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sábado, 12 de fevereiro de 2011

Além da Morte–Divaldo Pereira Franco

 

Índice do Blog

ALÉM DA MORTE

DIVALDO PEREIRA FRANCO

DITADO PELO ESPÍRITO OTÍLIA GONÇALVES

Intróito

Além da Morte chegam, sem solução de continuidade, as imensas

caravanas de emigrantes da Terra.

Procedentes dos mais variados rincões do Orbe, trazem estampados no

espírito os sinais vigorosos que lhes refletem os últimos instantes no veículo

celular.

Aportam no grande continente da Erraticidade, conduzindo a bagagem dos

feitos acumulados durante o trânsito pelo mundo das expressões físicas. Nem

anjos nem demônios, mas homens que eram, homens que continuam. A

desencarnação não lhes modificou hábitos nem costumes, não lhes outorgou

títulos nem conquistas, não lhes retirou méritos nem realizações. Cada um se

apresenta como sempre viveu. Não ocorre milagre de transformação para os

que atingem o grande porto...

Raros despertam com a consciência livre, após a inevitável travessia. A

incontável maioria, vinculada atrozmente às sensações animalizantes, se

jugula às lembranças daquilo em que se comprazia, e se demora, desditosa,

em bandos, quais salteadores enlouquecidos, pervagando em volta do

domicílio carnal, até que a Lei Excelsa os recambie ao renascimento.

Muitos, quais doentes em processo de convalescença de longo curso, são

recolhidos a Colônias Espirituais, que abnegados missionários do amor e da

caridade ergueram nas proximidades do planeta, onde se refazem e

retemperam as forças gastas, para recomeçar, reaprender e exercitar a

ascensão aos planos mais felizes.

Da mesma forma que na Terra enxameiam as afeições intercessórias,

além da morte não cessam as manifestações do amor em intercâmbio

contínuo, estabelecendo os fortes laços da proteção e do socorro.

O amor em todo lugar é a alma do Universo — manifestação de Deus.

Mesmo os Espíritos calcetas, inveterados perseguidores da paz de muitos

outros Espíritos — infelizes que são em si próprios, espalhando, por isso, a

infelicidade de que se encontram possuidos — não estão esquecidos do auxílio

divino pelos mensageiros abnegados que por eles velam, que os assistem e

amparam.

Em toda parte e sem cessar, o devotamento dos bons reflete a paternal

providência divina.

Morrer, longe de ser o descansar nas mansões celestes ou o expurgar

sem remissão nas zonas infernais, é, pura e simplesmente, começar a viver...

Evidentemente que as dimensões do céu, ou do inferno sem o caráter ad

aeternitatem, encontram o seu correspondente em regiões aflitivas onde as

consciências empedernidas se depuram para futuros renascimentos na

organização física em que se reajustam e se recompõem; ou estâncias de luz

onde se comprazem e se reúnem os heróis anônimos do dever, os

missionários dos labores humildes que passaram ignorados, os sacerdotes do

trabalho aparentemente desvalioso, os pais, irmãos e amigos ricos de

abnegação desinteressada, os mantenedores do bem e da ordem,

prosseguindo no programa de incessante evolução...

Após a disjunção celular, a consciência comanda o Espírito e o peso

específico das vibrações, por afinidade, se encarrega de fixar cada um no

quadro das necessidades evolutivas.

Não faltam, todavia, aqueles que, na Terra, objetam e recalcitram em torno

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de tais afirmações.

Não temos, porém, a pretensão de convencer este ou aquele aprendiz da

vida em experiência libertadora.

Todos os que se demoram no plano físico defrontarão agora ou mais tarde

as realidades espirituais e aprenderão de visu pelo processus da própria evolução,

retificando opiniões, disciplinando observações, experimentando...

A morte a todos os aguarda e a vida é a grande resposta a todos os

enigmas.

Preparar-se para esses imperiosos acontecimentos é tarefa inadiável, que

ninguém pode desconsiderar.

Pensando nisso, a nossa irmã Otília, em páginas que endereça à sua filha,

ainda envolta nos tecidos da carruagem física, reúne apontamentos da sua experiência

pessoal, que agora apresentamos em letra de forma, guardando a

esperança de, com essas narrativas, oferecer advertências e considerações —

considerações e advertências, aliás, que vêm sendo repetidas desde os

primórdios dos tempos e que, no Evangelho como na Codificação Kardequiana,

atingem sua mais vigorosa expressão — aos que trafegam desatentos ou

àqueles que buscam consolação e alento na Doutrina dos Espíritos.

A missivista não teve em mente apresentar novidade, considerando

mesmo que novidade é tudo aquilo que alguém ignora, já que, “nada há de

novo sob a luz do sol”, sendo a revelação sempre a mesma através das idades,

surgindo hoje e ressurgindo amanhã, com aspecto, caráter e roupagens novas.

Existem aqui e além-mar, em letras portuguesas e estrangeiras, excelentes

informações sobre a vida além da morte. Muito se disse e muito se dirá ainda.

Faz-se necessário, no entanto, repetir, divulgar, acostumar os homens às

questões espirituais.

A experiência da nossa mensageira desencarnada foi individual, e a

colheita que é sempre pessoal, pode, entretanto, sugerir lições e ensejar

abençoadas meditações ao leitor interessado.

Em um momento sequer desejou a amiga espiritual fazer obra de literatura,

por motivos facilmente compreensíveis. Ditou estas páginas nas sessões

hebdomadárias do Centro Espírita Caminho da Redenção, entre os meses de

março de 1958 e agosto de 1959, na sua quase totalidade em presença

daquela a quem foram dirigidas.

Ao trazer o presente livro à divulgação fazemo-lo, também, homenageando

o mestre lionês Allan Kardec, por ocasião do próximo centenário de A Gênese,

em a qual se estudam questões transcendentes, palpitantes e atuais à luz clara

e meridiana da razão e da ciência.

Nossa homenagem singela reflete, mais que outro sentimento, o da gratidão

mais profunda, e do respeito mais acendrado ao vaso escolhido, que se fez

missionário do CONSOLADOR, no justo instante em que o espírito humano se

desgoverna e se amesquinha ante as notáveis conquistas do engenho técnico,

sem, contudo, os seus correspondentes morais.

A mensagem consoladora e clara das Vozes do Céu tem regime de

urgência e, ante as perspectivas atraentes do amanhã com Jesus, formulamos

votos de paz com as nossas sinceras escusas àqueles Espíritos valorosos,

perspicazes e estudiosos que, certamente, não encontrarão aqui o de que

necessitam para sedimentação da cultura ou ampliação do conhecimento.

Exorando ao Senhor que nos abençoe a todos, discípulos sinceros que

buscamos ser de Jesus Cristo, sou a servidora,

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Joanna de Ângelis

Salvador, 17 de julho de 1967.

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ESCLARECIMENTOS OPORTUNOS

“Vi logo que cada Espírito, em virtude de sua posição pessoal e de seus

conhecimentos, me desvendava uma face daquele mundo, do mesmo modo

que se chega a conhecer o estado de um país, interrogando habit antes seus

de todas as classes, não podendo um só, individualmente, informar-nos de

tudo

(Allan Kardec — Obras Póstumas — 11ª Edição da FEB — Página 241.)

À medida que recuperava a tranqüilidade Além da Morte, quando as

vibrações da carne se diluíam no grande mar do esquecimento, longe das

impressões mais fortes do plano físico, desejei retornar aos seres queridos que

ficaram na retaguarda, para narrar-lhes a minha experiência.

Examinando, porém, as limitações que me incapacitam, compreendi, de

cedo, a impossibilidade que dificultava a realização do meu desejo. Sem

cultura intelectual acadêmica, habituada apenas aos problemas do lar humilde,

sempre distante das belas letras, não fui aquinhoada, quando na Terra, com as

dádivas do Saber. Desejava, entretanto, falar aos companheiros de luta,

adverti-los, mostrar-lhes as surpresas da vida espírita, oferecer-lhes as

impressões pessoais, concitando-os ao trabalho renovador que o Espiritismo

oferece a todos, no abençoado campo das realizações imperecíveis.

Embora informada pela Doutrina Espírita de que a vida continuava,

esclarecida pela Obra de André Luiz, a que me afeiçoara quando encarnada,

esbarrei, assim mesmo, com surpresas e inquietações, à semelhança de turista

confuso que, em visita à grande cidade, embora conduza no bolso o livro-guia,

procura insistente e desarvoradamente endereços que não sabe onde se

encontram...

Quantas aflições e remorsos, receios e ansiedades visitaram minha alma,

depois do túmulo, não sei dizer.

Constatei que a vida prossegue sem grandes modificações, oferecendo a

cada alma, no cadinho evolutivo, as bênçãos ou punições de que se faz

credora.

Atormentados do sexo continuam ansiosos.

Escravos do prazer prosseguem inquietos.

Servos do ódio demoram-se em aflição.

Companheiros da ilusão permanecem enganados.

Aficionados da mentira dementam-se sob imagens desordenadas.

Amigos da ignorância caminham perturbados.

Somente as almas esclarecidas e experimentadas, na batalha redentora,

caminham em liberdade, desfrutando a dádiva da esperança entre sorrisos e

realizações.

Verifiquei o significado real da Fé. Ao invés de ser aceitação passiva de

crença religiosa é, antes, programa de ascensão e renovação interior.

Conduzir a claridade pura do Cristianismo, na mente e no coração, é alta

concessão do Céu que ninguém desrespeitará impunemente.

E afirmei a convicção de escrever algumas páginas sem a preocupação de

fazer literatura nem apresentar soluções de transcendência metafísica aos

velhos problemas da alma, tão bem estudados e debatidos desde há muito,

nas Escolas que se preocupam com o assunto.

Objetivei, apenas, dar mais um grito de alerta, dirigindo à minha própria

filha os apontamentos que agora vêm a lume. Deixei que a mente evocasse as

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cenas que vivi Além da Morte, amparada pelas irmãs Liebe e Zélia, benfeitoras

incansáveis que se encarregaram, desde as primeiras horas, de me sustentar a

alma atribulada, ensej ando-me a longa caminhada de restabelecimento.

Não me inspirou, uma só vez, a idéia de escrever um livro, considerandome,

conforme já o disse, incapaz de o fazer.

Amparada pelo meu Guia Espiritual, foi-me possível, entretanto, realizar o

mínimo que agora ofereço ao caro leitor para a sua meditação, rogando-lhe

desculpas. São anotações de um coração para outro coração que se

encaminha para o túmulo. São expressões que você mesmo encontrará mais

tarde, queira ou não, acredite ou não. São referências escritas com lágrimas e

sob terríveis acúleos de dor. Não acalento outro anseio, senão despertar

alguém na carne para a responsabilidade da vida, durante a travessia física no

barco da existência planetária.

Perdoe-me, pois, o leitor interessado em aprofundar conhecimentos, se

pouco lhe pude oferecer.

Conservo a alegria de trazer as minhas páginas a você, animada pelas

expressões do Codificador do Espiritismo quando afirma “que se chega a

conhecer o estado de um país, interrogando habitantes seus de todas as

classes...

Esse é o país da minha atual residência, relatado pelo amor de uma mãe

que na vanguarda adverte a filha em caminho da Eternidade, apontando o

velho roteiro evangélico, sempre atual:

“FAZER A OUTREM O QUE SE DESEJA QUE OUTREM LHE FAÇA”.

Agradecendo a Jesus e à Mãe Santíssima, sou a irmã humílima e

reconhecida.

Otília Gonçalves.

Salvador, 15 de janeiro de 1960.

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Além da Morte

Todos os dias chegam corações atormentados, alem da morte.

E apezar do horizonte aberto, jazem no chão como pássaros mutilados...

Loucos, sob a hipnose da ilusão.

Suicidas, descrentes dos proprios méritos.

Criminosos sentenciados no tribunal da consciencia.

Malfeitores que furtaram de si mesmos.

Doentes que procuraram a enfermidade.

Infelizes a se imobilizarem nas Trevas.

* * *

Alcançando a Grande Luz assemelham-se a cegos da razão ante a

sabedoria da natureza.

Por mais se lhes mostre a harmonia do Universo e por muito se lhes fale

dos objetivos da vida, continuam desditosos e dementados.

Ha quem diga que os chamados mortos nada tem a ver com os

chamados vivos, entretanto, como os chamados vivos de hoje, serão os

chamados mortos, de amanhã, com possibilidade de se perturbarem uns aos

outros caso perseverem na ignorancia —, cultivemos na Doutrina Espírita o

instituto mundial de esclarecimento da alma, a fim de que o pensamento

regenerado consiga redimir as suas proprias criações que substancializam a

experiencia da Humanidade nas várias nações da Terra.

* * *

É por isso que saudamos neste livro mais um brado de renovação e

esperança, concitando-nos ao aproveitamento das horas.

Fixemos a atenção.

O médium é o braço do semeador.

A emissária é a mão que semeia.

A mensagem é a semente de encarnados e desencarnados, a palavra de

amor e exortação que nos é trazida ao entendimento, assimilando-lhe os

valores impereciveis porque, em verdade, andam sempre avisados e felizes os

que trazem consigo “os olhos de ver” e “os ouvidos de ouvir.”

André Luiz

(Página psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier na reunião

mediúnica do Centro Espírita Uberabense, na noite de 13 de janeiro de

1960, em Uberaba, M”A GÊNESE”) (*) Ortografia conforme o original.

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A VIDA CONTINUA

Minha filha,

que a paz do Senhor seja conosco!

Desde o momento em que o anjo da morte me dirigiu seu pensamento,

enviando-me a lúgubre mensagem da “angina-pectoris”, umturbilhão

indescritível tomou conta do meu Espírito.

A princípio, com as carnes sacudidas pelos estertores do coração que não

mais podia cooperar com a vida física, inenarrável sofrimento tomou-me todas

as fibras, do peito ao cérebro e deste aos pés, fazendo-me enlouquecer.

Atormentada entre as idéias da “morte” apavorante que eu temia e a ansiedade

da “vida” que escapava ao peso cruel do sangue que se negava a irrigar

artérias, veias e vasos, senti que ia tombar.

Reuni as forças que desapareciam céleres, abandonando-me

impiedosamente, tentando resistir à violência da dor que me despedaçava

toda, e mais não consegui senão emitir gritos desesperados, semilouca. Tinha

a impressão de que vigorosa mão de ferro me estraçalhava o coração e, a par

da agonia que não posso descrever, sentia que a vida fugia rápida, fazendo-me

desmaiar, sem que, contudo desaparecesse a dor superlativa que durante

muito tempo iria conservar-me envolta em angústia sombria e inquietante.

Não poderei dizer o tempo em que demorei desfalecida. Guardo, ainda

hoje, a impressão de que, em volta, um torvelinho me arrastava, dando-me a

sensação de queda, em profundo abismo sem fim.

Subitamente, como se me chocasse de encontro ao solo, despertei

agonizante, tateando em trevas aos gritos de lamentável perturbação. O peito

continuava a doer desesperadamente como se estivesse estilhaçado por

violento projétil que o varasse, rompendo carne e ossos e deixando-o a

sangrar...

Oh! Jesus, o sofrimento daquela hora!...

O tempo passava sem que eu tivesse notícia, senão através da agonia

que parecia não ter fim.

Como a dor não cessasse, simultaneamente impressões diferentes me

acudiram ao cérebro turbilhonado, agigantando meu desespero. Frio glacial

apoderou-se lentamente dos membros inferiores, ameaçando imobilizar-me.

Ante essa inesperada sensação, tive a impressão de que pesadelo muito cruel

me torturava, mas do qual me libertaria em breve. Aquietei-me um pouco,

acarinhando a expectativa do agradável despertar... porque tudo aquilo não

passaria certamente de um sonho mau.

Além do frio, dores generalizadas paralisaram-me os movimentos,

enquanto o enregelamento me tornara rígida, O pavor rondava-me, implacável.

Sem poder mais raciocinar, sacudida nas ondas crispadas desse mar de

desconhecidos sofrimentos, vislumbrei tênue claridade, como se a alva tocasse

meus olhos. Tive, então, as primeiras noções do lugar em que me encontrava,

permanecendo, entretanto, imóvel.

De início, turvas e embaçadas, as imagens não se tornavam

reconhecíveis. Inquieta, percebi-me deitada no leito costumeiro, hirta e pálida.

Desejei levantar-me, andar, correr, suplicar auxílio; estava paralisada,

atada a cadeias poderosas. A língua já não se articulava. O cérebro parecia-me

devorado por labaredas crepitantes. Os olhos, fechados, negavam-me fitar a

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luz, embora eu “visses tudo e acompanhasse os movimentos exteriores.

Escorria-me o pranto incessante, queimando-me a face, e o pensamento se me

afigurava qual incandescida caldeira, cheia de desesperos a destruir-me.

Não tinha idéia das horas.

Indagava mentalmente, no martírio, o que me acontecera. Onde estava o

companheiro de tantos anos? Os irmãos de fé espírita, onde se encontravam

eles que me não socorriam? Os cooperadores dedicados do nosso programa

de assistência social, para onde fugiram? Para onde conduziram as criancinhas

a que me acostumara a amar; por que não me falavam? E lembrei-me do

Mestre bondoso que se fizera a segurança de todos os infelizes.

No tumulto do meu cérebro, a figura incomparável de Jesus tomou vulto,

amenizando lentamente meus sofrimentos. Embora não cessassem de todo, as

dores diminuiram e uma quietação momentânea aplacou-me o incêndio interior.

Respirei algo facilmente.

De longe, pareciam-me chegar aos ouvidos sons e vozes abafados.

Embora de olhos fechados, “vi” que algumas pessoas choravam.

Atraída, desejei erguer o corpo; senti-me sair de dentro do casulo carnal,

que então pude ver. Encontrava-me deitada, no esquife mortuário, e de pé, ao

seu lado, simultaneamente. Apalpei-me apressada e senti-me físicamente.

Tudo em mim vibrava com a mesma intensidade doutrora, avolumando-se às

impressões da carne a agressão da dor.

Procurei alargar os movimentos e percebi que o frio terrível desaparecia,

desatando-me do porto da rigidez. Andei um pouco vacilante e, de súbito, na

minha mente brilhou inesperada idéia: eu não estaria morta, porventura! —

indagava-me. Atirei-me apressadamente ao corpo, tentando erguê-lo para fugir

a esse pensamento “tenebroso” e libertar-me das aflições. Não consegui,

entretanto, o meu intento. As lágrimas voltaram a romper as represas e corriam

volumosas.

Não, não era possível, afirmava intimamente, tentando aquietar-me. Tudo

aquilo não passava certamente de um sonho fantástico ou de um desdobramento

mediúnico, no Reino da Morte. Não era crível que eu tivesse morrido.

Sentia-me viva, não obstante as dores que me cruciavam. Encontrava-me

lúcida, raciocinava, sofria... Não podia estar morta. Quando acordasse, oraria e

procuraria apagar das lembranças aqueles momentos de pavor.

Estive quase aliviada com esses raciocínios. No entanto, a realidade era

outra.

Ao abraçar-me ao corpo, senti-lhe a frieza e verifiquei, apesar de deitar-me

sobre ele, que não me conseguia ajustar qual ocorre à mão calçada em luva

apropriada. Esforçando-me “vesti-lo” outra vez, verifiquei, atribulada, que minha

vontade não mais o acionava.

Compreendi, embora relutante: estava “morta”.

Ao admitir esta idéia, fui acometida de profundo terror. Voltaram-me à

mente as explanações do nosso Diretor Espiritual, ouvidas em nosso Cenáculo

de orações. Antes de refazer-me da surpresa, descobri-me profundamente

ignorante em Doutrina Espírita, que é abençoado roteiro no país dos “mortos”.

Tentei recapitular os ensinamentos ouvidos antes; todavia, o inesperado

daquela hora descontrolava-me, prostrando-me abatida, mais uma vez.

O torpor, que, antes me invadira, retornou, deixando-me livre somente o

pensamento que, agora, percorria célere as sendas das recordações misturadas

às lutas da existência, fazendo-me defrontar o corredor da loucura.

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Surpreendi-me novamente fora do corpo, apesar de a ele estar atada por

fortes cordões que não impediam que me distanciasse. Passei, então, a experimentar

alívio novo e ouvi, emocionada, o murmúrio de preces intercessórias.

Nossas crianças (*) e companheiros, em volta do caixão funerário, oravam pela

minha alma, que se iniciava na grande viagem. Procurei ajoelhar-me

acompanhando aquele culto de saudade, mas, antes que pudesse coordenar

os pensamentos, leve sono venceu-me, vagarosamente, as fibras cansadas,

convidando-me ao repouso.

Perdendo-me em remoinho, eu sentia afrouxarem-se-me os músculos, ao

mesmo tempo em que meus pensamentos mergulhavam nas águas escuras do

esquecimento. Embora desejasse acompanhar o desenrolar dos

acontecimentos daquele instante máximo de minha vida, deixei-me arrastar

pelo cansaço, experimentando invencível torpor mental, enquanto recordava

que a vida continua...

(*) Otília Gonçalves foi diretora da Mansão do Caminho”, em Salvador,

Bahia, durante alguns meses. Nota da Editora.

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A CAMINHO DO SEPULCRO

Não tive noção do tempo em que permanecera em agitado sono, vencida

por emoçoes violentas e complexas. Ao despertar, guardava a sensação do

intenso frio que me envolvia, enquanto as células de todos os órgãos

continuavam a negar-se a atender ao comando do cérebro paralisado. Todo o

meu corpo estava aniquilado ao impacto de forças desconhecidas.

Abri os olhos e, em verdadeiro pandemônio emocional, encontrei-me no

salão da nossa Casa de Orações, com o corpo deitado no ataúde, visão essa

que aumentava o meu sofrimento.

A dor no peito ampliava-se, constringindo-me a garganta sedenta. Desejei

desesperadamente um copo de água fresca, inutilmente. Enquanto a sede me

escaldava os lábios, ardiam-me os olhos, doía-me o corpo e o cérebro era

devorado por inquietações crescentes. Ante a evidência da desencarnação,

procurava orar, sem o conseguir, atormentada pela inconformação. Portadora

de alguns conhecimentos da Doutrina dos Espíritos — caminho de luz no

mundo de trevas —, recusava-me, contudo, a aceitar a realidade inelutável.

É certo que eu sabia, através de noções doutrinárias do Espiritismo, que a

morte não representa o fim, mas o princípio de uma vida imperecível, e acreditava-

o de coração. No entanto, meditava, acomodando a Superior Vontade

aos meus próprios caprichos: eu não podia morrer ainda. Necessitava da generosidade

do tempo para desincumbir-me das tarefas a que ultimamente me

entregara, no santificante serviço do amor. Recordava o passado próximo, as

lutas mal sofridas, revia a taça de ilusões onde tantas vezes me embriagara, e

compreendia a inadiável urgência de recuperação, no labor das horas novas, libertando-

me, então, das pesadas algemas.

Em meio a esse conjunto de anseios e interpelações, entre evocações de

enganos sofridos e receios dos efeitos que chegariam, vi-me, de súbito, diante

do grande painel, ligado à minha mente, para o qual fui poderosamente atraida.

Pude ver, como numa grande tela cinematográfica, o desenrolar dos fatos que

representavam a minha existência, em miraculoso retrospecto, repetindo-se em

vertiginosa celeridade, sem omissão de qualquer detalhe.

Revi-me na infância, programando os jogos do futuro no tabuleiro da

inocência. Coisas e acontecimentos mortos em minhas lembranças surgiamme

com seus contornos e nitidez impressionantes, gritando-me à memória em

brasa os erros e gravames das atitudes nem sempre dignas de antes.

E o incrível é que, para cada compromisso com o erro daquele tempo,

surgiram-me agora as soluções que antes não me ocorreram, patenteando a

Sabedoria de Nosso Pai ao alcance de nossas mãos, mas nem sempre

utilizada. Raciocinando, esquecida por um momento de todas as dores,

reencontrava o Evangelho Redentor a apontar diretrizes para a alma juvenil e

que eu ouvira nas aulas de Catecismo ou junto ao coração materno. Retornei,

por esse processo, às ruas do passado, revivendo as lágrimas e os sorrisos da

existência.

Conservava a impressão de que todos os meus atos foram

cuidadosamente anotados por criterioso e vigilante amanuense a quem nada

escapara, registrando inclusive as idéias más que, um dia ou outro, me

visitaram a tela mental. A perfeição dos escritos era tal que estes tomavam

forma, movimentando-se à minha vista, cobrindo-me de vergonha e horror.

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Quanta coisa negativa construíra nos meus dias, sem o perceber. Sabia

não ser um anjo em viagem turística na Terra. Todavia, jamais supusera ter

sido tão negligente no cumprimento do dever. Algo interior desejava protestar

contra muitas cenas, agora em revisão. Mas a consciência, liberta das algemas

da acomodação, impedia-me de mentir, ampliando ainda mais as

responsabilidades do momento.

Aterrada, cheguei à conclusão de que os pensamentos e atos da criatura

se fixam no Além, por processos que me escapavam ao entendimento, permanecendo

vivos, mesmo quando deles nos esquecemos.

Antes que pudesse alongar-me em meditações proveitosas, na inquietação

que me sacudia, retornei à sala onde outra realidade me fazia mais desencantada

e aflita... Não podia agora contestar a realidade da minha “morte”.

Observei que todos oravam, e, ouvindo alguém chamar-me com

veemência, fui arrastada e deparei-me contigo, minha filha. Pude ver que

recordavas os dias em que vivemos juntas, porqüanto os teus pensamentos

formavam quadros vivos onde eu me encontrava também.

Desejei abraçar-te, mas, quando me dispunha a isso, erguiam o caixão

que me conduzia o corpo.

O pavor do momento foi-me superior à capacidade de calma e confiança.

Procurei, no meu desespero, correr para longe daquela cena pungente que me

feria e amargurava; todavia, cordões espessos e escuros ligavam-me aos

despojos, arrastando-me com eles...

Reconheci as ruas por onde seguia o féretro, embora as notasse escuras e

movimentadas, como se pesada sombra se abatesse sobre as casas, e multidão

desvairada tivesse saído às calçadas. Escutei a voz dos transeuntes que

pareciam revoltados, brandindo pedaços de madeira, como armas improvisadas.

Alguns me ameaçavam e, vendo-me a expressão de horror, recuavam

gargalhando, como loucos libertos de sanatório nefando.

Chegando ao Cemitério, ouvi gritos e lamentações que me despedaçavam a

alma. As vozes, que mais se assemelhavam a emissões animalescas, compunham

musicalidade infernal, indescritível. Massa humana, de grotesca forma,

cercava-me o ataúde, comentando, zombeteira, a situação da recém-chegada:

— Será discípula do Cordeiro ou irá engrossar nossas fileiras? — disse

alguém com sarcasmo.

— Examinemos-lhe as emanações — retorquiu outro.

— Cuidado com os vigilantes “miseráveis” — advertiu um terceiro.

— Deve ser alguma “pobre ovelha do Rebanho”! —exclamou mais alguém.

E com a mesma voz: — Olhem as defesas que a envolvem...

— Não nos impacientemos — gritou o primeiro. —Saibamos esperar e

aguardemos os acontecimentos. Deixemos que os “comparsas de fé” lamuriem

os apelos ao Chefe e seus “sequazes”.

Tudo aquilo era um fenômeno novo e horripilante. Aconcheguei-me ao

caixão, desejando arrebatálo e fugir dali com o fardo das minhas carnes.

Não me pude demorar na contemplação daquelas cenas terríveis. Força

incoercível detinha-me atenta no esquife que era depositado no fundo da

sepultura. Escutei o som da laje a cobrir-me os despojos e o dos instrumentos

que eram usados para o lacramento da campa. Apavorada, encontrei-me

ligada às vísceras mortas, estando viva. Gritei desesperadamente, em

lamentável estado, e caí desmaiada.

Até o momento, não sei quanto tempo ali estive, em delírio.

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Despertei lentamente, conservando a cabeça atordoada, demorando-me a

recompor os pensamentos que pareciam perdidos em brumas espessas. Doíame

o corpo, sacudido de quando em quando por terríveis arrepios. A dor

agudíssima do coração demorava a esmagar-me de uma vez.

Verifiquei que, embora o corpo estivesse morto e começasse a avolumarse,

tomando aspecto horrendo, eu me sentia em um corpo gêmeo àquele que

caminhava para a putrefação e, em tudo, idêntico a ele, inclusive no vestuário.

Mas não dispunha de serenidade para meditar.

Vagarosamente rememorei os últimos acontecimentos e, quando ao

recordá-los, cheguei à certeza de que estava na sepultura, fui acometida de

convulsivo pranto.

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A SALVADORA PRESENÇA DE LIEBE

Odores pestilentos e desagradáveis invadiam-me as narinas, causando-me

sucessivas náuseas. Verifiquei que o meu corpo se tornara volumoso,

começando a decompor-se, enquanto aluvião de asquerosos vermes se locupletavam

nas carnes entre as vestes úmidas e imundas. Era toda uma massa

informe em apodrecimento. Emanações insuportáveis asfixiavam-me sob a laje

de cimento que em repetidas tentativas de liberdade desejei erguer, redundando

a luta em esforço inútil e cansativo.

Ciente da realidade de minha “morte”, cercada de compactas trevas,

sabendo-me com o corpo em decomposição no Cemitério eu experimentava

avassaladora angústia. Não conseguia demorar-me em conjecturas; não podia

raciocinar mais demoradamente; não coordenava idéias; tudo se passava

rápido, cruel, fugindo e retornando à retina mental em remoinhos sucessivos.

E, acima de tudo, sentia necessidade de ar, de luz, de paz...

As lágrimas que me pareciam sair do coração ferido e amargurado

banhavam-me sem que conseguissem lavar-me o lodo que também me

empastava a forma nova, em tudo idêntica à que lentamente apodrecia.

Apalpava-me e constatava a presença da dor física, embora desligada do

corpo. Sentia-me pesada, raciocinando com dificuldade, esmagada na cova sepulcral.

Num desesperado esforço, tentei fazer um balanço, reunindo todos os

fatos da minha vida, até onde podia alcançar, procurando esquecer, por

momento, a sensação da violenta dor que se demorava na região cardíaca, e

recordei, emocionada, a inadiável necessidade de orar. Sim, a prece ser-me-ia

a única fórmula medicamentosa capaz de restituir-me a paz, a serenidade.

Recordei-me, então, do Senhor Jesus, o Amigo dos aniquilados e Companheiro

constante dos infelizes. A sua figura vitoriosa, além da Cruz, retornou à minha

mente, trazendo-me revigorante calma. A princípio, vagamente, depois mais

nítida, a lembrança do Cordeiro de Deus fez-me esquecer a própria aflição, ao

compará-la com a Sua dor, no infinito desconforto da Cruz, por amor a todos os

homens — os companheiros ingratos. Pela primeira vez, minha filha,

experimentei tranqüilidade junto aos despojos carnais, no fundo da sepultura.

Reconheci-me como sou: ingrata e egoísta, pobre e sem valia. Enquanto

Ele não pronunciara uma só queixa à frente dos inenarráveis sofrimentos e

humilhações, eu me entregava à desesperança e à revolta. Sua lembrança

tomou-me o espírito atribulado e a prece, clara e pura, repassada de fervor,

saiu-me pelos lábios, ditada pela fonte do sentimento.

Oh! o consolo que deriva da prece murmurada pelo espírito confiante, após

a aflição! Somente poderão sabê-lo aqueles que na última instância a ela se

entregarem, esperançosos, rompendo as distâncias, lançando a grande ponte

entre o mundo propínquo das dores e o Reino longínquo das misericórdias

divinas.

Ainda não havia terminado a rogativa, quando me chegou aos ouvidos,

como em formoso sonho, doce e meiga voz que banhou de harmoniosa

musicalidade o estranho recinto.

— Onde escutara antes aquela agradável entonação vocal? —

interrogava-me. E, depois de breve rememoração, identificava nos recônditos

da alma a mensageira visitante. Era a irmã Liebe, não havia dúvida. Era aquele

16

anjo que tantas vezes, no Culto de nossas orações no Lar, nos convidara a

seguir o Mestre, concitando-nos a amá-lo acima de todas as coisas terrenas. A

mesma meiguice de outrora, o mesmo carinho, o mesmo amor, numa

mensagem do Céu ao abismo da minha indigência e agonia.

— Sou a tua irmã Liebe que vem das claridades da “morte” para o teu

coração envolto nas trevas que circundam as cinzas da “vida”.

“Trago-te o refrigério e a esperança em nome de Quem é toda a

Misericórdia e Consolação. Antes de mais nada, silencia as indagações

inoportunas e os anseios desordenados, e entrega-te aos sábios desígnios que

escapam, momentaneamente, ao teu entendimento.

“A Lei, acima de nossa compreensão faz-se respeitar, seguindo a rota de

sua direção. Confia, somente.”

Escutava-a, deslumbrada, sem, entretanto, ver-lhe o vulto querido.

Desejando aproveitar ao máximo a felicidade do instante, não pude sopitar as

indagações que me fervilhavam no cérebro incendido:

— Que fazer, irmã querida, em tão trágicas circunstâncias? Como libertarme

daqui?...

— Tenho estado contigo desde o instante em que começaram as tuas

aflições — respondeu bondosa. —Todavia, prendias-te mais à lamentação

improdutiva que à fé, malbaratando o tesouro precioso da oportunidade de

confiar e esperar. Quando, porém, resolveste buscar a Fonte Viva, pela oração

eficiente, rompeste as algemas que retinham tua mente no oceano físico e

emergiste da penosa faixa de vibrações.

“Lembra-te, entretanto, de que a caminhada será muito longa. E

aconselhável não esqueceres a recomendação do Mestre, consoante as

anotações de Marcos (*), a respeito da prece. Sabes que através da oração a

alma, aspirante ao Céu, se veste de consoladora paz e tem forças para a

ascensão.

“Enquanto jornadeamos no mundo, perdemo-nos, invariavelmente, entre

recitativos oracionais e amontoado de inexpressivas fórmulas, pondo ao longe

o sentimento devocional e o exame de consciência no culto da prece. Livres,

entretanto, da carne, verificamos que a prece propicia o alargamento dos

horizontes espirituais, favorecendo o intercâmbio que faculta o banho no infinito

mar das formosas concessões.

(*) Marcos XI: 24 (Nota da Autora espiritual)

“Ao orares, não arroles queixas nem lamúrias;

não relaciones apontamentos apressados;

não apresentes necessidades... O Senhor, que a todos nos conhece, sabe

das necessidades que nos assinalam a existência e supri-las-á, naturalmente.

Abre-Lhe o coração com amor e fala ungida de piedade e esperança.

Colocando a alma em cada frase, recorda e repete a oração dominical (1) que

o próprio Senhor nos ofereceu, como legado de amor, e confia na caridosa

assistência que não tardará.”

Silenciando-se a voz carinhosa, procurei retemperar o ânimo e, como se

voltasse à casa materna, revi-me pequenina e pobre, vestida nos panos da

simplicidade, junto ao colo protetor de mamãe, mãos unidas, em noite de frio,

repetindo com ela o “PAI NOSSO”. Com a imagem fixa na mente, com toda a

unção e o recolhimento, tentei naquela hora singular repetir as comoventes e

17

claras expressões.

As palavras vestidas de emoção umedeciam meus olhos. As lágrimas

então já não tinham o mesmo sabor de agonia e revolta. Conquanto as dores

não tivessem cessado de vez, a serenidade demorou em minha alma.

Permaneci, olhos fechados, ajoelhada como nos tempos passados, orando

demoradamente, esquecida do cubículo infecto onde me encontrava.

Ao descerrar as pálpebras, deparou-se-me suave claridade a espraiar-se

nas paredes e, sorrindo, surgiu o delicado e compassivo rosto de irmã Liebe,

aureolado de fios dourados. Lentamente se foi delineando e, em breve, surgiame

deslumbrante e bela.

(1) Lucas XI: 1 a 4 (Nota da Autora espiritual).

Do tórax estendiam-se raios de luz que me penetravam, banhando-me inteira.

Vitalidade antes não experimentada visitou-me, exuberante, reanimando-me

fortemente.

Fitando-me com benevolente expressão, falou-me, confiante:

— Não temas. Vem! Saiamos daqui.

18

4

AINDA NO CEMITÉRIO

Amparada pela alva mão de irmã Liebe, tive a impressão de que a laje de

cimento que tanto desejara erguer em busca dE liberdade, do ar e da luz,

apresentava possibilidade de ser transposta. Sem que o percebesse quase,

atravessamos o obstáculo que tanto me afligira antes, e, em breve, aspirei a

longos haustos o ar da Casa dos Mortos, misturado a complexo aroma de

flores desabrochantes e em decomposição.

A noite calma e o céu coruscante ofereciam acolhedora esperança ao meu

espírito aflito. As estrelas mais se pareciam a jóias engastadas em veludoso

manto, acenando de longe, com suas luzes, as mensagens silenciosas da paz.

A luz principiava a sua travessia pelo Infinito e para isso se cobrira de tênues

véus de nuvens alvacentas, qual noiva jubilosa no momento da boda. E,

certamente, era ela a noiva da Alva em caminho das suas núpcias com a luz.

Meus ouvidos espirituais escutaram o bater lento das horas: meia-noite!

Vento frio soprava dobrando os ciprestes escuros banhados da claridade lunar.

Os vultos solitários dos anjos de pedra, sobre os jazigos, confundiam-se

com as coroas de metal que tentavam imortalizar as expressões floridas da

natureza e tomavam aspectos variados no claro-escuro do ambiente.

Ainda me encontrava embevecida pela visão da noite argêntea, quando a

irmã Liebe me convocou para a recordação do Evangelho, no que diz respeito

ao zelo pela prece e à vigilância para evitar mergulhos na tentação(1).

Busquei a meditação, tentando reequilibrar-me interiormente e, como se a

vista me alargasse a percepção, notei que multidões pervagavam entre os

túmulos, formando grupos vários que se confundiam em confabulações...

Alguns, de ar escarninho, passavam gargalhando e satirizantes, proferindo

expressões vulgares, zombeteiras e coléricas. Guardando carantonhas ridículas

e disformes, surgiam de súbito, em esgares infelizes, perdendo-se, logo

após, no escuro dos jazigos. Outros conservavam-se ajoelhados, em atitude de

oração, consoante suas confissões religiosas, banhados de pranto, em

imprecações desesperadas. A medida que minha visão se tornava mais

profunda, conseguia registrar as cenas em derredor, multiplicando-se as

ocorrências. Notei que o número

(1) Marcos 14:38 (Nota da Autora Espiritual).

de visitantes aumentava consideravelmente.

— Observa o mausoléu ao lado — falou-me a irmã Liebe, sem afetação.

Olhei na direção indicada e defrontei-me com uma anciã, de venerandos

cabelos brancos, ajoelhada junto a uma cruz, retorcida pelo tempo, orando com

emoção e enternecimento. Dos seus lábios, coroando o murmúrio de prece,

colorações de luz, em cambiantes multicores, caíam sobre a pedra tumular.

Apesar de singelamente vestida, deixava perceber, à primeira vista, a nobre

hierarquia espiritual a que pertencia.

Tocada pela beleza da anciã, fui naturalmente impelida a indagar quanto à

procedência de tão nobre matrona. Antes, porém, que eu enunciasse a

questão, a amiga espiritual esclareceu:

— Trata-se de devotada mãe, em serviço de assistência à filha

desencarnada há mais de cinco anos e que ainda se encontra presa às

19

reminiscências físicas. Ligada fortemente aos Espíritos infelizes, aos quais

negara oportunidade de reencarnação, quando no plano carnal, sofre-lhes

agora as funestas conseqüências.

Saída das zonas de recuperação espiritual —continuou a irmã Liebe —, ao

nascer, trazia consigo o compromisso de receber nos braços, pela maternidade

torturada, quatro adversários de outrora, com os quais deveria refazer os

liames do amor pela sublimação nos testemunhos dolorosos.

“Filha da classe média, contraíra núpcias com antigo companheiro, cujos

recursos valiosos se constituíam dos tesouros morais, pois que, na esfera dos

negócios era, apenas, servidor do comércio, sem muitas possibilidades.

“Educada nos padrões imediatistas do planeta, apesar dos esforços e

exemplos maternos, preferira, logo depois do matrimônio, o jogo enganoso das

ilusões, em detrimento das responsabilidades sagradas do Lar.

“Alegando dificuldades de ordem financeira, não permitiu que a família

crescesse além de um rebento que lhe constituía felicidade vaidosa, fechando

as portas da oportunidade aos demais necessitados. Reiteradas vezes,

solicitada à aquiescência procriativa, negava-se, embora as admoestações da

mãezinha, a esse tempo, ainda reencarnada. Conselhos, advertências e apelos

não lhe modificavam a atitude íntima. Todavia, descuidando da vigilância, por

duas vezes se sentiu visitada pela presença do feto que impiedosamente

expulsou, revoltada, com o auxílio de drogas que igualmente a minaram, dia a

dia, através de enfermidade desconhecida e pertinaz, com sede no útero.

“A desvelada genitora, ao seu lado, desdobrou esforços e canseiras,

assistindo-a com o carinho necessário e a oração silenciosa, oferecendo-lhe

energias reparadoras à organização combalida.

“Logo que se sentiu aparentemente recuperada, a infanticida retornou ao

lugar comum, longe do equilíbrio nobilitante e salvador.

“Nesse ínterim, a mãezinha debilitada pelas noites insones e longas,

atravessadas nas laboriosas tarefas dos inadiáveis deveres, desencarnou entre

preocupações e lágrimas.

“Não passaram doze meses, depois do nefando crime do aborto — continuou a

gentil mensageira, dando nova inflexão à voz, emocionada —, e a jovem

sentiu-se novamente visitada pela bênção da oportunidade maternal. Todavia,

assim que percebeu a presença da vida, brotando dentro do ventre, deixou-se

arrastar por ódio violento, tentando, por todos os meios, libertar-se do intruso,

não solicitado.

“Sua mamãe, então desencarnada, portadora de bela folha de serviços,

interferiu junto de Amigos Espirituais, conseguindo a dita de falar-lhe em sonho,

sobre as responsabilidades sagradas da mulher, concitando-a à aceitação do

dever, em cujo resgate estava empenhada a própria vida. Admoestada pela

abnegação maternal, comprometeu-se a conduzir os passos noutra diretriz,

sem o confirmar, entretanto. Ao despertar, embora guardando as impressões

registradas no subconsciente, reconduziu a mente às idéias habituais,

procurando, desvairada, o concurso de infeliz mulher, dedicada ao crime do

infanticídio.

“Executado o ato macabro, retornou ao lar, reintegrando-se no mundo

calamitoso das aparências.

“Sentindo-se falido na tentativa, pela terceira vez, o Espírito, despejado

violentamente, voltou a aderir psiquicamente nas paredes uterinas, provocando

hemorragias violentas que não puderam ser sustadas, nem mesmo com

20

imediata intervenção cirúrgica.

“Vinculada poderosamente aos laços carnais, demora-se, até hoje,

vampirizada pelo vingador implacável, e perseguida por outros sicários dos

quais procurou fugir, cerceando-lhes o acesso aos planos dos reajustes na

carne.

— E quando se libertará? — perguntei, inquieta.

— Só Deus o sabe! — respondeu, penalizada.

— Precisamos recordar — acrescentou a prestimosa enfermeira — que a

pobrezinha dispôs de oito anos, abençoada pelas ensanchas do matrimônio e

atendida seguramente pelo acolhimento socorrista e esclarecedor da genitora.

Agora é com o tempo...

Antes que a irmã-amiga encerrasse o assunto, indaguei, recordando de

mim mesma:

— E a oração da mãezinha devotada oferecer-lhe-á algum efeito benéfico,

uma vez que só o tempo poderá libertá-la do desespero a que se atirou?

— Evidentemente — elucidou, bondosa. — A prece, em todas as situações

da existência, é um refrigério e um bálsamo. Ela não sentirá o concurso oracional

livrando-a do sofrimento, o que representaria ludíbrio à Lei. No entanto,

experimentará trégua íntima, recordando os deveres traidos, o Lar destroçado

por sua culpa e, através de meditações e lágrimas, preparar-se-á lentamente

para o futuro. Agasalhará no íntimo a esperança e lutará contra o ódio que a

consome nas garras da desesperação.

Profundamente impressionada, ensaiei íntima oração intercessória,

esquecendo-me de mim mesma, como me acostumara a fazer nos dias passados,

no reduto das nossas comunhões mediúnicas com o Além-Túmulo. Pude

verificar, em meu próprio ser, o quanto é a prece manancial de bênçãos, ao

alcance das nossas mãos, o que nem sempre sabemos utilizar devidamente.

Despertando-me das cogitações, a irmã Liebe convidou-me a sair do Cemitério,

enlaçando-me com ternura carinhosa.

21

5

À BEIRA MAR

Em breves palavras, a irmã Liebe falou-me da necessidade de contato

mais amplo com os fluídos da Natureza, a fim de favorecer a minha

reabilitação. E como me encontrasse depauperada, o meu transporte até à

praia próxima seria feito sob ação de sono magnético.

Tocando-me as têmporas, levemente, tive a sensação agradável de sono

invencível que me dominou.

Despertei à beira-mar, num encantador recanto do litoral, bordado de

coqueiros prateados pela luz da lua cheia. As ondas próximas despedaçavamse

em brancas espumas que se desfaziam nas areias alvas e brilhantes, em

ritmo bravo, incessante...

Não se ouviam outras vozes senão o canto do vento e o bramir do mar.

Relva baixa e verdejante margeava a praia como tapete macio convidando

ao repouso e o cenário era, na sua beleza virgem, imperioso chamamento à

oração e à paz.

Aspirei o ar puro da noite, tomada de emoção crescente. O odor agradável

e balsâmico de flores do campo misturava-se ao agradável cheiro de algas marinhas.

Absorvia essas dádivas sublimes da Natureza, que me beneficiavam a

organização espiritual combalida, de maneira salutar.

A irmã Liebe, regozijante com a poesia da noite, chamou-me a atenção

para as belezas do ambiente vibrante de vida e festa.

Encontrávamo-nos a poucas dezenas de metros das areias praieiras, em

outeiro bordado de vegetação luxuriante, junto a antiga construção de pedra

que pertencera, no passado, a Senhores que haviam colonizado a região.

Entre as velhas colunas e arcadas quebradas, a Lua desenhava

caprichosas figuras, e, pelas frinchas da construção arrebentada, a noite

murmurava queixas e saudades, na voz do vento.

Apontando o casario abandonado, a zelosa amiga espiritual falou, dando

origem a conversação edificante:

— Eis ali um exemplo eloqüente da vacuidade da vida física. O esplendor

sucedido pela decadência e glória seguidas pela ruína e pelo olvido.

“Outrora, aqueles salões, hoje reduzidos a escombros, vestiam-se de gala

e luz, enquanto a senzala esquecida jazia na treva e na dor.

“Com o passar do tempo, desapareceram os júbilos e os senhores, os

cativos e as dores. Tudo foi reduzido a um monte de ruínas, coberto de

vegetais vitoriosos.

“Da construção e de seus donos, ficaram vivos os contos da tradição oral e

os muros arrebentados...”

E após breve pausa:

— Também na vida física o fenômeno que comentamos é o mesmo para

todos: berço e túmulo, como portas da existência; infância e velhice, como

estações de chegada e saída, e juventude e maturidade, como lugar de

aprendizado, no campo emocional. Início e encerramento da viagem, meios e

oportunidades de utilização do ensejo, no jogo ilusório do corpo. Raros,

entretanto, se dispõem verdadeiramente ao aproveitamento devido. Alguns

seguem vitoriosos por fora, e escravos por dentro. São os que acreditam no

poder temporário. Outros abandonam a luta dignificante, matando o exterior, e

despertam no silêncio aflitivo da inutilidade de que se fizeram mestres. So22

mente poucos realizam o aproveitamento real, com a utilização dos bens

terrenos, no programa de construção da felicidade além do mundo.

E desejando, talvez, ampliar a oportuna dissertação, prosseguiu, com voz

pausada e clara:

- Enquanto não compreendermos a necessidade de valorizar a vida no

plano físico, continuaremos invadidos pelo infortúnio a bater-nos desapiedado,

com os chicotes resultantes das ações impensadas. A vida na carne é

patrimônio que não merecemos. Significa concessão misericordiosa para

renovação, aprendizado e libertação. Toda a luta deve ser dirigida para a

realização dos objetivos essenciais do programa que nos conduz ao

renascimento.

“A alma mergulha na carne, cheia de boas intenções e desejosa da

recuperação do tempo.

Todavia, a boa intenção e o desejo, apenas, não respondem positivamente

pela felicidade. É imprescindível ação realizadora no campo do bem geral.

Mas, o que acontece comumente é que o contato com o corpo, ocasionando a

anestesia da memória, faz que o roteiro traçado com o concurso das lágrimas e

do arrependimento fique a margem, voltando a criatura aos hábitos milenários

onde pontificam o prazer, a cobiça e o crime. A perigosa e atraente rede da

ilusão arrasta diariamente multidões descuidadas, que malogram

desastradamente, adiando, por tempo indefinido, a ascensão aos planos mais

altos...

Não me pude furtar a profunda meditação. Compreendia, tardiamente, é

certo, o manancial de luzes que o Espiritismo nos confere, e que eu não

soubera aproveitar devidamente. Em pensamento, retomei àmesa simples das

nossas sessões de mediunidade, em cujas tábuas tantas vezes colocara as

mãos em busca do concurso da Espiritualidade. Recordei advertências e

ensinamentos, conselhos e roteiros ouvidos, nos quais o convite ao trabalho e

à oração, o apelo à vigilância e ao auxílio eram notas frisantes, e não pude

conter as lágrimas que, sucessivas, me banharam o rosto. Pela memória,

acompanhei o desfilar de tantos Benfeitores Anônimos, generosos e compassivos,

que tantas vezes, enternecidamente, me distinguiram o espírito, com

expressões de bondade e zelo, verificando, aterrada, quanto fora negligente e

descuidada no Campo do Senhor. O desânimo ia-me assenhoreando, quando

a vigilante Benfeitora, interrompendo-me o curso das reflexões atalhou: —

Otília, minha irmã, recorda que Jesus não deseja a morte do pecador, mas a do

pecado. Desanimar agora seria o mesmo que retroceder. O discípulo do

Evangelho não dispõe de tempo mental para o receio ou para a dúvida. Não te

lamentes!

“Cristo, em nosso caminho, é uma permanente oportunidade nova. Se

achas que não aproveitaste devidamente o ontem, lembra-te de que o amanhã

pertence à tua alma.

“Robustece o espírito na fé e reanima-te, pois que muito terás a fazer.

“Alegra-te no Senhor, que nunca nos abandona, e, sem perda de tempo,

põe mãos à obra. Jesus espera muito de nós. Nossos irmãos choram em diversos

planos do orbe e suas vizinhanças, aguardando socorro em nome do Céu.

Não dispomos de tempo para a despesa da inutilidade. O passado pode constituir-

se de sombras; todavia, o amanhã é sempre uma luz nova, dissipando

todas as trevas. Ergue-te e não temas!”

Com admoestações tão oportunas, alento novo invadiu-me

23

confortadoramente.

Modificando a inflexão da voz, após a pausa que se fizera, espontânea,

Liebe, apontando as ondas inquietas, prosseguiu:

— O mar é fonte de energia e vitalidade. Por enquanto, o homem não tem

sabido valorizar, devidamente, os benefícios magnéticos do Oceano. Laboratório

de forças vitais, depositário de gloriosas e velhas civilizações, santuário de

milhões de espécies vivas, é um mundo inexplorado, a conquistar.

“Com Alberto, príncipe de Mônaco, começaram as primeiras excursões de

pesquisa científica, medindo-lhe a profundidade, conhecendo-lhe os acidentes,

examinando-lhe a flora e a fauna. A Oceanografia moderna, entretanto, com os

recursos técnicos de que dispõe, candidata-se a descobertas valiosas no seio

grandioso das águas. Embora quanto já se conhece sobre a vida submarina,

muito há escapado à observação dos pesquisadores no que concerne aos

fluxos e refluxos das marés com o seu potencial de energia pura que tantos

benefícios produzem na organização físio-psíquica do animal e do homem.”

E como se perscrutasse a região, utilizando recursos que me eram

desconhecidos, concluiu:

— Multidões de desencarnados nas cidades próximas são aqui trazidos

para necessário e inadiável refazimento. Outrossim, encontros espirituais de ordem

superior, entre os habitantes das duas esferas da vida, aqui se concertam,

quando as dádivas do sono descem sobre os corpos cansados na luta humana.

Cuidadosos Benfeitores da nossa esfera conduzem tutelados alquebrados e

desfalecidos, para regiões semelhantes a esta, em toda a costa marinha, a fim

de que o ar puro das praias restitua ao perispírito as funções temporariamente

traumatizadas pelo ranse desencarnatório.

Encontrava-me encantada. Quando encarnada sempre sentira inexplicável

atração pelo mar, motivada talvez, supunha, pelas histórias ouvidas desde a

infância, sobre os mistérios e belezas ocultas na profundeza das águas. Agora,

todavia, após os apontamentos da devotada irmã, começava a compreender os

valores reais, descobrindo belezas, antes ignora-das.

Muito longe, por detrás dos coqueiros, a madrugada desenhava rastros de luz.

Vento mais frio soprava ligeiro, açoitando as ondas que se quebravam ao

longe.

Acarinhando-me, a Benfeitora convidou-me ao repouso. Havia catorze

dias, segundo informava a irmã Liebe, ocorrera a minha desencarnação.

Embora todo o encantamento da paisagem e da palavra da esclarecida

enfermeira, a sensação de dor persistia, se bem que menos acentuada.

Após aquele repouso, seria transportada a uma Colônia Assistencial,

próxima à crosta planetária, para tratamento e recuperação de energias,

ingressando, assim, na realidade do mundo espiritual, onde estava dando os

primeiros passos, com vacilação.

Reclinadas em tufo de capim, recebíamos a brisa agradável da alva. Suave

torpor envolveu-me, lentamente, fazendo-me adormecer.

24

6

FRATERNIDADE – BÊNÇÃO DE DEUS

Quando o dia estava alto e a passarada inquieta entoava hinos ao Sol,

despertei. Embora mais refeita, guardava sensação dorida na região do peito, a

respiração difícil e a perturbadora saudade. Com a paisagem vestida de luz, as

lembranças se me acendiam na alma, comprimindo-me o coração. As dores

aumentavam, e por mais buscasse esquecer, não conseguia libertar-me da

sensação de distância, debatendo-me mentalmente no desalento.

Compreendendo minha inquietação, a incansável irmã Liebe procurou

tranqüilizar-me:

— Dentro de alguns minutos estaremos com os companheiros do círculo

fraterno. É necessário não esqueceres que os problemas afetivos produzem

desequilíbrios psíquicos que prejudicam a estabilidade da alma. No momento,

tens de reunir os melhores esforços no sentido de lograr êxito no processo de

libertação.

“Estaremos com os amigos; no entanto, não lhes escutarás a voz, como

antes. Sentir-lhes-ás os pensamentos e as orações, porqüanto, dentro de uma

hora estarão reunidos no Culto da Boa Nova. Como te deves recordar,

congregam-se hoje sob a responsabilidade da nossa Auta de Souza, para

debate e estudo do programa assistencial aos seus cuidados. Estamos no

primeiro domingo do Ano Novo...

Ah! minha filha. A mente tem estranho poder. Ao enunciar Liebe o nome

da nossa Auta de Souza, retornei como por milagre às nossas reuniões dominicais.

A aflição que parecia seguir-me de perto, aguardando oportunidade,

voltou a perturbar-me, fazendo-me arder o cérebro, ansioso por notícias novas.

Mesmo assim, procurei haurir forças no robustecimento da alma, quando a

irmã Liebe sugeriu:

— Reunirei algumas flores deste verdejante outeiro e as levaremos aos

nossos irmãos, como símbolo da pureza dos nossos sentimentos.

Acercou-se de plantas desprezadas e recolheu algumas de pequeninos

botões perfumados.

Conduzida ao sono magnético, para o transporte até o Centro das nossas

Orações coletivas, quando voltei a abrir os olhos, notei, surpresa, a presença

de jovem Espírito que se aproximou sorrindo, qual amiga devotada e constante.

Tentei recordar-lhe o vulto; antes, porém, de o conseguir, ouvi-a dizer:

— Sou Auta de Souza, a pobre cigarra potiguar. Decepcionada? — inquiriu

com meiguice e bom humor.

Não pude responder. A voz ficou estrangulada e o pranto incessante —

esse amigo dos que amam e sofrem — jorrou abundante. Senti-lhe a vibração

de amor e ternura e, quando fui estreitada nos seus braços, tive a impressão

de retornar ao seio materno. A emoção sacudia-me e tremor incontrolável

dominava-me.

— Coragem, irmã querida — advertiu, bondosa, a cantora da Caridade.

Sua visita é aguardada com muita alegria. Tenho acompanhado o seu

renascimento e estou informada das suas surpresas e dos progressos no novo

caminho.

“Dentro de alguns minutos a reunião terá início. Estão se preparando para

a oração de abertura. Eles nos sentem a presença e, por intuição, registram,

pelos canais mediúnicos, o seu progresso na senda da liberdade.”

25

Feito silêncio, notei que prateada chuva caía abundante, iluminando o

recinto. Identifiquei, de imediato, o Cenáculo do nosso Templo. Revi os

queridos irmãos de antes, olhos baixos, atitude respeitosa, buscando o

concurso do Alto. Auta de Souza, ao lado do médium Marcos, inspirava-o

fortemente.

A irmã Liebe murmurou:

— Estão orando; ajudemos. Unamo-nos num só pensamento ao Senhor

Jesus, o Excelso Benfeitor.

Emoções desconhecidas e vibrações nunca antes experimentadas

visitavam-me a alma, banhando-a de paz. Suave melodia, entoada por vozes

infantis, enchia o ar de harmoniosa vibração musical. Deixarme-ia arrastar

demoradamente nessa chuva de bênçãos, não fosse a interferência da irmã

Liebe:

— Aproveitemos o momento. Os companheiros encarnados sabem-na

presente.

Tive, então, nítida visão da sala. Nuvens claras pareciam flutuar no recinto.

Revi-te, então, filha minha, adornada de dor. Vislumbrei o companheiro de

largos anos, em crescente emoção, e os irmãos de Crença Espírita, ao teu

lado, sustentando-te na saudade. Ante o meu júbilo infinito, porque filho da

felicidade de comprovar a vida estuante além da morte, Auta de Souza

informou-me, solícita, consolidando minhas esperanças:

— Fraternidade, bênção de Deus! Enquanto os homens marcham em

busca do amor puro, ensinado pelo Mestre dos mestres, a fraternidade que os

reúne ensina-lhes as edificantes lições do socorro e do bem.

“Fé, minha querida amiga — continuou —, significa conquista espiritual. Fé

espírita, representa conquista da alma nos domínios da evolução. A fé haurida

no Espiritismo impõe a necessidade do conhecimento de si mesmo e oferece

os instrumentos para que o homem realize o autodiscernimento, o autocontrole,

o autoconhecimento, para, seguro, avançar resoluto pela senda evolutiva. Por

isso, a fé espírita é consoladora.

“Recordemos que o primeiro nome do Espiritismo veio de Jesus Cristo: O

Consolador. E a doutrina de Jesus, em Espírito e Verdade.

“Em razão disso mesmo, onde haja um Núcleo Espírita, haverá o bálsamo,

o consolo. Sendo consolação é tudo: caridade, esclarecimento, força, diretriz,

porque o consolo nasce não somente do pão, mas sobretudo do

esclarecimento.

“Na multidão dos que sofrem indagando, o espírita é o único felicitado pela

serenidade. Sua indagação é feita sem dor íntima, porque ele já tem a felicidade

íntima. Indaga com alegria, porque sabe que ninguém foi criado para a

tristeza.”

Estava deslumbrada. Senti que, embora desencarnada, não estava

esquecida. Notando os rostos tomados de confiança, encontrei neles,

igualmente, as marcas indeléveis da saudade e da dor, amparadas pelas

dádivas consoladoras da esperança vivida na fé. Não despertara das alegrias e

irmã Liebe, prestimosa e atenta, sugeriu-me colocasse sobre a mesa a nossa

oferenda de flores silvestres.

Amparada pelas duas benfeitoras, aproximei-me, vacilante, do móvel, onde

tantas mãos repousavam no momento da comunhão com o Senhor, quando o

nosso querido Marcos, colhido de surpresa, deparou comigo. Nossos olhares

se cruzaram, rápidos, porém significativos.

26

Oh! minha filha; não poderei descrever-te o intenso prazer daquela hora.

Aquele momento inesquecível marcou-me a jornada pelo reino novo da vida

imperecível.

Senti a emoção do médium, experimentando igualmente o mesmo estado.

Depositei o improvisado “bouquet” sobre a toalha humilde, e, quando me voltei,

ouvi da mãezinha espiritual do nosso movimento socorrista:

— A alegria é tônico da alma. Agradeçamos ao Celeste Doador este

momento, comprometendo-nos a servi-lo sem cansaço.

Amparada ainda, fui conduzida a uma cadeira, da qual acompanharia a

breve reunião.

27

7

NO CENÁCULO

Lentamente a visão ia-se dilatando, permitindo-me distinguir, através da

tênue cortina prateada, os semblantes queridos dos entes inesquecíveis.

Colorações suaves envolviam todos, vestindo nosso recinto de orações com as

tintas miraculosas das grandes paisagens, somente possíveis na “Mansão do

Reino”.

Deixava-me conduzir pelas delícias do momento. Até então, jamais

supusera lobrigar encantamento igual. Ao cérebro tumultuado por tantos

acontecimentos chegavam-me, oportunos, os ensinamentos da Doutrina Consoladora

que na Terra fora um roteiro para a minha vida, nos últimos anos.

Afigurava-se-me a verdadeira e única trilha para a felicidade, porqüanto só

essa Mensagem sublime explica ao viandante sem rumo a via certa da imortalidade.

Quão poucas vezes me detivera a meditar na excelência da Crença

desposada! Iniciada no Romanismo, habituara-me a enxergar na religião

somente um campo para solicitações de toda ordem, à base de promessas

materiais, perdendo-me, invariavelmente, nos meandros da revolta e da

inquietação. Sem. o conhecimento da vida espiritual, pouco afeita embora

àconfissão auricular, vivia ignorante dos problemas da alma. Com as primeiras

luzes projetadas em meu cérebro pelo Espiritismo, esse farol abençoado, um

mundo novo me apareceu, convidativo e maravilhoso, e que agora “de visu”

podia constatar.

No entanto, enquanto encarnada, não supunha fosse o mundo do espírito

algo tão concreto — embora muito diverso do que, por concreto, nominamos na

Terra —, qual aquele que me surgia a cada instante. Não tendo logrado a

felicidade de realizar cultura intelectual, não fosse a abnegação da irmã Liebe e

de outros Instrutores, eu não poderia sequer escrever-te estas páginas;

vivendo mais do trabalho, não pude penetrar devidamente nas lições preciosas

de André Luiz, quando o lera, encarnada(*).

Todavia, amparada pelo imenso desejo de acertar o passo com o Bem,

guardei na mente, indagadora e ansiosa, anotações e fatos narrados por

aquele trabalhador incansável, e que agora eram de grande e salutar utilidade.

Enquanto a meditação me visitava, alargando-me

(*) Refere-se a uma das obras mediúnicas, ditada pelo Espírito André Luiz

ao médium Francisco Cândido Xavier. Edição da FEB. (Nota da Editora).

os horizontes da alma, a reunião dos companheiros, sob as bênçãos do Senhor

e o carinho de Auta de Souza, ia-se alongando em marcha para o término.

A irmã Liebe, que me acompanhava o pensamento com bondoso sorriso,

murmurou:

— Escutemos a mensagem da generosa Mentora. Observei que a

Benfeitora mergulhava em profunda meditação. Luminosidade esverdeadoviolácea

envolvia-lhe o tórax e a cabeça, banhando de claridade o médium

Marcos, em concentração.

Decorridos breves minutos, como se obedecesse a uma força de atração

santificante, o espírito do médium pareceu afastar-se um pouco do corpo que,

imediatamente, passava a ser atendido pela Instrutora desencarnada.

28

Não pude compreender o mecanismo delicado da incorporação mediúnica,

apesar da palavra de auxílio da irmã Liebe que me veio em socorro.

Nesse momento, a comunicante contribuía com as instruções do dia,

traçando o abençoado roteiro de trabalho e auxílio, em favor dos menos

favorecidos pela fortuna.

Entre os formosos conceitos enunciados pela Entidade, falaram-me ao

sentimento as expressões de oportuna advertência:

— Em nosso labor socorrista não permitamos que o convencionalismo, esse

cruel carrasco da fé, penetre nos arraiais das realizações a que nos propomos.

Ele sufoca o ideal e mata a iniciativa. Pela sua trilha seguem os excessos do

preconceito da Terra. Contra esses excessos devemos brandir nossas armas,

conservando a simplicidade no trato e espontaneidade na ação. Recordemos a

simplicidade de Jesus e a Sua grandeza. Tenhamos em mente a grandeza do

que o Cristo não fez, e não apenas, daquilo que fez. Apesar dos recursos de

que dispunha, viveu, no entanto, na condição de humílimo servidor.

“Recordemos, assim, o que estamos fazendo e o que estamos deixando

de fazer. Recusemos o mal onde quer que se encontre, reduzindo-lhe a

expressão numérica e a expansão territorial nos corações!”

Chegado o momento da oração final, enquanto a comunicante se dirigia ao

Celeste Benfeitor, pétalas delicadas, coloridas de rósea luz, caíam perfumadas

no recinto, impregnando a todos com o magnetismo da paz e do consolo.

Estava concluída a reunião. Todos se ergueram. Nós outros,

desencarnados, demoramo-nos, entretanto, nas efusões do reencontro e da

alegria, tecendo a coroa de júbilos.

As grandes emoções que me sacudiram a alma deixaram-me, de certo

modo, sinais dolorosos, por não me encontrar totalmente liberta das

impressões físicas.

A irmã Liebe, muito atenta, explicou-me, delicada:

— Não podemos esquecer que regressaste há pouco da esfera carnal,

estando necessitada de repouso e medicação específica para o devido

refazimento, bem como de adaptação à vida nova.

E com gentil sorriso, onde espelhava sua bondade, acentuou:

— Todos os que atravessamos o oceano físico sabemos quão difíceis são os

primeiros tempos após o túmulo. A indumentária carnal que nos vestiu, por longos

anos, permanece a envolver-nos, retendo-nos no labirinto cruel das

lembranças e das sensações habituais.

E como se recordasse o seu próprio caso, após alguns momentos,

prosseguiu, em tom grave:

— A reencarnação quase sempre é um mergulho nas águas escuras e

perigosas do mar do esquecimento. A grande maioria das almas torna à carne

como criminosos em exílio, para, no olvido, reconsiderar atitudes mesquinhas e

infelizes, retificando pensamentos e aprendendo o respeito à vida, no contato

com a dor. Ao chegarem à Pátria querida, recebendo-lhe a mensagem clara,

nos dias de retorno, angustiam-se e sofrem, à semelhança de pássaro cativo

por longos anos que, tendo perdido o hábito de voar, prefere a gaiola estreita à

amplidão dos espaços que o chama.

“Outros Espíritos retornam à vida planetária sedentos de liberdade e

conquista e embaraçam-se nas dificuldades da recuperação, demorando-se,

após a rutura dos laços, entre aflições e agonias, por longos anos a fio.

“Somente aqueles que foram agraciados pelo crescimento no Bem, em

29

labores incessantes, cruciados e perseguidos, tendo experimentado nalma as

farpas cruéis dos testemunhos por amor à Verdade, podem, à semelhança das

rosas, vencer os espinhos que a precedem, perfumando posteriormente o ar,

onde flutuam.

“Todavia, o Administrador Compassivo da Terra, sublime e generoso, ao

distender-nos o Seu amor, confere-nos, em toda parte, a bênção dos

recomeços, ajudando-nos, incansável, no programa de libertação interior.

“Busquemos-Lhe, assim, a valiosa contribuição e, no momento, utilizandonos

das vibrações do ambiente, conduzamos a recém-chegada à nova esfera

de trabalho, onde o dever nos aguarda.”

Silenciando, deixava-me a sábia Enfermeira preciosa advertência que não

proferira e que, no entanto, era mais expressiva, pela sua significação.

A vida, minha filha, não é apenas uma sucessão de dor e alegria, lágrima e

sorriso, rogo e agradecimento, em continuidade. É um patrimônio valioso ao

nosso alcance, para utilização consciente em favor de nós mesmos.

Abraçando-me com desvelo, Auta de Souza e Liebe, cortaram-me o curso

de meditação e, sem mais delongas, informaram:

— Preparemo-nos. É hora de partir.

30

8

HOSPITALIZADA

Minha filha,

é inadiável e urgente o trabalho de espiritualização. Essa valiosa tarefa

deve começar o quanto antes, consoante o ensinamento do Senhor: “enquanto

estamos no caminho”, entre os homens.

As falsas concepções prendem-nos a sofrimentos que se prolongam

indefinidamente, depois que o espírito abandona o fardo carnal. É imperioso o

trabalho de esclarecimento de almas, vencendo os apegos perigosos que

dificultam a marcha ascensional e ensinando a todos os homens que o

fenômeno da morte é o mesmo fenômeno da vida. Disso decorre o conceito de

que cada um leva a vida que leva.

O caráter da evolução espiritual faz-se positivo na razão direta em que o

homem se desapega das coisas materiais, ensaiando os primeiros passos na

senda da liberdade. Os pertences terrenos são apenas empréstimos de Deus

para temporária permanência da alma no vaso carnal.

A Doutrina Espírita é uma fortuna ao alcance de todos os ambiciosos dos

tesouros eternos, mas que raramente é aproveitada. Quando precisamos de

orientação, nela encontramos setas luminosas que indicam, como bússolas

eternas, o caminho da nossa evolução. Muitos, entretanto, imprevidentes e

insensatos, demoram-se na Doutrina Espírita, atrás da miragem do fenômeno

como objeto essencial. Todavia, o fenômeno é apenas simples moldura na

grande tela da realidade, sendo secundário. Fundamental, é o fenômeno da

nossa transformação, vivendo a Mensagem Rediviva do Senhor, em todos os

dias da existência.

Exercitar o espírito na simplicidade é imperioso. Transferir para outras

mãos aquilo que está coagulado em nossas mãos é oferecer a outros o que

está guardado por nós, sem imediata utilização; fomentar a distribuição de

utilidades entre os que nada têm, dando vitalidade aos objetos mortos nos

armários e gavetas do nosso lar, representa o culto da simplicidade e da

libertação. Por esse motivo, a Doutrina Espírita é também chamada de

libertação, porque, consolando, torna livre o ser, ajudando-o a fazer a maior

transformação: a interior, a que o liberta de si mesmo.

Quando nos apegamos às coisas e às criaturas, fazemos uma despesa de

energia que debilita os recursos de crescimento espiritual, mediante a concentração

mental no que constitui o motivo central do nosso querer. Enquanto a

lição mais fácil e mais bela da simplicidade é o desapego, a loucura mais

profunda que se pode ter na Terra é a paixão à carne, que vai desaparecer,

quando poderia essa concentração de afeto ser dirigida à alma que se eterniza.

Todos quantos se ligam mentalmente à vida física, pela fixação mental, se

intoxicam espiritualmente, permanecendo presos aos centros em que concentraram

suas energias vitais.

Cabe-nos, diariamente, o aprendizado da lição de Evangelho no que

concerne ao serviço de generalização do desapego, deixando de atender às

nossas necessidades para atender às necessidades alheias que, em última

análise, são as nossas próprias necessidades.

Somos, portanto, obrigados a renovar para persistirmos na vida. Vida é

renovação no seu sentido mais amplo.

Não foi por outra razão que o Sublime Pregador Itinerante da Galiléia nos

31

ensinou, recordando o Decálogo, a “amar o Pai sobre todas as coisas e o próximo

como a nós mesmos”, generalizando a dedicação entre as criaturas, sem a

preferência perniciosa do individualismo, sem a escolha através dos laços de

sangue e família.

Ao enunciado da partida, não pude dominar a inquietação, e, embora não

falasse, as lágrimas voltaram-me pressurosas aos olhos. Súbito temor visitoume

o espírito, fruto certamente da má educação mental sobre o problema da

“morte”, que deve ser motivo de discussão, estudo e exame com mais freqüência,

na família. Só assim se pode preparar o espírito para a adaptação

natural e rápida no clima do Além-Túmulo.

Percebendo-me a emoção, a irmã Liebe concitou-me com enérgica,

porém, bondosa voz, ao sono magnético.

Não tenho idéia de como fui conduzida do nosso Cenáculo ao leito tépido

e acolhedor onde despertei. Eloqüente silêncio falava na ampla enfermaria que

vento brando cobria de agradável perfume de jasmim.

Alonguei o olhar e verifiquei não ser a única albergada no caridoso recinto.

Outros Espíritos, com os sinais de desencarnação recente, repousavam em

doce quietude, em número não superior a dez.

Recordando as enfermarias das antigas Casas de Misericórdia, iniciadas

por Isabel de Aragão, apresentava impecável limpeza e suas amplas janelas,

rasgadas nas paredes alvas, ornavam-se de rosas colorias e aromáticas.

Não sabia como agradecer a dádiva sublime que Jesus me concedia,

imerecidamente, quando pequeno rumor de vozes próximas me mudou o

roteiro das observações.

Eram a irmã Liebe e outra senhora, de sorriso acolhedor, cujo rosto, de

fulgurante bondade, logo me fascinou o coração. Não pude enunciar uma só

palavra. Sentia uma sensação de profunda anemia e cansaço.

Foi, como das outras vezes, a mentora querida quem me apresentou à

veneranda senhora.

— Esta é a nossa Zélia — esclareceu, prestimosa —a dedicada

orientadora do núcleo de recuperação em que nos encontramos.

Estendendo-me a mão delicada, a anfitriã informou com simplicidade, sem

afetação:

— Esta Enfermaria faz parte do conjunto hospitalar da Colônia Redenção,

que a bondade do Mestre nos confiou para o trabalho dignificante e renovador.

É uma estância de auxílio fraterno, onde companheiros, egressos da carne,

podem repousar, traçando planos novos de serviço para os dias do futuro. Em

verdade, nossa Colônia é uma das inúmeras células ligadas ao NOSSO LAR

por serviços de socorro aos irmãos na carne, em cujo teto temos a felicidade

de aprender, tentando servir melhor.

E depois de um sorriso:

— Sou apenas encarregada desta ala hospitalar.

Vibrações da mais pura cordialidade partiam da Senhora Zélia, cuja

dignidade e simplicidade me tocavam profundamente como auspiciosa

promessa.

Desejei expressar-lhe o contentamento e a gratidão que me povoavam o

espírito, mas, antes que o fizesse, a irmã Liebe, como se lesse o meu

pensamento, apressou-se em explicar:

— Como sabes, Otília, deveres outros na Crosta me aguardam. Não

poderei demorar mais longamente ao teu lado. A dedicada Zélia cuidará de

32

prover, com o seu grande zelo e eficiência, as tuas necessidades de agora em

diante. Não te faltarão o amor e a bondade dos lidadores deste santuário de

trabalho; todavia, não esqueças, em hora alguma, de vigiar a mente saudosa,

deixando que o tempo, dedicado e infatigável amigo, resolva os inúmeros

problemas que a ansiedade te colocará no cérebro, inquietando-te.

As lágrimas voltaram-me estonteantes.

A irmã Liebe, com a sua juventude dedicada ao Mestre coroado de

espinhos, representava a minha segurança e serenidade. Dispunha-me a

rogar-lhe não me abandonasse, quando, igualmente emocionada, penetrando

em meu íntimo com o seu dúlcido e calmo olhar, obtemperou, confortadora:

— Minha irmã; Jesus e só Ele é o nosso porto, nosso barco, nossa

segurança. Recorda dos Seus ensinos: “Todo aquele que crê em Mim já

passou da morte para a vida”. Confia e espera.

“Por enquanto não podemos permanecer juntas, contudo, não estaremos

distantes. Ligadas ao mesmo Chefe, somos soldados da grande legião do

amor, na Seara bendita, sob as suas caridosas visitas. Estaremos unidas

quanto nos permitam as possibilidades de serviço e ser-lhe-ei correio fraternal,

levando igualmente suas notícias e lembranças aos amigos que continuam na

luta física.”

Não poderia esperar maior doação.

Osculando-me a fronte, a querida Benfeitora despediu-se e, como um raio

de luz em busca do Grande Sol, após despedir-se da Senhora Zélia, perdeu-se

na glória do dever mais além.

A guardiã da Casa, enxugando as lágrimas, falou, atenciosa:

— Também eu, ao chegar à vida espiritual, experimentei essas dores e

emoções. Todavia, com as alegrias do trabalho, o tempo me enxugou o pranto

e o futuro me falou, lentamente, da necessidade de recuperar os dias perdidos.

Igualmente vivi entre crianças, na vida física, trabalhando numa Agremiação

Kardecista, no Rio de Janeiro. Temos, em nossas vidas, muitos pontos de

contato.

“No momento, não nos poderemos demorar em recordações que seriam

mais prejudiciais que benéficas.”

E sorrindo, acrescentou:

— O amor, quando descontrolado, é mais perigoso do que pode parecer. Por

isso mesmo, busca o repouso, a fim de que o mais breve possível recuperes as

energias gastas no processo desencarnatório.

“Amanhã o nosso médico virá cuidar da sua organização perispiritual.”

Deixando-me mergulhada em profunda lucubração, despediu-se com

carinhoso sorriso.

33

9

RESIDENTE DA COLÔNIA REDENÇÃO

Algo repousada, entreguei-me à multidão de pensamentos que estavam

represados em minha mente. Desde o momento da desencarnação, o receio e

a dor me visitavam com habitual freqüência. Encontrava-me quase feliz, se

bem que as impressões físicas não me houvessem abandonado e eu

conservasse ainda 7 as sensações que me eram comuns na roupagem

material.

Verificava, admirada, que o milagre com que eu tanto sonhara era

impossível quimera. A desencarnação não transformava os caracteres do ser.

Não havia a mudança repentina do homem em anjo, nem a metamorfose da

carne bruta em falena luminescente dos jardins do céu.

A vida, podia agora comprovar, sofrera modificações, não perceptíveis

imediatamente. Sob o meu corpo, que conservava sinais arroxeados, estava o

leito, em tudo semelhante aos que conhecera antes. Aos meus olhos, perscrutadores,

na sala bem cuidada e em suas amplas janelas, as rosas, vestidas de

um crepúsculo dourado, tornavam-se mais rubras. E em mim mesma continuava

a assinalar, além das emoções e estados espirituais como a angústia e o

anseio, o desfalecimento e o fervor, a impressão da fome, da sede e de outros

fenômenos fisiológicos.

Mobilizando as idéias e as débeis energias, tentei organizar o meu

panorama mental, de molde a fortalecer o espírito para a luta que se iniciava.

Em toda parte descobria a vida palpitante. Sem a febricidade típica das

cidades modernas, o recinto guardava aspecto de atividade disciplinada.

Procurando concentrar-me, foi-me possível recordar alguns fatos

esparsos, e, à lembrança dos meus últimos dias não me pude furtar, mais uma

vez, à realidade do momento: aquilo era a “morte”. Não a morte caricaturada no

símbolo da foice, mas a realidade de mensageira incansável no trabalho de

despertar.

Voltei, mentalmente, como me acontecera no túmulo, à infância. No

momento, recordava o passado, por processo espontâneo, e quedei-me

aparvalhada no exame de milhares de atitudes de toda uma existência.

Verifiquei, surpresa, com melhor precisão agora, os chamamentos do Céu,

dirigidos ao meu coração, por meio de pequeninas vozes e de acontecimentos

aparentemente insignificantes.

Do berço ao túmulo caminhamos tutelados pelo Senhor, sob a assistência

de abnegados amigos desencarnados que não desfalecem nos seus deveres

de nos guiar no roteiro nobilitante. Aqui é a inspiração alargando os horizontes

para a nossa alma, fazendo-nos mergulhar na senda de indagações fascinantes,

erguendo véus, aclarando conflitos, decifrando problemas, oferecendo

diretrizes. Ali é a natureza vestida de luz: córregos, rios e mares, flores e

pássaros, árvores vetustas e pequenos vegetais, animais e insetos que

enxameiam em todo lugar, nascentes e repúsculos, sol e chuva, minerais de

diversos valores que as ambições humanas, filhas do egoísmo e do orgulho,

convencionaram em preciosos e vulgares, acendendo o fogo da posse, no qual

tantos se afadigam e lutam. Mais longe é a dor — mensageira da verdade,

benfeitora anônima e incompreendida —, voz do sofrimento convidando à

continência e ao equilíbrio, advertindo-nos quanto ao desgaste da preciosa máquina

física; a dor-moral chamando à meditação e ao exame das ações; a dor34

espiritual, em ausências, frustrações emocionais, agonias e solidões dalma,

falando intuitivamente sobre o mau uso da liberdade, aprisionando a mente em

evocações dolorosas que, embora não se delineando de todo na tela da

memória, marcam os sentimentos com os sinais da angústia; a dor-saudade e

tantas dores... convidativas e perseverantes, gritando-nos, advertindo-nos.

Ontem era o carinho materno, falando-me das coisas simples e belas do

Céu e de Deus, ensinando-me a orar, insistindo no respeito à Lei, no longo

curso dos deveres. As dificuldades domésticas de vária ordem, como

mensagens-chamamento que teimei em não escutar.

Posteriormente, o raciocínio a desabrochar, a cultura em crescimento, os

livros, tudo, e a religião falando pela boca dos ministros diversos, nas várias

escolas de fé.

Por fim, o amadurecimento conduzindo-me ao Grande Senhor, aos

deveres que temos para com Ele, enquanto eu não me achava disposta a

estudar e servir.

De mil maneiras, segue-nos e chama-nos o Senhor. Quando jovens,

apegamo-nos às delícias do jardim dos prazeres e, buscando as flores da

ilusão, gastamos impensadamente energias valiosas, no jogo das emoções.

Quando velhos, prematuramente, desperdiçamos as últimas forças na

travessia tormentosa do mar da revolta, sob raios de imprecações e trovões de

desesperos injustificáveis, destruindo o vaso físico, de dentro para fora.

No trabalho educativo, dá-nos o Divino Governador um celeiro para

manutenção da vida e azeite para a lâmpada da fé. Imediatistas, porém,

prostituímos o dever e anarquizamos o instituto do trabalho, justificando-nos

com a falsa necessidade de atender às exigências da carne e, desajustados no

cumprimento das obrigações, constituímo-nos em falange de ociosos e

aproveitadores, para despertarmos, tardiamente, nos braços do desequilíbrio,

enxugando copiosas lágrimas.

Oh! filha minha, como nos chama a voz do Amorável Rabi!

Tudo isto eu repassava na tela mental, jornadeando pelas sendas

percorridas, atravessando os caminhos da memória, miraculosamente lúcida.

Não podia furtar-me à emoção, filha do arrependimento, sem revolta nem

reclamação, desde que eu mesma era culpada, reconhecia-o agora.

Mergulhada na recordação, meditando seriamente, talvez pela primeira

vez, não me apercebera da presença da Benfeitora Zélia, que se acercara do

meu leito.

Compreendendo-me o estado espiritual, chamou-me serenamente a

atenção:

— É necessário não esquecer, minha irmã, que o arrependimento é um

grande colaborador da nossa paz íntima, mas somente quando nos enseja o

trabalho que nos opere a renovação. Abater-se ao fardo do que “está feito”, é

desperdiçar a oportunidade feliz de ressarcimento. Guarda as lágrimas e busca

ressurgir intimamente do “túmulo das coisas mortas”.

E com um olhar que demonstrava conhecimento pessoal sobre o assunto,

através da experiência própria, aduziu, com segurança:

— Todos temos, no tempo, labores a reparar e estradas interrompidas na

marcha evolutiva, a vencer. O tempo, esse mesmo silencioso e confiante

amigo, esponja que tudo apaga, ensina-nos a não correr, pelo perigo que

sofreremos de cansar e parar, e também nos elucida quanto ao

estacionamento pelas probabilidades que apresenta de criarmos raizes...

35

Viandante incansável, ele representa nossas melhores e mais caras

esperanças. Para nossos espíritos endívidados, o tempo, ligado ao trabalho, é

tesouro que não podemos desdenhar, e, além deles, a oração, esse tônico de

reconforto e encorajamento, é um arrimo que não sabemos valorizar.

“Com o tempo, temos a oportunidade.

“Com o trabalho, conseguimos o aproveitamento da oportunidade.

“E com a oração, santificamos a ocasião e a ação.”

Com um sorriso calmo, prosseguiu ela:

— Quem se dispõe à ventura da recuperação, busca oportunidade de

serviço e, enquanto procura, ora.

“Portanto, não tenhas pressa.”

Estava perplexa com a lógica dos seus argumentos, simples, mas

profundos, onde eu encontrava campo para novas meditações.

Depois de uma pausa, que se fez natural, continuou com espontaneidade,

dissertando, amável, noutro rumo da conversação:

— Nossa Colônia encontra-se próxima à Terra, sofrendo,

conseqüentemente, as mesmas condições do planeta a que se encontra ligada.

Irmanados ao destino do Brasil, nossos Instrutores trabalham infatigavelmente,

há mais de 250 anos, cooperando com as falanges de Ismael na construção da

Pátria do Cruzeiro. Fundada por abnegado Missionário da Caridade, destinavase,

inicialmente, a socorrer escravos desencarnados ao peso de provações e

expiações amaríssimas. Recolhendo os mais rebeldes, sedentos de vingança,

auxiliava-os com esclarecimentos necessários, reconduzindo-os ao Orbe para

novas e redentoras lutas.

Incipiente a princípio, foi crescendo com o concurso dos anos,

aumentando suas possibilidades de socorro, em vista da cooperação de

Espíritos abnegados que passaram a contribuir para o seu desenvolvimento.

Atravessou ásperos períodos, consoante consta nos arquivos que guardam sua

história.

“Reiteradas vezes, as hostes do mal investiram furiosas e organizadas, sob o

comando de cruéis magotes de chefes bárbaros, cuja memória na face da

Terra se encontra, até hoje, envolta nos mais hediondos crimes. Os pioneiros

da obra iniciada, entretanto, não desanimaram, uma vez sequer.

“Feridos na cruzada do amor, reorganizavam-se sempre, e, à medida que

a região inóspita se povoava de vibrações edificantes, reservas de forças chegavam

de toda parte, em nome do Senhor Supremo, restabelecendo o ânimo e

vitalizando o trabalho.”

Acompanhava a descrição da Senhora Zélia com emoção e curiosidade

crescentes. Aproveitando-lhe a pausa, indaguei:

— E as lutas tinham o aspecto das que se observam no planeta?

— Evidentemente — retrucou a esclarecida narradora. — E imprescindível

não esquecer que nos encontramos muito próximos da Crosta terrestre,

envoltos em vibrações igualmente materiais, cuja diferença estrutural é

facilmente compreensível.

“Essas entidades ligadas ao mal — continuou — organizam-se em bandos

perigosos, sob a a direção de mentes cruéis, dificultando a obra de

evangelização do mundo. As guerras, os crimes e muitos desastres que se

verificam na Terra estão ligados, de certo modo, a esses agrupamentos de

gênios satânicos, que se demoram comprazendo no mal e, inconscientemente,

funcionam como o necessário escândalo.”

36

E dando curso à narrativa histórica da Colônia, prosseguiu:

— O próprio Ismael visitou, por duas vezes, a Governadoria, contribuindo

com valiosos esclarecimentos e oferecendo preciosos recursos de auxílio ao

programa socorrista a que se liga.

“Temos depois, quando no Brasil as idéias abolicionistas fermentavam em

vários corações e mentes, almas aqui atendidas, durante anos, retornaram à

forma física na posição de escravocratas benignos que, ao lado dos

libertadores, concederam, sem mais delongas, liberdade aos opressos, antes

do inolvidável dia em que a Princesa transformou em Lei memorável a abolição

da escravatura nas terras de Santa Cruz.

“Com isso a Colônia granjeou o devotamento de novos e abnegados

trabalhadores que se ofereceram a cooperar com o seu celeiro, resultando em

crescimento e amplitude de serviços.

“Atualmente, operando na Crosta, com um grande número de servidores

do Bem, conta com alguns milhares de pupilos reencarnados, que continuam

mantendo ligações mentais conosco, situados em serviços de recuperação e

assistência a sofredores no plano físico. E, graças ao Espiritismo, na sua feição

cristã, o número de candidatos ao serviço fraternal de socorro aumenta de

maneira consoladora, apesar das quedas lastimáveis de quantos baqueiam nas

relevantes tarefas a que se propus eram.”

A narradora, depois de breve silêncio, acrescentou:

— A esta hora, diariamente, ligamo-nos em oração com o Templo de

comunhão.

Ante a notícia das preces em conjunto, no recinto reservado a esse mister,

indaguei, ansiosa:

— Poderia participar da prece em conjunto, rumando, igualmente, ao local

onde os demais se encontram?

— Não — respondeu-me. — Ligar-nos-emos daqui mesmo, porqüanto o

pensamento rompe todas as fronteiras. Ainda necessitas de guardar o leito por

algum tempo, para adaptar-te com segurança a vida nova.

“Guarda-te em meditação — tranqüilizou-me com expressão de

entendimento fraternal —, enquanto visito e preparo nossos demais irmãos de

enfermaria.”

37

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ORAÇÃO NA COLÔNIA

O Sol ainda não se ocultara de todo. Raios dourados brincavam nos ramos

das roseiras que oscilavam lentamente sacudidas por suave brisa.

Grande transparência na atmosfera deixava desnudo um céu profundo e

calmo, banhado de azul sereno, convidando à meditação e ao silêncio.

Como se flutuassem no ar, notas melodiosas de um mavioso órgão

invadiram lenta e suavemente o recinto em que me encontrava. Os acordes

harmoniosos tocavam-me sensivelmente o coração e, sem que pudesse explicar,

surpreendi-me tomada por silencioso e confortador pranto. Traduziam

essas lágrimas aquele estado dalma, misto de felicidade e recordação, que não

se pode ou não se sabe bem definir.

As notas subiam e desciam em conjunto melodioso, parecendo falar às

nossas almas saudosas e angustiadas, confortando -as miraculosamente.

Nesse momento, a Benfeitora Zélia deu entrada em nosso reduto

acolhedor e, aproximando-se de uma mesa, no fim da sala, acercou-se de um

aparelho semelhante aos receptores de televisão da Terra e o ligou, com

movimento rápido. Surgiu-nos, então, à visão deslumbrada, amplo recinto, em

forma semicircular, com aproximadamente 1.000 pessoas, sentadas, em

atitude de profunda concentração.

Num estrado, ao fundo, singela tribuna, à feição dos púlpitos das Igrejas

Reformadas, destacava-se, cercada por duas filas de poltronas, igualmente

ocupadas.

Festões de rosas desciam delicadamente enrolados nas colunas que

cercavam o encantador auditório, no cenário da noite em crepe transparente,

ornado das cascatas de luz poente.

Verdejante relva se derramava além das alvas colunas que pareciam

construídas do mais fino mármore, a apontar o céu estrelado.

Jovem seráfica, sentada a grande órgão, continuava a dedilhar o teclado

alvo, sensivelmente emocionada. Todos pareciam participar da mesma emoção,

porqüanto, de olhos fechados, deixavam transparecer, na face, a

comunhão fraterna que se irradiava, misturando-se harmoniosamente.

— Eis o nosso santuário de orações — informou a Enfermeira Zélia,

aproximando-se de mim.

— A pulcra jovem organista — prosseguiu, jovialmente — é Susana, que

na Terra se dedicou à música de Bach, Wagner e Haéndel. No momento,

prepara-nos o ambiente com o trecho da peça “XERXES” de Haêndel,

denominado LARGO.

Tomada pelos acordes vibrantes, parecia recuar no tempo e evocava a

melodia que tantas vezes escutara quando encarnada. Tinha a impressão de

que a música, naquele momento, possuía uma linguagem mais compreensível,

saturando de emoções superiores a minha alma.

Envoltos nas vibrações do instrumento magnificamente conduzido,

ouvimos as últimas notas perderem-se no ar. A jovem, entretanto, parecia

vestida de suave e bela luminosidade. O rosto, pálido, coloriu-se de rubor

expressivo e as lágrimas brilhavam nos seus grandes olhos negros.

Pretendia indagar à bondosa mentora a respeito da jovem, solicitando

mais algumas informações, quando esta me socorreu, esclarecendo,

compreensiva:

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— Susana foi uma dessas heroínas anônimas que muito amou sem fruir

ventura da retribuição. Entregou-se, por isso mesmo, à música, qual musa da

arte, enquanto a tuberculose pulmonar lhe consumia a fragilidade orgânica.

Chegou à nossa Colônia na condição de vitoriosa, e aqui, desde há alguns

anos, coopera no ministério da oração, ajudando com acendrado devotamento

os afeiçoados que continuam na retaguarda.

Silenciando a voz pausada, observei que venerando ancião se ergueu de

uma das filas laterais assomando à tribuna sob a mais viva satisfação de todos

os presentes.

— É o orientador Célsius, abnegado Instrutor de nossa Colônia — elucidou

a amiga espiritual.

E após alguns momentos:

— É portador de grande soma de bênçãos em nossa Casa de carinho,

que muito lhe deve ao labor abnegado e incansável. Trabalha neste Hospital-

Escola há mais de um século, segundo estou informada, com credenciais de

demandar outra esfera de realização. Todavia, jamais utilizou o patrimônio que

lhe exorna o espírito abençoado, para qualquer benefício pessoal... As tarefas

mais difíceis têm-lhe a preferência, atestando o seu alto coeficiente de renúncia

e caridade.

“Regiões dolorosas de reparações punitivas —prosseguiu a lúcida

matrona —, núcleos infernais de purificação, recebem-lhe, invariável e

constantemente, o concurso valioso e, nas enfermarias reservadas aos loucos

e possessos, sua figura é um convite honroso aos companheiros socorristas no

sagrado ministério de ajudar.”

O ar balsâmico do anoitecer caía ameno. De nosso leito, participávamos

do culto que ora se iniciava.

O orientador Célsius, imóvel na tribuna, recebia no rosto aureolado a

carícia do fugitivo dia. Ergueu os olhos e, ao baixá-los, fitou com imenso

carinho a multidão atenta, falando com voz clara e pausada:

— Irmãos em Jesus. Paz seja conosco.

“Infatigáveis companheiros nossos encontram-se no momento, nas frentes

de luta das regiões purgadoras, combatendo, denodados, a serviço do Bem

Sem Fim.

“Enfrentando dificuldades indescritíveis sob temporais de revoltas e ódios,

cooperam com Jesus nas ásperas jornadas de soerguimento das almas fracassadas

e no despertamento de consciências entenebrecidas há muito tempo...

“Constituem os braços da legião dos “Servidores da Cruz”, em nobilitante

esforço salvacionista. “Também temos hoje ao nosso lado antigos

companheiros que retornam sem luz, nem pão, nem esperança. Alguns

conservam ainda as fundas feridas das refregas em que foram batidos; outros

guardam as impressões violentas das tormentas que os açoitaram e em cujo

vendaval foram levados até ao crime, pela inobservância dos deveres morais.

Quase todos se apresentam desencantados, aturdidos, sem forças... Retornam

ao Lar como náufragos desesperados aportam em acolhedora ilha, sem que,

entretanto, possam repousar, tais as impressões que conservam no íntimo,

daqueles tormentosos dias e noites de ansiedade e loucura ao sabor das

águas revoltas...

“São corações desesperados que nos pedem os melhores esforços,

conclamando-nos, na sua desdita, à vigilância e aguardando o concurso do

nosso trabalho assistencial para o redespertamento de consciências

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enegrecidas pelo erro e intoxicadas pelo ópio dos prazeres absorventes.”

O narrador silenciou por momentos, para prosseguir com outro timbre de

voz, modulado em vibrações de muita ternura:

— Quantas vezes não tivemos igualmente batido a outras portas,

apresentando os mesmos desequilíbrios? Quantos não conservamos, até este

momento, úlceras ou cicatrizes que nos recordam loucuras idênticas? Quantos

não carregamos reminiscências amargas e apreensões justas em relação a

afeiçoados enceguidos nas disputas da posse, nos resvaladouros da ingratidão

e da “morte”? Quanto temos de fazer, por nós mesmos, para esquecer por

superação, vencer através da renúncia total, crescer pela senda do sacrifício, a

fim de conquistarmos os tesouros da paz e da imortalidade? São quesitos que

não podem ficar esquecidos em nossa Agenda, para meditação.

Senti que, embora suas palavras não tivessem o tom amargo de acusação

nem denotassem lamento, falavam verdades que me atingiam vivamente.

Quantas oportunidades deixara escapar, quando mergulhada na carne? Como

estaria minha filha, no lar, que me era tão querido? Que me reservaria o futuro

nos ensejos de novas lutas?

Não pude alongar-me nas divagações mentais. A voz do tribuno inspirado

voltava à oração cativante:

— Somos devedores compulsórios da Misericórdia Divina — continuava,

calmo —, que jamais nos abandonou. Por essa razão, não podemos

permanecer indiferentes à vasta cópia de dores que assalta outros corações,

atingindo, assim, nossa alma.

“O Senhor Jesus Cristo deu-nos o exemplo, pelos longos testemunhos no

campo do auxílio infatigável, na temporada vivida conosco, no mundo. E até

agora, sem cansaço nem esmorecimento, prossegue o Trabalhador

Incessante, construindo para nós e por nós.

“Conservemos em mente que a felicidade somente é possível quando

conseguimos arrancar os tentáculos do egoísmo e do imediatismo, esses

vitoriosos adversários de nossa gloriosa destinação. E para tal desiderato a

Caridade é o único meio de retirar as ventosas desse algoz titânico que nos

suga as energias, debilitando-nos o ânimo. Perseveremos no concurso aos

semelhantes e abriremos clareiras na mata de nossa ambição, permitindo,

assim, que a luz de cima oscule as baixadas do nosso ser.”

Fez-se, novamente, uma breve pausa. Em todos os olhares brilhava o

desejo de servir. Fitando o orador nimbado de diamantina claridade, o auditório

conservava-se em expectativa silenciosa.

Erguendo novamente a voz, muito branda, quase além de um murmúrio,

continuou o intérprete da Palavra Evangélica:

- Eis que temos por bem-aventurados os que sofrerem...

“... E a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se houver

cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados”. Assim nos fala o Apóstolo Tiago, na

sua Epístola Universal, no capítulo cinco, versículo onze e quinze, concitandonos

ao culto da dor e da prece, principalmente quando, doentes e pecadores,

estivermos juntos, buscando o Senhor.”

O órgão cantou dolente, sob as mãos leves de Susana.

Alçando os braços em atitude de súplica sem afetação, o respeitável

ancião, então, orou:

“Jesus, Celeiro da Esperança, socorre-nos.

Sentinela luminosa de nossa noite, clareia-nos.

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Alonga os teus ouvidos e ouve-nos a súplica.

Em nossa luta de toda hora, em ti confiamos.

Nas regiões de sofrimento-lição, ajuda-nos.

No abismo da ignorância milenar, abre-nos o manancial da tua sabedoria.

Em nossa condição de delinqüentes, favorecenos, outra vez, com a graça

de nova oportunidade.

Carregados de aflições e dores, consola-nos.

E além de nós, Jardineiro das almas, favorecenos, com a misericórdia da tua

permissão, para levar adiante, embora não nos encontremos aptos:

teu nome aos recintos de horror, tua paz aos penhascos da revolta, teu

amor aos vales do ódio, tua luz aos abismos da treva, teu perdão às

charnecas escuras da vingança, e tua esperança aos tortuosos rios do

desalento. Suplicamos, igualmente, pelos flautas vencidos

nas viagens laboriosas e difíceis do mundo das tentações e que retornam a

estas praias desarvorados e tristes.

Por quantos seguiram animados e retornam presos aos cipós intrincados

das redes perigosas da invigilância e, principalmente, por aqueles que:

ferem e sorriem em plena loucura, perseguem e dormem em total

ignorância, malsinam e gozam em completo abandono de si mesmos.

Eles constituem “motivo de escândalo”, não te conhecem, e são, em

conseqüência, os mais infelizes...

por nós que te conhecemos e preferimos a treva à luz, a ventura

enganosa e passageira à renúncia redentora.

Senhor, tem piedade de nós!”

Silenciou o abnegado Mensageiro da Luz. Gotas de evanescente claridade

caíam sobre os assistentes. O órgão continuava a entoar as excelências harmoniosas

do Céu.

A irmã Zélia acarinhou-me a cabeça. Todos chorávamos.

A reunião terminava.

Estrelas miúdas brilhavam no céu azul-escuro, muito longe.

O aparelho foi desligado, mas, com o silêncio decorrente, a meditação

falava alto em nossas almas.

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O DOUTOR CLÉOFAS

Na manhã seguinte, após a frugal refeição, a bondosa Zélia apareceu

acompanhada, irradiando a jovialidade que lhe era habitual.

— Este é o nosso doutor Cléofas — falou, apresentando o simpático

visitante —, que cuidará de suavizar as impressões físicas que guardas no

perispírito, desde o momento da desencarnação.

Realmente, ainda não haviam cessado as sensações dolorosas que me

seguiam continuamente. Embora os cuidados e a assistência moral de que me

via objeto, sentia as contrações dolorosas que me visitavam com freqüência, o

cansaço e a dificuldade respiratória. Sustentavam-me a fé e a esperança que

desbordavam em meu espírito, mediante o consolo haurido na oração, mas as

dores permaneciam.

O médico, trazendo aos lábios sorriso afável, fitou-me, compreensivo,

sentando-se ao meu lado, junto ao alvo leito.

O doutor Cléofas, soube-o mais tarde, fora dedicado cardiologista,

desencarnado havia uma vintena de anos, na Capital de São Paulo. Chegara à

Colônia, como portador de vários títulos de auxílio e humildade. Católico

praticante, a princípio, encontrara nos enfermos o abençoado campo de serviço

e aprendizagem. Coração sensível, alma evoluída, não se limitava ao estreito

círculo das formas. Cultor de privilegiada inteligência, defrontou-se com

problemas fisiológicos inexplicáveis pelos métodos da experimentação

científica, então vigentes, resolvendo-se à base do amor, em intermináveis

testemunhos de abnegação. Pesquisador honesto e sedento de conhecimentos

novos, ouviu notícias do Espiritismo, através de jovem médium, de apreciável

faculdade, buscando conhecê-lo, ávido como sempre esteve, de respostas às

inquirições que o atormentavam.

Com vasta clientela, reuniu, com a sucessão do tempo, apontamentos

valiosos de observação e, fascinado pelos esclarecimentos fornecidos pelos

Espíritos, embrenhou-se pelas investigações Metapsiquicas, vindo a conhecer

a Doutrina de Allan Kardec, manuseando O Livro dos Espíritos. Tão fascinado

ficou com a leitura desse magnífico compêndio de Filosofia transcendental que,

em breve, consorciou-se com o pensamento Kardequiano.

Estudando as faculdades positivas do sensitivo, penetrou no umbral do

Além-Túmulo, em memoráveis sessões de estudo e pesquisa. Voz direta,

transporte, levitação, impressões em chapas fotográficas, desdobramento,

psicofonia, psicografia, xenoglos sia e tantos outros fenômenos contribuíram

para levá-lo às questões fundamentais da vida imperecível.

Naquela época, reuniam-se homens de nomeada, conhecidos pelos

valores morais e intelectuais, selecionados, exercendo rigoroso controle nas

operações medianímicas, terminando por atestar a veracidade dos fenômenos

experimentais sob a interferência de forças extrafísicas, publicando-se relatos

dos trabalhos em opúsculos que marcaram tempo. Todavia, passada a

movimentação ruidosa das primeiras emoções, poucos se dedicaram à

continuação dos experimentos mediúnicos. Todavia, o raio de luz que rasgou a

cortina das formalidades, abrindo o campo da vida nova ao dr. Cléofas,

fecundou a semente do Evangelho que dormitava no ádito do seu coração.

Mergulhando as antenas psíquicas na fonte do conhecimento bibliográfico, fez

das diretrizes da Boa Nova seguro roteiro para si mesmo, alargando as

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possibilidades de serviço. Desencarnou, com a idade de 58 anos,

aproximadamente, carregando consigo valiosos recursos espirituais.

De olhar bondoso, o esculápio amigo, com expressão paternal, convidoume

a cuidadoso exame. Utilizando-se do estetoscópio, à semelhança dos médicos

terrenos, começou a perscrutar, atento, deixando transparecer na face os

sinais de preocupação e zelo.

Após alguns minutos, diagnosticava, com um leve sorriso:

— A irmã Otília chegou à vida espiritual sob a agonia da Angor Pectoris.

São ainda evidentes os sinais da dor constritiva nas artérias coronárias

dilaceradas pelas contrações anginóides.

Devo confessar que até o momento de ouvir o médico referir-se à minha

causa mortis, eu a desconhecia totalmente. Suspeitava ter desencarnado de

moléstia do coração, sem que, contudo, pudesse saber qual a enfermidade.

Aproveitando a pausa espontânea, esclareci, surpresa:

— Benfeitor amigo, desejava informar que às vésperas da minha

desencarnação consultei jovem médico, ao lado do meu companheiro que se

encontrava enfermo, sendo tranqüilizada pela ótima disposição física. Após

acurado exame, assegurou-me o doutor que eu era “portadora de um coração

de ferro”. Como explicar a minha desencarnação por enfermidade do coração?

Sorriso largo espraiou-se no rosto do interlocutor, que acrescentou bemhumorado:

— Todavia, está comprovada a fragilidade do seu coração... Embora a

informação do seu clínico, a bomba cardíaca não resistiu ao embate e,

cansada, deixou de lutar...

Prosseguindo, considerou:

— Não discutiremos aqui a informação do colega terreno, mas é inegável

que o seu processo desencarnatório vinha sendo elaborado na máquina física,

apesar da violência final, há mais tempo do que você possa imaginar. O

aparelho respiratório deveria estar apresentando sinais de cansaço e

deficiência desde alguns meses antes; desde que o tônus vital que a animava,

calculado cuidadosamente antes da reencarnação, se encontrava esgotado,

por motivos de “fim de prova

“Como você deve recordar-se, através das noções de Doutrina que possui, o

organismo somático é mantido pela vitalidade perispiritual, que é agente, e que

conduz em germe os pródromos dos acontecimentos futuros para o berço e o

túmulo, essas duas entradas principais da vida.

“Anemia, cansaço, uso de bebidas alcoólicas, sífilis, produzem a angina,

variando a nomenclatura em relação à etiologia. No seu caso, entretanto, tudo

indica terem sido a anemia e o cansaço, junto a outros fatores que não vem ao

caso examinar, que causaram o enfarte do miocárdio conseqüente à violenta

crise anginosa.”

— Mas como é fascinante, doutor! — Interrompi.

— É compreensível — replicou, sorridente. — Nos centros de estudos das

reencarnações e desencarnações não se conhece a improvisação. Se a paz do

mundo começa sob o teto da família, os fatos do futuro estão condicionados ao

passado do espírito como decorrência dele. Assim, os acontecimentos da vida

planetária estão ligados a razões adredemente previstas e sabiamente

movimentadas.

“Corpos belos e deformados são frutos de ensaios e comparações,

escolhas e imposições, tendo-se em vista os imperativos do mérito, no

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ajustamento às Leis de Causa e Efeito. Enfermidades passageiras e males

crônicos, doenças breves e demoradas, tuberculose, lepra, câncer, alienação

mental... obedecem a programas estruturados nas bases das necessidades

espirituais em cujas tarefas de renovação pela experiência provacional ou

expiatória, em ajustamento ou resgate, o ser recupera o patrimônio da vida,

antes mal aplicado pela orientação contraproducente do livre arbítrio.”

— Então — aduzi —, o determinismo é um fato!

— Evidentemente! — retrucou-me. — Não, porém, nas bases em que

muitos o situam. Recordemos, inicialmente, que ninguém segue rumo à

reencarnação para repetir experiências fracassadas. Mas, sobretudo, para

aprender e evoluir, valorizando a dádiva do tempo.

“O renascimento não é uma porta de cobrança por onde todos têm de

passar compulsoriamente, arrastando penas e dívidas. Antes, é uma

oportunidade dadivosa para reparação e conquista. Quantos desrespeitem a

Lei sofrer-lhe-ão a conseqüência. É justíssimo.

Assim, o determinismo não é uma imposição, mas uma conseqüência dos

atos que criam motivos de resgate. Além disso, não olvidemos o patrimônio de

conquistas na esfera do serviço humanitário, onde muito se pode realizar em

favor de si mesmo, anulando causas determinantes de sofrimentos futuros.

Não esqueçamos, também, que o amor anula e apaga tudo, porque o amor é

manifestação luminosa da Divindade ao alcance do homem.”

Desejando dar maior ênfase ao assunto, prosseguiu:

— Reconheçamos, ainda, que a alma em romagem pela Terra dispõe de

múltiplos recursos para proceder com eqüidade. Excetuam-se, naturalmente,

aqueles que se encontram em rudes pelejas expiatórias, em as quais

permanecem apagados os centros da inteligência para o necessário

esquecimento libertador. O homem comum, de mediana capacidade, dispõe da

razão, do livre arbítrio, do exame de consciência, tendo ao seu alcance a prece

e a intuição ou percepção espiritual. Com o Evangelho de Jesus Cristo, Nosso

Senhor, o roteiro humano se ilumina, salvador. No entanto, mergulhando na

carne, a alma se apega por teimosia rebelde ao prazer, longe do sacrifício

renovador, debatendo-se no arbítrio torturado, e escolhendo, invariavelmente,

as sendas difíceis para a própria redenção. É natural que, caindo em inesperados

abismos, sofra com a queda os danos pertinentes às arestas do

despenhadeiro.

— É racional — assenti. — Quer dizer, então, que tudo é previsto antes do

renascimento? — indaguei, curiosa.

— Não exatamente tudo — esclareceu, paciente. —Digamos, antes, que é

mais ou menos previsto. Desde que toda ação gera uma reação, é admissível

que a previsão esteja na razão direta das ações praticadas no passado.

Entretanto, através de novas ações, o panorama geral do reencarnado pode

sofrer modificações apreciáveis. Recordemos aqui o ensino do Mestre

Nazareno, que é muito expressivo: — Não cai uma folha da árvore que não

seja pela vontade de Deus” ou “... até os cabelos das vossas cabeças estão

contados”, o que pode ser traduzido por um pré-conhecimento das coisas.

Entretanto, lembremos, igualmente, que o sábio Senhor também afirmou: —

“Tudo quanto pedirdes ao Pai, orando, será concedido”, o que indica ser a

felicidade algo ao nosso alcance, dependendo somente de nos resolvermos a

tal. Nas vicissitudes do caminho e dificuldades da luta, a prece da alma contrita

chega aos ouvidos divinos, que retribuem a confiança com a temperança e o

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ânimo, a inspiração e o auxílio.

“Aceitar o determinismo absoluto — prosseguiu, atencioso, — seria o mesmo

que negar a bondade Divina, aceitando o fatalismo negativista. Convenhamos

ainda que nenhuma alma é destinada ao mal. O mal é somente uma

manifestação do bem ausente.”

Estava profundamente comovida. Embora recordasse do que lera, na

Terra, o assunto era sempre atraente. Invadia-me o ser preciosa sensação de

conforto e segurança, favorecendo-me a mente com novos rumos ao

entendimento.

Depois de ligeira meditação, como se buscasse esclarecimentos novos, o

venerável médico continuou:

— A reencarnação é abençoado ensejo, concessão imerecida. E toda

doação é sempre utilizada como melhor convém a quem a recebe. Muitos,

inadvertidamente, atiram fora o que recebem, sem consideração ao benfeitor;

outros utilizam-se da concessão, indiferentemente; raros aplicam bem os

valores recebidos. Tal benefício deve ser aproveitado, não para pagamento,

peregrinando pelas sendas da amargura, mas para aquisição de valores pelas

vias do trabalho. Na Contabilidade do Céu, a soma de ações nobilitantes anula

a coletânea equivalente de atos indignos, e todo amor ao próximo, em serviço

educativo à Humanidade, é degrau de ascensão. Por essa razão, o momento

que passa é de especial valor. Desde que o nosso “hoje” se encontra radicado

no “ontem”, usemos o hoje-amanhã na edificação da ventura por que

ansiamos.

“Passado, presente, futuro... Hoje é o que importa. Atendamos às tarefas

que o Mestre nos confere, em oportunidades santificantes, e avancemos, sem

cessar!”

Calou-se o lúcido visitante. Minha mente perdia-se se num mundo de

cogitaçõeS novas. Vibraram em meu cérebro espiritual as palavras:

reencarnação, desencarnação, oportunidade, prova, expiação, resgate... E,

sem que o percebesse deixei-me conduzir à nostalgia absorvente, ao lembrar

das perdas que pesavam sobre meus débeis ombros.

Percebendo, porém, o meu pensamento, nublado pela súbita amargura, o

Médico Espiritual atalhou-me a inquietação, asseverando:

— Sustente o bom ânimo! o arrependimento, quando muito freqüente, é

mau conselheirO. Use a meditação como medida salutar, abandonando toda e

qualquer expressão de remorso deprimente. Utilize-se do momento para a

planificação do porvir. Agora, exercite-se; amanhã, sirva.

E com voz grave, concluiu:

— Busque o repouso; é necessário e inadiável o pronto refazimento.

Cuidarei de medicá-la devidamente, e, sempre que possível, estaremos ao seu

lado, e Jesus conosco.

Despediu-se o novo amigo que, acompanhado da irmã Zélia, se dirigiu a

outros necessitados, no sublime mister de curar.

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EM MEDITAÇÃO

As palavras do dr. Cléofas conduziram o meu pensamento a um mundo de

novas indagações. Pouco habituada aos exercícios mentais, sentia dificuldades

em ligar expressões esclarecedoras a acontecimentos ilustrativos para tirar os

mais proveitosos ensinamentos. Por essa razão, sentia-me perturbar, embora a

clareza com que as idéias me foram apresentadas.

Que magnífico tema esse — Livre arbítrio e Determinismo.

Raramente procuramos examinar os fatos que nos sucedem na vida,

descobrindo neles as origens do livre arbítrio ou do determinismo. A grande

maioria dos crentes deixa-se conduzir pela sucessão natural dos acontecimentos,

sem aprofundar-se nas causas determinantes, em acuradas e úteis

observações. Diante de uma tragédia, duas atitudes comumente assaltam os

homens: revolta injustificada ou resignação desvitalizada, que traduzem, em

ambos os casos, pobreza do conhecimento racional da Fé. Somente poucos

indivíduos buscam apreender a razão basilar dos acontecimentos para,

esclarecidos, dirimirem as conseqüências, preparando-se para a aceitação natural

do fato.

Crença, compreendia-o agora, não significa, de maneira alguma,

aceitação passiva dos postulados doutrinários de uma denominação religiosa.

Antes de tudo, crer representa conhecer para crescer através do

conhecimento. A crença é um meio de realização objetiva nos domínios da

alma. Dessa forma, a fé éuma lanterna inextinguível clareando a senda evolutiva

do homem através do discernimento lógico, no intrincado campo dos

problemas subjetivos, materializando-se na conduta social. E assim podia,

melhor que antes, averiguar quanto é certa a ponderação que se exige no

conhecimento religioso, como sói acontecer no Espiritismo.

Quantas vezes, interrogava-me, deixara-me entusiasmar pelas pregações

doutrinárias na Seara Evangélica, comovendo-me até às lágrimas, sem o

cuidado, porém, de, ao recolher-me ao lar, aprofundar a mente nas análises

dos conceitos expendidos pelo dissertador, como frutos da inspiração divina,

aplicando-os na vida diária, em favor do porvir? Vezes outras, nos dias

destinados ao intercâmbio medianímico, por momentos rápidos mergulhava o

pensamento e o coração na leitura da Boa Nova, procurando, nos deveres da

higiene preparar o corpo para o sono, sem outros cuidados para com a alma!

A mesa mediúnica, quando deveria cooperar com recursos valiosos da

prece e da concentração, mantinha apenas a atitude da face, sem o devido

respeito à dor dos desencarnados, esmagados sob crudelíssimas cruzes. E

quantas vezes me deixara conduzir, invigilante, tomada pela impiedade,

acreditando estar diante de artifícios dos médiuns ou de enfermidades

características de maníacos e sugestionados? Terminado o intercâmbio, só

excepcionalmente conduzia comigo as impressões da noite de socorro para

melhor e mais acurado exame.

Diante dos BenfeitoreS Espirituais, à hora das Instruções PsicofônicaS

com que se encerravam as reuniões, a minha atitude não era muito diversa da

postura que mantinha ao início assistencial. E, de incidência em reincidência,

habituara-me ao serviço religioso com a pontualidade e com postura de

semblante, distante, porém, do interesse e da compenetração que o Culto da

Prece, convite ao homem para o encontro consigo próprio, nos impunha a

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todos. Tal fenômeno, entretanto, lamentaVelmente ainda ocorre em muitas

células espiritiStaS, exigindo dos seus dirigentes os mais reiteradoS esforços

para a manutenção do nível necessário à coleta dos valores legítimos de

produtividade intercambial e trabalho. Daí a necessidade constante de estudo

com meditação e da sua natural aplicação diária na vida prática, para que o

formalismo, tão comum em outras escolas de fé, não se amerceie das almas

que se devem esclarecer, tornando-as responsáveis em matéria religiosa.

Recordava as palavras do esculápio e emocionava-me. De fato, era fácil

constatar só há realmente destinação para o Bem, para a produtividade útil,

consoante as lições serenas e sábias da vida.

O mineral, o vegetal, o animal, o homem, o anjo, todos caminhamos

pelas rotas sem termo, para um único fim: a perfeição!

O primeiro sonha, o segundo sente, o animal sofre, o homem conquista e

cresce, e o anjo sublima-se.

Com a aquisição do livre arbítrio, cada um escolhe o roteiro a perlustrar.

As ações criam conseqüências que, por sua vez, geram efeitos, mais ou menos

graves, apressando, estagiando ou retardando a marcha.

Nos reinos primários da forma, a lei manifesta-se sábia e paciente,

usando as dádivas do tempo em retortas e laboratórios transformistas da

erraticidade. Nas fases inferiores da vida, o princípio anímico caminha com

segurança rumo às escalas mais elevadas. Posteriormente, o princípio

espiritual que despertou do sono letárgico do mineral, descortinou os horizontes

da sensibilidade vegetal, desenvolveu o instinto animal, penetra nos

domínios da mente, dispondo da possibilidade, concessão-divina, para encetar

o avanço pelos trilhos da sabedoria, de que, em grau infinitamente pequeno, já

é possuidor. Essa dádiva pode ser recebida como um empréstimo da

misericórdia paternal de Deus; não é uma aquisição da alma, como muitos

pensam. Do seu uso depende o futuro da sua felicidade pelo tempo e pelo

espaço. Quantos malbaratem essa preciosa bênção em jogos ilusórios, retornam

ao caminho dos recomeços, até à hora, em que se resolvam despertar

para o Ilimitado Amor.

Eu concluía, assim, que ninguém deve candidatar-se ao Reino de Deus,

se não deseja buscá-lo no próprio mundo íntimo. Por essa razão, afirmou

Jesus, é que esse Reino “não vem com aparências exteriores”.

Bendita Doutrina é o Espiritismo, que derrama luzes em abundância.

Ditosos quantos podem, enquanto na vida física, conhecer as láureaS do Além

que lhes estão reservadas após o labor e as canseiras do sofrimento!

Minha filha; Espiritismo significa oferenda preciosa do Excelso Pai,

atendendo às rogativaS de Jesus Cristo, para a felicidade dos romeiros do

mundo. Aproveitar tão alta doação é carregar um fardo, certamente; no

entanto, um precioSO fardo, sacrificando tudo, pela incomum felicidade de

aproveitar o ensejo que, talvez, não se renove em tão próximo tempo.

Pouco importam as dificuldadeS em torno do ideal espiritista. É

imprescindível lutar e lutar muito! O homem, iluminado pela luz clara da

Mensagem Kardequiana, pode ser ridicularizado, nunca porém ridículo;

humilhado, porém, jamais humilhante; perseguido sem, porém, ser perseguidor

abandonado, maltratado, sem jamais abandonar a fé generosa e pura que o

aquece, conduz e anima.

No século da fotografia e das imagens em movimento, do telefone e da

telegrafia, da máquina de vapor, do aeróstato, do submarino... das profecias de

47

Maxwell e da obra gloriosa de Zamenhof, o Espiritismo pode ser considerado

como a maior conquista do homem no campo da Filosofia, equiparando-se,

pela sua harmoniosa amplitude, às Ciências vigentes e se tornando a Religião

essencial.

Com a inteligência esclarecida, podendo examinar melhor os fatos e o seu

encadeamento, quase retornei ao desânimo. Mas, antes que mergulhasse nas

suas águas turvas, evoquei as palavras ouvidas nesses breves dias que me

distanciavam da carne e procurei manter o equilíbrio necessário para o

aproveitamento das horas.

Jesus é o mesmo: ontem, hoje e amanhã — parecia escutar alguém

murmurando aos meus ouvidos. E amparada nessa certeza consoladora,

adormeci, confiante.

48

13

O PASSE

Demorava-me sob as bênçãos da meditação salutar quando o dr. Cléofas

retornou, no dia seguinte, constatando que a noite de repouso me fizera um

grande bem. Fazia-se acompanhar de um rapaz, em cujo rosto a bondade se

espraiava dadivosa.

— Apresento-lhe o jovem Adrião — falou o Médico com um gesto

cativante.

Apertamo-nos as mãos e, envolvidos pelo halo de simpatia recíproca,

escutei o Benfeitor prosseguir, elucidando:

— Trata-se de companheiro que se dedica ao serviço de refazimento

espiritual, mediante a contribuição socorrista de passes.

“Portador de nobres qualidades — informou, solícito, o dr. Cléofas —,

desde há muito se dedicou o jovem amigo ao sacerdócio do amor entre os

enfermos e, conosco, sob as bênçãos de Jesus, atende ao programa da

fraternidade, doando-se integralmente.”

Desculpando-se, delicado e discreto, das palavras de carinhoso estímulo

do velho obreiro, o rapaz, que poderia ter sido um filho muito querido do meu

afeto, acercou-se do leito quente e macio, falando-me com naturalidade

espontânea:

— A visão feliz do abnegado Instrutor enxerga-me com recursos que

realmente não possuo. Aqui me encontro atendendo a imposições do dever.

Trânsfuga da lei, em muitas etapas, sou hoje agraciado com a dádiva de

oportunidades educativas que não posso menosprezar para a minha própria

recuperação moral. E, nesse sentido, tenho aqui recebido as maiores

contribuições para o meu programa iluminativo de ascensão.

“Em diversas ocasiões — e olhou com expressiva vivacidade para o

Médico silencioso e jovial — cheguei a recintos de socorro qual beduíno

perdido e desarvorado, carregando aflições e andrajos, coberto do pó dos

desenganos e ferido pelo sabre impiedoso dos erros ultrizes. Não fosse a

bondade do Vigilante Incansável que me tem conduzido a este Plano de meditação

e trabalho...”

Enxugando uma lágrima que lhe deslizou pela face, continuou:

— ... o infinito amor de Jesus Cristo, Nosso Senhor, porém, tem-me

acolhido, retirando-me do infortúnio de mim mesmo, e essas mãos, que tantas

vezes foram utilizadas para a futilidade e o crime, agora se estão voltando para

a tarefa justa de aplicação sadia, no serviço construtivo.

Silenciando, momentaneamente, continuou, mudando de assunto, sob as

vistas compassivas do Benemérito Médico Espiritual:

— Sei que a irmã Otília, quando na Terra, foi espiritista convicta. Não

desconhece, portanto, o quanto representa em responsabilidade o seu

esponsalício com essa Doutrina, renascimento do Cristianismo primitivo.

Naturalmente, ligada a uma Organização de Assistência Social, traz consigo

créditos que não serão esquecidos, graças aos esforços em favor dos

pequeninos. Todavia, por enquanto, o seu estado perispiritual não difere muito

da situação em que se encontram outros enfermos, aqui igualmente hospitalizados,

dependendo, a sua recuperação, dos esforços envidados na

observância das prescrições que lhe serão ministradas.

— Já falei ao nosso Enfermeiro — explicou o dr. Cléofas — do seu caso e

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quais os recursos que devem ser movimentados para a sua medicação.

— Como é do seu conhecimento — prosseguiu Adrião, com muita lucidez

—, todos os males procedem da mente”, quando desorientada. Assim sendo,

as enfermidades são decorrência natural do mau uso da saúde e,

naturalmente, da desorganização mental. Só as mentes habituadas a

exercícios disciplinares e educativos podem reunir recursos equilibrantes para

a manutenção de uma vida sadia. Já o velho ensinamento dos latinos traduz

essa afirmativa, referindo-se ao corpo são, mantido por uma alma sã.

Animada pela bondade do moço, formulei uma indagação em torno de

assunto de que muito ouvira falar, repetidas vezes, quando encarnada:

— Poderia o bondoso amigo esclarecer-me algo a respeito da Ioga e dos

diversos processos de mentalização praticados pelos esoteristas,

considerando-se os seus esclarecimentos há pouco enunciados?

— Naturalmente — respondeu-me. — Explico-me. A utilização da mente é

o medicamento e a ginástica mais proveitosa para o espírito. Amar, servir,

ajudar, edificar pela superação da comodidade, vencendo os filetes perigosos

que nos invadem, em forma de cólera, tristeza, inveja, queixa, é realizar

exercício salutar. Nesse sentido, o Evangelho é um curso valioso de Educação

Mental, à base do otimismo. Não desejamos aludir à cristalização mental em

idéias nobres e belas, vibrações edificantes e generosas, distantes, todavia, da

ação positiva, real e produtiva.

“Remontemos historicamente a algumas valiosas lições.

“Zoroastro e seu primo Metyoma, quando da compilação do livro sagrado

dos persas — o Zend-Avesta sintetizaram num programa simples o roteiro da

salvação: Pensar com justiça e “aguçar a mente na pedra da experiências”,

sentindo as penas alheias e alegrando-se com as alegrias do próximo; falar

com justiça, fazendo da palavra um meio positivo, combatendo o mal e

defendendo a verdade, ajudando o fraco; depois, porém, de ter aprendido a

pensar bem, a falar com justiça, deve o homem, preparado como está, AGIR

bem.

“Posteriormente Jesus conclamou-nos, no programa singelo do amor e da

caridade: — “a quem te pedir a túnica, dá igualmente a manta; a quem te pedir

caminhar mil passos, segue dois mil”... ao serviço positivo, pela ação valiosa e

nobre.

“Depreendemos que pensamento e ação são as linhas mestras da vida

libertadora, para a felicidade geral da grande família humana. Entendeu?”

— Sim — respondi, emocionada.

— E a Ioga — exclamei, ansiosa —, realiza o aprimoramento da alma,

consoante apregoam os seus aficionados?

— Em verdade — retrucou, atencioso — a Ioga opera modificações

valiosas na alma, graças à austeridade disciplinar dos seus exercícios.

“Fundada na Índia, segundo a tradição, por Patanjali, é um sistema

filosófico que ensina ser o estado perfeito a contemplação, conseguida pela

imobilidade absoluta, o êxtase, através de rigorosas práticas ascéticas.

“Embora o seu grande valor, quando a alma retorna da imersão no oceano

profundo da meditação contemplativa, continua sedenta de novo êxtase, de

nova libertação, não resolvendo, portanto, o indevassado problema da paz.

“Temos observado que o estado beatífico no mundo espiritual varia

profundamente de quanto se acredita vulgarmente. Ninguém contemplará a

Face Soberana por meio de vôos individualistas, nas asas da mentalização. É

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imprescindível resgatar as divisas que a Mãe Terra concede, no ativo processo

de intercâmbio fraterno, ajudando o berço generoso que nos recebeu, a

ascender conosco, igualmente.”

E procurando fazer-se mais compreensível, acrescentou:

— O cristão que se afeiçoa ao trabalho, em favor de todos, guarda

inestimável patrimônio, entesourando preciosas moedas que lhe conferem a

entrada no Reino da Ventura.

E dando novo rumo à palestra, acentuou:

— Iremos atender-lhe à organização espiritual, utilizando-nos dos recursos do

passe, esse admirável auxiliar ao alcance das nossas intenções socorristas.

“Como é sabido — esclareceu, paciente —, no passe movimentamos

preciosos recursos que, infelizmente, entre os encarnados permanecem ainda

inexplorados, embora as luzes que o Espiritismo tem projetado sobre o

assunto. Todos somos dínamos geradores de energias poderosas, consoante a

diretriz dada aos pensamentos. Pela mente, construímos ou derrubamos,

ligando-nos às correntes com que melhor afinamos. Sendo a enfermidade uma

resultante da harmonia do espírito no processo de ajustamento ao dever,

considerando, ainda, as ações pretéritas e atuais, para que cessem seus

efeitos, faz-se necessário anular-lhe as causas. Pela utilização dos recursos da

prece, da paciência e da resignação, acompanhados de trabalho ativo, dispõese

o paciente ao reequilíbrio da mente, pela situação de sintonia receptiva em

que se coloca. Funciona, então, o passe, como medicação benéfica e

estimulante. Daí a necessidade de se ligarem psiquicamente, agente e

paciente, às Esferas Elevadas, para que a permuta de simpatia e entendimento

seja de positivos resultados.

“Busquemos, neste momento, passar da teoria àprática, recorrendo às

fontes poderosas do Bem e suplicando as dádivas da misericórdia divina.”

Calando-se, o jovem amigo quedou-se silencioso e, em breve, parecia em

profunda concentração, elevado aos Céus.

Procurei, igualmente, reunir as energias de que dispunha, e a oração, fácil

e consoladora, fluiu-me à alma.

Oh! minha filha, quanto bem faz à alma esquecer tudo no momento da

prece e banhar-se nas águas benditas da esperança.

A prece é uma ligação de luz que envolve os espíritos em aspiral

ascendente. Rompe abismos e dificuldades e, qual telefone sublime, conduz

tao grau de felicidade, que não é facilmente entendida pelas deduções mentais

em processos comuns. Só aqueles que lhe experimentaram a emanação

dulçurosa nos terríveis momentos da inquietação, podem traduzir-lhe a

concessão divina, ao retornar do mundo metafísico. Apaga preocupações e

anula ansiedades, conforta o espíritO e o mantém confiante.

Em breve sentia-se banhada por branda luminosidade que se desprendia

do compassivO socorrista que continuava envolto na vibração oracional.

Ergueu os braços e, com movimentos rítmicos das mãos, muito

discretamente, aplicou-me os passes magnéticos.

Como se obedecessem à movimentação passista, forças estranhas

sacudiram-me a organização perispiritual e todas as fibras pareciam

penetradas por eletricidade em movimentação. Sentia que da região cardíaca

laços fortemente atados se desmanchavam, oferecendo-me um estado de

libertação. A respiração se me tornava menos torturada e a sensação de dor

diminuiu consideravelmente.

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A aplicação não foi além de dois minutos, após o que, agradável torpor

inundou-me toda, induzindo-me a sono reparador.

Quando despertei, horas depois, respirava livremente.

Adrião, sorridente, informou-me que a mesma operação se sucederia, por

vários dias consecutivos, até que me encontrasse em condições de prosseguir

com a movimentação do esforço próprio, segundo as instruções do dr. Cléofas.

52

14

A COLÔNIA POR DENTRO

Diariamente, às vésperas, antes das orações do anoitecer, o jovem

passista me trazia, com a sua bondade assistencial, elucidações e

apontamentos sobre a água fluida, os passes magnéticos, as vibrações

mentais, a prece e todo um cortejo de valiosos temas que me rasgavam

horizontes ao entendimento, aclarando-me a visão.

A justiça de Deus tornava-me mais amorosa e instruída, desaparecendo

em meu pensamento as falsas conexões à base de tabus interpretativos,

quanto às diretrizes superiores.

Depois de um mês de contribuição magnética freqüente, já me era possível

movimentar-me pela sala singela, interessando-me, mais de perto, pelos

problemas dos demais companheiros hospitalizados, ora em alguma pequena

assistência mais direta, enfim, nessas pequenas coisas tão insignificantes, e

tão importantes entretanto, para quem tem ânsia de recuperação do tempo

perdido e busca iluminação interior.

Verifiquei, tão logo me desembaracei do cansaço e do torpor que me

prendiam ao leito, que o Santuário hospitalar, que me acolhia, longe estava de

ser a decantada “Mansão do Repouso” com que tanto sonhamos na Terra.

A palavra TRABALHO não era apenas um vocábulo, mas sim uma

realidade construtiva e ativa em todos os lados. Os residentes pareciam

divididos em misteres especiais e não me recordo de ter visto, até hoje, um

semblante sequer, onde a inércia se desenvolvesse. Certamente, enfermos de

todos os matizes guardavam o leito por tempo indeterminado. Todavia, a

movimentação dos próprios esforços muito contribuía para o despertar,

libertando-os dos tentáculos porosos da doença demorada.

Aqui e ali identificava rostos sisudos, preocupados; expressões de

saudade e dor entre transeuntes e enfermeiros; todavia, as bênçãos vigorosas

do serviço a que se dedicavam pareciam anunciar-lhes melhores horas, em

próximos tempos. E cientes de que o trabalho é mensagem divina, em

contribuição benéfica, guardavam todos, na expressão do olhar, a presença da

fada Esperança, como mensageira da felicidade plena.

Aclimatada, na Terra, aos labores humildes de limpeza e asseio, oferecime

à irmã Zélia, em dia de grande movimento, para contribuir de algum modo

com os deveres de manutenção da Enfermaria, onde me encontrava,

experimentando, com a sua aquiescência, indizível júbilo.

À medida que era atraida para esse serviço singelo, estranho

revigoramento tomava corpo dentro de mim, entusiasmando-me e fazendo-me

esquecer as preocupações e angústias lancinantes que ficaram no espírito,

com a distância colocada pela morte

Num desses dias de trabalho habitual, enquanto reparava as peças do

leito de um dos companheiros, que se demorava em terrível pesadelo, fui

surpreendida pelo incondicional amigo Adrião, que me animou, bem humoradO

— O trabalho — informou gentil —, é o poderoso elixir de longa vida que

fortifica todas as esperanças e esponja que apaga todas as preocUpaçõeS. A

alma que labora não é colhida pelas malhas das tentações da dúvida e do

medo, ficando distante do barco fraco dos receios. Enquanto revigora, o

exercício do dever bem cumprido estimula energias, antes esquecidas, a

dormitarem na inutilidade. Reabastece a organização psíquica e imprime ao

53

espírito uma razão operante de lutar e vencer, proporcionando a felicidade do

ideal.

E prosseguindo, com entusiasmo crescente, continuou:

— Com Jesus, aprendemos que todo trabalho é honrosa incumbênCia,

constituindo-se concessão utilíssima de elevação para todos. O próprio Mestre,

desde as primeiras horas na Carpintaria de José, onde se exercitava, ensinounos

o melhor meio de valorizar o tempo, em aplicação das horas nos serviços

humildes, como base das grandes tarefas.

“Trabalhe quanto lhe permitam suas forças — estimulou-me com simplicidade

—, sabendo que o trabalho é o melhor medicamento contra a perturbação.

Poupe, por enquanto, as energias mais valiosas, que serão úteis mais tarde e,

pela aplicação sadia dos minutos, seu pensamento adquirirá roteiro disciplinar

indispensável à utilização inadiável do porvir.

“E quando o cansaço tomar suas fibras — arrematou com encantadora

jovialidade —, lembre-se de que o Senhor até hoje trabalha por nós, sem

desfalecimento.

Estava radiante e grata. Concluída a pequena tarefa a que me dedicava,

dispunha-me a buscar a pérgula à porta da Enfermaria, quando o zeloso companheiro

se aproximou de mim, oferecendo-se discreto:

— Hoje é domingo e encontro-me com um saldo de horas livres. Desejo

oferecê-las a você e acredito que seriam de utilidade se as pudéssemos

aproveitar numa pequena caminhada até o parque de repouso, nas cercanias

do Hospital, onde encontraríamos motivos de entretenimento e refazimento

espiritual.

Não me fiz rogada. Ao contrário, exultei de incontida alegria. Senti mesmo

uma grande emoção.

Momentos depois estávamos em plena rua. O movimento fazia lembrar o

das zonas residenciais da Terra, nos dias de repouso comercial. Silêncio

agradável pairava no ar, quebrado somente pelo brando cicio da brisa na

ramagem do arvoredo.

Era minha primeira marcha, além das dependências do pavilhão onde me

encontrava em tratamento e, por isso mesmo, tudo tinha um sabor inusitado e

delicioso. Parecia-me estar no próprio paraíso. Rapazes e velhos, jovens e

matronas trajavam-se com discrição e decência; as mulheres, com leves

túnicas, formavam pequenos grupos; todos passavam conversando na mais

fascinante cordialidade, tocados por emoção muito diversa das intempestivas

paixõeS do desejo.

Demorava-me extasiada na contemplação da manhã fresca, fitando OS

quadros coloridos da natureza que, aos ósculos do dia em crescimento,

mudava as tonalidades de luz na moldura das nuvens, em cambiantes variados

e harmoniosos.

Não cessava de admirar as belezas do caminho ajaezadO de miosótiS e

tufos de violetas perfumadas que serviam de tapete colorido a hortênsias

rosas, azuis e brancas.

Com sorriso bondoso, AdriãO chamou-me a atenção para os transeuntes

que me fitavam alegres, notando a incontida satisfação com que me movimentava,

traduzindo-lhes a minha situação de recém-chegada, como acontecera a

eles próprios em ocasiões passadas.

Após três quartos de hora, aproximadamente, chegamos a magnífico

parque, arborizado, com jardins perfumados, onde algumas centenas de

54

pessoas se agrupavam no mais cativante contentamento.

— Falam de saudades — disse-me o cicerone querido —, planejando

reencontros na crosta, nos dias do futuro.

“A Colônia Redenção, como você sabe, é um reduto de preparação, ou

melhor, um hospital-escola, como informaram, onde os doentes se refazem

aprendendo a terapêutica da alma, em quadros vivos, nos quais são cobaias e

pacientes, laboratório de ensaio e clínica de recuperação, para depois

recomeçarem a luta no abençoado campo que é a Terra, nossa Mãe

imcompreendida e inesquecida.

“Daqui podemos valorizar devidamente a existência planetária, na

indumentária da carne. Enquanto nos demoramos na vestidura física,

desrespeitamos a concessão do Senhor entre revoltas injustificáveis e paixões

cansativas. Depois, quando despertamos para os valores imperecíveis, nossas

atenções se voltam desesperadamente para o plano material, onde a felicidade

nos acena, através das oportunidades de reparação. A Terra é a formosa

escola de caráter e elevação.

“Todos que aqui chegam — continuou com expressiva tonalidade na voz

— carregam débitos para com o planeta que lhes serviu de berço, propiciando

o começo na imortalidade. Por isso mesmo retornarão ao cadinho das

transformações morais. Ninguém pleiteie racionalmente a entrada no Céu,

antes do concurso santificante da experiência terrena. Ninguém aguarde

felicidade pessoal e ascensão, enquanto seus pés estejam presos a

compromissos no Orbe.

“O nosso Céu é conseqüência da felicidade de muitos a quem

azorragamos por tempo sem conta, nas folhas da história, em épocas

passadas, não mortas, todavia.

“A bondade do Excelente Amigo, por amor, concede-nos a evolução

através das miríades de pousadas que o carinho de sacerdotes lídimos da

Caridade construiu à semelhança desta, onde o Seu calor se encontra próximo

da nossa frieza e o Seu olhar magnânimo nos segue sem cessar.

“A passagem evangélica, (*) referente às muitas moradas na Casa

Universal do Pai, também alude a

(*) João capítulo 14, versículos 2 e 3 (Nota da comunicante).

estas estâncias de socorro, onde a alma escala o seu percurso ascensional

evolutivo...

Nesse momento, um casal de velhinhos, em cujos semblantes a

esperança parecia residir, acercou-se, sorridente.

Tratava-Se do casal Romero, estudantes da Reforma Luterana, e que,

durante O ultimo estagio na Terra, se ligaram à Igreja ProteStante. O Sr.

Romero desencarnara primeiro, por volta de 1932, e demorara-se na Colônia

Redenção enquanto se refazia do túmulo. Despertando para a luz meridiana do

Evangelho, constatando em si mesmo a imortalidade da alma e renovando

conceitos em torno da vida, procurou, em constantes tentativas mediúnicas,

despertar a companheira para o movimento espírita, vigente e florescente nas

terras do Brasil.

Aferrada, porém, à letra bíblica, Dona Aurora não abria uma fresta aos

insistentes alvitres do companheiro desencarnado, continuando no estreito

corredor literal, esquecida de que “a fé sem obras é morta” consoante a feliz

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observação de Tiago, o Apóstolo intransigente. Desencarnando, uma década

depois, chegara àquela Casa de Benemerência, escrava da pretensão

religiosa, exigindo o Céu a que pensava ter feito jus...

Longo foi o seu processo de reajustamento e despertar. Todavia, crente

honesta e sincera, ao aperceber-se das diretrizes novas que o evangelho lhe

apontava, candidatou-se ao encargo mediúnico, em dolorosa provação, no seio

de uma família ligada a uma das Igrejas Reformadas, para onde retornaria em

breve, pelo processo santificante da reencarnação.

Rapidamente, sentimo-nos os quatro fortemente afins e interessados pelas

questões da Doutrina Espírita — poderoso norteador de almas —, conduzindo

a Senhora Romero a conversação para a minha última experiência terrena,

após o que, igualmente emocionada, me narrou os fatos citados.

Demoramo-nos reunidos até horas avançadas, quando o dia, pleno e

estuante, dominava a paisagem, coroando a fraternidade naquele recanto

aprazível, com a mensagem dourada de sua benéfica luz.

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15

NO DEPARTAMENTO ESPERANÇA

Preparávamo-nos para as despedidas quando a Senhora Romero nos

convidou para breve repasto no Departamento Esperança, onde, às catorze

horas, seria pronunciada uma conferência sobre a língua espiritual-internacional

— o Esperanto —, para interessados nos problemas das comunicações

entre as almas.

Dispondo, realmente, de tempo, o moço Adrião aquiesceu à gentileza e

rumamos para o quarteirão verde onde se erguia imponente edifício de linhas

clássicas, ornado de altas colunas.

O casal Romero, demonstrando conhecer a zona em que se localizava o

prédio, conduziu-nos por alamedas arborizadas que terminavam em belos

jardins. No centro, verdejante estrela pentagonal, de fícus, em alto relevo,

bordada de miúdas flores douradas, arrancou-nos uma expressão de

admiração à sua beleza.

— É a estrela que identifica o Esperanto — informou o Sr. Romero —,

tecendo entusiásticos encômios à língua universal.

Repuxos caprichosos derramavam graciosos fluxos dágua formando no ar

desenhos geométricos, animados de movimento, entre canteiros artisticamente

desenhados e cobertos de gerânios, rosas, cravos...

Galgamos a escadaria de mármore alvo, marchetado de fragmentos

verdes que lhe davam comunicativa beleza.

Rumamos para amplo refeitório onde um grupo de gárrulos jovens, aos

pares, se comunicavam em algaravia contagiante.

Sem que eu pudesse compreender-lhes as palavras, o anfitrião que nos

convidara explicou tratar-se de um grupo de almas que se candidatavam à

reencarnação em países sul-americanos, principalmente no Brasil, e que ali se

encontravam em estágio de aprendizagem dos futuros idiomas pátrios, bem

como do Esperanto. Conduziriam o emblema verde e o símbolo do Cordeiro,

transmitindo às crenças das suas novas pátrias a mensagem do Espiritismo

Consolador.

Dirigimo-nos a uma mesa bem disposta, e, após a apresentação da

carteira de Esperantista, o Sr. Romero, sem dificuldades, conseguiu que

fôssemos servidos de agradável repasto.

Feita a refeição, demoramo-nos a percorrer as dependências do amplo

edifício e, surpresa, verifiquei tratar-se de um Educandário de grandes

proporções, à semelhança das Universidades da Terra.

Impressionou-me, sobremaneira, a Biblioteca de amplas estantes

abarrotadas de livros, na Língua Internacional, arrumados e catalogados, com

lombadas brilhantes.

Esclareceu-nos o Sr. Romero que ali estavam todas as obras em

Esperanto que se escreveram na Terra e outras que seriam oportunamente

ditadas por via inspirativa, para o deleite do mundo intelectual.

— Embora o Esperanto não tenha pátria nem seja uma língua de caráter

religioso — informou o cicerone —, será, no futuro, o grande mensageiro do

Espiritismo para a Humanidade, como já acontece no Brasil com as primorosas

traduções que, de algum tempo para cá, se vêm fazendo com as Obras da

Codificação e outras psicografadas.

“Alguns dos livros em Esperanto que hoje se encontram na Terra já eram

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aqui conhecidos, como sido escritos por ex-alunos do Educandário, hoje

reencarnados...”

Aproximamo-nos do Auditório. Era um amplo salão de linhas austeras com

quatrocentos assentos, aproximadamente.

À hora aprazada, depois de algumas músicas cantadas em Esperanto,

assomou à tribuna simpático cavalheiro de meia-idade, que iria proferir a

conferência anunciada.

— É velho espiritista mineiro, desencarnado há algum tempo —,

esclareceu a Senhora Romero, sentada ao meu lado. — Dedicado trabalhador

da Causa do Amor Universal, demorou-se, enquanto na Terra, ao estudo e

prática do Espiritismo e do Esperanto, desfraldando muito alto a bandeira da

Fraternidade. Aqui chegado, continua o mister de difundir os postulados

esperantistas e espiritistas, oferecendo o melhor labor à preparação de almas

para as grandes jornadas do futuro.

É-me impossível, por circunstâncias de vária ordem, traduzir as

magníficas expressões do inspirado orador. A palavra fácil escorria-lhe dos

lábios aos nossos ouvidos, como música bem modulada. Entre outros

enunciados esclarecedores, assim se expressou o conferencista:

— Após os tumultuosos dias que culminaram, na Erança, com a eleição

de Carlos Luís Napoleão Bonaparte para presidente da República, e que,

posteriormente, degeneraram na sua proclamação a Imperador, o mundo

receberia, através de Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, em Paris, e na

cidadezinha polonesa de Bjalistok surgia a alma luminosa de Lázaro Ludovico

Zamenhof. Descendo ao vale humano logo após as sanguinolentas lutas

levadas a cabo pelo insolente Imperador francês com o imenso Império

Moscovita que então dominava a Polônia, tantas vezes dividida entre a Áustria,

a Prússia e a Rússia, Zamenhof conduziria a flâmula ardente do ideal da

compreensão humana, para desfraldá-la, mais tarde, vestida da mensagem

imperecível do Esperanto, o demolidor dos bastiões lingüísticos. Do seio da

escravidão desse povo sofredor, que vivia no tumulto de línguas e dialetos que

reunidos somavam a mais de duzentos, o mundo receberia, como recebeu, a

15 de dezembro de 1859, o Missionário do Idioma Internacional.

“Constrangido por uma série de circunstâncias de meio ambiente e obsoletas

idéias, Zamenhof sentiu a inspiração banhar-lhe a alma de desbravador, e,

ante as injustiças que seus olhos diariamente contemplavam, na forma de

chicote no dorso nu das gentes de sua raça (judia), compreendeu a imperiosa

necessidade de romper as barreiras que separavam os homens, as raças, as

religiões, através de algo que fosse comum a todos, como auxiliar

indispensável à Fraternidade que lhe fascinava a alma e o coração.

“Assim, entre longas meditações e demorados exercícios, conseguiu, com

inauditos esforços, evocar, arrancando da tela da memória, como em processo

quase adivinhatório, os vocábulos, raízes e fonemas, das línguas mais faladas

no mundo, construindo “o Esperanto”, que significa: “o que espera”, atestando

sua robusta força de confiança no futuro...

E mais adiante:

— Depois de inauditas dificuldades — prosseguiu o erudito orador —,

retornando de Moscóvia para onde rumara a fim de doutorar-se em Medicina,

teve a imensurável angústia de saber que seu pai, zelando pelo bom nome da

família, incinerara aqueles papéis que, acreditava, fossem apenas o fruto

imaturo do cérebro incendido de jovem inexperiente e entusiasta.

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“O gigante, porém, não tomba ante dor tão grande. Antes, levanta-se e

recompila, com mais acendrado amor, a obra monumental que o imortalizou

nas sendas do porvir. Com 28 anos de idade, lança seu primeiro livro, filho de

incansáveis labores, e o mundo desperta para uma nova era. Zamenhof

informaria, mais tarde, que a atitude de seu pai somente lhe conferira ensejo de

revisar, aprimorar, fortalecer o Esperanto, sendo, portanto, um grande bem

antes que um mal.”

O versado conferencista prosseguiu, fascinante, tecendo comentários em

torno do Esperantismo, encerrando sua memorável narrativa com a seguinte

peroração:

— Estudar o Esperanto, ensiná-lo e amá-lo é contribuir para a felicidade

dos povos, construindo a fraternidade no imo de todos os seres.

“Sintonizados, pelo co-idealismo esperantista, com nossos irmãos de

outras cores religiosas, alarguemos os domínios da Tolerância preconizada por

Allan Kardec, amando e servindo a todos, indistintamente, aprendendo, pelo

caminho da humildade, a respeitar todos os credos como roteiros iluminativos

da alma, ante a nossa Doutrina de fé impersonalizada.

“Ergamos alto a verde bandeira do nosso Ideal, como lema de união e

entendimento!

“Ridicularizados, continuemos!

“Injustiçados, prossigamos!

“Retendo nalma a certeza de que aquele “que espera” alcança,

avancemos imperturbáveis. Ensinando e desculpando, como aquele que,

vencendo o próprio “eu” vence as barreiras da intolerância e do vício,

favorecendo a Humanidade com a melhoria pessoal, ajudemos o mundo com

as bênçãos dadivosas da Esperança!”

Encerrada a palestra, demandamos o jardim.

Guardamos no íntimo, como jatos de luz que nos davam melhor visão, as

palavras ouvidas. Vibravam em nossos ouvidos os últimos hameios da

agradável melodia entoada por todos, ao encerramento da reunião.

Recordava-me de ter escutado falar, vagamente, sobre o Esperanto, enquanto

estivera na Terra. Jamais supusera, entretanto, que essa reunião de fonemas

fosse a Grande Mensagem de Jesus ao mundo sedento de compreensão.

Ao nos despedirmoS, reconhecidoS, do casal Romero, retornamos à

Enfermaria, jubilosos, Adrião e eu.

59

16

O TEMPLO DE COMUNHÃO COM O ALTO

Filha do meu coração, enquanto me demorava na Terra, recordo-me de ter

ouvido, em versos, o roteiro da felicidade, mais ou menos assim traçado: “essa

felicidade que supomos...

toda arreada de dourados pomos, e nunca a pomos onde estamos

E muita vez me perguntei se, em verdade a felicidade existia. Hoje, após a

claridade da sepultura, posso afirmar-te que a felicidade existe e encontra-se

ao alcance de quantos a queiram fruir. Sucede somente que, enquanto a

buscamos fora de nós, não a encontramos, porque a felicidade está dentro de

nós, onde raramente a buscamos.

Para o homem comum a felicidade resume-se no problema da posse.

Possuir ou não, ser dono de algumas moedas ou escravo de alguns milhões,

eis o que comumente se acredita como felicidade. Alguns anseiam pelo gozo

que a posse pode comprar. Outros se tranqüilizam com o que a posse já

adquiriu. No entanto, tem-se constatado que não são felizes os que possuem a

riqueza. A felicidade não é uma conseqüência do que se tem ou se deixa de

ter. É uma construção íntima que depende da nossa atitude de encarar o que

temos ou o que deixamos de ter. Muitas vezes, quem possui algo, torna-se

dominado pelo que tem, assim como outros, que nada têm, se tornam escravos

desse “nada ter”.

Quando Jesus nos falou da “pureza de coração”, ensinou-nos a adquirir

tesouros inalienáveis do espírito, com os quais o homem é feliz.

Essa realidade, eu a compreendia agora. Embora as circunstâncias em

que transcorrera minha existência física, podia, lentamente, ir adquirindo a

felicidade tão sonhada, através do descobrimento da faculdade essencial da

alma: o amor. Com o amor podemos aprender a ser puros de coração,

exercitando essa pureza nas ações que o amor impõe.

Na Colônia, entre os demais sofredores, descobria o Amor de Jesus

vestindo almas enregeladas pela indiferença, consolando corações revoltados,

socorrendo espíritos desanimados. E um alento novo me animava iluminando

minhas horas de meditação e prece.

A cordialidade dos companheiros ensinava-me a fraternidade, exercitando

meu espírito no roteiro da compreensão. O cooperativismo era uma realidade

vibrante, entre todos. A semelhança de abelhas operosas em colmeia

disciplinada, todos trabalhavam jubilosos. O tempo transcorria cheio de

esperança que se renovava.

No domingo seguinte, o amigo Adrião, em nome da Senhora Zélia, veio

buscar-me para as orações em conjunto no Templo de comunhão com o Alto.

Eram quase dezoito horas e o Sol derramava sua luz sobre a Terra, em poente

dourado. A natureza emoldurava-se do ouro esvoaçante e púrpura,

transformando-se numa tela de indescritível beleza.

Em breves minutos, fizemos o percurso entre o jardim de repouso e a

praça Central, em cujo logradouro se erguia o Santuário. Esperava-me o casal

Romero, que se tornava interessado no meu progresso espiritual e na

adaptação à Colônia.

Guardava ansiedade crescente na medida que chegávamos ao recinto

reservado às orações coletivas. Estava acostumada a freqüentar redutos de

orações e igrejas, na Terra; todavia, a oportunidade que se me apresentava

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era, em tudo, diferente dos ensejos antigos. Conhecia mais de perto o valor da

prece e podia aquilatar os benefícios poderosos dela decorrentes. Além disso,

a ocasião oferecia-me nova oportunidade de comunicação com grande número

de Espíritos que, à minha semelhança, se encontravam em processo de

reajustamento e aprendizado.

A visão do Templo, de linhas austeras, destacava-se dos demais pela

alvura das paredes e beleza clássica. Quadrangular, era de grandes

proporções, fazendo lembrar velhas construções gregas.

Suaves harmonias envolviam a tarde em crepúsculo.

Largo hall cercado de colunas alvinitentes abriase majestoso para o

interior.

Misturando-nos aos grupos que avançavam pelas escadas brancas, nele

penetramos e aos meus olhos ansiosos desdobrou-se a visão, imponente pela

sua beleza, da Grande Casa de orações. Silêncio eloqüente dominava o

recinto, embora se encontrasse quase literalmente lotado. Agradável sensação

de bem-estar se comunicava entre todos, infundindo profundo respeito.

Adrião, afeito ao culto da prece no austero recinto, conduziu-nos, com

prestimosa bondade, às poltronas laterais, donde podíamos descortinar todo o

panorama. Era, sem dúvida, um dos celestes departamentos reservados ao

abastecimento das almas que granjearam méritos nas romagens sucessivas.

Enquanto assim eu pensava, o carinhoso amigo, que parecia comunicarse

com os meus colóquios íntimos, interrompeu-me as conclusões apressadas

e, sem afetação, no tom familiar que o caracterizava, esclareceu:

— Sem dúvida, minha irmã, todo lugar, em qualquer parte, reservado ao

Apostolado do Bem, é um departamento da Mansão Celeste. Mesmo nas regiões

mais primitivas e incultas, constatamos a augusta bondade de Nosso Pai,

que se utiliza de todo o material para a assistência misericordiosa das almas.

Aqui é a disciplina educadora, noutra parte é o recomeço coercitivo, mais longe

são os sofrimentos em admoestações constantes.

“Este recinto é um santuário reservado ao culto da prece, onde podemos

comungar com as Esferas mais Elevadas; no entanto, é igualmente reduto de

meditações, escola de aprendizagem indispensável, onde recolhemos material

doutrinário para a devida utilização, oportunamente.

“Como é sabido — continuou, pausadamente —, as telas da memória tudo

recolhem, guardam, arquivam, selecionando ruídos e vibrações, para um dia

devolver ao consciente, no devido lugar e na legítima acepção em que foi

catalogado. Muitas vezes, padece-se de perda das lembranças. No entanto tal

fato, de caráter facilmente compreensível, é conseqüência do mau uso da

faculdade retentiva, em vidas pregressas. A memória exercitada na astúcia

política dos interesses imediatistas ou utilizada para recordar o “lado mau” das

pessoas e fatos, perde a sua função nobre e enseja o crescimento de males

que virão atormentá-la, mais tarde. Apesar disso, nada se perde; e como o

espírito somente evolui pela prática e pelo exercício das virtudes, em múltiplos

embates, a memória guarda as aquisições valiosas para as horas próprias da

ascensão.

“Os apontamentos aqui recolhidos — continuou com naturalidade

fascinante —, pela nossa ansiedade, incorporam-se ao patrimônio de que já

podemos dispor, ampliando ou esclarecendo os conhecimentos adquiridos para

engrandecimento dos nossos recursos. Muitas lições, aqui ventiladas,

recordam nossas quedas e fracassos, gritando alto em nosso espírito o apelo

61

para as repetições reparadoras. Entretanto, a nossa Colônia é ainda Casa de

Recuperação — mais hospital de emergência — onde a vigilante caridade do

Céu recolhe desequilibrados que, se deixados no orbe a pervagar, entrariam

em afinidade com encarnados, sobrecarregando-os de dolorosos problemas,

além dos que, por Lei purgativa, lhes cabem no reajuste de si mesmos...

E encerrando os esclarecimentos, oportunos aliás, ratificou os

argumentos, informando:

— Constitui-nos bênção imerecida, cada encontro sob a abóbada

acolhedora que ora nos agasalha.

Só então olhei para cima e notei, surpresa, que o teto era realmente

abobadado, rompendo-se em linha circular quando próximo à tribuna reservada

ao parlamentário, situada sobre estrado atendido por seis degraus. Podia-se

então distinguir uma pérgula ornada de rosas trepadeiras que bebiam as

dádivas da noite que se avizinhava.

Suave perfume brincava no ar, carregado por ventos brandos.

Nesse momento ouvimos o canto coral que preparava o ambiente para as

orações. Ali se encontravam criaturas que pertenceram a várias correntes religiosas

da Terra.

Quando as vozes se quedaram, verifiquei que a emoção que eu

experimentava era generalizada, porqüanto muitos choravam discretamente. A

esse tempo, respeitável ancião, envolto em alva túnica, debruada de azul,

recordando venerável sacerdote de épocas mui recuadas, assomou à tribuna,

ante a vibração de simpatia geral.

— É o irmão Policarpo — murmurou Adrião, ao meu ouvido.

Com pausada voz, vibrante e melodiosa, começou o Instrutor:

— Irmãos, muito queridos,

seja conosco a paz do Cristo a Quem temos a honra de amar e servir.

“Entoemos nosso cântico de júbilos por nos encontrarmos na oficina

redentora onde somos convidados a forjar, com sacrifícios renovados, a

felicidade antes malbaratada, por imprevidência e precipitação.

“Nossa condição atual de Espíritos desencarnados, embora a

diversificação de rotulagem religiosa, não difere muito do que fomos: nem

anjos, nem demônios, mas homens, almas em aprendizagem segura, apenas

despojadas da carne.

“A matéria que deixamos recentemente e que, durante algum tempo, foi

motivo de queixas e imprecações, é o nosso abençoado campo de luta.

Ninguém ascenderá sem o resgate com as sombras do passado, na Terra.

Embora as ânsias de evoluir em alguns e a saudade cruciante em outros, a

reencarnação é-nos ainda bendita oportunidade de evolução, através da qual

espalharemos o cimento divino no solo das próprias cogitações para a

construção eterna.

“Por mais procuremos esquecer, ainda somos aquelas almas que ouviram

as mensagens celestes pela boca da iniciação esotérica, na recuada Índia, no

longínquo Egito, na remota Caldéia, na antiga florescente Israel, abandonando

imediatamente as instruções recebidas, descendo ao seio dos grandes rios,

distendendo fronteiras de guerras, saqueando e matando, em nome de

mentirosas hegemonias políticas.

“Emocionados junto aos venerandos mistagogos, fascinados pelas

revelações de Brama aos richis, deslumbrados ao clamor das Vozes nas bocas

de intérpretes da Mensagem, tudo esquecíamos na ânsia do poder e da

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dominação. E depois do Mártir Nazareno, quantos continuamos na mesma

tormenta de antes?

“Pelas sendas da cobiça ampliamos o campo de batalha, invadimos lares

honrados, poluimos famílias inteiras, dizimamos cidades... Cobrindo o pó das

sandálias de Átila, Alarico, Gengis Khan ou, antes deles Alexandre, César...

procuramos matar a sede de dominação, com o sangue dos vencidos. E até o

momento, vibram, em muitos de nós os monstros da animosidade, aguardando

apenas o instante de crescerem, escravizarem, destruírem.

“Não tenhamos a louca pressa da libertação impossível. É enganosa a

felicidade solitária, enquanto vítimas e adversários de nossos Espíritos gemem

em regiões desoladoras, imantados a ódios seculares ou atados a postes de

dor inenarrável, suportando atrozes padecimentos, devastados pela ânsia da

vindita, aos quais temos de oferecer o concurso da nossa renúncia salvadora.

“A serenidade, que ora nos visita, representa uma trégua em nosso

campo armamentista. E uma contribuição da Misericórdia de Acréscimo, do

Conquistador Inconquistado, que nos possibilita o ensejo de aprender para

reparar, proporcionando-nos os instrumentos do amor para o refazimento dos

caminhos destroçados. Utilizemo-nos de tais graças e, no exercicio da

meditação, esforcemo-nos para a realização mental de elevados ideais na

matéria, a fim de que, ao soar o apelo de chamado ao retorno, não apresentemos,

vazios de sacrifícios, os celeiros de nossas disposições.

“Não aguardemos, porém, quando de partida para o terreno a recompor,

comodidade sem privações nem provações, amparo do entendimento, cooperação

da ternura, acompanhamento da felicidade, recompensas a que não

podemos aspirar.

“O lavrador que se dispõe à sementeira, primeiramente lavra o campo em

fadigas incessantes, sofrendo, com as dores da terra, muitas dores. Depois,

quando o solo está preparado, pensa em lançar sementes.

“Assim também, não procuremoS lançar as se-mentes das nossas boas

intenções, antes do trabalho de destocagem e remoção de obstáCuloS. Os primeiros

tempos nunca são fáceis. As grandes noites não permitem, aos que

nelas vivem, a possibilidade de agradecer os primeiros jatos de luz. Estes,

antes de beneficiarem, cegam aqueles que estão desacOstumados à sua

claridade, produzindo choque.

“Os grandes ódios, cercados do cortejo de vinganças e revides, não

podem receber o penso medicamentoso do entendimento e do amor, e

submeter se rapidamente.

“Reparação traduz participação.

“Reparar o passado é sofrer-lhe as conseqüências.

“Nossas vítimas ainda sofrem e, estando conosco no caminho, em cada

gesto nosso recordarão das traições, hipocriSiaS, armadilhas doutrora, revidando,

contra o nOSSO carinho, com a rispidez, com a cólera... Não estando

capacitados para um perdão que lhes foi negado, quando o suplicaram, não

nos podem amar, e vêem-nos como lobos rapaces, vestidos de mansos

cordeiros. E, de certo modo, têm razão...

“Deste, como de outros redutos de refazimento, diariamente partem

viajoreS aos milhares, levando as marcas de seus compromissos com a vida

incessante. Outros chegam desolados, carregando dores, sob indescritíveis

flagelações.

“Alguns seguem e tremem à frente da expectativa feliz. Outros retornam

63

como náufragos recolhidos, em desespero, nos escolhos da insensatez, no mar

proceloso dos desequilíbrios. Vários, logo se encontram religados ao fardo

material, desrespeitam os laços de santificante compreensão, reatando liames

escravizantes, em afeições à base da ilicitude, retornando aos braços

fantásticos do Moloc destruidor, junto de quem se comprazem, loucos. Afinamse

por invigilância a antigas afeições de desastrosos avatares, seduzidos pelo

contato com entidades malevolentes e irresponsáveis, para despertarem, mais

tarde, entre a insânia e a selvageria, adiando, indefinidamente, o processo de

sublimação. Atravessam, então, acerbas expiações, acolitados pela lixívia do

tempo, que através de milênios lhes reparam as arestas, dispondo-os

novamente para os recomeços, exatamente nas mesmas condições e

circunstâncias em que fracassaram. E os insucessos se repetem...

“Ninguém burlará a Lei. Ela segue vibrante, co-fosco, no afã crescente de

ajudar-nos, mas também de fazer justiça. Alma alguma será atendida em circunstâncias

especiais.

“Não existem duas estradas: a de escabrosas veredas para uns, e outra

alcatifada de conforto para outros. Todos seguirão o mesmo rumo, construindo

o futuro com as atuações do presente. Não há para onde recuar.

“Quando desejaremos, por fim, librar acima das vicissitudes? Só Deus o

sabe!

“De Jesus, nosso Modelo, temos advertências gritantes, no seu

Testamento de luminosos alvitres.

“Guardamos nos refolhos dalma o exemplo que marcou a História,

beneficiados que ainda somos pelo calor da Sua luz e pela compaixão

infatigável do Seu coração.

Ouvimos ainda a Sua voz, de mil modos, no coração e na mente, e no

entanto permanecemos aguardando, cansados aparentemente, à espera de

que Ele volte a morrer para nos animarmos ao trabalho e à ascensão. Será,

então, crível que o Mestre desça novamente aos homens, apresentando-Se

com a indumentária física, para refazer a via do Matadouro?

“Não, meus irmãos, não é necessário!

“Recordemos que o Senhor jamais se apartou de nós. Seu ensinamento é

luz em nosso caminho, aumentando-nos as responsabilidades, principalmente

quando esposamos qualquer rota de fé, nos diversos departamentos do

Cristianismo.

“A Mensagem do Cristo permanece repetindo, incessantemente: “Buscai e

achareis...”

“Que mais desejamos? A Boa Nova não é apenas uma notícia a mais na

História Universal. E da História, todavia, muito maior do que a História dos

tempos.

“Além de notícia-lição de despertamento é, igualmente, via libertadora. E

nisso difere de todas as notícias chegadas ao mundo. Concita o homem a

erguer-se, sacudir o pó do comodismo, reunir ferramentas para a realização e

partir resoluto.

“Antes da vinda do Mestre, acreditávamos no arrependimento inoperante e na

compra dos favores celestes mediante oferendas e sacrifícios que atendiam

apenas a sede de espíritos infelizes que se compraziam com a ignorância e a

estimulavam. Com Jesus, todavia, aprendemos que o sacrifício “que mais

agrada a Deus” e o da própria imolação pela renúncia pessoal, e da luta

iluminativa, em favor de todos.

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“A busca referida pelo Evangelho é veemente convite ao trabalho e não à

procura ociosa.

“Quem se erga resolutamente, enfrente os fantasmas que giram em torno

de seus ideais e vença os óbices, terá encontro marcado.

“Guardemos, assim, no espírito ansioso, o desejo de buscar a Vida

Superior, vendendo as valetas do “eu” enfermiço, e, certamente, a Vida Maior

será encontrada, favorecendo-nos com a paz dos justos e a felicidade dos

eleitos.”

Calou-se o ancião venerando. Todos guardamos solenemente as

preciosas palavras no espírito. Sentia-se a geral preocupação, no ar, misturada

àquele senso de responsabilidade que é apanágio das almas em

despertamento, sob o aguilhão da dor.

Alguns, como eu, emocionados, chorávamos, recordando, talvez, a

condição de náufragos ali acolhidos.

Em seguida, jovem pucela ergueu-se e melodiosa harmonia encheu o

recinto de vibrações dulçurosas. Com surpresa, reconheci Susana.

O venerando velhinho proferiu a prece que lhe brotava dos lábios e do

coração, como lírios da terra fértil das emoções e desatavam, em cascatas,

vibrações renovadoras.

Flores em forma de taças, transparentes e coloridas, voejavam no ar,

como borboletas, caindo abundantes. Ao mais leve contato, desmanchavam-se

suavemente, penetrando nos poros.

No alto brilhavam as estrelas como olhos de anjos engastados na cúpula

do firmamento.

Estava encerrada a reunião.

Abandonamos o abençoado auditório e, silenciosos, retornamos ao seio

dos nossos agrupamentos.

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17

OUVINDO E APRENDENDO

Minha filha,

somente poderás saber como são consoladoras as promessas do amanhã,

através das atividades da hora presente, quando as dirigires a elevados

objetivos. Aproveitar o tempo, com sabedoria, é muito expressivo. Raramente

compreendemos a sua legítima valorização.

A vida espiritual é muito semelhante à corporal, muito embora, como disse

esclarecido companheiro, “a vida daí não seja semelhante à daqui”. Todavia,

no mundo da erraticidade, o Espírito pode adquirir elucidações e ensinamentos

que não pode desdenhar, à vista da preciosidade de que são portadores. Enquanto

caminhamos na carne, não dispomos dos cuidados especiais,

necessários à observação dos fatos, situando-os nos devidos lugares, como

doações celestes a nossos espíritos sequiosos das mensagens que nos são

dirigi-das, transferindo-os para o próximo e jamais aceitando-os como roteiro

para nós mesmos. Na vida espírita, porém, isso não é possível, porqüanto,

despertos para a verdade e sedentos dela, procuramos, em cada

acontecimento ou narração, aparentemente sem importância, o que nos possa

ser útil, de modo a apaziguar os conflitos íntimos e diminuir as aflições do arrependimento.

Dentre essas lições silenciosas, a que mais me tem falado é a do trabalho

humilde e significativo que me coloca em frente de mim mesma, desnuda de

aparências e formalidades, ensej ando-me acuradas meditações sobre a

expressão do Mestre: — “e o Pai até hoje trabalha

Recordo-me, hoje, de haver lido, quando na Terra, que “o trabalho ainda é

a melhor forma de fazer o tempo passar”, o que, realmente, tem muita significação.

Não é meu desejo dizer que se deve encontrar no trabalho um meio de

libertação do tempo, fazendo-o correr, mas, exatamente o contrário: fazer o

tempo passar, com o auxílio do trabalho, implica em aproveitamento nobre

desse tempo.

Encontrei no trabalho, como disse, um verdadeiro lenitivo, minha filha. No

entanto, tal lenitivo não estava nas grandes realizações e sim no trabalho singelo,

de pouca valia, de pequena monta, cuja obra ninguém vê, que não opera

resultado imediatamente, nem apresenta benefícios facilmente identificáveis.

Tenho-me dedicado aos trabalhos de experimentação e aprendizagem,

aos serviços de auxílio e de limpeza, da compaixão e da prece e,

principalmente, da “gota dágua”, servindo nessas mil pequeninas coisas.

Comentou-se, recentemente, no Círculo de orações, quanto ao valor das

pequenas coisas, dessas realizações quase sem valor, e um mundo novo se

abriu ao meu atônito entendimento.

Velho trabalhador da Seara de Jesus, na Terra, apresentou, nessa

animada converSação, aquilo que denominava como “minhas humildes

sugestões” em torno do importante assunto, com inflexão de carinho na voz:

— Nas coisas mínimas — iniciou ele a conversação edificante — está a

grandeza das máximas. O Universo, como patrimônio do átomo; e este, como

filho da energia. Tudo gravita dentro de nós e fora de nós como resultado da

partícula invisível, em graciosos movimentos de atração, coesão e repulsão.

E descendo as suas observações a assuntos mais comunS, asseverou:

—O discurso brilhante é o resultado da palavra que se arrima a outra

66

palavras em arranjos graciosos.

“A palavra burilada é nascida da sílaba modesta que se ampara noutra.

Esta, por sua vez, é filha da letra que renuncia a individualidade e se liga a

outra, para contribuir no conjunto.

“O pão suculento e apetitoso, saindo do trigo mergulhado na terra

silenciosa e escura; a estrada confortável, por onde a comodidade roda,

acolchoada em automóveis de luxo, como patrimônio da pedra pontiaguda que

se submeteu à máquina pesada, ou do asfalto de desagradável odor que se

solidariza com o solo, em União valiosa; o ar que se respira, a água que se

bebe, SãO expressões grandiosas das pequenas coisas, nas grandes

realizações.

“Nas cidades, o repouso da sociedade depende da vigilância de anônimos

servidores noturnos.

“A saúde é amparada, graças às mãos que coletam lixo.

O banditismo e o crime reeducam-se em Colônias Agrícolas Penais sob a

assistência de homens que renunciam aos prazeres das vias movimentadas,

na condição de guardas e zeladores.

Da mesma forma, o farol derrama advertência, na noite escura, em

avançadas pontas de terra ou ilhotas esquecidas nas costas marinhas,

assistidos pelo sacrifício de alguns homens sem nome.

“A dama embriagada de vaidade que volteia nos salões festivos, coberta

de sedas e tules, não recorda a operária que, talvez chorando sobre o rico

vestido, ao peso de amarguras e problemas, foi a realizadora da obra que lhe

adorna e embeleza o corpo.

“A estátua reluzente, que imortaliza em mármore as grandes vidas, guarda

o nome do escultor, mas esquece o pedreiro humilde que lhe preparou a base

com barro modesto, sustentando-a na praça.

“O Hotel luxuoso, onde a vaidade se exibe, mantém a nobreza do nome,

felicitado pelo silêncio de arrumadeiras diligentes e submissas, bem como de

modestos limpadores de pratos onde as iguanas desfilam.

A jóia que fulgura em pedantif adornado, reluzindo, não conserva o nome

daquele que, em renúncias e imposições continuadas, demorou no garimpo,

talvez, a existência inteira.

“Enfim, a proliferação da vida vegetal, através do minúsculo pólen, e o

homem, surgindo no pequenino óvulo...”

E sorrindo, arrematou com agradável humor:

— A grande caminhada nasce no primeiro passo; o tecido se origina no fio,

o corpo humano na célula, assim como todos os corpos e o Universo

incomensurável na vibração amorosa de Deus.

“Podemos esquecer as pequefliflas coisas e as coisas humildes. Nunca,

entretanto, embora desrespeitando-as, dispensá-las.”

Na conversação da nossa Enfermeira, na arrumaç ão dos leitos e no

amparo fraternO, com sorriso compreensivo e prece socorrista aos

companheiros de dor

— conforme aludi —, encontrei-me a mim mesma.

Ao contato desse trabalho abençoado pude conhecer o infortúnio dos

irmãos agasalhados pela Caridade e misturar, com as suas, as minhas

lágrimas e dores, aprendendo inolvidáveis lições que me alargaram os

horizontes do esclarecimento, qual luz que penetrasse em grota escura e a

libertasse discretamente das trevas e dos seus repelentes habitantes.

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Aqui é a filha obsidiada pela recordação torturante da ingratidão que fez

sangrar o coração materno, resvalando nos abismos do remorso que a sepultura

libertou...

Ali é o médium que negligenciou com as sagradas tábuas do intercâmbiO

entre os dois mundos, acoimado por memórias cruéis que o tempo não consegue

apagar...

Além é o marido infiel, que vivera empolgado pela sensualidade e hoje

carrega o fardo da culpa, ao ter conhecimento do desespero da companheira

que se atirou, invigilante e infeliz, à degradação, buscando derivativo e

esquecimento...

Chorando, acolá, uma mãe descuidada dos sagrados deveres recorda,

transtornada, a aplicação da eutanásia no companheiro, martirizado por

enfermidade atroz, supondo libertá-lo da dor, experimentando, agora, o clamor

da consciência desvairada...

... adultério, lenocínio, roubo, assassínio, ciúme, ódio, gula, ambição e todo

um séquito de misérias, são ali apresentados, no semblante desfigurado dos

seus mais ardentes aficionados que no mundo receberam honrarias, mas de

cujos crimes e tramas ninguém soube. A justiça conheceu alguns deles mas

não pôde ou não quis puni-los com a morte; entretanto, os culpados não

puderam fugir, evadindo-se da prisão sem grades da consciência justiceira, em

cujas teias e rédeas a Lei vigia incessantemente.

Ouvindo e aprendendo. Ouvindo os comoventes estados dalma e

aprendendo com alma para os estágios do futuro...

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18

A LOUCA

Eu fora informada de que naquela noite seria admitida em nossa

Enfermaria, na Seção dos dementes, uma jovem Senhora, amparada pela

Caravana dos Mensageiros da Cruz após visita às regiões inferiores.

Aguardei o ensejo confiante na possibilidade que me surgia de oferecer os

meus cuidados e assistência fraterna à doente.

Altas horas da noite, ouvi parar à porta o veículo que conduzia os

enfermos. Corri para prestar auxílio e deparei-me com uma antiga carruagem,

toda fechada, puxada por quatro corcéis brancos, de grande proporção.

Enfermeiros prestimosos aguardavam, igualmente, os doentes anunciados.

A movimentação se fez grande, momentaneamente.

Ajudada por Adrião, aproximei-me da Benfeitora Zélia, que administrava com

grande serenidade, transmitindo seguras orientações, obedecidas sem

discussão.

Entre os doentes conduzidos para as Seções especiais do pavilhão em

que eu me hospedava, não tive dificuldade em descobrir aquela de quem me

falaram os amigos, com desvelada ternura.

Dois moços conduziram-na em padiola ao leito adredemente preparado. O

semblante pálido e suado trazia marcas de cruel agitação. Entretanto, parecia

desmaiada. Poderia ter vivido apenas 40 anos, quando encarnada.

Acomodada com cuidado no leito acolhedor e alvo, a paciente permanecia

sem sentidos.

Ao acenar-me com significativa expressão da face, aproximei-me da

Administradora, que me concitou, bondosa:

— Este momento representa sua oportunidade de integrar-se nos serviços

de nossa Casa. Como você sabe, os mais singelos movimentos de auxílio

transformam-se em luz, em nosso próprio caminho evolutivo. Não adie a hora

que se lhe depara afortunada e vantajosa. Informe ao Adrião que Matilde

requer assistência especial, logo lhe seja possível...

E dirigindo-se a servidores mais experientes, acrescentou, aludindo ao

meu trabalho:

— Matilde é a sua oportunidade de recomeço.

Sorriu a Benfeitora e, felicitada pela grande oportunidade, agradeci,

reconhecida, ao Pai Celestial.

Desde há algum tempo, habituara-me aos valiosos serviços de prestar

informações sobre doentes, recados de urgência de uma enfermaria a outra.

Como as salas de assistência fossem próximas, dispostas em alas

retangulares, entremeadas de jardins, estava habilitada a acercar-me de várias

delas, onde me dedicava aos misteres do asseio.

Sabendo que encontraria o incansável passista nas câmaras de repouso

dos obsidiados em recuperação, não tive dificuldades em localizá-lo.

Notificado da necessidade da sua presença e dos motivos que o

chamavam, o esclarecido e constante amigo denotou preocupação no

semblante e, algo apressado, pôs-se a caminho, seguindo-lhe eu empós.

— Matilde — informou-me, prestimoso — é um caso que requer cuidados

constantes. Tive ensejo de visitá-la nas regiões em que se demorava e inteireime

da sua situação, por informações de amigos interessados no seu despertar.

Confiemos, entretanto, e não nos deixemos desanimar.

69

Quando chegamos, a enferma apresentava-se fortemente inquieta por

convulsões que a sacudiam incessantemente, contorcendo os lábios e agitando

o corpo, como se estivesse dominada por visões terrificantes.

A incansável Zélia, que naquele momento chegava, como se desejasse

fazer algo, sem mais delonga rogou-nos atenção:

- Unamo-nos mentalmente, suplicando as santas dádivas em favor da

infeliz que ora aporta, de retorno, ao lar generoso.

Em breves minutos, as lágrimas que se haviam tornado de há muito

minhas constantes companheiras, escorriam serenas ao beneplácito da prece

silenciosa. Era a primeira vez que participava de um serviço direto no ministério

do passe e não me pude furtar à evocação do meu próprio caso, há mais de

um ano, quando, então, recebera o auxílio magnético do colaborador

abnegado. E sob a recordação das minhas necessidades, supliquei ao Mestre

da Compaixão pela irmãzinha, vítima de si mesma, ali exausta e desnorteada.

A enferma, que ainda se debatia, foi-se acalmando lentamente sob o calor

brando da prece. Bagas de suor afloravam-lhe no rosto, colando os cabelos

desgrenhados à testa larga. Os olhos dilatados pareciam desejar romper os

diques das órbitas que os detinham. Todavia, indicavam não perceber o

recinto. Apresentavam-se apavorados, imersos em longínquas, terríveis

fixações. De quando em quando, toda a sua organização perispiritual, muito

densa, era acometida de tremores nervosos descontrolados.

Adrião, em prece muda, mergulhava nas nascentes fecundas do Bem,

aspirando o perfume do amor que o cobria todo como veste de tênue luz.

Aproximando-se com inexcedível ternura, qual mãe desvelada junto ao

berço onde dormita o filho, distendeu os braços e, movimentando energias que

fluíam de seus músculos, deu início à aplicação dos passes magnéticos. Lenta,

ritmada e seguidamente suas mãos escorriam da região frontal até os membros

inferiores da paciente. Em constante ritmia aumentou a velocidade dos

movimentos longitudinais.

Subitamente, a enferma começou a gemer, com voz sumida, enquanto,

através da sua boca semi-aberta, escorria uma massa fluida nauseante e

escura que impregnou o recinto de odores fétidos.

Os movimentos do passe continuaram ininterruptos, renovando as

extrações de energia deletéria que combalia a sofredora em profundo estado

de miséria vital. À medida que o socorro continuava generoso, foi-se atenuando

a coloração e o aspecto da exalação que, após alguns minutos, se diluía em

vapor pardacento.

A irmã Zélia, desejando certamente elucidar-me, explicou à meia-voz:

— São energias longamente condensadas pela alma desavisada. Como é

sabido, cada alma respira o clima mental da região em que sintoniza o pensamento.

Nossa pobre amiga, embora forrada, a princípio, das melhores

intenções, não se pôde guardar àdistância das vicissitudes humanas, em cujo

fogo de prazeres empenhou as melhores possibilidades de reajustamento com

a lei de reparações.

E dando curso à exposição, prosseguiu:

— A Terra não é um Éden, bem o reconhecemos. Todavia, é uma

abençoada oficina em cujos cômodos exercitamos as tarefas de evolução.

Quando ali reencontramos as possibilidades de prazer, arrebentamos as

cadeias do dever e imanamo-nos aos grilhões dos vícios que embriagam e

aniquilam. Para libertar-nos desses males, as boas intenções ajudam, mas

70

somente quando se fazem acompanhar das boas ações.

E depois de breve meditação, deu curso ao ensinamento:

— Sob a assistência das forças positivas de Adrião, o organismo

perispiritual foi sacudido e toda a organização espiritual da enferma está sendo

visitada por energia salutar que, à semelhança do que ocorre na fagocitose do

vaso físico, terminará por vencer os miasmas mentais acumulados, que lhe

prejudicam o reequilíbrio psíquico.

Calou-se a Benfeitora. Pude ouvir, entretanto, a voz do passista,

concitando a socorrida ao brando repouso:

— Durma!... Durma!... Esqueça!... Procure esquecer!... Não receie!... Não

receie!... Durma!... Sono reparador e calmante!... visitar-lhe-á, minha irmã...

Não pense mais nada!... Esqueça!... É necessário esquecer.

Aquela voz calma e lenta parecia possuir mágico condão, porqüanto, em

breves momentos, com a respiração acalmada, a doente adormeceu, cerrando,

por fim, as pálpebras.

Estava encerrado o serviço assistencial do instante, mas novos recursos

seriam necessários para atender, devidamente, àquele Espírito aflito, sob nosso

olhar.

Adrião sorriu, com simplicidade, como a desculpar-se e ponderou:

— Não nos esqueçamos da Caridade do Dispensador infatigável que não

cessa de atender-nos em todos os momentos. O caso que temos no roteiro de

deveres novos é bem um exemplo de alma naufragada nas procelas da carne,

em flagrante desatenção às instruções do Nauta Divino. Apesar disso, Sua misericórdia,

em nome do Ilimitado, não a esqueceu e, vigilante incansável,

distendeu braços protetores, sem que a aflita sequer o houvesse suplicado.

“Repousará, um pouco — concluiu —, apagando momentaneamente, a

chama da aflição que a devora, para despertar, logo mais, vulcão tumultuado

em plena erupção.”

E como notasse o espanto no meu rosto, acrescentou ainda:

— Não há que estranhar, minha irmã. Não nos encontramos numa Gruta

de Milagres, mas numa Casa Hospitalar dedicada à recuperação e ao

reequilíbrio. O remédio aplicado diminui a dor sem eximir o doente de prestar

contas com a consciência culpada. Felizmente não existe, além da morte, a

quitação indébita, mediante favoritismo especial para uns, em detrimento de

outros, filhos todos, igualmente, do mesmo Pai. Cada espírito sofre depois da

desencarnação a má Pedagogia a que se ajustou enquanto na Escola Terrena,

carregando a canga a que se jungiu nos vários compromissos com a vida.

Talvez, desejando alongar-se para esclarecer melhor, aduziu humilde:

— Despertamos sempre com a angelitude ou com o satanismo que

vitalizamos em pensamento e ações. Cada alma é o que pensa. O Céu e o

Inferno são construções pessoais de cada ser. E valiosa a boa intenção, de

muitos, todavia, a construção eterna não é uma resultante somente do ensejo,

mas principalmente do trabalho ativo.

E com firmeza:

— Repomos na Criação o que tiramos da vida. Na vida universal tudo são

permutas, em incessantes transformações evolutivas. Não existe repouso,

vácuo, silêncio. Se tal houvesse, significaria o caos do próprio Universo. Em

toda parte, encontramos vida exuberante cantando as glórias do Supremo

Construtor, exaltando Sua obra.

A emoção embargava-me. Na minha simplicidade mental, jamais me

71

ocorreram semelhantes idéias. Nunca me lembrara de procurar o Pai Doador

na obra gloriosa que nos felicita a eternidade da vida. E lembrei-me daqueles

que humanizam o Senhor, apiedando-me da sua ingenuidade.

— O pão que serve a mesa — ponderou a irmã Zélia até então silenciosa

e atenta — saiu do lodo da terra em milagroso sacrifício do grão de trigo que se

deixou morrer. Vida: transformação, evolução!

Os conceitos hauridos junto à recém-chegada inundaram-me de paz. A

esperança tão desconhecida é, sem alarde, alguma filha da fé religiosa, legítima.

A fé é resultado do conhecimento, dileta amiga da razão. Quando não

podemos raciocinar, aceitamos, mas não cremos. Daí a assertiva do Mestre da

Codificação do Espiritismo: “Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a

frente a razão, em todas as épocas da Humanidade”.

Quanto material, Deus meu! — pensava.

Como o Espiritismo é realmente o grande consolador dos espíritos! E me

deixava arrebatar pela emoção de constatar que essa Doutrina, tão

consoladora, liberta a alma e a prepara para enfrentar-se a si mesma. E

recordava do enunciado de Jesus quanto ao Consolador prometido: “Muita

coisa que ainda não podeis supor, ele vos ensinará.”

As horas avançam lentamente e a madrugada incendiava o céu que se

ruborizava aos raios do Sol nascente.

Oferecera-me para velar, atentamente, a nova companheira, tarefa a que

doava os melhores cuidados. Do posto de observação, acompanhei as orações

do nascente, invadida de doces consolações. A natureza jamais me parecera

tão bela e, dentro de mim mesma, coragem alentadora falava-me em promessas

de ânimo.

A prece envolvia-me em brandas vibrações e a lembrança dos companheiros

encarnados, que sempre me torturava, não dava amargo sabor naquele

momento. Fitando as nuvens a galoparem além, não vi o momento em que o

lúcido Adrião penetrara o recinto.

— Planejar o bem no futuro é viver o bem presente — falou-me, tocandome

o ombro, delicadamente.

Assustei-me e, ao fitar-lhe o rosto, não pude deixar de emocionar-me.

— Minha irmã — acrescentou —, Jesus é Vida e, como tal, deseja-nos

ditosos e diligentes. A alegria é mensagem de saúde e paz. Rejubile-se, pois,

com o Senhor e avance. Todas as grandes tarefas começam em longas

jornadas de planificação mental. Hoje pensamos e amanhã realizamos. Mente

e mãos, pensamento e ação, cérebro e coração na obra de Deus, em favor da

nossa redenção, eis o programa. Cristo é o Roteiro.

Ao ouvir o moço Adrião, eu sempre ficava extasiada. Escutando-o,

retornava ao passado e evocava as preleções, através das quais fizera o meu

ingresso na Doutrina da Consolação e da Esperança.

Nesse momento, a irmã Zélia chegou ao recinto e acercou-se de nós.

Notamos que a enferma movimentava-se inquieta, no leito.

Ergueu-se repentinamente com os olhos esgazeados pelo pavor, e pôs-se

a gritar, com evidentes sinais de loucura:

— Os vampiros! Socorro! Perseguem-me os lobos! Acudam-me, por Deus!

Antes, porém, de atirar-se em disparada, jáos nossos amigos dela se

acercaram, detendo-a com palavras de conforto, enquanto Adrião lhe aplicava

passes calmantes.

A custo repousou, embora inquieta, tremendo em soluços.

72

Notando-me a perturbação e o receio, o amigo tranqüilizou-me:

- Mais tarde você compreenderá. No momento, ore e ajude!

Acalmada a doente, estabeleceu-se que às 20 horas, com auxílio do dr.

Cléofas, prestar-se-ia assistência mais específica.

73

19

INVIGILANCIA E SIMONIA

Aguardei a hora anunciada, mantendo a mente atenta às recomendações

dos Benfeitores quanto ao concurso da oração.

Quando soavam 20 horas, na noite plena, precedido pela irmã Zélia,

Adrião e dois auxiliares, o dr. Cléofas deu entrada em nossa Enfermaria,

aureolado da bondade que o caracterizava. O sorriso cândido brincava-lhe no

rosto sereno, como no dia em que o conhecera, durante a minha aflição. O

amor fraterno que se lhe derramava dos olhos inundava-nos de dúlcidas

emoções, e indagações acotovelavam-se em meu espírito ainda não esclarecido.

Depois das saudações gentis, sentamo-nos em volta do leito, enquanto o

venerável médico paulista, em breves e significativas palavras, rogava a

inspiração e a assistência do Médico Divino.

Atendendo a um olhar expressivo do diretor do trabalho socorrista, o

prestimoso passista aproximou-se da sofredora inquieta, em sono

movimentado, chamando-a pausadamente, com voz firme, na qual se

misturavam ternura e ordem, bondade e energia.

A doente descerrou as pálpebras com um olhar mortiço em que vagavam

recordações longínquas e dolorosas.

— Não receie! — disse o magnetizador. — Confie em Jesus e tranqüilizese.

É necessário despertar para a verdade, minha irmã, embora nos custe o

pesado serviço de carregar o fardo dos nossos desencantos e de nossa

irresponsabilidade. Esteja certa da vitória final do Bem, sobre todas as coisas

incertas e dúbias.

Ante o olhar espantado da doente, que raciocinava vagarosamente,

prosseguiu o prestimoso trabalhador:

— Não tente resistir. Entregue-se ao Senhor que muito nos ama e sob

cuja direção há oportunidade para mil recomeços. Liberte-se do passado

culposo e volte ao presente. Ouça-me atenta!

E como a pobrezinha ensaiasse desespero e pranto, a branda e enérgica

voz do dr. Cléofas animou-a:

— Tenha a certeza de que a Justiça não castiga impiedosamente embora

não olvide quantos a desrespeitam. Aos infratores, a Lei propicia recursos para

a quitação oportuna, não favorecendo quantos a queiram infringir. Estão com o

seu espírito aflito os companheiros afeiçoados de ontem, aqueles mesmos que

a conduziram à neblina da carne, amparando-a outra vez.

“Escute e recorde... Vamos recuar no tempo, rompendo os elos que lhe detêm

o pensamento nos últimos acontecimentos. Recue, Matilde... recue... não

tema...”

A sofredora foi-se deixando conduzir, lentamente, pela voz amiga, e em

breve mantinha o semblante sereno, como se agradáveis recordações

inesperadamente voltassem à retina da memória.

O dr. Cléofas aproximou-se do leito, e, tomando-lhe a destra umedecida

de suor, concitou-a a um exame de atitudes que a levaram a tão rude fracasso,

no mundo. E enquanto a magnetizada rememorava a existência, o compassivo

orientador cientificou-nos:

— Invigilãncia! Eis o nome do “demônio” que venceu a candidata ao

trabalho.

74

E prosseguindo com sua habitual sabedoria, acrescentou

— Matilde, após fracassos sucessivos, em reencarnações anteriores,

retornou ao Orbe, decorridos dez anos de preparação em nossa Escola, depois

de arrancada de dolorosas regiões onde tombara.

“Fui informado, ainda, de que ao reencarnar conduzia consigo inestimável

patrimônio de boas intenções, ansiosa pela sagrada dádiva do serviço ativo.

“Eis, porém, como retorna: andrajosa e aflita, com o patrimônio

despedaçado qual ocorreu ao filho imprudente e incauto da Parábola

Evangélica. Deduz-se que a boa vontade que conduzia ao viajar não representou

vitória. Só o esforço sacrificial aplicado no campo da luta ajuda o

espírito a chegar à meta final, como único meio de crescimento.

Mal silenciou o lúcido Instrutor, a doente clamou em desespero:

— Que querem de mim? Quem ousa justiçar-me, apresentando-me como

criminosa vulgar? Que fiz para tão cruéis padecimentos? Quem são os meus

verdugos a punir-me antes de pronunciada a minha pena? Onde estão?

— Não somos seus algozes, mas seus irmãos que se encontram muito

longe da posição de juízes ou jurados e que se apresentam vestidos somente

com a toga da piedade e calçados com o entendimento fraterno — respondeu o

dr. Cléofas, com bondade.

— Será este o Céu que me prometeram os Espíritos ou aqui é uma

estação purgatorial, a Caminho de Celeste Morada? — indagou a enferma,

com revolta.

— Matilde, minha irmã — retrucou o generoso esculápio —, o Céu vive

em todos os lugares, conosco, quando o construímos na alma. Aqui não é o

Céu, certamente, nem o Purgatório, nem o Inferno. É somente um posto de

socorro hospitalar para recuperação de almas fracassadas na romagem do

mundo, entre o Céu e a Terra...

— Alma fracassada? — inquiriu a albergada, com desespero, em pranto.

— Eu, fracassada? Não! Nunca! Deveria ser recebida com bênçãos de alegria.

Quais os recursos de que dispus na Terra? Não cumpri, porventura, com os

meus deveres mediúnicos? Onde os arquivos de notas de trabalho?

- Na consciência do trabalhador, irmãzinha — elucidou o interlocutor. —

Aqui não temos necessidade de anotações especiais, porqüanto, cada

candidato ao estágio recuperador transpira o aroma das atividades a que se

entregou no plano físico. Os seus deveres mediúnicos ficaram à margem

quando as relações sociais a convidaram ao parque ilusório dos triunfos

mentirosos.

E dando nova inflexão à voz, continuou, convicto:

— Mediunidade é, antes de tudo, sacrifício e renúncia incessante. Os que

triunfam no mundo, aqui retornam como vencidos pelo mundo. Só os que realizam

a vitória sobre si mesmos são aqui reconhecidos como triunfadores. Os

mártires da Humanidade, a exemplo do Senhor Jesus, foram vencidos pelo

mundo, vencendo o mundo.

Não desejamos — prosseguiu o mensageirO da saúde — inquietar-me a

alma com recordações penosas. Entretanto, é necessário recordar-lhe que

mediunidade com Jesus é apostolado santificante, em nome da Caridade.

“Mediunidade é serviço. Serviço sem preço, sem retribuição.

“A prática mediúnica é singela. Veste-se de suaves cores sem

complicações nem artifícios. A mediunidade não pertence ao médium. É

patrimônio da vida imperecível, talento emprestado ao jornaleiro para aplicação

75

devida, que o transformará em valor inestimável.

“Não creia, filha, que através de práticas exóticas e vulgareS se tenha

desincumbido da tarefa do auxílio fraterno.”

E ante o silêncio da enferma, prosseguiu:

— Quando o interesse pessoal perturba a mente do medianeiro e a

dignidade do sacerdócio cede lugar à bajulação e ao agrado, imprimindo

nOVOS rumos às atividades cristãS, compromissos de difícil liberação

envolvem o incauto. E o seu caso é daqueles a que se pode aplicar o nome de

Simonia, cujas danosas conseqüências são ainda imprevisíveis.

A doente escutava, magnetizada. Exasperada, entretanto, pela retidão

doutrinária do pensamento do interlocutor, gritou, desequilibrada:

— E o auxílio divino? Por que não me salvou na hora precisa? Onde o

socorro dos Guias Espirituais, que me não advertiram com justas

admoestações?

O esclarecido benfeitor, com humildade e compaixão, retrucou:

— Não lhe faltou jamais o concurso do Senhor, de mil modos. Muitas

vezes, nós mesmos visitamos o seu reduto de trabalho e falamos em nome dos

compromissos assumidos, à sua tela mental em desequilíbrio, seduzida pelas

tentações da facilidade. No entanto, nossas instruções e aspirações eram

recebidas com positivas dúvidas por você, então preocupada na solução de

problemas triviais, de cônjuges e negócios, de amigos novos, portadores de

bolsa polpuda que a visitavam...

— Todavia — afirmou com veemência e azedume, a doente —, trabalhei

também de graça.

— Não lhe desconhecemos a bondade e esta não tem sido esquecida —

respondeu, com zelo e carinho —. O nosso dever não é utilizar da vida para

uso e gozo próprios. Temos deveres maiores...

E mudando de tom, falou, algo humorado:

— Até agora o Senhor nos serve paciente, sem exigência, bondosamente,

de graça. Não se deixe mais envolver pela teimosia, escondendo-se na

presunção. Medite, Matilde! Desejamos ajudá-la em nome do Compreensivo

Médium de Deus, nosso modelo e guia.

Houve um profundo silêncio, cortado por uma voz harmoniosa que entoava

o cântico à noite, essa benfeitora constante.

Acometida de súbito transe de loucura, a pobre mulher gritou apavorada:

— Sou uma desgraçada... Sim, sou uma louca! Olhem os lobos! Socorro!...

Os vampiros...

Foram aplicados novos recursos magnéticos por Adrião e os dois

auxiliares que se encontravam postados ao lado do leito, atendendo,

prestimosos, à irmã tresloucada.

— Por hoje não podemos fazer mais — explicou o médico —. Nossa irmã

está com a mente muito abalada, recordando as impressões post-mortem

vividas no Despenhadeiro do Horror. Aguardemos o tempo e entreguemo-la ao

boníssimo coração da Mãe de Jesus, que tanto nos atende, e ofertemos-lhe o

nosso carinho.

Oração balsamizante, proferida pela sensibilidade da irmã Zélia, coroou a

reunião.

76

20

MEDIUNIDADE FRACASSADA

Naquela noite, demorei a conciliar o sono. O caso Matilde voltava-me à

mente com freqüência assustadora. Recordava-lhe as justificações e parecia

escutar as palavras proferidas pelo médico. As expressões de advertência e

despertamento, invigilância e simonia, atormentavam-me, escaldando-me o

cérebro.

Que lhe teria ocorrido realmente? Quais práticas teriam sido aquelas

aludidas pelo dr. Cléofas? A quais vampiros se referia a infeliz? Seriam visões

imaginativas ou experiências atormentadas que vivera?

Na manhã seguinte, quando a irmã Zélia veio visitar-nos, não pude sopitar

por mais tempo a ansiedade de esclarecimentos e atirei-me à sua fonte de

experiência. As palavras amigas não se fizeram demorar.

— Otília, todos os nossos atos — começou a informar —, bem como

nossos pensamentos, são vitalizantes de realidades que se materializam ou se

consomem. Pensar e agir são forças que marcam o espírito. Por isso mesmo

vivemos o que desejamos e sofremos o que geramos. Ninguém foge ao

reajustamento. A carne é oportunidade; ninguém a malbaratará

irresponsavelmente.

“Matilde, ligada à nossa Colônia por compromissos múltiplos, rogou o

ministério da mediunidade como um náufrago implora batei salvador. Não era

portadora de méritos que liberassem a solicitação. Todavia, atendendo-se a

interferência superior e considerando-se o valor da ocasião, foi-lhe outorgado o

pedido, precedido de advertências, orientação e esclarecimento, permitindo-selhe

um largo período de tempo para meditação acurada em torno do assunto.

“Em breve tempo retornava à carne sob a proteção de devotados amigos

espirituais que a conduziram a abençoado lar, onde foram previstas necessidades

financeiras a fim de guardá-la dos perigos da futilidade, amparando-a

com a dádiva da oportunidade de santificação no trabalho honesto, para a manutenção

da vida física.

“A infância correu-lhe em paz, entre os jogos da inocência e as

esperanças do futuro. Embora assistida por almas abnegadas, carregava

compromissos que necessitavam ser resgatados, permanecendo ligada a

afeiçoados de outrora que foram conduzidos a sérios crimes, por sua

irresponsabilidade.

“Com a chegada da puberdade, enquanto o corpo se modelava ao

amadurecer da mente que se dilatava no campo das recapitulações, a

mediunidade desabrochou, abrindo-lhe as portas às interferências dos planos

espirituais, começando para o espírito, sedento de renovação, as primeiras

grandes lutas.

“Os débitos do passado jungiam-na a obsessão secundária, sendo por

isso, conduzida a veneranda Instituição Espírita de Salvador, onde deveria ter

lugar a sua iniciação doutrinária. Ali, em contato com o trabalho da Caridade

ativa aos desencarnados, dilataram-se-lhe as possibilidades psíquicas e, sob a

égide do Senhor, em breve emprestava a faculdade sonambúlica ao serviço do

esclarecimento dos sofredores de Além-Túmulo, concedendo, a alguns dos

seus próprios algozes, ensejo de libertação.

“Atendida pela dedicação de amigos devotados ao trabalho que o

Espiritismo concede a todos, não lhe faltaram, desde o início, diretrizes, carinho

77

e socorro. Na tribuna do esclarecimento, na mesa de comunhão com o Alto,

nos livros de estudo, na conduta dos diretores, estavam as bases para uma

vida feliz, dignificante.

“Incessantemente, chegavam-lhe à mente orientação e roteiro, através das

palavras inspiradoras dos Instrutores maiores. Convites à humildade e advertências

à vigilância não eram regateados, chegando-se-lhe ao pensamento,

com freqüência...”

A narradora fez uma pausa longa. Parecia aprofundar o raciocínio na

justeza da Lei, contemplando apiedada a enferma que dormia profundamente.

Com carinho na voz, prosseguiu:

- ... apesar disso, com o desdobramento dos recursos mediúnicos, vieram

os admiradores e, com eles, as tentações perigosas.

“Muitos que cercavam a candidata à renovação traziam angustiantes

problemas do coração, rogando-lhe amparo e consolo. Os consulentes

sucediam-se e as horas que Matilde deveria dedicar ao trabalho do lar, na sua

condição de mulher humilde, aplicou, inadvertidamente, atendendo a apelantes

que, embora cientes da Imortalidade, se recusavam a assistir ao Culto no

Templo Espírita, por circunstâncias óbvias.

“Perdendo o patrimônio das horas de aquisição do alimento, no trabalho

normal, viu-se constrangida, de um momento para outro, a aceitar doações e

presentes que, embora filhos da amizade e da gratidão, conduziam veneno e

ruína.”

Aproveitando a nova pausa que se fizera naturalmente, inquiri, ansiosa:

— E os Benfeitores Espirituais não advertiram a médium, nessa hora tão

significativa para sua vida?

— Evidentemente! — retrucou. — Todavia, Matilde negava-se a ouvi-los,

fascinada que se encontrava pela leviandade. Recordava as necessidades até

então experimentadas e justificava-se, retrucando, mentalmente. Repassava os

problemas que lhe afligiam o ser, esquecida, certamente, de que a dor é

mestra da vida, e murmurava: — Afinal de contas estou trabalhando mais do

que nunca, em favor dos aflitos, e a doação que recebo fica muito aquém dos

benefícios que faço. Que mal existe nisso? Não fazem o mesmo os sacerdotes

de outras crenças, vivendo da fé, com o auxílio dos religiosos? — Olvidava,

enlouquecida que se encontrava, que o Espiritismo não pode ser comparado às

“outras crenças , porqüanto é da Lei que “cada um coma o pão com o suor do

seu rosto”. E nesse sentido, o médium que não é um ser excepcional; sendo

apenas um instrumento, nada pode receber, porque, quanto faz, procede

sempre do Cristo e nunca dele mesmo. No entanto, as advertências continuavam,

constantes, embora não ouvidas.

“Por sua vez, os Espíritos maléficos se utilizavam dos consulentes

desavisados e estes a envolviam nas suas solicitações, compensando todo o

trabalho com moedas e auxílios adquiridos muitas vezes na desonestidade e

no crime que procuravam com habilidade acobertar.

E mudando o rumo da conversação, a Benfeitora esclareceu:

— Um dos maiores inimigos dos médiuns está naqueles que buscam o

intermediário, com problemas, procurando “consultas”. Ninguém pode resolver

problemas de ninguém, especialmente por processos mediúnicos. Quem

realmente se encontre angustiado, busque a Doutrina Espírita e esta lhe dará

os instrumentos de solução, não, porém, o médium, porqüanto este é, quase

sempre, uma alma aflita, também avassalada por problemas, no trabalho de

78

renovação.

E voltando ao assunto básico da palestra, continuou:

— Atordoada, deslumbrava-se pelo alarido álacre das “novas e generosas

afeições que lhe ofertavam o pão e a luz da felicidade na Terra”. Era

necessário, meditava, afastar-se do Núcleo de trabalhos coletivos, onde ela se

perdia na multidão, sem serem reconhecidos os seus dotes mediúnicos, para

fazer a sua CASA DE CARIDADE. Além disso, arrematava, o número de

pessoas que a procuravam era tão grande, que já não dispunha de tempo para

procurar o Centro Espírita.

Dando novo rumo à exposição, a irmã Zélia aproveitou o ensejo para

esclarecer-me:

— Quando, minha filha, um médium abandona o Grupo de estudos e sob

justificáveis motivos (nem sempre justos) edifica o “seu” Centro de atividades

ou permanece “trabalhando” em casa, encontra-se em grave perigo.

“O Centro Espírita é uma fortaleza, um abrigo. Quando lhe faltam os

requisitos que seriam de desejar, o médium tem obrigação de cooperar ainda

mais, entregando-se ao serviço mediúnico com devotamento e deixando aos

Mentores, que esclarecem e norteiam os companheiros, a tarefa de orientarem

os diretores para a ordem, dentro das bases de Kardec e as sublimes lições de

Jesus Cristo.

“Aliás, preocupa-nos constatar que os Espíritos infelizes se utilizam da

invigilância de médiuns e doutrinadores, atualmente, dividindo, a seu belprazer,

os corações, criando, cada dia, novos setores de trabalho, em grupos,

quase todos, da divisão, da vaidade e da pretensão.”

— Foi o que aconteceu à médium, objeto de nossa conversação —

retornei ao tema.

— Cheia de entusiasmo — continuou a narrativa — abriu “as portas do Lar

à Caridade total”, como costumava expressar-se, iludindo-se terrivelmente. A

medida que os favores humanos a cercavam, inacessível se tornava às vozes

dos Amigos Espirituais.

“Cercada de entidades inoperantes e viciadas, com as quais afinava pelos

pensamentos comuns, aturdida ante o volume de exigências da insaciável

clientela sempre crescente, foi-se deixando, lentamente, conduzir pelas

inspirações da desordem. Não desejando perder a posição granjeada de

“pitonisa” moderna ou avalista de benefícios para almas, insensatamente se

atirou a arrojadas aventuras no campo da Goécia, envolvendo-se nas malhas

cruéis de perigosos labores que, por fim, a aniquilaram.

“Naturalmente, muitas vezes, quando a mente lhe ardia de inquietação,

orava e, na doçura da prece, recordava o velho doutrinador de palavra

sedutora e conduta salutar, deixando-se empolgar pelas lágrimas de saudade.

Desejaria recomeçar, tornar aos dias idos, à necessidade de outrora. Mas,

como? Tinha amigos (ou senhores inclementes?) a quem não se poderia furtar.

Notava, desde há muito, a ausência das forças vitalizantes e, através das telas

do pensamento, parecia descobrir entre espessas sombras uma forma

hedionda a dominar-lhe o campo psíquico, arrastando-a e cingindo-a,

empurrando-a para a frente escabrosa, com tenazes vigorosas.

“Torturada, exausta, adormecia sem forças de abandonar tudo e

recomeçar, enquanto o tempo abençoava sua vida com oportunidades

facilmente aproveitáveis.

“No dia seguinte, entretanto, já cedo, antes de refazer-se da noite mal

79

dormida, os semblantes sorridentes dos necessitados — falsos doentes e

aflitos ociosos — buscavam-lhe o concurso em pactos terríveis com os

espíritos da zombaria, da irresponsabilidade, do mal...

“Passaram-se os anos. Aos quarenta janeiros, Matilde era, em aparência e

vitalidade, uma anciã. Os cabelos alvejavam rapidamente, os olhos cobriam-se

de amargura e o coração ralava-se na angústia. Tinha conforto para o corpo —

a que preço? — e muitas dores na alma.

“Alguns ainda a procuravam aflitamente. Desejavam lucros em negócios

inescrupulosos, sorte em amores, regularização de compromissos e toda uma

longa sorte de enganosas especulações. Outros, entretanto, maldiziam-na. O

esquecimento de uns e a maledicência de outros cruciavam-na.

“Lentamente a obsessão de outrora retomou-lhe os centros neuropsíquicos

e, numa noite de horror, enlouquecida, ateou fogo às vestes

rasgadas, sendo consumida pelas chamas, entre gargalhadas de pavor. Antes

que qualquer recurso, por parte dos vizinhos, pudesse ser tentado,

desencarnou, em circunstâncias apavorantes, lanceada no sentimento e fracassada

na mediunidade.”

Silenciou a amiga espiritual, e tomada de imensa piedade fitou a enferma

que continuava a dormir com o semblante congestionado, como se fosse vítima

de terríveis pesadelos.

80

21

OBSESSÃO E SUICÍDIO

Eu permanecia perplexa, ouvindo a narrativa lúcida e calma da sábia

Instrutora.

Verificava, a cada instante, que, em realidade, o fenômeno era exatamente

esse, a suceder, todos os dias, entre os homens conturbados, em face dos

deveres santificantes que o Evangelho desvelado pelo Espiritismo aponta.

Estávamos a uma dezena de metros e ouvíamos os torturados suspiros da

sofredora. Desejando novos esclarecimentos, indaguei, preocupada:

— Como teria despertado, além da cortina física? Em que condições

atravessara a grande aduana?

A interlocutora, disposta a elucidar-me, ensaiando-me na sabedoria da Lei,

respondeu, bondosa:

— Matilde foi, durante mais de quinze anos, devorada pelas dores do suicídio...

— Suicídio? — interrompi, alarmada.

- Como não? - redargüiu.

— Mas não se encontrava louca? — aventei, aturdida — perseguida pelos

gênios titânicos que a arrastaram à desencarnação?

— Sim — concordou. — Muito embora a sua situação mental constitua-se

um significativo atenuante, é necessário não esquecermos de que a mente do

médium jamais esteve sem o amparo divino. Se houve influenciação maléfica,

a intermediária é a única responsável pelo descaso à Lei e ao Dever. Todos os

fatos posteriores a um desequilíbrio são decorrentes do desequilíbrio. No caso,

a loucura foi uma conseqüência natural da fuga ao dever nobilitante. Quando

nos atiramos a um abismo, não sofremos apenas a deslocação do corpo com o

movimento, mas, também, a queda e as dores advindas desta. Compreendeu?

— Certamente —, concordei.

— A Justiça Divina — prosseguiu, esclarecendo — éperfeita e a Lei é

imutável. Durante os anos de lutas acerbas, quando sua mente, no

Despenhadeiro de Horror, conseguia pausas para a coordenação das idéias,

era assaltada pelos gênios infernais, a que se ligara. Recordava aqueles

amigos que ainda se demoravam na carne e que, de certo modo, foram os causadores

da sua infelicidade, propiciando-lhe a fuga aos compromissos

elevados, junto ao altar do dever.

“O pensamento desequilibrado era toldado, então, pelo ódio e, rompendo

espaços, ia ao encontro dos encarnados que, irresponsáveis, continuavam nos

jogos da carne, entre as futilidades do caminho. Tão freqüentes se tornaram as

recordações que a enferma passou a transmitir, inconscientemente, as vibrações

de que era portadora e que funcionavam nos antigos consulentes como

pensamentos angustiados, pesadelos e inquietações em perfeitas afinidades.”

— Oh, Céus! — exclamei.

— Não há porque estranhar — retrucou-me a esclarecida orientadora. E,

prosseguindo, elucidou:

— As ações são agentes poderosos no intercâmbio psíquico. Os erros e

crimes de toda ordem ligam os seus servidores em elos vigorosos, feitos dos

elementos mentais alimentados pelas vibrações constantes que os imantam.

Caídos e derrubadores permanecem ligados pela responsabilidade: vítima-algoz.

“E não poderia ser diferente. Quantos contribuíram inicialmente para a

81

ruína moral da médium, são co-autores da tragédia que arrastou a invigilante.

“Todos guardamos a idéia do Bem e da Dignidade. Usar deliberadamente

essa mensagem da Vida, acarreta-nos, como se pode facilmente depreender,

os sucessos ou insucessos desse uso bom ou mau...

Estava profundamente preocupada. O esclarecimento é luz de

responsabilidade. Saber significa também sofrer o que já se fez. Meditando,

entendia melhor o enunciado do Senhor: “a cada um será dado segundo as

suas obras.”

— Essas são as malhas do crime — referiu-se a irmã Zélia. — Depois de

atadas envolvem os criminosos e punem-nos até o momento em que a

renovação se delineia alvissareira.

— E, agora — indaguei, penalizada —, que acontecerá à pobre asilada?

— Não lhe faltarão o auxílio e o amor — respondeu, calma — em nome do

Grande Amor de todos os amores. Todavia, só o tempo, infatigável burilador,

poderá responder. Aguardemos e aprendamos. Restituiremos tudo quanto

dilapidarmos na inconsciência e na ilusão.

Abraçando-me cordialmente, a benfeitora concluiu:

— Usemos o tempo e agradeçamos à dor. A árvore podada reúne as

energias e volta a dilatar-se em vergônteas novas, resistindo às intempéries e

voltando a dar sombra, flores e frutos. Dos seus ramos cortados nascem

utensílios pela mão hábil do marceneiro.

E num sorriso, levemente sombreado de melancolia, afastou-se em busca

dos misteres sagrados, informando, ainda:

— Concluída a assistência mais urgente, Matilde será conduzida para as

Câmaras de Retificação, onde será beneficiada, lentamente.

Fitei a albergada. Dormia inquieta, sobraçando a própria aflição.

Eis ali um exemplo dos milhares que a Terra guarda no seu dourado bojo

de ilusões. Quantos outros corações, companheiros de mediunidade, não

estariam construindo a dor, entre os cipós enganosos das tentações, para

expungi-los mais tarde, no Grande Amanhã! — pensava, intrigada.

A noite mergulhada em silêncio deixava-se abrilhantar com os lampejos das

estrelas, confabulando mensagens de paz. Soaram as vinte e duas horas. Não

podia dormir. Após acontecimentos de tal natureza, ficava em vigília; não

conseguia dormir. Saí ao jardim. O vento perfumado roçou-me o rosto que,

sem que eu o percebesse, estava molhado de pranto.

Quão pouco meditara na Terra! Mais uma vez constatava a habilidade com

que malbaratara o tempo na inutilidade. Os problemas do corpo haviam recebido

melhor assistência. Agora sofria as conseqüências. Recordando, não

saberia explicar como gastara quase cinqüenta anos, na vida física, intercalando

somente raros minutos de Espiritualidade, nessa metade de século.

Como me fora possível viver tanto tempo banhada pela crença e tão sem

comunhão com a Fé?

No momento, o acurado exame de todos os atos, a observação e guarda

de palavras sábias, ensejavam-me um mundo real, como jamais pudera imaginar.

Ansiedade incontida crescia-me na alma, gritando-me a necessidade de

dizer-te, minha filha, todas estas experiências e alertar os companheiros encarnados

com quem privara, quanto às realidades além da morte. Lembrava-me,

porém, do Mestre Jesus que há tanto esclarecera o homem e não fora

devidamente compreendido; do Espiritismo, menosprezado por uns e

ridicularizado por outros, balsamizante e consolador, desrespeitado até mesmo

82

por aqueles que o dizem desposar, mas que não vivem de molde a atestar

essa núpcia, nas relações humanas, e quedava-me amargurada. Lembrava-me

de que a evolução alcançará todos os seres, e que, à semelhança do que a

mim mesma ocorrera, todos, em ocasião justa, transporiam igualmente a

grande porta, despertando, enfim.

Mas — porque não dizer? — o carinho humano e a afeição pessoal

murmuravam-me: não seria lícito e justo que falasses aos teus amados,

àqueles que confiam e esperam nas lides espiritistas? Talvez recebessem teus

enunciados com orvalho lacrimal de emoção e como teu testamento fraterno de

carinho.

Simultaneamente, recordava o lúcido esclarecimento do Instrutor Icaro: —

não esqueçam de que Deus é Pai zeloso e Seu amor se distende igualmente,

por todos... falando no Templo de Orações àqueles que ensejavam enviar

notícias aos que ficaram no labirinto da matéria.

Evocava que, noutro ensejo, ouvira observações em torno da obsessão

como causa essencial do suicídio. E ficara surpresa ante as elucidações,

porqüanto, em verdade, todo obsidiado que se deixou arrastar ao desequilíbrio

psíquico, por invigilância, é igualmente um suicida, desde que descuida do

precioso vaso da carne, diminuindo-lhe a resistência e abreviando-lhe a

caminhada.

Mas os conflitos que me assaltavam eram muitos.

Quantas vezes, eu mesma, com emoção e piedade, ouvira as

manifestações psicofônicas de almas torturadas e mais não fizera do que

balbuciar uma rápida oração intercessória! Não se repetiria agora o mesmo

fenômeno caso conseguisse o ensejo de um breve colóquio com os irmãos

encarnados? A situação permanecia a mesma para eles, como fora para mim,

antes da desencarnação. Mudara somente para a minha alma.

Era, pois, imprescindível esperar e sobretudo confiar.

A saúde, no entanto, dilacerava-me. A necessidade, minha filha, de falar-te, o

anceio de retornar ao nosso lar, rever os amores, da retaguarda, angustiavamme.

Rogaria permissão à irmã Zélia, logo se me ensejasse ocasião. Confiaria

ao futuro a minha ansiedade.

83

22

CASTIGO AO CRIME

Entre os companheiros de Enfermaria, Clélia, a jovem epiléptica, era uma

das internadas a quem muito me afeiçoara. O seu rosto cândido e pálido,

quase infantil, banhado por permanente nostalgia, falava-me muito à ternura.

Sempre que me encontrava a serviço, utilizando os panos da limpeza,

demorava-me a fitá-la. E sempre que dispunha de alguns minutos de repouso,

aproximava-me do seu leito, procurando ser-lhe útil e animando-a com

promessas de felicidade e júbilo. Entretanto, por mais insistisse, a jovem

permanecia mergulhada em si mesma, qual pérola engastada no imo de

concha consistente.

Intrigada e compungida, no ensejo mais próprio roguei ao Administrador

Aurélio, que nos visitava quase diariamente, esclarecimentos que me

favorecessem com as possibilidades de auxiliar com mais eficiência.

— É um caso típico — disse-me — de Castigo ao Crime. Ninguém

malbaratará a existência na carne, desrespeitando o vaso físico e fugindo

depois, à Justiça. Na Terra ainda é possível guardar-se o crime em mil malhas

e escapar à Lei. Todavia, nenhum criminoso, por mais se adie o instante da

reparação, escapará ao despertar da consciência, em qualquer tempo ou lugar,

em nome da Verdade.

O crime, conhecido pela velha sabedoria como “sombra que persegue a

alma”, faz se encontrem, no mundo espiritual, vítimas e algozes, na mesma

trajetória. Por essa razão, a carne é uma bênção para a alma, pelas

concessões que faculta: esquecimento temporário do passado, oportunidade

de recomeço, ensejo de recuperação, campo de abençoadas disciplinas, sendo

a Terra a Oficina-Escola onde aprendemos a construir o barco da felicidade.

“O espírito encarnado pode ser comparado a corpo volátil em vasilhame

fechado. Tem ação limitada e não sofre influências externas violentamente.

Desencarnado, porém, é como ácido livre a expandir-se, combinando-se com

similares e misturando-se a eles. Reencontros, reajustamentos negligenciados,

dívidas não resgatadas, remorsos candentes...”

E após breve silêncio:

— E o caso de Clélia. Guarda consigo um terrível drama, como nós

mesmos, quando aqui aportamos, a pedir silenciosamente auxílio e

entendimento. Ajude-a como puder.

Compreendi a delicadeza e discrição do nosso administrador e sopitei o

desejo de conhecer-lhe o labirinto de dor.

Busquei, desde então, cercá-la de orações e mais ternura animando-a

ainda mais e falando-lhe do Paternal Carinho de Deus, mostrando-lhe, enfim,

que o passado está inevitavelmente conosco, com todo o caudal de

conseqüências a rogar-nos ânimo e refazimento.

Todavia, mais do que palavras e compaixão, a doente necessitava do

amor que gera entendimento fraterno e compreensão. Para que se possa

auxiliar devidamente, é imprescindível amar. Muitas escolas e organizações

terrenas estão cheias de expoentes da palavra e de intercessores piedosos; no

entanto, bem poucos se encontram cheios de amor para doar. Assim, as

palavras são mortas, porqüanto é inoperante todo conselho que não carrega o

selo do entendimento e da caridade.

Dispus-me a ver, na delicada sofredora, não somente a irmã, mas também

84

a filha do coração que necessitava de alguém.

Com o passar do tempo, a fonte do sentimento encarregou-se de

transformar o meu cuidado em acendrada ternura e, não raro, juntas,

permutávamos nossas recordações sob emoção incoercível.

Clélia procedia de respeitável família paulistana, em cujo seio vivera quase

cinco lustros.

Encarnara com graves problemas espirituais no lado afetivo, devendo

demorar-se na honradez e na humildade para atrair os familiares à senda do

entendimento da qual se afastaram desde priscas eras.

Bela e frágil, cedo constituiu-se o centro de interesse dos familiares e dos

amigos alegres que lhe invejavam a beleza suave e as qualidades de inteligência

a se aformosearem, cada vez mais, com eméritos professores

encarregados da sua formação cultural. Sorria-lhe a vida entre venturas e

promessas de felicidade. No entanto, não se sentia feliz. Constantemente era

presa de tormentosa tristeza que carregava de dor o solar imenso onde residia.

Sentia-se presa a recordações dolorosas que se acentuavam quando em

estado depressivo, como se vivesse a evocar pavoroso passado, perdido em

brumas e sombras. E nesses estados, invariavelmente era acometida de

desmaios imprevistos, despertando, banhada de suores, sob atrozes

padecimentos.

Consultados, os especialistas atestavam cansaço mental, necessidade de

espairecimento, receios... Passada a crise, só a lembrança dolorosa, como

imagem de sonho a diluir-se, e ela permanecia angustiada, até quando os

deveres voltavam a povoar-lhe a mente, tomando-lhe a atenção. Algo, porém,

seguia-a freqüentemente, como um receio ou uma premonição fantasmagórica.

Aos 22 anos, conheceu um jovem de procedência humilde, filho de

imigrantes — Carlo —, que a sensibilizou de imediato. Fascinada pelos

encantos físicos do moço que servia numa das Organizações da família dela,

não se receou de animar um romance que prenunciava, de início,

conseqüências graves.

Todavia, apesar de reconhecer os obstáculos que surgiriam para a

concretização de uma aliança feliz, não podia esquecer o homem que a

arrebatava.

Nessa ocasião, os estados angustiantes aumentaram, conduzindo-a ao

leito, para dissabor geral.

Acreditando que o agravamento da enfermidade tivesse origem na

excitação, fruto do romance que ocultava, resolveu falar à mãe, aconselhandose.

Na primeira ocasião, em pranto, narrou-lhe a sua aflição e, ante o espanto

materno, compreendeu que jamais experimentaria a felicidade que ansiava, ao

lado do amado, o que, logo após, pôde positivar.

Passados alguns dias, a conselho médico, seguiu para a França, a

repousar nas águas famosas de Vichy, onde certamente se beneficiaria.

Seis longos e tristes meses permaneceu no Velho Continente sob

cuidados médicos e desvelos maternos, visitando cidades, demorando-se junto

aos famosos lagos e montes da Suíça e nas ensolaradas praias da Riviera.

Por mais tentasse esquecer o jovem, não o conseguia, deixando-se

lentamente consumir pelas vorazes labaredas de desenfreada paixão que

arquitetava planos macabros quando do retorno.

Carlo, entretanto, dissipador e ingrato, reconhecendo a afeição da filha do

patrão, aguardava somente lhe abrissem as portas de acesso à fortuna e ao

85

poder. Esperava assim, a volta da inexperiente menina.

Acreditando esquecido o romance da filha, Madame M. retornou à

Paulicéia, acompanhada da jovem que parecia aparentemente recuperada,

embora conservando os sinais habituais da melancolia.

No imo da moça, o vulcão do desenfreado amor não se apagara. Ao

contrário, rugia violento.

Retornando, tentou logo um encontro com o moço amado e, em breve,

irresponsável, entregou-lhe o corpo, como se assim testemunhasse a afeição

de que se encontrava possuída.

No lar tudo corria feliz...

Com algum tempo Clélia começou a sentir alarmantes sinais... Consultou,

incógnita, famoso ginecologista. A resposta aniquilou-a: ia ser mãe!

Retornou-lhe a inquietação, a necessidade de libertar-se do filho não

solicitado. Veio à lembrança a honra da família, a vergonha... como se a

desonra se constituísse, apenas, do conhecimento público da falta e não do ato

praticado.

Nas visões desordenadas que passou a experimentar, agora mais do que

antes, obsidiavam-na vozes de alguém, ensangüentado, rogando-lhe piedade e

socorro. A visão hedionda suplicava-lhe a oportunidade de renascimento, a

bênção da vida. Despertava, subitamente, banhada de suores frios, com a idéia

fixa, porém, do crime planejado.

Ao terceiro mês de gestação, assalariando hábil especialista da grande

cidade, libertou-se do débil corpo e, após algum repouso na casa de campo,

voltou ao convívio social.

As crises, então identificadas como epilepsia, repetiam-se amiúde,

abatendo-a e apresentando sinais de enfermidade mais grave. Durante os

acessos que se alongavam qual pesadelo cruel, voltava-lhe à mente

congestionada o extirpamento do filho que, aos seus olhos, crescia e se

transformava numa visão tenebrosa, como implacável algoz a apontar-lhe o

corpo retalhado, clamando em convulsões terrificantes:

— Vingança! Vindita! —, pondo-se a persegui-la até o total mergulhar nas

águas escuras do desfalecimento.

Decorridos quase catorze meses do atentado, já não podia mais sequer

erguer-se do leito. A tuberculose que a minava lenta e cruelmente, tomou vulto

ameaçador, devorando-lhe as últimas energias do organismo combalido.

A este tempo, acidentado na via pública, após uma noite de libações, Carlo

desencarnava no Pronto Socorro, sem saber do estado daquela que tanto o

amava.

Três dias depois, Clélia fez igualmente a grande viagem, ignorando a

tragédia ocorrida com o seu amado.

Cercada do carinho do mundo, recebeu flores, sepultamento honroso,

lágrimas, adeuses e ofícios fúnebres.

Ninguém lhe soube o segredo nem o crime.

Quando despertou no sepulcro lodoso onde se lhe decompunha o corpo,

viu ao seu lado o fantasma ensangüentado, como nos pesadelos anteriores. Ao

tentar fugir, a forma grotesca ergueu-se e aqueles pedaços, como se fossem

emendados, celeremente avançaram com mãos crispadas em direção à sua

garganta, estrangulando-a impiedosamente. Horrorizada, escutou a narrativa

dos seus crimes do ontem remoto e próximo, e foi cientificada de sua

desencarnação, enquanto aquelas tenazes cruéis a asfixiavam demo86

radamente.

Tremiam-lhe todas as fibras e o coração arritmado parecia arrebentar-se.

Tinha a impressão de que logo sucumbiria. Ao aflorar à mente tal idéia, a mesma

voz cavernosa lhe gritou: — Estás morta... Isto é a morte... É o fim... — e

apontava-lhe dominador, os despojos em lama, naquele triste recinto.

Olhando, aparvalhada, em derredor, verificou que seus pés se

encontravam atados às carnes a se desmancharem, enquanto forte liame

cinzento a ligava àcabeça inerte, deitada no esquife sedoso.

Angústia indescritível tomou-a de inopino. Era uma morta-viva no inferno.

As lembranças das narrativas religiosas, a que se ligara na Terra,

surgiram, tomando corpo, apresentando figuras demoníacas que a torturavam

até àexaustão.

Os anos correram-lhe lentos e lúgubres, até quando, não saberia informar,

foi conduzida ao nosso plano sob a piedade de Jesus Cristo.

Embora esclarecida sobre a própria enfermidade, tinha, através dos anos,

longa estrada reparadora a percorrer.

Libertada da perturbação do desafeto, retornava psiquicamente, com

freqüência, às recordações plasmadas na retina da memória, e as crises, de

quando em quando, recrudesciam.

O filho rejeitado, motivo indireto da sua desencarnação, era a mesma alma

ferida de antes, que voltava ao seio materno para o reajustamento e a orientação.

Com a reação descontrolada, entretanto, do seu caráter fraco, adiara

injustificavelmente a reabilitação, cavando um abismo de lágrimas e sangue,

enfermidade e dor para o futuro.

* * *

Oh! minha filha. No caminho da carne encontramos, a cada instante,

edificações, aprimoramento e libertação, esperando por nós. Não desprezes a

contribuição do sofrimento na tua marcha, em busca da Verdade. Serve-te da

doação provacional com a mesma avidez e o reconhecimento com que o

sedento recebe o copo dágua fria.

As provações, conforme ensinaram os Espíritos do Senhor ao preclaro

Codificador, na resposta à pergunta 266, de O Livro dos Espíritos, são frutos de

uma escolha. Quando o espírito “se desliga da matéria, cessa toda ilusão e

outra passa a ser a sua maneira de pensar”, preferindo, por isso mesmo, as

mais dolorosas. Porque, comenta o sábio lionês: sob a influência das idéias

carnais, o homem, na Terra, só vê das provas o lado penoso. Tal a razão de

lhe parecer natural, sejam escolhidas as que, do seu ponto de vista, podem

coexistir com os gozos materiais. Na vida espiritual, porém, compara esses

gozos fugazes e grosseiros com a inalterável felicidade que é dado entre-ver, e

desde logo nenhuma impressão mais lhe causam os passageiros sofrimentos

terrenos”.

Abençoada é, pois, a lágrima que rola no silêncio da noite, quando a

renúncia e a esperança envolvem o coração!

Enquanto nos demoramos a querer o mundo a golpes de ambição

desequilibrada, alongando efêmera ilusão da felicidade pela posse ou pelo

círculo de afetos, retardamos a ocasião da ventura legítima.

Todos reclamam quando sofrem e muitos deblateram. As casas religiosas

apinham-se de crentes que mais buscam a libertação dos problemas através

87

de concessões indébitas, que propriamente solução aos problemas pelo

trabalho sacrificial. Tornam-se negociantes da felicidade. Compram a paz com

a prece rápida e o semblante falsamente pungido, enganando-se,

positivamente.

As concessões do Céu são misericórdia de acréscimo em favor da nossa

debilitada esperança.

A quantos sofrem na escalada evolutiva, digo:

Bom ânimo! Muito mais vale sofrer do que fazer sofrer; resgatar para ser livre;

evoluir para ajudar. Na vanguarda ou na retaguarda, há muitos amores

contando conosco. Os que seguem à frente, amparam-nos e inspiram-nos; os

que seguem atrás, rogam auxílio e confiam em nós.

Conquistemos, assim, para doar; ascendamos para socorrer: redimamonos

para salvar.

Jesus e nós, nós e o próximo. O caminho é o mesmo para o oásis

bonançoso. Sigamos!

88

23

DITOSO ENCONTRO

Os dias sucediam-se cheios de ensinamentos.

Quando, depois de grande período de cegueira, voltamos a enxergar,

ficamos deslumbrados com a beleza da visão e quedamo-nos extasiados. Os

cenários mais conhecidos apresentam novos motivos e detalhes que antes não

foram percebidos, mas agora nos convidam a meticuloso exame e acurada

observação. Em relação à alma que regressa à Pátria espiritual o fenômeno é o

mesmo.

A natureza que envolve o EducandárioHospital de nossa Colônia, muito

semelhante à paisagem terrena, diversifica-se somente pela exuberância de

cores e o aformoseamento mais cuidado do ambiente. É que a visão ampliada

favorece a observação. Mesmo na Terra, quantas vezes passamos por

verdejante campina sem dar-lhe a menor atenção? Não são muitos os homens

que se deixam extasiar por um crepúsculo, na quadra da Primavera, ou por

uma noite enluarada, nos meses de Verão.

Com os olhos cobertos de tristeza, na jornada da carne, o homem tudo vê

triste. No entanto, o Senhor povoou a habitação terrena com maravilhas

deslumbrantes para encanto e felicidade dos espíritos em jornadas.

Em nossa esfera, porém, fascinados pela ânsia de crescer, evoluir e

reparar, a Natureza é mensagem de constante harmonia, sublimando a

saudade, concitando ao alento e felicitando o coração.

Com o concurso do trabalho, as lembranças pouco felizes deslizam da

mente e mergulham no dever, impelidas pelas necessidades de renovação

íntima.

No meu segundo aniversário de desencarnação, fui surpreendida com uma

notícia feliz, a mim trazida pelo desvelado amigo Adrião: ia receber a visita de

mamãe.

Tão grande foi a minha emoção que pensei ser vítima de um vágado.

Esfogueamento inesperado tomou-me a face, que se banhou de suor, e a

mente retomou aos antigos sítios.

Recordava-me do coração materno com saudade e gratidão. Aquela figura

alta de mulher humilde, acostumada ao sofrimento e à privação, que tanto se

martirizara pelos filhos, novamente me voltou ao espírito.

Em minhas indagações mudas, habitualmente buscava-a através dos

colóquios da prece. Onde estaria? Qual a sua situação? Seria feliz? Ainda

estaria desencarnada ou já teria voltado à Crosta. Onde?...

Saber, no entanto, que iria recebê-la, apesar da indigência que eu

carregava comigo, constituía uma ventura, minha filha, que te não posso

descrever.

O dia parecia não passar, embora os trabalhos normais me preenchessem

as horas. Encontrar-nos-íamos às 22 horas, no jardim da Enfermaria, residência

onde me hospedava.

Quando a noite desceu, procurei repassar mentalmente os fatos da minha

vida na Terra, e, embora emocionada, perturbava-me a lembrança de que carregava

mãos vazias ao ter de apresentar-me à mamãe. Se me perguntasse

que fizera da existência física com que Deus me presenteara, através da sua

renúncia e da sua carne, que lhe responderia eu? Maquinalmente recordava a

lição de O Evangelho Segundo o Espiritismo no que diz respeito ao desvelo

89

dos filhos para com os pais (*). Afligia-me a lembrança de quantos sofrimentos

causara à alma bondosa e simples, e o remorso acudiu-me ao chamado.

À hora aprazada, acompanhada da irmã Zélia, deu entrada no pequeno

jardim aquela que agora, mais do que nunca, era uma felicidade para a minha

alma. Procurei conter as lágrimas, sem o conseguir, porém. Vestia-se de

branco tecido leve e notei quanto estava bela. Sorria como outrora, sorriso

misturado à mesma tristeza enigmática. Seus olhos grandes brilhavam

também, banhados de lágrimas. Abraçamo-nos demoradamente e todo um

turbilhão de aflição que trazia comigo desatou em copioso pranto. Sentia-me

pequena, outra vez, nos seus joelhos, àporta de nossa casinha humílima, sem

palavras, sem raciocínio, sem indagações. A grande saudade tinha

(*) Capítulo 14 - Piedade Filial (Nota da Autora Espiritual)

sede de repouso, e, por mais desejasse falar, a palavra estrangulada na

garganta não se fazia ouvida.

— Agradeçamos, minha filha, ao Senhor Jesus —foram as suas primeiras

palavras —, a felicidade imerecida desta hora.

— Mamãe! — eis quanto pude dizer.

Sua palavra clara, misturada a uma imensa ternura, fez-me relato ameno

das suas atuais tarefas, bem como das lutas que precederam aquela hora, louvando

o Mestre. Bendizia a extrema pobreza, as superlativas aflições e toda

sorte de desgostos e abandonos que experimentara, funcionando como ensinamento

corretivo e equilibrante para o seu espírito.

A Terra fora-lhe abençoada escola de redenção, em cujo seio aprendera a

lição brilhante do sofrimento, reparando antigos desmandos. Desejava retornar,

outra vez, para recomeçar; todavia, no momento não lhe era possível. Papai

retornara já e encontrava-se na estância de abençoadas retificações...

Informou-me estar cooperando na Crosta com as equipes espirituais que

ajudam os ébrios, na tarefa de libertação dos vampiros, atendendo aos

implacáveis perseguidores. Por essa razão e por outros impositivos não me

pudera visitar anteriormente, apesar do seu grande desejo. Estivera comigo

nos primeiros minutos, após a minha desencarnação e enquanto hospitalizada,

na fase mais difícil da libertação física. Eu não a percebera, entretanto.

A querida Zélia seguia o nosso colóquio com acentuado interesse fraternal.

Opinava, esclarecia, ajuntava anotações, sempre que oportuno.

O tempo escoava célere.

Desejava indagar, apresentar a minha felicidade e as minhas inquietações.

Mas antes de o fazer, a voz materna confidenciou-me:

— Filha, o tempo é precioso tesouro do Banco Divino. Não podemos

malbaratá-lo em expressões ocas de júbilo inoperante nem com frases

pessimistas de sofrimentos inexistentes. Rendamos graças, incessantemente,

e avancemos. Estou informada das suas novas responsabilidades e exulto com

o mais puro contentamento. O verbo mais simpático para nós conjugarmos, no

momento, é o REPARAR.

A alva banhava de claridade o promontório a distância. Estivemos juntas

mais de seis horas consecutivas. Chegava o momento das despedidas.

— Estaremos juntas pelo pensamento e ligadas pelos deveres no campo

do Bem — falou mamãe. Reencontrar-nos-emos sempre que as nossas tarefas

nos permitam. Trabalhe, renove-se e persevere no caminho sacrossanto do

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auxílio. Não poupe esforços nem sacrifícios. A moeda do amor é de difícil

aquisição, filha, não esqueça.

Abraçamo-nos e novas emoções nos tomaram a ambas. Além acenaram,

irmã Zélia e mamãe, banhadas da luz nascente da madrugada.

Não me pude recolher. Continuei no banco onde nos demoramos,

recapitulando, recordando.

Realmente o dia começa com a alva. Era necessário começasse o meu

novo dia.

Lembrei-me, então, de ti, minha filha, na caminhada dos homens, e

compreendi que necessitava crescer e desdobrar-me. Jesus convidava-me, em

silêncio, a seguir o rumo do sacrifício.

Aspirei o ar balsâmico da manhã e pousei os olhos no disco solar. Delicada

melodia varria a natureza. Seria externa ou era apenas a música de

recolhimento e gratidão que o meu coração cantava?

91

24

BOAS NOVAS

A esse tempo fora lotada na equipe da queles que aplicavam passes a

recém-desencarnados. As lições aprendidas com Adrião, junto ao leito de

Clélia, abriram-me as portas às possibilidades do auxílio, como jamais poderia

supor antes.

Com o carinho do dr. Cléofas, que me incluiu entre os seus auxiliares, fui

lentamente aprendendo novos métodos de assistência através dos recursos do

passe magnético, compreendendo o largo campo de socorro que temos ao

alcance e de que raramente fazemos uso.

Compreendi que a condição essencial para o passe é o amor puro e

desinteressado, ligado ao espírito de renúncia e confiança nas dadivosas

Fontes da Energia.

Aquele que perder a vida, ganhá-la-á — informou o Mestre. E o conceito

do Divino Instrutor pode ser aplicado no mister passista, quando se vai a Seu

serviço atender a quem sofre. O desejo de dar-se, de “perder a vida” para que

outros sejam felizes, concede a vida plena ao doador e ao beneficiado.

Diariamente, ao lado do dedicado Benfeitor, junto aos recém-chegados,

colhia informações preciosas das malogradas experiências na carne. Verificava

que na grande travessia, entre os homens, a grande maioria era colhida pelas

tormentas do passado, incidindo nos mesmos desequilíbrios, para cuja

libertação reencarnaram. Aprendi que as idéias que mais perturbam e as

coisas que mais influenciam, devem ser vencidas a qualquer preço de dor.

Carregamos na mente os valores de ontem que nos continuam a subjugar,

conduzindo-nos a desmandos.

O amor selvagem, o desequilíbrio alimentar, o álcool, a cólera, o orgulho e

o egoísmo eram os grandes responsáveis pela libertação precipitada das

almas. Eles respondiam pela larga cópia de crimes no Orbe e pelos dolorosos

estados de horror e loucura após a cortina tumular.

Constatei, muitas vezes, que o excesso de comida conduz maior número

de almas à morte do que a carência de alimento.

A paixão criminosa da posse apresentava grave índice de desequilibrados

que, irracionalizados, se atiravam aos desvãos cruéis do anarquismo de toda

ordem. E por detrás de todos esses tremendos insucessos estavam os débitos

de ontem, ligando almas a almas, erros a reparações frustradas, algozes a sicários,

em atritos continuados. E concluía que Jesus, dois mil anos depois de

ter estado entre os homens, continuava ignorado.

Tão fácil e clara afigurava-se-me a sua Doutrina, agora:

“Perdoar setenta vezes sete.

Amar os inimigos.

Desculpar os caluniadores.

Marchar dois mil passos junto a quem nos pede uma caminhada de mil.

Ignorar o mau e tolerar-lhe os males.

Dar também a túnica àquele que pede a manta...” Recordava-me, filha

minha, quantas vezes eu própria desrespeitava esse código singelo e

expressivo! Quantas quedas marcaram a minha alma por desatenção a essa

preciosa síntese. E o orgulho, o egoísmo e a ira eram os responsáveis pela

desatenção. Inimigo multimilenar de nossa integração no roteiro fraternista, o

“eu” governa multidões e estilhaça corações. O impacto da sua carga aniquila

92

expressões valorosas de respeitáveis promessas.

“Aquele que quiser vir após Mim — ensinou o Mestre — renuncie-se a si

mesmo, tome a sua Cruz e siga-me”. Desde a infância, habituamo-nos a ouvir

essa luminescente advertência, no entanto... Eis os resultados em toda parte.

A Terra era a abençoada promessa para a imortalidade vitoriosa, de todos;

no entanto, a multidão que chegava à Colônia, diariamente, mais se parecia a

malogrados navegadores, colhidos por vendaval imprevisto. As câmaras

reservadas à loucura apinhavam-se, constituindo motivo de preocupação aos

Mensageiros da Paz, na Administração da Casa, consoante me informara o

bondoso médico.

Os hipnotizados, em hibernação mental, enchiam várias Enfermarias,

guardando a facies marcada pelos horrores dos últimos dias na carne e os

primeiros no Além, sob o acicate impiedoso dos adversários intransigentes.

Assemelhavam-se a mortos-vivos, mumificados, nos quais somente a débil

respiração assinalava a presença da vida. Noutras horas, sob o benefício da

prece e do passe, pareciam despertar, olhar esgazeado, estampando no rosto

o pavor, monossilabando com dificuldade de articulação sons incompreensíveis,

para recaírem na mesma prostração de antes.

Era como um infinito desfilar de destroçados por guerra horrenda.

Dedicados cooperadores revezavam-se nos socorros entre orações e

auxílios de toda ordem, a cujo grupo fui incorporada, feliz e ansiosa da

renovação íntima que se fazia inadiável.

Decorriam já três anos da minha desencarnação, quando a querida Zélia

me acenou com a possibilidade de um retorno ao Lar, em visita, por oito dias,

fazendo parte de um grupo de companheiros sob a sua orientação, voltando ao

seio das famílias.

Não me podia conter de expectativa e ansiedade. Sabia não merecer essa

desejada bênção. Vários amigos novos explicaram-me, anteriormente, as dificuldades

de conseguir-se ensejo para reencontros na Crosta. Ante essa

promessa, não me podia dominar, visitada a todo instante pelo júbilo e pela

emoção.

Depois de estafante tarefa de socorro a acidentados de Estrada de Ferro,

recolhidos à nossa Colônia, a amiga espiritual informou-me que, no dia seguinte,

quarta-feira, às 19:30 horas, eu retornaria ao Lar, em programa de

visita. Lembrei-me de que sempre escutava a tua voz, orando com meus

netinhos, no Culto Doméstico do Evangelho, nos dias de quarta-feira. Sem

conter a própria felicidade, osculei as mãos da Benfeitora, que sorriu feliz,

deixando-me a conjeturar.

No dia aprazado, após os labores habituais, reunimo-nos no Templo, e a

irmã Zélia esclareceu:

— Fomos agraciados com o feliz ensejo de reabastecimento de amor.

Retornaremos ao seio carinhoso dos nossos familiares. Nem todos, entretanto,

encontraremos os entes queridos como desejaríamos. Dor, problemas,

dificuldades, doenças, assinalam muitos dos lares programados. Tenhamos

confiança em Jesus. Já sabemos que a felicidade não se veste de ilusão e que

a paz legítima não é a resultante dos aparatos sociais do mundo. Temos

aprendido aqui que o sacrifício e o sofrimento são instrumentos utilizáveis na

construção do Reino de Deus. Não nos inquietemos, pois.

Depois de breve pausa, como que para reunir novas expressões,

prosseguiu:

93

- A Justiça Celeste atende-nos em qualquer lugar e a Lei encontrar-nos-á

em qualquer situação, buscando-nos para o reajustamento com a vida. Confiemos

no Mestre Excelso e agradeçamos-Lhe a dádiva de agora.

“Não temos o direito de tentar, sob qualquer pretexto, em nome do amor,

resolver os problemas que encontraremos na tela mental dos familiares, mas

poderemos inspirar-lhes ânimo e coragem para a luta, resignação e confiança

na vitória do Bem.

“Também não lhes devemos noticiar as próprias inquietações...

“Utilizemo-nOS da dádiva do Senhor como abelhas operosas que se

comprazem na felicidade da flor!”

E como se fizesse continuado silêncio, a amiga espiritual concluiu:

— Formaremos um gupo de almas ligadas pela oração, concentradas no

serviço que nos aguarda, e utilizar-nos-emos da volitação para a viagem à

Terra.

94

25

RETORNO AO LAR

Quando soavam as vinte horas, de coração opresso entramos no Lar, irmã

Zélia e eu. Preparavas a mesa, minha filha, para o banquete com o Evangelho.

Desde as vésperas — informara-me a Orientadora — foras avisada pelos

teus dedicados protetores, quando o sono te desdobrou. Já de outras vezes

nos encontráramos, em agradável comunhão, sob a tutela do repouso físico. E

por essa razão, guardavas a idéia de algo que não sabias explicar.

Descompassada e celeremente procuravas sondar as telas da memória

anterior, procurando recordar a notícia que prenunciava as satisfações dos

próximos momentos. Inutilmente, porem.

Também eu, embora amparada pela Benfeitora prestimosa que se

oferecera a auxiliarme, guardava ansiedade e emoção indescritíveis. Era a

minha primeira excursão fora da Colônia e esta aventura se me afigurava uma

concessão valiosa que não sabia aquilatar.

O reencontro, filha minha, é sempre uma emoção indefinível para aqueles

que atravessam a porta do túmulo. Porqüanto, sensações que pareciam

amortecidas, com a recordação momentânea, através da visão, retornam,

convidando o espírito a estados angustiantes e lastimáveis.

Sem poder vencer as evocações ali tão vivas, retornei aos sítios das

lembranças, enquanto pequenas aflições se sucediam em minha alma.

Voltaram-me ao pensamento, como por magia, velhos e insignificantes hábitos

diários, satisfações e preocupações, agora em formas-pensamento, a

povoarem o recinto que habitara. As vozes das crianças, buliçosas e álacres,

sacudiam-me o ser, e um intenso desejo de falar-lhes, abraçá-las, comunicar a

minha presença, no momento, aspirar o ar que outrora me enchia os pulmões,

descontrolou-me momentaneamente o equilíbrio ainda vacilante. A irmã Zélia

que me acompanhava o drama do momento, em que o tempo era vencido,

desaparecendo o passado para somente existir o presente, acudiu-me, zelosa:

— Otília, não permitas que a ansiedade destrua a presente concessão do

Céu. Pensar fortemente é construir, e recordar com demasiada intensidade é

reviver. O momento não comporta lamentação mental nem desejo pessoal

inoperante. Valoriza a jóia dos minutos e procura serenar a alma para o êxito

do nosso empreendimento.

Assim admoestada, procurei refazer-me sob a inspiração da paciência,

enquanto me entregava à mãos do Senhor, agradecendo-lhe a felicidade

daquela hora.

A noite contribuía para a justa felicidade do nosso entrelaçamento afetivo.

Uma grande serenidade passeava no ar leve, transparente, coroado de estrelas

no Infinito.

O velho companheiro, que me fora um anjo benfeitor na romagem da

carne, para a justa felicidade do nosso coração, estava à mesa, e as crianças o

cercavam. Colocaste o vasilhame da água para a magnetização e, iniciado o

Culto Evangélico, o texto lido falava sobre “Parentela corporal e parentela

espiritual.”(*)

Após a leitura, ante uma assistência atenta de companheiros

desencarnados, instada pela devotada Amiga, aproximei os meus lábios dos

teus ouvi-dos e, pousando a mão espalmada sobre a tua cabeça, pus-me a

falar-te sobre o trecho lido.

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A tua mente foi-se banhando de filetes azulados de luz, à semelhança do

gás néon, e, em breve, do centro da tua cabeça, uma grande flor, com pétalas

brilhantes e múltiplas, parecia surgir, tomando forma, e crescendo e

derramando tonalidades violeta-azuláceas que corriam pelo sangue, colorindo

lentamente a cabeça, tórax e todo o corpo.

De mão apoiada à testa, na região do olho de Silva, ligando as pontas dos

dedos à minúscula glândula interna da cabeça, pequeninos fios coloridos tornavam-

se brilhantes, fechando um circuito elétrico que a ambas nos envolvia.

Procurei falar-te, então, através de apelos reiterados:

— Fala, filha!... Fala!... Repete!...

(*) Capítulo XIV— item 8, de O Evangelho Segundo o Espiritismo. (Nota da

Autora espiritual).

E, paulatinamente, concentrando-se cada vez mais, traduziste o meu

pensamento, explanando juntas, fundidas no grande ideal da Caridade, sob a

égide do Cristo, o texto admirável. A palavra facilitada pela inspiração superior

irrigava-me o cérebro e passava a ti numa sincronização perfeita, em torno daqueles

que, embora não pertencentes ao nosso corpo nem ao nosso sangue,

são irmãos nossos, filhos do Boníssimo Pai, em nosso caminho de reparações.

Faziam parte da imensa caravana dos infelizes, fustigados pela fome, frio,

enfermidades, ou eram seres tresmalhados, dominados pelo ódio, revolta,

inquietação, atados à esteira da viciação, do crime, da miséria moral — mais

infelizes do que os primeiros — ou aqueles outros que zarparam na

embarcação da morte e agora, em terras bravias, se desesperavam, sedentos

de posse, dominados pelo horror. Todos éramos realmente irmãos, numa

família ampliada e espalhada por terras diversas, limitados por fronteiras de

entendimento, mas todos amados e carentes de ajuda recíproca.

Nesse ínterim, Amigos prestimosos higienizavam nossa Casa, destruindo

larvas de viciação psíquica, reinantes no ambiente, e guerreando bactérias

mentais, que infestavam, invariavelmente, os lares.

Entre os maiores benefícios prestados pelo Culto Doméstico, no campo da

fé religiosa, além da fraternidade e do entendimento, passe e magnetização da

água, destaca-se o da harmonia e identificação do pensamento em torno da

monoidéia elevada, propiciando campo e material ao combate às vibrações negativas

que grassam nos ambientes coletivos.

Nosso colóquio prolongou-se por vinte minutos, aproximadamente, quando

conclamamos os ouvintes à Caridade, desde a compaixão emotiva ao auxílio

socorrista, materializado em doações pessoais, como entendimento,

distribuição de pão, remédio e agasalho.

Compreendemos que o homem, aparentemente mau, é apenas um

enfermo, portador de muitos males, e que o coração que se banha nas águas

turvas do ódio é apenas um espírito desequilibrado, sem roteiro nem

discernimento para utilizar com sabedoria as oportunidades do caminho. E, em

face disso, nossa função é amparar o doente, combatendo-lhe a enfermidade;

ajudar o mau, guerreando o mal que lhe perturba a organização espiritual,

consoante os ensinamentos de Jesus.

Apagadas as luzes para as vibrações e preces intercessórias, utilizei-me

do momento para cooperar na transmissão de energias, imitando os nossos

Amigos mais lúcidos, oferecendo-te, e aos nossos, a doação materna, em

96

carinho e coragem, confiança no futuro e entendimento na dor, essa grande

libertadora, alargando, com o auxílio divino, os nossos celeiros e guardando

neles os valiosos recursos do momento, para os dias do futuro.

Encerrada a reunião, acompanhei a alegria geral, participando das

conversações posteriores, ligada pelos fios do pensamento e assegurando-te a

confiança vacilante, quanto à minha estada, no Lar, naquele momento.

Uma grande ventura invadia-me toda. Mais uma vez observava a

excelência da fé e o valor do lar cristão nos grandes cometimentos da vida.

Voltou-me à mente o ensinamento do Divino Mestre: “Aquele que crê em Mim

já passou da morte para a vida”, e senti na vida vitoriosa, além da morte, a

Mensagem cristã como um farol abençoado.

Graças ao Espiritismo, que nos legou os meios que favorecem a

comunicação entre os dois mundos, podem as almas trazer a notícia aos

caminhantes da experiência física, revigorando-se pela permuta de amor, já

que não cessam as emoções no intercâmbio da vida.

Graças a Allan Kardec, que “matou a morte”, podemos hoje repetir que

realmente “ninguém morre”. A vida é inextinguível. Com a destruição do corpo,

o espírito libra-se acima das vicissitudes e continua. E ante a minha felicidade,

não pude deixar de render o meu culto de gratidão ao Professor lionês que

tanto sofreu, desde a chocarrice e o escárnio dos contemporâneos até o

opróbrio e a maldição, para positivar a continuação da vida, depois da

destruição dos despojos materiais.

Somente quanto a noite seguia avançada e te recomeste ao leito, pude

receber-te nos braços, nas asas do sono, demandando, ao lado da abnegada

Benfeitora, o pouso onde nos demoraríamos, durante a excursão de

aprendizado na Crosta.

No alto, as estrelas prateavam de faiscantes e luminosos fios o veludo

espesso com que se cobria a noite formosa. O ar misturado de ozone e iodo,

vindos da viração marinha, brincava no silêncio noturno. Jesus parecia mais

próximo de nós, certamente porque, através do amor, estávamos mais

próximos dEle.

97

26

MEDIUNIDADE COM JESUS

No plano de estudos e trabalhos estava programada uma sessão de

desobsessão, em nosso antigo Centro, onde, anos atrás, me candidatara ao

serviço do Bem.

Somente o fato de ali retornar, na condição de desencarnada, revendo os

amigos no afã do socorro mediúnico, entrelaçados pela prece, era algo que me

comovia. Depois, a soma de conhecimentos que poderia armazenar, em

apenas uma noite, corresponderia a significativa coleta de apontamentos

expressivos que não podia desdenhar.

No dia aprazado, às dezoito horas, rumamos, em grupo, sob a direção da

irmã Zélia, para tomar parte na preparação do recinto, para as operações

mediúnicas da noite.

Àquela hora a azáfama era grande. Entidades laboriosas, postadas à entrada

da sala, guardavam o recinto, defendendo-o da incursão dos Espíritos mal

intencionados.

Uma estranha muralha, com dois palmos aproximadamente de espessura,

circundava o recinto e, ante a minha admiração íntima, a Benfeitora esclareceu

tratar-se de construção fluídica para defesa da Casa. No interior, Espíritos

familiares desdobravam-se em cuidados meticulosos, desde a assepsia mental

do recinto, até a colocação de aparelhagem complicada, em várias posições.

As dezenove horas, começaram a chegar as primeiras almas sofredoras e

atribuladas no nosso plano, que se juntavam às que se encontravam no recinto,

desde a véspera. A princípio, aparentemente a sós, depois, em grupos,

confabulando, inquietas, mergulhadas nos mais mesquinhos problemas que se

lhes afiguravam importantes, eram conduzidas a lugares adredemente

reservados. Outros vinham assistidos por enfermeiros de brancas vestes,

amparados cordialmente e colocados em leitos, como nas Enfermarias da

Terra.

Uns traziam expressões de dor e inquietude, gemendo ou chorando,

enquanto outros ostentavam semblantes de zombaria, gesticulando,

arrogantes, embora o estado deplorável das vestes e da própria organização

espiritual. Parecia não darem conta de si mesmos, aplicando o tesouro do

tempo na ostentação do orgulho e da crítica pertinaz. Religiosos motejadores,

de aparência cruel, proferindo expressões rudes, não tiveram acesso à sala

mediúnica, ficando à porta, coléricos, em atitudes lamentáveis. Alguns ficavam

a certa distância, distinguindo as mãos amigas que os ajudavam, enquanto

outros pareciam muito distantes, sem percepção nenhuma, sendo trazidos ao

campo magnético dos trabalhos por inspiração irresistível dos seus tutores

espirituais. Outros, ainda, alheados de tudo, apresentavam-se à vontade,

constituindo o conjunto uma cena entristecedora e comovente.

Começavam a chegar os primeiros encarnados.

Orientadas pela Benfeitora, verifiquei que alguns encarnados chegavam

seguidos por grande número de Espíritos vulgares e viciosos, que ficavam fora

das defesas magnéticas, sem as poderem atravessar com os seus tutelados

habituais.

- Aguardarão suas vítimas — informou a Instrutora —, depois que se

deslocarem da reunião. Muitos companheiros que vêm à sessão, logo que se

afastam dos elos magnéticos da prece e do entendimento, no templo, retornam

98

aos problemas mentais, semi-hipnotizados como vivem pelos obsessores que

os seguem transmitindo errôneas idéias e hipóteses falsas, até que se lhes

esgotam as precárias energias defensivas que conseguiram armazenar no

serviço, retornando, de mãos vazias, aos braços dos vampiros com os quais

sintonizam.

“Alguns — prosseguiu, penalizada —, embora libertados

momentaneamente das expressões obsidentes, penetram o recinto, com

desrespeito e indiferença, entregando-se, durante o trabalho, ao sono reprochável,

resultante da intoxicação mental de que são portadores, ou se deixam

conduzir pelos pensamentos habituais, refazendo as ligações mentais e ameaçando

o serviço venerando, pela possibilidade de invasão intempestiva dos

seus algozes revoltados, constrangidos, na retaguarda, e que, destarte, encontram

brechas no conjunto que deve ser protegido e defendido por todos.

Às dezenove horas e trinta minutos, deu entrada na Casa o Mentor dos

trabalhos, responsável pelo serviço da noite.

Os cooperadores espirituais expuseram-lhe as tarefas concluídas,

apresentando as dificuldades e explicando as diferentes qualidades de

Espíritos desencarnados presentes, as medidas tomadas e a situação mental

dos encarnados, no momento.

Após carinhosa inspeção e rápidas observações, Entidades intercessoras

rogavam-lhe permissão para se comunicarem com parentes presentes ou

pediam providências para seres amados em situações delicadas. Continuavam

imanados aos “velhos problemas da carne”, situando as ansiedades no socorro

material, com prejuízo da aprendizagem que se derivava do sofrimento dos

seus queridos.

Algumas mães aflitas, esposos ansiosos, irmãos e amigos em sofrimento,

solicitavam interferência direta e auxílio, e a grande maioria rogava oportunidade

de comunicação pelos instrumentos mediúnicos.

Delicado, porém enérgico, o Instrutor explicava a uns, expunha a outros,

que o serviço a realizar-se encontrava-se programado com antecipação, e que,

no momento, muitas eram as dificuldades a transpor no concernente à colheita

de resultados.

No plano físico, começavam a leitura e conversações preparatórias.

Conversação sadia, tertúlia edificante.

- Muito embora as comunicações somente sejam possíveis às vinte horas —

explicou a irmã Zélia —, esse espaço de tempo destina-se à desintoxicação ou

desencharcamento mental dos encarnados e harmonização psíquica dos

médiuns com os desencarnados que se vão comunicar.

Nesse momento, aproximando-se do nosso Grupo, o Instrutor Espiritual

saudou a irmã Zélia e congratulou-se conosco, pela presença no trabalho da

noite. Velho amigo, abraçou-me, informando-me estar cientificado de que eu

iria ocupar o canal psicofônico do médium Marcos, para breves palavras. O

médium — explicou-me ele —, por sua vez, estava instruído nesse sentido,

desde as vésperas, embora não se recordasse, conscientemente.

— Como você sabe — esclareceu, sorrindo —, o acaso é resultante de um

trabalho feito com muita antecedência.

Desejando-me feliz intercâmbio, afastou-se para continuar os misteres que

lhe diziam respeito.

Fiquei emocionada e reconhecida.

Quase à hora da prece de início da operação de intercâmbio, dois

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retardatários deram entrada no recinto, prejudicando, seriamente, a

estabilidade psíquica geral.

— São infelizes indisciplinados, — obtemperou irmã Zélia ao constatar a

consternação geral dos trabalhadores presentes.

“Nossos irmãos — prosseguiu — infelizmente, se habituaram à negligência

e, por mais os advirtamos, demoram-se na atitude indiferente, entre prazer e

dever.

E continuando, arrematou:

— Agitados e confusos, como se encontram, não poderão tomar parte na

reunião. Ficarão fora das defesas internas até que se ajustem mentalmente ao

clima local.

A prece foi feita pelo Diretor encarnado que, a esse tempo, estava

parcialmente incorporado pelo Instrutor espiritual e fortemente inspirado.

As palavras simples e sinceras do “velho” amigo de ontem, comoveram-me

ainda mais.

Devotado Instrutor do nosso plano utilizou-se da organização do médium

Marcos para as orientações de início.

A primeira comunicação ocorreu logo. Era uma alma impertinente ligada

ao médium, em difícil processo de reajustamento, sob o lastro de uma dívida

que se repetiu em várias encarnações com insucesso de ambos — informou a

orientadora, sempre prestimosa.

Nesse momento, notei que algumas manchas, à semelhança de bolas

escuras, caíam sobre o médium.

Com o olhar, interroguei irmã Zélia. O esclarecimento veio rápido:

— São as vibrações da assistência encarnada — disse, tristonha.

“Alguns companheiros nossos, do plano físico —prosseguiu à meia voz —,

além de não cooperarem, atrapalham com pensamentos de dúvidas, indiferença

e até, não raro, de mofa. Não se apercebem do grande drama que envolve

as duas almas e, por isso mesmo, prejudicam o registro das impressões, pela

mente do médium que, assim, ainda mais se desequilibra.

Chamando-me, a amiga incansável apontou respeitável senhora,

indagando:

— Notas algo?

- Sim. Está dormindo.

— Exatamente. O fenômeno aí é hipnose à distância. Seu perseguidor

ficou na retaguarda; no entanto, continua ligado ao seu pensamento pela idéia.

— E não se pode fazer nada por ela? —indaguei, penalizada.

— É o que estamos tentando, no presente momento respondeu —.

Trabalhando e procurando ajudar, convidamo-la à colaboração e à vigília, em

favor dos demais sofredores. Convém não esqueçamos que a Lei é a mesma e

invariável, para todos. Cada alma ésempre socorrida, no entanto, a ascensão

só se fará pelos pés em movimento no Bem, de quem deseje subir.

“Infelizmente — continuava, esclarecendo, — a nossa consóror, como

muita gente, em chegando à reunião, acomoda-se, e, distante da atenção séria

e do respeito ao Senhor que nos rege os destinos, por cansaço ou negligência,

entrega-se ao sono, sem lhe oferecer a menor resistência.”

— Que fazer? — Inquiri, condoída.

— Orar por ela e por todos, confiando no tempo. Ao fim de alguns anos,

despertará, talvez, mais infeliz, visto que a enfermidade obsessional se complicará,

conduzindo-a a enfermidade mais séria. A lâmpada somente acende

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quando provida de pavio, embora o óleo abundante onde flutua.

Outro senhor, em cadeira vizinha, demorava-se inquieto. Os bocejos

sucediam-se, enquanto a mente derramava, qual fruto apodrecido quando

comprimido, substância escura e viscosa.

— É um discípulo e escravo da gula — acentuou a delicada trabalhadora.

Embora as advertências do Diretor da reunião, bem como das regras de saúde,

o nosso amigo sobrecarregara o estômago e chega à sessão semicongestionado

e enfadado, como se, indisposto qual se encontra, tivesse vindo

fazer um favor desagradável, mas de que se não pode furtar.

E apontando vários fatores positivos de insucesso nos trabalhos

mediúnicos, por parte, quase na totalidade, da irreverência dos encarnados, a

prestativa mensageira lembrava-me que este é o material com que o tempo e a

perseverança do Mestre vão modelar a felicidade e a ventura do futuro.

As comunicações sucediam-se.

Enquanto o Diretor encarnado atendia aos comunicantes, Entidades

esclarecidas pregavam a grupos compactos, enfermeiros ativos conduziam

sofredores, passistas socorriam aflitos...

— Mediunidade nos dois planos da vida — elucidou a Senhora Zélia. —

Mediunidade com Jesus, pensando feridas, consolando corações, instruindo

mentes, acendendo luz e socorrendo. Mediunidade e Jesus amando o homem

e renovando o mundo.

O tempo passava.

O Instrutor aproximou-se de mim e convidou-me à incorporação.

— A irmã dispõe de seis minutos — informou, bondoso. — Seja breve, O

essencial não é dizer muitas palavras, mas dizer o máximo com o mínimo de

expressões, no menor tempo possível.

Ajudada pela abnegada Orientadora, aproximei-me do médium e, orando,

fui-me assenhoreando do aparelho psicofônico, experimentando as mais complexas

sensações. Enquanto leve perturbação das faculdades mentais me

preocupava, grande lucidez tomava o médium em concentração. Como se

fosse desmaiar, ouvi enérgica voz, ordenando-me:

— Pode falar. Você já está incorporada.

Súbita aflição povoou-me o cérebro, turbilhonando-me as idéias.

Atropelavam-se, no meu mundo mental, evocações e desejos, misturados a

inquietante receio.

Lembrei-me, então, do Celeste Amigo, e tentando reter-Lhe a veneranda

figura, recordei-me de uma das oleogravuras terrenas em que Ele aparece

meditativo, contemplando Jerusalém adormecida, e verifiquei que, ao desejar

votos de felicidades e venturas aos irmãos, a boca do médium, abrindo-se,

enunciou as primeiras palavras que se desenhavam na minha vontade.

Deslumbrada, notei que a organização mediúnica do amigo encarnado

emoldurava-se de suave claridade e que, do cérebro e do coração, desprendiam-

se, em colorido múltiplo, fachos brilhantes que variavam de intensidade, à

medida que o meu pensamento era registrado e transmitido.

Reunindo todas as forças para deter a onda emotiva que me espreitava,

recataloguei idéias. E, à medida que a palavra, a princípio vacilante, depois

mais ritmada, expressava os meus desejos, confundi-me na aura do

instrumento, vivendo, em mim mesma, a felicidade de testemunhar, aos

amados, a vitória da vida sobre a fragilidade da carne.

O tempo corria e, sob o controle do Instrutor dirigente dos trabalhos, senti

101

a necessidade de limitar os anseios crescentes, despedindo-me, emocionada e

jubilosa.

Agradável bem-estar empolgava-me, e aos meus ouvídos continuava a

escutar as palavras enunciadas, agradecendo ao Céu o contentamento

imerecido daquele instante.

Logo depois, o Amigo Espiritual, ocupando a mesma organização

psicofônica do encarnado de que me utilizara, proporcionou elucidações cheias

de alento, nas quais se misturavam sabedoria e bondade, recordando-nos o

conhecido roteiro da Caridade e do Amor.

À hora aprazada, depois da prece de reconhecimento, foram encerrados

os serviços.

102

27

CARIDADE E RENÚNCIA

Concluída a tarefa mediúnica, no plano físico, o movimento continuou,

entretanto, na esfera dos desencarnados.

Sofredores atendidos, durante as orações, permaneciam aguardando

remoção, embora assistidos de perto por zelosos enfermeiros.

A agitação de alguns Espíritos não atendidos durante o programa

socorrista, afligia-me. Todavia, a serenidade com que os desvelados

Benfeitores agiam, estimulava-me à coragem e à confiança.

Acesas todas as lâmpadas, os companheiros encarnados ofereciam

atitude lamentável, em matéria de conduta espiritual.

Rapidamente retomaram à bulha desrespeitosa, como se estivessem num

recinto dedicado ao prazer, esquecidos, talvez, de que o santuário onde a

mediunidade labora é uma Enfermaria-Escola de auxílio imediato e

aprendizado aproveitável.

Outros voltaram naturalmente às velhas idéias e opiniões a que se

afeiçoaram, desde há muito, sem apresentarem, após tanto esforço dos seus

Guias e Protetores, qualquer modificação no plano mental.

Alguns semblantes apresentavam evidentes sinais de tédio e cansaço,

sem o menor vestígio de satisfação ou conforto pelo ensejo de ajudar,

ajudando-se.

Noutros encarnados identifiquei indiferença profunda pelo trabalho a que

assistiram e, orientada pela irmã Zélia verifiquei, surpresa, que nem sequer

haviam tomado parte, de qualquer forma, nas realizações da noite de

atividades.

Somente em alguns poucos pude constatar o respeito e a alegria íntima,

fazendo análise sincera de tudo quanto ouviram, em exame cuidadoso. Observei

que esses poucos, mesmo encerrada a reunião, continuavam ligados à

organização espiritual mantenedora dos serviços oferecendo plasma mental e

fluídos salutares que eram utilizados pelos operadores para assistência aos

desencarnados socorridos.

As entidades infelizes, que permaneciam à entrada, abraçavam, cheias de

sarcasmo, seus habituais comensais psíquicos, entabulando, com risos e atitudes

ridículas, conversações de desrespeito e zombaria, das quais o encarnado

participava, através da transmissão do pensamento, duvidando de tudo, sem

consideração alguma pelo culto e atirando espinhos de suspeita infundada na

honorabilidade dos medianeiros.

Aproximando-me de cavalheiro bem posto que eu havia conhecido nos

dias da carne, observei-lhe as dúvidas mentais, nas quais, a suspeita perigosa

e a crueldade se davam os braços para alicerçarem pontos de vista,

aparentemente respeitáveis, porém profundamente falsos. Monologava

negativamente, com sorriso superior.

Guiado por terrível vingador do Além, acercou-se do médium Marcos,

desejando injetar-lhe fel de desconfiança e veneno de amargura.

O Instrutor dirigente que o observava, antecipando-lhe a planificação

maléfica, envolveu o medianeiro, atendendo-lhe o canal inspirativo e

aguardando, sereno, a investida da impiedade.

— Interessante a comunicação da nossa Otília —, adiantou-se o

suspeitador inveterado.

103

“Notei-a elevada, com fraseado novo, vestindo as palavras com

argumentações muito diversas da capacidade que lhe era habitual. A voz, as

expressões, diferenciavam-na bastante daquela que eu conheci.”

E num tom arrogante, desferiu o golpe, bem traçado:

— Não fosse por seu intermédio, confesso duvidaria da autenticidade da

comunicação. Somente a reconheci, ao terminar, quando se identificou pelo

próprio nome.

O médium, colhido de surpresa, tentou esclarecer algo, acrescentando

explicações sobre as possíveis razões das diferenciações notadas.

- Em mediunidade — falou o instrumento, desejando esclarecer —,

existem muitas sutilezas que escapam a uma observação superficial. É

necessário exame mais acurado, estudo das circunstâncias e dos impositivos

do momento, para chegar-se a uma conclusão a respeito do intercâmbio

espiritual e...

Ia prosseguir. O mentor, entretanto, cioso das responsabilidades da hora,

não deixou que o trabalhador oferecesse qualquer resistência às investidas do

desrespeito. Silenciou-o com oportuna sugestão mental, inspirando-lhe uma

resposta vaga, inexpressiva.

— ... e, não sei mesmo explicar — arrematou.

Como o interlocutor tentasse insistir pertinazmente com indagações

impenitentes, o médium, fortemente atendido, encerrou o assunto,

acrescentando:

— Não me recordo do que a amiga espiritual recomendou, entretanto

sugeriria que o amigo, desprezando a questão de identidade, examinasse os

ensinamentos e procurasse meditar com melhor proveito para si mesmo.

E, discretamente, desvencilhou-se, defendendo-se de novas investidas.

O cidadão afastou-se agastado, prometendo não mais retornar e

argumentando consigo mesmo, entre enraivecido e vitorioso: “Tudo é fraude!”

Decorridos alguns minutos, a sala voltava ao silêncio, com a saída dos

companheiros encarnados.

Algumas entidades, igualmente ligadas a deveres de outra ordem,

demandaram seus compromissos.

O Instrutor-dirigente, porém, informou-nos:

— Sigamos o médium Marcos até o lar, porqüanto, logo mais,

necessitaremos ainda da sua contribuição.

E voltando-se para mim, informou, bondoso:

— Mediunidade com Jesus é vivência na Caridade e na renúncia, no

sacrifício e na abnegação. Somos constrangidos a utilizar os companheiros

mais devotados, embora sobrecarregados, porqüanto os “desocupados não

dispõem de tempo para o trabalho”...

“Naturalmente que “àqueles a quem muito foi dado, muito lhes será

pedido”; bem assim, o que muito der em favor de outrem, muito receberá em

nome de todos.”

E alongando explicações, continuou:

— Consideremos o médium como enxada valiosa para o benefício do solo.

Quanto mais movimentada, mais brilhante. Ao revés, negando-se a contribuir

no trabalho, gasta-se sob a ferrugem devastadora.

“Quando o Senhor organizou o Colégio galileu, preferiu homens rudes,

mas afeiçoados ao trabalho cujo corpo, já cansado de lutas, estivesse

habituado às pelejas. Não procurou os doutos, acostumados às sedas e às

104

cátedras e pouco aclimatados às lides incessantes do trabalho.

“Na lição do Mestre encontramos o ensinamento de que melhor servidor é

aquele que não mede esforço na execução do trabalho, dispondo sempre de

renovadas energias, quando se faz necessária a doação de si mesmo.”

Nesse ínterim, chegamos à residência do médium, que ainda não a havia

atingido.

Um espetáculo inteiramente inédito me aguardava.

Entidades revoltadas sitiavam a residência do medianeiro em atitude

combativa, discutindo, em altas vozes, os meios de destruir-lhe a influência

junto às suas vítimas habituais.

Alguns comentavam, exaltados, sobre a possibilidade de o assassinarem,

procurando meios que coroassem de êxito o empreendimento. Outros sugeriam

lhe fosse intensificado o cerco, através de calúnias bem urdidas e intrigas

disfarçadas, colocando-se-lhe, no caminho, escárnio, dificuldades e

inquietações. Jovem indigitado, desencarnado, gritou:

— Exploremos-lhe a fonte da sentimentalidade, criando obstáculos afetivos

e afastando-lhe os companheiros mais próximos. Não há quem resista...

E depois de breve pausa, com sorriso vitorioso:

— A ingratidão e a calúnia, a solidão e o desprezo aniquilam qualquer

resistência. Nessa hora, então...

Alguém arrematou:

— Está pra nós!

A discussão prosseguiu animada. Olhando-me, expressivamente, o

Instrutor Élsior, que nos acompanhava, acrescentou:

— Caridade e renúncia com oração e amor são as únicas armas de defesa

que o médium pode utilizar nas abençoadas lides de manutenção da paz e do

trabalho.

Fazendo-nos identificar, o Benfeitor deu entrada no lar, seguido por nós

outros, enquanto os Espíritos irresponsáveis debandavam ruidosamente

proferindo expressões grosseiras.

105

28

DÍVIDA E RESGATE

Às vinte e três horas e trinta minutos, o médium procurou o leito e, depois

das orações habituais, antes de adormecer, procurou ligar-se ao Abençoado

Mestre.

O Instrutor dirigente, Élsior, aplicando-lhe passes hipnóticos, procedeu-lhe

ao desdobramento, através do sono.

Jovial e comunicativo, saudou-nos efusiva-mente.

Decorridos alguns minutos, nós o tínhamos ao lado.

— Apressemo-nos — sugeriu o Instrutor. — O dever nos aguarda!

Rapidamente retornamos ao Núcleo, conduzindo o companheiro,

temporariamente liberto. O recinto apresentava agora outro aspecto. As

cadeiras acomodavam Espíritos atentos e o ambiente era de profundo respeito.

Todos se encontravam mergulhados na oração, compenetrados das

responsabilidades que lhes pesavam. Uma mesa, algo afastada dos

assistentes, cercava-se de 10 cadeiras, onde Entidades trabalhadoras

igualmente mergulhavam a mente em meditação e recolhimento. As paredes

da sala ofereciam, na sua simplicidade, brancura invulgar.

O Instrutor Élsior conduziu o médium a uma das cadeiras isoladas junto ao

leito asseado onde repousava um Espírito de semblante implacável, em sono

torturado.

— É o vingador de jovem que milita no Centro —informou-me a irmã Zélia

—, e que vai ser atendido, logo mais.

Decorridos breves minutos, deu entrada no recinto uma jovem, igualmente

desdobrada pelo sono, apresentando no semblante os caracteres evidentes da

obsessão acentuada que a consumia. Vinha assistida por dois devotados

amigos da nossa Esfera.

Encaminhada carinhosamente ao assento vazio, conservava no rosto a

mesma expressão de receio, embora fortemente atendida pelos recursos

magnéticos dos assistentes. Não parecia ter noção do que se passava,

alheada a tudo.

Uma nova reunião mediúnica ia ter lugar.

Permaneci ao lado da irmã Zélia, entre os assistentes.

Depois de expressiva oração proferida pelo Instrutor Élsior, a doente

esboçou, algo serena, uma expressão de lucidez, identificando, lentamente, o

recinto.

Era o Centro familiar, onde, horas antes, estivera. A alegria delineou no seu

rosto macerado um sorriso de contentamento. Ao identificar o médium, acenoulhe

discretamente e indagou-lhe da razão de tudo aquilo.

O médium Marcos, atento às orientações do Instrutor que a jovem não

percebia, informou-lhe tratar-se de assistência ao seu perseguidor, atendendo

a ordem de natureza superior. Rogava-lhe, por isso mesmo, calma e confiança,

coragem e compaixão utilizando os valores da prece para o êxito da tarefa.

Afirmou-lhe a presença de devotados companheiros da esfera espiritual

superior, tranqüilizando-a quanto à ausência de perigos, durante a entrevista.

— Desde há muito — continuou solícito, assistido de perto pelo amoroso

companheiro desencarnado — fazia-se imperioso este empreendimento para

encaminhar o algoz à esfera física, em trabalho de reajustamento.

Depois de prepará-la com delicadeza e cuidado, o Instrutor Élsior fez-se

106

notado e, apresentado pelo médium, concluiu, com esclarecimentos oportunos

e justos, a realização significativa que ia desenvolver, tocando o centro da

visão da enferma e dilatando-lhe a percepção visual do recinto.

O semblante de Ângela desenhou a alegria que lhe surpreendeu a alma

sofredora. Depois, foi-lhe mostrado, em sugestão hipnótica entorpecente, o

infeliz perturbador que lhe assediava a casa mental.

Realizados os cuidados indispensáveis, assistentes calmos e cônscios dos

seus deveres aplicaram passes dispersivos sobre o obsessor, que despertou, a

princípio modorrento, recuperando a expressão fria e impenitente, sob

imprecações lastimáveis.

Desafiando as forças do Bem e deblaterando, irresponsável, apresentava a

outra face do homem, mais fera que criatura, acompanhando as palavras com

gestos de profunda revolta.

Instado pela palavra inspirada do medianeiro e sob recursos poderosos,

acalmou-se para o reencontro com aquela que lhe sofria a ação corrosiva e

prejudicial, filha do ódio incessante.

Ao se defrontarem, as duas almas, vítima e algoz recíprocos, a jovem

apresentava-se amedrontada. Palor e lágrimas cobriam-lhe o rosto, como se

reconhecesse, subitamente, naquele adversário “gratuito”, alguém muito

amado, mergulhado nas águas turvas do ódio e da rebeldia. O perseguidor,

porém, gargalhando, fitou-a friamente, indagando, impiedoso:

— Choras? Reconheces-me?

— Perdoa-me! — suplicou de joelhos, num movimento instintivo.

Como se a mente de Ângela fosse sacudida por um vendaval que a fizesse

recuar no tempo, transportou-se até a Casa dos Braganças, nos agitados dias

da transmigração da Família Real lusitana para o Brasil, no século XIX.

— Perdoar-te? Jamais!... Nunca te perdoarei — rugiu o inditoso

perseguidor. — Embora reencarnada, fugindo de mim e da minha justiça,

desertora da honra que és, consegui, após exaustivos esforços, localizar-te e

nunca mais te deixarei.

— Tem piedade! — suplicou a infeliz.

— E a tiveste para mim, para o meu lar, maldita? —retrucou.

— Pensei — respondeu amargurada — que tivesses morrido nas ruas de

Lisboa, quando da chegada das tropas de Junot... Esperei tanto por noticias

tuas!... Nunca mais me escreveste...

A voz morreu-lhe nos soluços. E, depois de muito esforço, continuou:

— A fome, a miséria, a necessidade de viver... Reconheço que deveria, mil

vezes, ter morrido a prevaricar. No entanto, jovem e só, naqueles tormentosos

dias de sobressalto, não tive outro recurso...

— Desavergonhada! — reagiu cruel. — Se pensas que me comovem tuas

lamúrias, dá-te de lado, arreda-te porque não o conseguirás. Jurei vingar-me e

vingar-me-ei. A nódoa com que me manchaste, lavá-la-ei, através dos tempos,

com tuas lágrimas, até secar a fonte do teu choro e te arderes de agonia, como

eu próprio, devorado pelo desespero.

— Esquece! — balbuciou, aniquilada. — Pelo amor de Deus, esquece!

Verifiquei que o Instrutor Élsior e os Assistentes Espirituais sustentavam a

jovem, ao mesmo tempo em que procuravam transmitir compaixão ao desalmado

infeliz.

Ao mesmo momento quase, atendida pelo Irmão Élsior, Ângela pôs-se a

orar.

107

Suas palavras comoventes confessavam o erro criminoso e o resgate

punitivo, nas vias da loucura, fruto dos remorsos e dos excessos que a haviam

conduzido ao túmulo na segunda metade do século passado.

À medida que suas palavras se orvalhavam dos puros desejos de

reabilitação, oferecia-se a ajudar o ser amado de ontem, mesmo que o

sacrifício lhe fosse o preço do recomeço no Bem.

Desarvorado, tocado no imo pelo amor ainda latente, embora empanado

pela revolta, Antônio desejou fugir. Semilouco, agredia-se, proferindo

expressões de desesperado.

Ao impacto magnético de energias bem dirigidas, voltou a adormecer,

sendo conduzido à incorporação no aparelho psicofônico do médium presente,

em cuja organização, com a memória parcialmente adormecida, ouviu a

palavra sábia do lúcido Instrutor, quanto ao futuro na carne, em breves tempos.

Ângela voltaria a recebê-lo, não como esposo, mas na condição de filho.

Não filho da carne, mas do coração, amargurando os próprios dias na Terra,

sob o testemunho de suspeitas cruéis em sua honorabilidade de moça.

Depois de doutrinado com carinho e removido para a Colônia preparatória

da reencarnação, em breve a reunião foi encerrada e reconduzidos, às esferas

habituais, o médium e a jovem, participantes de tão importantes

acontecimentos.

Um mundo de indagações fervilhava no meu cérebro ávido, que,

entretanto, não ousava inquirir.

Encerrada a reunião, o Instrutor, aproximando-se da irmã Zélia,

esclareceu, delicado:

— Nosso Antônio reencarnará em cidade próxima, dentro de alguns

meses. Ângela encontrar-se-á de licença para tratamento de saúde, na mesma

ocasião, procurando repouso para os seus males íntimos. Será conduzida,

através de uma série de fatores que não vale a pena aqui enunciar, ao lar do

recém-nato, prometendo guardá-lo, ante o leito mortuário da mãezinha

tuberculosa e decaída.

E depois de breve pausa:

— Trá-lo-á para a Capital, sofrendo, em conseqüência do seu gesto de

caridade, renúncia e reparação do passado, o estigma da dúvida, por parte de

muitos, quanto à origem da criança...

E arrematando com segurança, concluiu:

— É da Lei. Quantos a desrespeitam sofrer-lhe-ão o reajuste. A dívida

clama pelo resgate, através dos tempos.

108

29

ANOTAÇÕES VALIOSAS

Vivamente impressionada com o admirável fenômeno de que acabara de

participar, não pude sopitar o desejo de aprender, e logo, na primeira

oportunidade, indaguei da irmã Zélia:

— Em referência ao trabalho socorrista, recordar-se-á o médium, do

acontecido? E a jovem Ângela, guardará ela lembranças que lhe felicitem o

Espírito?

Sempre generosa, a Benfeitora esclareceu:

— Certamente. Entretanto, as lembranças serão diversas, O médium, pelo

fato de conviver mais com os problemas espirituais, saberá que esteve em

trabalho de auxílio, conservando vagamente, na memória, as cenas, embora

não muito bem delineadas. Angela, todavia, terá a recordação de um pesadelo

apavorante, despertando assustada, em pranto e profundamente triste. Mas

estará assistida pela Infinita Misericórdia do Céu, que a todos ajuda, indistintamente.

Era muito lógico o esclarecimento.

A este tempo, afastamo-nos da sala.

A noite serena parecia invadida pelo canto da Imortalidade, interpretada

nos seus mistérios e segredos.

Os ensinamentos recolhidos conduziam-me a meditações em torno da

mediunidade. Infelizmente não conduzia comigo uma bagagem intelectual que

me facultasse penetrar as sutilezas dos novos ensinamentos. Modesta dona de

casa, Deus sempre se me afigurou como Pai Misericordioso. Amei-O com a

inocência de alma simples que não vive sobrecarregada de indagações

inquietantes. O Espiritismo ensinou-me a amá-lO como Pai Sapiente, e agora,

ante as lições recebidas, lamentava a estreiteza do meu entendimento, que me

impossibilitava a retenção de tão valiosos ensinamentos.

Notando-me o cenho carregado, a cuidadosa preceptora indagou-me dos

motivos de preocupação, e, quando cientificada, esclareceu, com renovada

bondade:

— Não há motivo para se deixar abater. Recordemos que evolução é

programa de eternidade. A vida física é degrau de ascensão que nenhum de

nós desprezará. Todavia, convém lembrar que, cessada a fase

reencarnacionista, a alma continua crescendo em amor e conhecimento, fora

das vibrações da Terra, noutros redutos evolutivos.

E depois de algum silêncio:

— Evoluímos por etapas. Numa encarnação adquirimos a coroa da cultura,

noutra a palma do amor. Raros conseguem adquirir sabedoria e bondade,

cultura do cérebro e cultura do amor, de uma só vez. O mergulho na carne

condensa vibrações que passam a sintonizar com o clima mental de outras

vibrações resultantes de vidas pregressas, junto a outros seres, o que, de certo

modo, nos dificulta a sublimação libertadora. Sem desdenhar a cultura, faz a

alma um alto negócio quando desenvolve o sentimento, lapidando o caráter no

buril da dor. Enquanto que nem sempre são felizes aqueles que muito

desenvolvem o cérebro, sem cuidarem do sentimento.

Prosseguindo, aduziu, animadora:

— Se é verdade que o amor tudo pode, a alma menos culta, porém boa,

encontra campo espiritual para retornar ao conhecimento recolhido em etapas

109

passadas e na memória, o que não se dá com a cultura sem bondade. O

homem sábio, sem amor, pode tornar-se um monstro. Desencarnado, notará o

cérebro cultivado e, portador de coração vazio, terá uma grande jornada de

recomeço pela senda estreita do sofrimento, sem o conhecimento, nas

expiações purificadoras.

E bem humorada, concluiu:

- Se me dado fosse escolher, para a próxima jornada ao mundo, as armas

de progresso no jardim da cultura intelectual e do sentimento amoroso, consoante

os ensinos do Mestre, muito feliz me daria por escolher o ensejo de amar

e sofrer, aprendendo no livro do auxílio a interpretação dos enigmas da vida.

Um banho benéfico de paz lavou-me o coração. Tudo se me afigurava

compreensível e um alento renovado convidava-me a novo rumo pela estrada

da evolução. Pude compreender, por mim mesma, que, embora não pudesse

hoje digerir intelectivamente o aprendizado recolhido, em ocasião oportuna,

guiada pela luz da razão esclarecida, poderia retornar à meditação do assunto,

tirando-o do material guardado nos arquivos mentais.

Caminhávamos pela rua. A madrugada enluarada é, sem dúvida alguma,

uma bênção da grande mãe Natureza para o homem terreno.

As vibrações de harmonia e serenidade desciam nos raios prateados e

refrigeravam a Terra, envolvendo-a em paz.

A avenida deserta e silenciosa alongava-se. Raros noctívagos provocavam

ruídos. Com menor densidade mental, que o sono anestesiado, a noite acolhia

visitantes de outras Esferas. Era a hora do socorro intensivo, das intercessões,

das assistências, do afeto que nunca esquece. Grupos de entidades desencarnadas

surgiam, repentinamente, desaparecendo adiante, em algazarra

desenfreada. Semelhavamse a nuvem densa em desabalada correria.

Outros grupos passavam ligeiros, pardacentos, “úmidos”, com as ligações

perispirituais apresentando semblante enfermiço e apavorante. Eram Espíritos

viciados e inquietos, afinados a cômpares, em demanda dos antros de

perversão e animalidade.

A Benfeitora, que seguia comigo, conduziu-me àbeira-mar e, ante o céu

estrelado e o abismo líquido quase aos nossos pés, convidou-me à meditação

silenciosa e ao repouso.

Findo o prazo, retornamos felizes e saudosos...

Os dias de comunhão espiritual, contigo, minha filha, e com os irmãos da

Fé, recordavam-me o tempo da estação na carne. Ali estivera na estância

terrena, vendo com a alma o jardim de nossa felicidade, onde temos de

aprimorar-nos. Experimentara inexcedíveis alegrias no trabalho do intercâmbio,

na sessão de evangelismo em torno da figura insuperável de Jesus Cristo;

vivera as promessas do Lar, no entanto, o dever convidava ao prolongamento

da luta, no abençoado reduto em que me agasalhava.

O tempo passava cheio de obrigações que me favoreciam o estudo pelo

exemplo e a iluminação íntima pelo trabalho. Era indispensável recuperar as

horas desperdiçadas na inutilidade e na ignorância.

110

30

RECEBENDO O COMPANHEIRO

As visitas à Terra faziam-se mais freqüentes. Alguns meses depois de ter

voltado a privar do teu convívio, a irmã Liebe informou-me, numa das suas

habituais estadas na Colônia Redenção:

— Otília — começou a dizer, — como não desconheces, a enfermidade do

Gonçalves agrava-se, dia a dia. A idade avançada não lhe permite maior

resistência. Acreditamos que a desencarnaçãO se dará em breves dias.

Amigos Espirituais, que o seguem na presente etapa, comunicaram-me a

aproximação da hora de retorno. Sendo do teu desejo, poderá a irmã Zélia

dispensar-te, por cinco dias, para acompanhá-lo à hora do traspasse.

Com um sorriso bondoso, onde vibrava a sua ternura, concluiu:

— Recorda-te da vigilância em todos os momentos. O amigo é um irmão

em Jesus e transporá a aduana da morte com os recursos que entesourou

através dos anos, não podendo o teu auxílio caracterizar-se por expressões de

entusiasmo pessoal. Confia no Mestre e ora.

Fiquei jubilosa e ao mesmo tempo preocupada. O Gonçalves foi o pai que

eu conheci na hora mais difícil da existência, oferecendo-me, bondoso, o braço

nupcial. Tê-lo ao lado era motivo de satisfação, entretanto, talvez as

circunstâncias não nos permitissem, por algum tempo, maior convivência.

Aguardei, silenciosa e confiante, o ensejo de recebê-lo.

Na manhã seguinte, domingo, pela alva, cheguei acompanhada do Espírito

do frade franciscano Francisco dÁvila, ao quarto em que o velho esposo desencarnava

lentamente.

A dispnéia atacava-o e o coração atribulado detinha-se nos estertores de

demorada agonia.

Um amigo encarnado, que se postara fiel durante a dificuldade da doença,

dormia ao lado. Seu Espírito fraterno, no entanto, estava vigilante, assistindoo.

Identificou-nos à chegada, recebendo-nos com carinho.

O dr. Carneiro, velho cooperador desencarnado que colabora

eficientemente nas orientações espirituais da Casa, esclareceu-nos de

imediato:

— A desencarnação está programada para estes dias. Já iniciamos o

desligamento dos centros de força. Nosso irmão, entretanto, por formação

religiosa deficiente, guarda inexplicável pavor da morte. Embora recentemente

ligado às fileiras do Espiritismo, conserva no subconsciente o fantasma do

medo e, por isso mesmo, atém-se à carne, desesperado e receoso.

“Pretendemos, dentro de alguns minutos, trazêlo ao nosso campo

vibratório, esclarecendo-lhe a necessidade da confiança e da tranqüilidade, e

pela manhã inspiraremos os encarnados que o cercam de afeto, para que a

conversação seja feita em torno do problema da morte.”

Com a aplicação de passes cuidadosos, o enfermo querido, depois de

longa vigília, adormeceu, e, desligado parcialmente pelo dr. Carneiro, escutou

meio consciente, palavras estimulantes e roteiro para a viagem inadiável.

Despertou angustiado, embora conservasse na mente a idéia do termo da

romagem física.

Mais tarde, quando os amigos se aproximaram para a conversação

habitual, o dedicado médico inspirou a palestra, conduzindo-a para o palpitante

problema da vida nova.

111

Tecendo comentários sábios e profundos em torno da vida, aquém e além

da fronteira carnal, o amigo transmitiu-lhe a notícia do decesso físico, animando-

o para a bela excursão ao país da luz.

Feitas as orações e lidos alguns salmos espiritualizantes, o enfermo

serenou, identificando a fé robustecida pela certeza da imortalidade.

O dr. Carneiro informou-nos:

- Ele melhorará, aparentemente, para desprender-se dentro de quatro

dias, a fim de o pouparmos a choques para os quais não se encontra

preparado. Assim, terá tempo de meditar, recolhendo os frutos da esperança.

Consoante a previsão do médico espiritual, decorrido o prazo, em relativa

melhora, o estado geral apresentou modificação súbita e os distúrbios cardíaços,

em desordenada repetição, precipitaram o processo desencarnatório.

Sentada ao seu lado, e cercados pelos amigos constantes, ouvi o dr.

Carneiro acentuar:

— Inspiremos os amigos que se encontram em reunião doutrinária a

apressarem os trabalhos, favorecendo-nos com vibrações úteis.

No mesmo momento, claridade alaranjada, reconfortante e balsâmica,

banhou o aposento.

— São as vibrações de amor, dos irmãos na Fé — murmurou frei

Francisco dÁvila que cooperava em passes de desprendimento.

Realizando a delicada operação de desligar os liames perispirituais, que,

durante toda a existência, se imanam ao corpo, informou o médico:

— Desligar-se-á dentro de alguns minutos. Acompanhei o processo

desencarnatório, emocionada. A morte não parece ser muito fácil. Observei

que se desprendiam do corpo do moribundo, principalmente das zonas onde

foram aplicados os recursos dispersivos, os fluídos que pareciam movimentados

por hábeis instrumentos, recompondo ao lado do corpo que estertorava um

perfeito duplo em tudo igual ao complexo material. A respiração, antes acelerada,

foi diminuindo até extinguir-se. Dera-se a morte física. Apesar disso,

continuava ligado à zona coronária, um liame espesso, pardo-acinzentado.

Enquanto os encarnados oravam ou choravam discretamente, o médico

espiritual continuava o trabalho de desligamento, informando-nos, obsequioso:

— Somente decorridas algumas horas procederemos ao corte da ligação

epifisiária. Clinicamente o Gonçalves está “morto”. Sabemos entretanto que

agora inicia a grande jornada para a sua alma lutadora. Saudemos o irmão que

retorna, em nossas orações de reconhecimento ao Celeste Vivo.

Passados oito dias em os quais o companheiro se demorou em sono

profundo, foi conduzido à Colônia, onde despertou em estado de inquietação e

dor.

A enfermidade demorada deixou impressões profundas. Continuou, assim,

apresentando os sinais do cansaço, seguidos de longos minutos de dispnéia e

sucessivos desmaios.

Assistido, entretanto, pelo dr. Cléofas, lentamente foi recobrando a

serenidade, sendo conduzido a Enfermaria especializada. Passados quarenta

dias, fui conduzida pela irmã Zélia ao encontro com o velho amor, já consciente

e ansioso.

Cheia de expectativa, venci a pequena distância que nos separava,

conversando com a Benfeitora prestimosa, e, chegando à sala, vislumbrei, ao

lado do querido amigo, a figura delicada e jovial da amorosa Liebe.

Recebida com ternura pela meiga mensageira do Céu, ouvi-lhe novamente

112

a voz macia, ao mesmo tempo em que, erguendo o recém-desencarnado,

anunciava:

— Gonçalves, Jesus concede-lhe a satisfação do reencontro. Nossa Otília

veio visitá-lo. Não há morte! Sinta a vida! Agora você está livre!

Aproximei-me do leito e, debruçando-me, abracei-o, feliz e reconhecida,

beijando a cabeça ainda povoada de recordações e tormentos, e, como

outrora, reclinei-me no seu peito.

* * *

Voltei a visitar o colaborador da minha alegria na Terra, quanto me

permitiam as obrigações, respeitando, naturalmente, o regulamento do

Nosocômio Espiritual.

Com o passar do tempo, convalescente, foi-nos permitido alongar a

conversação, e, à medida que se ajustava ao nosso estado, pôde ensaiar os

primeiros passos, no mundo novo.

Na primeira oportunidade, a irmã Zélia convidou-nos a visitar o Jardim da

Saúde. Era a primeira vez que ouvia falar em tal recanto e, desejosa de informes,

aguardei jubilosa o ensejo.

Na noite seguinte, tomamos um veículo que nos conduziu os três aos

arredores da cidade. Bosque colorido esplendia de luz e cor ao nosso olhar

atônito.

Flores miúdas embalsamavam o ar. Pareciam-se com as flores dos jardins

terrenos, com a diferença única de serem luminosas.

Ante o meu espanto, a dedicada Condutora explicou:

— Trata-se de flores medicamentosas. Durante as horas do dia, absorvem

os raios solares, e à noite, ao transmitirem a luz retida, favorecem os Espíritos

alquebrados com emanações fluídicas de alto teor medicamentoso.

Aproximemo-nos!

Acercamo-nos de um canteiro de gerânios e rosas de alvura invulgar.

Sentamo-nos num banco igualmente alvo e macio que cedia anatômico ao

pouso do corpo espiritual. Música melodiosa derramava-se na noite.

Silenciosos, aquietamo-nos na contemplação abençoada do pomar da

Natureza.

113

31

ESPIRITISMO E CRISTIANISMO

Um ano depois da chegada de Gonçalves, eu já tomava parte ativa nas

freqüentes excursões ao Orbe, em aprendizado e tarefas de auxílio, quando o

dr. Cléofas informou que poderíamos acompanhá-lo à reunião da tarde seguinte,

a fim de ouvirmos a palavra sábia e consoladora de dedicado pregador

espírita desencarnado havia alguns anos.

Chegando ao recinto, deslumbrei-me com a multidão expectante, em cujo

semblante o júbilo vibrava, presente nas emoções gerais.

Depois de alguns minutos, acompanhada do Diretor da Colônia, apareceu

na plataforma, tomando assento à mesa, a figura veneranda de José Petitinga,

o esclarecido trabalhador espiritista da Bahia.

O respeitável cristão, delicadamente apresentado, dirigiu-se à singela

tribuna e, depois de breve reconhecimento, aureolado de claridade diamantina,

saudou-nos com a alocução que o Mestre nos legou:

— Amados irmãos, paz seja convosco!

“Uma grande noite abatera-se sobre a Terra, demorando-se, impiedosa.

A dor, zombeteira, escarnecia da Fé, derramando a sua taça de amargura

e desespero.

Respeitáveis patrimônios de crença desmoronavam-se fragorosamente.

Campeavam o crime e o medo.

A imoralidade vencia as resistências e enxovalhava os lares.

Fermentavam ódios e vinditas enlutavam corações, destruindo famílias

inteiras.

Santuários austeros eram violados pelo desrespeito dos próprios

zeladores.

A fauce hiante do horror apresentava-se e, gritando, feroz, a todos

conclamava ao prazer animalizante, à posse indébita, ao saque violento, à

destruiç ão.

Quantos obstinados que desejavam erguer barricadas em torno dos

tesouros da honra, da família, do Bem, eram massacrados e vencidos, O

ridículo sorria em todas as bocas, e crer, vivendo a fé, representava quase uma

enfermidade que inspirava asco aos cínicos.

Estabelecera-se o Reino da Loucura.

Depois de séculos de obscurantismo e dominações guerreiras, a Razão e

a Justiça ergueram-se para destruir as algemas escravizantes, inaugurando

uma era de novas misérias.

Em nome da razão empírica, surgiram idéias absurdas destruindo

venerandos princípios. Deus foi exilado de França como um réprobo e o

materialismo, decorrente dos conceitos ousados de pensadores precipitados,

dilatou seus domínios.

Quando a razão, apoiada no cientificismo moderno, avançou, investigando,

o desequilíbrio arrancou expressões que traduziam a loucura da época. —

Ciência e Razão, eis os meus deuses — gritaram os investigadores do

fenômeno da vida, transtornados.

Concomitantemente a Justiça, que nascia como um Ideal e que ousava

partir os grilhões do absolutismo do poder para proclamar os Direitos do

Homem, em hora de desespero, também gerou hecatombes que dizimaram

populações no último quartel do século XVIII. E o futuro que se delineava cheio

114

de esperanças crispou as águas, ameaçando o barco da Humanidade,

açoitado nas cristas gigantescas das ondas desvairadas, em tormentas

incessantes.

A Ciência examina e procura, libertando-se de todos os preconceitos,

renovando concepções e amadurecendo descobrimentos.

A filosofia indaga e cresce, elegendo ídolos e derrubando-os logo depois

na ânsia de encontrar respostas às indagações filosóficas.

A alma do povo sofre o efeito do desequilíbrio dos dirigentes do

pensamento universal.

Todas as atenções se voltam para o Céu, que parece distante dos terríveis

problemas da hora.

Mas, nesse momento de angústia, o Espírito luminoso de Allan Kardec,

tantas vezes experimentado nos grandes testemunhos ao Bem, é chamado ao

torvelinho da carne.

A França manda seus filhos estudar em outros países, depois da queda

dos princípios filosóficos que derrubaram a Bastilha e geraram tanto horror. E o

jovem Denizard Rivail é enviado a Yverdon, na Suíça, para, junto a Pestalozzi,

o Professor ideal, burilar o pensamento, retemperando a moral diamantina para

as grandes lutas em que se empenharia mais tarde.

Chamado à liça, no momento das mesas girantes e falantes, recebe, frio a

princípio, depois meticuloso e por fim entusiasta, a mensagem revolucionária

do Além Túmulo, obedecendo ao convite para ajustar-se à Missão de propagar,

viver e sofrer pelas idéias novas.

As vozes voltam a falar.

Os túmulos quebram o silêncio e os mortos ficam de pé.

Surge o Espiritismo clareando consciências e consolando corações.

Interrogações milenárias encontram respostas lúcidas à luz meridiana da

razão científica, que afirma a imortalidade, através dos seus mais altos expoentes.

Teorias estúpidas, secularmente aceitas, tremem nos seus fracos

pedestais e edifícios de falso saber tombam, em nuvens de pó.

Ideologias, guardadas pelo longo silêncio dos tempos, voltam à atualidade

e impõem-se vitalizadas pela nova Filosofia.

Os mistérios de Elêusis e Ísis são aclarados.

A morte é vencida no reduto a que se acolhera, demorando-se esmagada

sob a realidade do espírito livre.

Kardec sai a campo.

Encapeladas mareações são vencidas.

Perseguições supremas tentam cercear-lhe a marcha, sem o conseguirem,

todavia.

Traz uma Mensagem para o mundo e dá-la-á com o ardor de um apóstolo

e o entusiasmo de um esteta.

Sua palavra, concisa e lógica, enfrenta as superstições e as esmaga.

Sua pena luminosa polemiza e esclarece.

Sua vontade férrea fá-lo dominar a covardia de uns e o pieguismo de

outros, continuando a jornada luminosa.

A Doutrina Espírita brilha fulgurante, rompendo a noite e vencendo-a.

Almas aflitas buscam o Consolador.

Corações saudosos mergulham o pensamento em novas concepções e o

amor se renova sob os auspícios da Eternidade.

115

Criaturas simples e sofredoras batem às portas do Paracleto, carregadas

de problemas e inquietações, e são atendidas com elucidações vitalizantes.

Quando O Evangelho Segundo o Espiritismo difunde as letras que

guardam o Verbo do Mestre Inconfundível, iluminadas pelas informações dos

Imortais, a Religião Espírita planta a semente da Fé incomparável e cresce

albergando multidões. É que no seio dessa Crença há lenço para todas as

lágrimas, consolo para todos os sofrimentos e remédio para todas as doenças.

Jesus Cristo, que parecia longe do mundo, volta mundo e fulgura nos corações.

Deus, que fora exilado na Grande Convenção de França, volta e

permanece acima de todas as Igrejas como o Supremo Arquiteto, amado e

respeitado.

O dogma enfermiço e obsoleto é substituído pelo livre exame.

A intolerância é trocada pela compreensão. A supremacia religiosa é

vencida pelo bom senso.

O egoísmo é dominado pela caridade. Os homens voltam a ser irmãos.

Por isso afirmou o excelso Codificador: “A Caridade é a alma do Espiritismo.

Ela resume todos os deveres do homem para consigo mesmo e para com seus

semelhantes. E por isso que se pode dizer que não há verdadeiro espírita sem

Caridade”.

Retornava à Terra o Cristianismo puro, ensinado por Jesus e seus

discípulos nos três primeiros séculos da nossa História.

Com o Espiritismo, o amor volta a reinar glorioso.

“Não temos o direito de ser felizes, mas o dever de fazer a felicidade do

próximo” — afirmam as Vozes.

Não somos credores de honra nem de alegrias, antes, devedores de

graças e concessões valiosas.

Não dispomos de títulos que nos permitam angelitude nem paz. Somos

condutores de fichas com anotações que nos convocam à retaguarda para recuperações.

O homem chora — nossa oportunidade de servir;

O homem odeia — nosso ensejo de amar;

O homem se desespera — nosso momento de ajudar;

O homem corre enlouquecido — nossa ocasião de amparar;

O homem anseia por liberdade — nossa hora de reencarcerar-nos na

carne para ascender com ele àvida maior. Este o novo regulamento.

Jesus é a porta da felicidade.

Kardec é a via de acesso.

O Cristianismo é a resposta celeste ao angustiante apelo do mundo.

O Espiritismo é o condutor do homem aos braços do Pastor Divino.

Avancemos no Bem, demoremos na bondade, exercitemos na renúncia.

Não tenhamos dúvidas de que o Senhor aguarda por nós. Resta-nos

apenas a resolução de avançar para o Senhor.

Paz seja convosco!”

Ao terminar, coroado de luz, afastou-se, humilde, demandando o lugar à

mesa que ocupara antes.

A emoção tomava-nos a todos. Júbilos e saudades, recordações e

ansiedades múltiplas falavam em nossas almas.

Delicadas pétalas de rosas caíam do teto e desfaziam-se no recinto,

impregnando-nos de agradável e suave aroma.

Era a resposta do Céu, naquela hora de comunhão com o Alto.

116

32

CONFIANTE

O tempo abençoava-me a vida com as excelentes oportunidades de

serviço e aprendizado.

A morte não me ceifara a felicidade de trabalhar. Ao contrário, desdobrarame

as possibilidades de produzir.

A vida que não cessa é acionada pelo trabalho que não pára. Em toda

parte o trabalho é a alavanca básica de movimentação mantenedora do

equilíbrio. Patrimônio legado pela Divindade, o trabalho representa honra e

glória para o espírito sedento de evolução e aprimoramento.

Enquanto nos retemos na vida física, não sabemos valorizar-lhe a

expressão contribuinte para a integração no Bem Sem Limites. Constitui-se

mais desagradável obrigação, da qual necessitamos libertar-nos, do que

propriamente, bênção substancial de harmonia interior e satisfação evolutiva.

Por educação deficiente, vemos no trabalho um meio de subsistência e

acúmulo de pertences que, entretanto, passam com o tempo.

No mundo do espírito, descobrimos surpresas, que tal mister, longe de ser

uma imposição é, em realidade, uma oportunidade abençoada, porqüanto, tudo

girando em torno da construção incessante, a alma se sente honrada com o

prêmio de cooperar na sublimação de todas as coisas.

Entibiada pelo interesse imediatista, no plano físico, a alma encarcera-se

num modo deficiente de examinar a vida e desrespeita a concessão da luta,

descobrindo meios de fuga e lucros. Através de leis sutis e hábeis, que

encurtam o horário do labor, conclamando o homem à ociosidade e à

insensatez, num repouso imerecido, onde a mente livre de responsabilidade e

preocupação elevada se entrega aos hábitos depressivos, o homem perde a

alegria e o ânimo, fazendo do trabalho um adversário da paz íntima...

Sem o objetivo mais nobre que o trabalho sugere, o homem se faz um

autômato inconsciente, sem roteiro, perdendo-se em si mesmo, entre

inquietações e repetições de falsas necessidades, adquirindo neuroses e

psicoses que terminam por destruir-lhe a vontade.

Na esfera nova de lutas, onde me encontro, o Espírito deseducado no

dever experimenta agonias indescritíveis, porque evolução é fruto de lutas que

não cessam e felicidade é resultado do dever bem cumprido.

Só o dever realmente vivido pode responder com favores recíprocos aos

apelos veementes do espírito.

Procurei, em razão de tudo isso, ajustar-me ao programa de conquistas,

alojando no íntimo os propósitos humildes de esforçar-me e vencer-me através

do desenvolvimento de recursos, na dedicação ao serviço de cooperação.

Em face de tantas concessões da vida ao meu espírito atribulado e cheio

de dívidas, um horizonte glorioso desabrocha risonho à minha alma ansiosa

por liberdade e amplidão.

A misericórdia celeste pode ser entendida fora dos limites apertados dos

dogmatismos religiosos e o Pai Amantíssimo parece crescer em mim, de

maneira empolgante e entusiástica.

Em toda parte, minha filha, a vida desenrola-se num dossel maravilhoso

de promessas e harmonias.

A noite é sucedida pelo dia.

A dor afastada pela saúde.

117

O ódio superado pelo amor.

O medo dominado pelo fervor da coragem.

E a fé, rutilante e imponente, clareia-nos hoje a senda, convidando-nos à

conquista.

Arrebentam-se as cadeias da crença tradicional e a realização intelectiva

proporciona um patrimônio inestimável para a vitória certa.

De alma confiante, contemplo o porvir.

Muitos e sucessivos obstáculos se erguem ainda à minha frente,

aguardando superação e conquista. Mas, com o Senhor no coração e na

mente, não me atemorizo.

Com a claridade do entendimento lúcido, o resgate que me convoca a retorno

oportuno ao caminho do dever reencarnacionista, se, por um lado, me faz

meditar profundamente, por outro, não me atemoriza, embora eu compreenda

e sinta quantas quedas e recuos ocorrem na liça das batalhas.

Encontro-me informada, hoje, de muitos que fracassam, nas tarefas em

que seguem empenhados, muito antes de entrarem nelas. Os adversários do

ontem cerceiam-nos a marcha, dificultam-nos as possibilidades, distendem-nos

espinhos ou nos amolecem o caráter na comodidade e no prazer.

Mas sigo confiante no Senhor Jesus, Guia e Amigo Nosso, que jamais Se

esquece de socorrer os servos mergulhados nos ásperos combates.

Nele confio. Nele deposito todas as esperanças, oferecendo-Lhe a

existência, mil vezes, se necessário, pela infinita ventura de honrá-lo e amá-lo.

118

33

GRATIDÃO

Filha do meu coração,

enxugo os olhos úmidos e deposito aos pés da Mãe Santíssima da

Humanidade as flores débeis dos meus sorrisos de esperança.

No seu amor que ameniza o sofrimento e acalma o desespero, tenho

colocado a minha taça de solicitações incessantes, rogando-lhe auxílio e paz.

Endívidada, fracassada tantas vezes e rastejando em perigosos caminhos,

tomada de ignorância e miséria, sou a filha pródiga que retorna aos braços da

sua caridade e compaixão.

Sem fazer jus, ao menos, às concessões de esperança e trabalho que me

enriquecem os dias, tive minhas horas utilizadas pela insuperável alegria de

poder falar-te, despertando-te a alma, com a preocupação que vive em todas

as mães, para a utilização inteligente do tempo.

Nestas últimas palavras, através das quais ofereço o meu ósculo de

carinho sem limite, ao teu coração inesquecido, tento erguer-me da pequenez

que me caracteriza para falar à Rainha do Céu, enquanto lhe oferto o meu

ramalhete de gratidão.

— Senhora!

Em nome de todas as mães sofredoras do Além Túmulo, ofereço-Vos a

alegria destes momentos incomparáveis, eu que sou uma delas.

Oh! Rosa Mística de Nazaré, tende piedade de quantas mulheres,

desrespeitando o santuário da maternidade, se atiram loucas nos abismos do

crime.

Mulheres que adiaram o santo ministério da procriação.

Mulheres que se embriagaram na taça dos vícios.

Mulheres que degradaram o vaso sublime da perpetuação da espécie.

Mulheres que desdenharam o ideal supremo de toda mulher.

Mulheres que envenenaram a existência com o licor da vaidade e da

paixão, descendo à vala do assassínio.

Mulheres enceguecidas pelo ciúme que se atiraram no despenhadeiro sem

fundo do suicídio.

E socorrei aquelas outras que:

Mães, sacrificaram-se no anonimato e na renúncia. Mães, amarguraram no

silêncio e no esquecimento, guardando a própria dor.

Mães, desprezadas e vilipendiadas, permaneceram desconhecidas.

Mães, lutaram e sofreram sem desânimo nem receio.

Mães, morreram no holocausto do lar, para que os filhos se tornassem

filhos do vosso amor, dignos do vosso Filho.

Oh! Vós que experimentastes todas as máximas agonias e sorvestes sem

reclamação, até a última gota, a taça de fel e amarguras, por amor do amado

Filho, perdoando aos seus algozes, descerrai vossos olhos e contemplai a

mulher sofredora e desfalecente, ajudando-a e reconvocando-a aos sagrados

deveres do Lar e da Maternidade.

Senhora Nossa, ajoelhada aos vossos pés, ofereço a minha insignificância

ao trabalho do amor, pelo menos, em favor de mim mesma.

Fim