar-se na forma real de uma Civilização do Espírito, em que os princípios espirituais se encarnarão nas normas de conduta, nas formas de comportamento do Novo Homem.

O problema das relações humanas, colocado em forma de etiqueta nas velhas civilizações nobiliárquicas do Oriente e do Ocidente, formalizado ao extremo nos tempos feudais, e convertido em protocolo de conveniências no mundo moderno e contemporâneo, terá de voltar ao ponto de partida dos ensinos e dos exemplos de Jesus. A regra áurea do amor prevalecerá num mundo regido pela moral consciencial. Porque a primeira exigência da consciência humana é a do amor ao próximo, desprezada e amesquinhada nas sociedades mercenárias a ponto de levar-nos ao seu contrário – o ódio, essa cegueira do espírito, que gera e sustenta a violência no mundo.

O pragmatismo das sociedades contemporâneas coisificou o homem, o que vale dizer que o nadificou no plano moral. Pior do que a nadificação pela morte, da teoria de Sartre, é essa nadificação em vida que reduz a criatura humana a objeto de uso. O homem retorna a condição dos instrumentos vocais de Cícero, um instrumento que fala. Pode ser incluído entre os úteis ou amanuais de Heidegger, objetos manuseáveis. O public-relations de hoje é o fâmulo medieval aprimorado pela técnica, domesticado para sorrir e curvar-se em todas as ocasiões, pois o que importa é sempre o lucro, o que vale é a relação social em termos de vantagens, sempre que possível, pecuniárias. Esse aviltamento total do homem abriu as comportas da violência represada debilmente pelas barreiras artificiais da civilização. Como estamos vendo no panorama mundial da atualidade, com exemplos gritantes diariamente divulgados pelos meios de comunicação, a besta-fera das selvas arrombou as jaulas convencionais e tripudia sobre a fragilidade humana.

Contra essa realidade exasperante, de nada valem os sermões, as pregações, as ladainhas e outras preces labiais. O mesmo indivíduo que se ajoelha diante das imagens, nos templos suntuosos, volta ao seu posto de mando para ordenar torturas canibalescas. Está certo que Deus o aprova, pois age em defesa da civilização cristã, aviltando aqueles pelos quais o Cristo morreu, segundo lembrou Stanley Jones. No começo do século, Léon Tolstoi já advertia que estamos numa era de nova antropofagia, então requintada pelas técnicas modernas. Hoje, na era tecnológica, os instrumentos de opressão, tortura e aniquilamento do homem atingiram a máxima perfeição diabólica. Tudo isso porque? Porque a deformação da mente e o aviltamento da consciência desumanizou o homem.

Seria loucura responsabilizar unicamente as religiões por essa calamidade. Mas seria hipocrisia querer isentá-las de culpa. Elas se apegaram à matéria em nome do espírito e asfixiaram este em suas estruturas pragmáticas. Cabe-lhes pelo menos metade da culpa, pois que se fizeram mestras e orientadoras da civilização, participando ativamente dos maiores desmandos através dos séculos, quando não os dirigia. Estatizando-se ou não, todas elas trocaram o mandato divino pelos poderes de César. E se não se aniquilaram mutuamente, não foi por piedade, mas porque jogaram habilmente a sua sorte sobre a túnica do crucificado e os dados romanos favoreceram a todas. Apesar dessa voracidade mundana, almas valentes como a de Lutero, humildes e piedosas como a de Francisco de Assis, irredutíveis como a de John Huss, límpidas como a de Maria D'Ageada sacrificaram-se para tentar salvá-la e insuflar-lhes a seiva cristã de seus novos exemplos.

Os mártires da fé não foram apenas perseguidos e esmagados pelos ímpios. Dentro de suas próprias confissões religiosas, nos calabouços medievais que refletiam o Inferno na Terra, e até mesmo no mundo moderno, apesar dos trágicos exemplos históricos, em nações profundamente marcadas pelo fogo do fanatismo religioso, milhares de mártires continuaram sofrendo as ameaças e os castigos do Deus bíblico implacável, através de seus estranhos e temíveis capatazes. Ainda não surgiu, infelizmente, o gênio da Psicologia que deverá, mais cedo ou mais tarde, realizar a análise assombrosa dos complexos sem nome de misticismo, sadismo e barbárie que Freud apenas aflorou em suas pesquisas da libido. Será um balanço apocalíptico da escatologia das religiões da violência.

Não proponho estes problemas em tom de acusação, mas de análise. Os maiores mártires, na verdade, foram os próprios carrascos, que aviltaram primeiro a si mesmos, condenando-se perante o tribunal da consciência, cujas auto-sentenças brotam como labaredas das próprias entranhas do criminoso, digno de piedade e perdão como todas as criaturas humanas. Minha intenção é apenas a de prevenir, sacudir e acordar os que continuam errando, na vaidosa ilusão de uma investidura divina contrária aos princípios fundamentais do Evangelho. A imortalidade do ser é a sua própria e irreversível condenação, ante as leis de Deus inscritas em sua consciência. A vantagem do Espiritismo, entre todas as doutrinas filosóficas do nosso tempo, é a de colocar os problemas do homem, mesmo no campo religioso, em termos de razão e naturalidade, eliminando os resíduos do sobrenatural que pesaram esmagadoramente sobre o passado, sem cair no ceticismo e no agnosticismo. Essa posição suis generis do Espiritismo permite-lhe preparar o homem atual para uma existência normal e digna no futuro, desde que os espíritas, tão sobrecarregados de heranças religiosas deformantes, não venham a cair nas mesmas e nefastas ilusões da investidura divina e da institucionalização hierárquica das religiões da violência. Não escrevi este ensaio com fins proselitistas, pois uma doutrina aberta, sem finalidades salvacionistas, fundada em métodos científicos de observação e pesquisa, como o próprio Kardec afirmou, não é uma caçadora de adeptos. O que lhe interessa não é combater as religiões ou tirar de suas fileiras os que nelas se sentem bem, mas apenas oferecer aos homens de bom-senso uma visão realista e por isso mais ampla e mais profunda do homem e do seu destino no espaço e no tempo. Só essa compreensão racional e superior do Universo, em que o homem aparece integrado nas leis naturais, poderá modificar a mentalidade confusa e contraditória do nosso tempo e preparar-nos para a Era Cósmica, na qual a Terra só poderá entrar com a Civilização do Espírito. Nessa civilização, que será a única digna dessa classificação, a única civilização autêntica, os homens estarão investidos do único mandato realmente divino (considerando-se o divino como uma categoria superior à do humano) que decorre das exigências de sua consciência moral.

René Hubert interpreta a Educação, no seu Traité de Pedagogie Generale, como um processo que tem por finalidade estabelecer na Terra a solidariedade de consciências, da qual resultará uma estrutura política e social que ele chama de República dos Espíritos. É essa República, em que a rés não se limita às coisas materiais, mas se estende sobretudo às consciências, proclamando o primado do espírito no planeta, que o Espiritismo pretende atingir pelo trabalho e a compreensão dos homens. Porque a tarefa é nossa e não de entidades mitológicas de qualquer espécie.

Se insisto na tônica do Cristianismo não é por menosprezo às demais correntes de pensamento religioso, mas porque a experiência histórica, apesar de todos os pesares já anteriormente referidos, prova que somente ele mostrou-se capaz de reformular o mundo em sua globalidade. As energias espirituais e a orientação racional do ensino moral do Cristo, encerrado no complexo de mitos dos Evangelhos, são, segundo entendo, os elementos que podem e realmente já estão balizando o futuro da humanidade terrena. O importante é chegarmos a esse futuro pelos meios adequados, com o mínimo de conflitos criminosos e o máximo de compreensão racional dos nosso objetivos. Como observou Gandhi em suas memórias, os meios que nos podem levar à verdade e à dignidade só podem ser verdadeiros e dignos. Esses meios não precisam da justificação dos fins, pois justificam-se por si mesmos.

– Fim –


Ficha de identificação literária

J. Herculano Pires nasceu em 25/09/1914 na antiga província de Avaré, no Estado de São Paulo e desencarnou em 09/03/1979, em São Paulo. Filho de José Pires Correa e de Da. Bonina Amaral Simonetti Pires. Fez seus primeiros estudos em Avaré, Itaí e Cerqueira César. Revelou sua vocação literária desde que começou a escrever. Aos 16 anos publicou seu primeiro livro, Sonhos Azuis (contos) e aos 18, o segundo livro Coração (poemas livres de sonetos). Já colaborava nos jornais e revistas das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores da União Artística do Interior. Mudou-se para Marília em 1940 onde adquiriu o jornal Diário Paulista e o dirigiu durante 6 anos. Com José Geraldo Vieira, Zoroastro Gouveia, Osório Alves de Castro, Nichemja Sigal, Anathol Rosenfeld e outros promoveu, através do jornal, um movimento literário na cidade e publicou Estradas e Ruas (poemas) que Érico Veríssimo e Sérgio Millet comentaram favoravelmente. Em 1946 mudou-se para São Paulo e lançou seu primeiro romance, O Caminho do Meio, que mereceu criticas elogiosas de Afonso Schimidt, Geraldo Vieira e Wilson Martins. Repórter, redator, secretário, cronista parlamentar e crítico literário dos Diários Associados onde manteve, também, por quase 20 anos, a coluna espírita com o pseudômino de Irmão Saulo. Exerceu essas funções na Rua 7 de Abril por cerca de trinta anos. Em 1958 bacharelou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo, e pela mesma Universidade licenciou-se em Filosofia tendo publicado uma tese existencial: O Ser e a Serenidade. Autor de 81 livros de Filosofia, Ensaios, Histórias, Psicologia, Espiritismo e Parapsicologia, sendo a sua maioria inteiramente dedicada ao estudo e à divulgação da Doutrina Espírita, e vários de parceria com Chico Xavier. Lançou, recentemente, a série de ensaios Pensamento da Era Cósmica e a série de romances de Ficção Científica e Paranormal. Foi diretor-fundador da Revista de Educação Espírita publicada pela Edicel. Em 1954 publicou Barrabás que mereceu Prêmio do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo em 1958, constituindo o primeiro volume da trilogia Caminhos do Espírito. Em 1975 publicou Lázaro e, com o romance Madalena, editado pela Edicel em maio de 1979, a concluiu.

Ao desencarnar, deixou vários originais os quais vêm sendo publicados pelas Editoras Paidéia e Edicel.

FIM