BIOGRAFIA DE LÉON DENIS
O APOSTOLO DO ESPIRITISMO
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Índice
Cap. 1 – Prólogo
Cap.II - Infância e Juventude
Atribulações
Árvore Genealógica de Léon Denis
Em Tours
A Guerra
O Grupo da Rua Cirne
Cap. III – Os Inícios
Treinamento Oratório
A Bela Viagem
Outra Viagem
O Conferencista da Liga do Ensino
Cap. IV – O Apostolado
Na Liça
Primeiro Contato
Primeiras Obras
O Congresso Espiritualista
Internacional de 1889
Depois da Morte
As Grandes Conferências
O Grupo da Rua Du Rempart
Cristianismo e Espiritismo
O Congresso de 1900
No Invisível
O Congresso de Liège
O Problema do Ser e do Destino
O Caso Miller
A Verdade sobre Joana D'Arc
O Congresso de Bruxelas
Polêmica Paul Nord
O Grande Enigma
As Brochuras de Defesa
O Além e a Sobrevivência do Ser
O Congresso de Genebra
Provas e Decepções
CAP. V – A Velhice
O Mundo Invisível e a Guerra
A Religião do Futuro
Léon Denis e Conan Doyle
O Congresso de 1925
O Gênio Celta e o Mundo Invisível. 231
Os Derradeiros Momentos
Cap. VI
O Homem
Cap. VII
A Obra
O Orador
O Escritor
Apêndices
I - Testamento Moral
II -Com um Druida da Lorena
III -O Fim de um Sábio
IV -Balanço da Atividade Oral
V- Roteiro Doutrinário de Léon Denis
VI - Leon Denis nos Congressos Espíritas
VII – Renovação
VIII – Trecho de uma comunicação de Leon Denis – Obtida em Tours – Após sua Morte
Cap. I
PRÓLOGO
A morte de Leon Denis, ainda tão recente, deixou um grande vazio nas fileiras espíritas do Ocidente e por todas as partes do mundo onde sua obra penetrou.
Esse vazio tão cedo será preenchido, não que seja raro o talento em nosso meio, mas porque o prestígio literário se reveste aqui de valores realmente excepcionais.
Embora o eco da potente voz do Apóstolo, prosseguindo em sua missão, no Além, ainda não nos tenha chegado, temos, desde agora, o dever de nos dedicarmos à sua obra, na qual sua doutrinação aparece em toda a plenitude e poder, dela retirando os mais substanciosos ensinamentos.
Tarefa mais urgente não existe e nada há de mais reconfortante:
Enquanto numerosos ensaios filosóficos se esforcem, num louvável desejo de nos livrar de um niilismo absurdo e degradante, sem que o consiga, as obras de Leon Denis são as libertadoras.
A fé que extraímos delas é contagiante, geradora de esperança e de coragem varonil.
Eis porque tantos leitores de todas as classes sociais e de todas as regiões encontraram nelas virtudes bem eficazes.
Sem dúvida alguma, devemos dar crédito à Ciência, desejar o maior êxito nas atuais pesquisas da Metapsíquica, evitando, porém, repisar os mesmos temas.
Entretanto, é preciso considerar, com o autor de "O Grande Enigma", que tudo quanto constituem tema de nossas investigações já foi registrado, apresentado de maneira perfeita pelos Instrutores da mais remota Antiguidade e perdemos, em definitivo, um precioso tempo, recomeçando sempre a mesma tarefa, enquanto que a Humanidade vai à deriva e mergulha mais profundamente no erro.
Basta reler os livros do Mestre para entender o sentido de suas repetidas advertências, a razão de suas apreensões, motivadas por nossos erros e nossa lamentável cegueira.
Homem de pouca fé, o repete, juntamente com o Justo, quando, então ireis abrir os olhos para a luz, quando, então, aceitareis a palavra da Verdade?
A nova revelação que o Espiritismo nos apresenta, alicerçada em bases experimentais, é, acima de tudo, de ordem moral: eis o que não se deve esquecer.
"O Espiritismo será científico ou não subsistirá." Certamente, a afirmativa é excelente, com a condição de que não o subordinem a uma ciência vacilante e tímida e não se abandone o verdadeiro caminho da alma.
Leon Denis está entre os que se recusam subordinar a Filosofia, a velha sabedoria humana, às únicas regras da experimentação, porque, nesse domínio, não se trata mais de matéria tangível. A concepção mecanicista do mundo é insuficiente e a única testemunha dos sentidos é de flagrante indigência.
Assim, não se querendo limitar unicamente aos fatos, volta-se para a mais evidente realidade, a do Espírito (Razão, Consciência, Sentimento), a única que pode conduzir à Causa Primária e liga, em verdade, o homem ao Universo.
Concepção religiosa? Se o quisermos; porém, a característica do homem não é ser um animal religioso? Consciente de sua pequenez, no seio da criação, Leon Denis mantém uma invencível fé na imanente justiça, na perfeição das leis eternas, na bondade de Deus. Daí sua permanente serenidade.
O que caracteriza sua filosofia são os altos vôos, é o amor ao aperfeiçoamento. Sua última palavra de ordem é: Santifica-te! Evolui! - a vida é uma ascensão - sempre para mais alto!
Uma tal vida, consagrada exclusivamente à busca da Verdade, ao estudo e à meditação, não deixaria transparecer os aborrecimentos e as inquietações tão comuns.
Aparentemente tranqüila, apenas deixando entrever o drama interior, tal vida lembra mais um rio que flui do que um lago tumultuoso.
É que a fase das tempestades e dos erros está dominada e amplamente superada pelo Apóstolo.
Ele já se adiantou e marcha decidido, adiante de nós, para nos mostrar o caminho.
Ao descrever sua vida consagrada ao ideal de uma causa nobre, voluntariamente negligenciamos tudo quanto não era documento oficial ou testemunho insuspeito.
O método pode parecer deficiente, porém, é o mais seguro, o menos suscetível de enganos.
Ao demais, este trabalho só deseja fornecer notícias básicas e não pretende esgotar o assunto, de uma só vez. Conduzindo nossa pesquisa à fonte principal, entre os papéis que o Mestre nos deixou, em suas anotações de viagem, e também em suas obras, onde ele colocou - mais raramente - espalhadamente, valiosos fragmentos autobiográficos, conseguimos encontrar o encadeamento dos mais marcantes fatos dessa longa e bela existência de beneditino leigo.
Limitamo-nos, de propósito, aos fatos importantes de sua mocidade, de suas estréias, de seu valioso apostolado, de sua laboriosa velhice.
Sempre que necessário, reproduzimos as opiniões dos seus contemporâneos; extraímos de sua correspondência às passagens interessantes, guardando a maior discrição. Enfim, demos a palavra ao orador e ao escritor, em todos os momentos em que desempenhou um papel capital, a fim de que nossa narrativa fosse bastante segura e bem viva. Também, acrescentamos aí nosso testemunho pessoal.
Que possamos, em nosso desejo de reverenciar tão querida memória, ter posto em destaque a nobre figura do bom Mestre de Tours, o Apóstolo do Espiritismo, como era denominado o destemido mensageiro da Boa Nova, cujo nome desperta no mundo, entre os que leram seus livros, um profundo reconhecimento e uma piedosa veneração, servindo, ao mesmo tempo, a uma Causa - bela entre todas.
Cap. II
INFÂNCIA E JUVENTUDE
ATRIBULAÇÕES
Leon Denis nasceu em 1° de janeiro de 1846, em Foug, pequena localidade de Toul, atravessada pela grande ferrovia Paris-Strasbourg.
Notou-se que seu nome está incluído no do Grande Iniciador Allan Kardec, que se chamava, na realidade, Leon Denizard Rivail.
Simples coincidência, dirão uns; pelos menos, uma singular analogia, pensarão outros.
Seu pai, Joseph Denis, era oficial de pedreiro, como seu irmão Louis, mais idoso 6 anos; e, como o avô François, este nascido em 1776.
Artesãos pelo lado paterno, a família de Leon Denis, pelo lado materno era de origem camponesa.
Seu avô, Liouville François, nasceu em Ménil-la-Horgne, região de Gondreville, onde o avô tinha uma propriedade.
Azares da sorte obrigaram a família Liouville a estabelecer-se em Foug, onde François exercia a profissão de carpinteiro, fazendo tetos.
Suas duas filhas, educadas na cidade, haviam recebido uma educação prendada.
Joseph Deais, de bela aparência, era ambicioso e seguro de si, apaixonou-se da filha mais nova Anue-Lucie e pediu-a em casamento. Foi aceito e o enlace se realizou em Foug, a 3 de abril de 1845.
No ano seguinte, uma criança veio ao mundo. A bem da verdade, o jovem oficial de pedreiro começava a família num período bem difícil.
A construção não andava bem; não se construiu mais e a crise deveria prolongar-se por vários anos.
Todavia, Joseph Denis não era homem de desanimar por tão pouco: fez-se empreiteiro, procurou estender sua clientela além de Foug.
Embora inconstante no trabalho e sem espírito perseverante, entretanto sabia mostrar-se resoluto nos momentos melhores. Nestas ocasiões não lhe faltavam decisão, nem coragem.
Sub-oficial da Companhia de Bombeiros da comunidade, por várias vezes mostrara provas de coragem, em situações perigosas.
Foi com esse homem, não destituído de qualidades, mas um pouco rude nos hábitos, que se unira à meiga Anne-Lucie, de natureza delicada e caráter sensato e discreto.
Para o filho, que lhe viera tão cedo, ela se tornou a mais terna e a mais vigilante das mães.
Havia, diante da humilde casa paterna, um regato, onde um açude lançava suas águas.
O pequeno Leon olhava, invejoso, os patos que ali nadavam em fila. Por mais de uma vez, burlando a vigilância materna, foi vê-los nas águas do riacho.
Quando suas pernas conseguiram suportar caminhadas mais longas, com 7 ou 8 anos, seu avô François, antigo soldado de Napoleão, o levava algumas vezes aos bosques vizinhos, no inverno, para caçar com armadilhas.
Os dois podiam ser vistos conversando debaixo de uma árvore.
O garoto tinha seus 9 anos quando Joseph Denis 1 obrigado a deixar suas empreitadas para buscar seu ganha-pão noutras plagas.
A Igreja de Bayonville foi à última obra onde e trabalhou. Fixou-se com sua família, em Strasbourg e lá que abandonou sua profissão, definitivamente, para entrar como empregado na Casa da Moeda.
A vida da família se tornou bem difícil, porém, e uma situação provisória. Uma pessoa influente fê-lo ver que poderia eventualmente conseguir um emprego na estrada de ferro, pois faltava pessoal no Sul. Era só tentar aguardar a ocasião propícia.
Foi, então, em Strasbourg, na escola particular do Sr. Haas, que o pequeno Leon iniciou seus primeiros estudos. Sua mãe já lhe havia ensinado os rudimentos do alfabeto e aprendido a contar.
Os alunos do velho professor eram bastante turbulentos e havia mesmo, na escola, uma animosidade surda entre dois grupos rivais.
O ódio que, há séculos, os germanos consagram, sem fim, aos Gauleses, começava a surgir entre os moleque confiados ao professor Haas.
Logo que as aulas terminavam, e estando longe da temível palmatória, os grupos adversários se formavam. "Welches, Welches sujos!" gritavam de um lado com a expressão do mais completo desprezo, no que eram respondidos pela outra horda: "Swaabs, swaabs!" e as pedradas choviam... (*) Welche era uma palavra depreciativa com que os alemães designavam os estrangeiros. Swaab é como os franceses da fronteira chamavam os alemães.
O pequeno loreno poucas lições aproveitou com o bravo professor.
Abrindo-se uma vaga na Casa da Moeda de Bordeaux, seu pai conseguiu transferência para essa cidade. Nova mudança e novas despesas.
O salário do chefe de família era insuficiente para manter a casa. Leon teve que interromper seus estudos para acompanhar seu pai e ajudá-lo em seu trabalho de polimento das moedas.
O pobrezinho esforçava-se ao máximo nesse ingrato trabalho: seus delicados dedos se tingiam de sangue para descolar as lâminas de cobre. Entretanto, as poucas moedas que conseguia ajudavam a melhorar o magro ordenado paterno.
Em março de 1857, a Casa da Moeda terminou a refundição das moedas de cobre e Joseph Denis empregou se na Companhia das Estradas de Ferro do Sul. Após curto estágio como carteiro da estação de Bordeaux, conseguiu o emprego desejado: estava nomeado chefe da estação de Morcenx, em Landes.
A família ia achar um abrigo menos precário. Não era uma ótima situação, certamente, porém, bastava para assegurar as necessidades da casa. Além disso, abria perspectiva de uma vida mais estável, o que era do agrado da Sra. Denis.
Finalmente, seu pequeno Leon poderia recomeçar seus estudos interrompidos. Seu grande desejo se realizava.
O movimento da estrada de Bayonne se restringia, apenas, a alguns trens por dia.
Locomotivas barulhentas e resfolegantes puxavam vagões, lançando uma negra fumaça cheia de faíscas que, muitas vezes, incendiavam o pinheiral.
Nessa bucólica solidão, onde apenas a passagem dos trens fazia alguma animação, o menino se entregou corajosamente ao estudo com o professor da localidade.
Suas repetidas mudanças atrasaram seus estudos, porém, rapidamente se recuperava.
Sua inteligência brotava precocemente, revelando uma extraordinária vivacidade.
Os conhecimentos que seu novo professor lhe transmitia lhe abriam inesperados horizontes.
A floresta de Landes, impressionando sua nascente sensibilidade, complementava os ensinos dos livros.
O professor de Morcenx, discípulo de Jean-Jacques Rousseau, inaugurando um excelente método, levava freqüentemente os alunos a passeios.
Denis deveria guardar por toda a sua vida uma lembrança emocionante dessas lições, em plena natureza, desse contato com as coisas, desse proveitoso trabalho ao lado de professor dedicado e conhecedor seguro de sua tarefa.
Infelizmente, a fase das peregrinações ainda não terminara para a família Denis.
O chefe da estação de Morcenx trocou cedo seu posto pelo da estação de Moux, na estrada do Sul.
Era uma promoção. Como recusá-la?
Moux é a estação antes de Lézignan, na direção de Narbonne.
Nova adaptação ao meio e nova parada nos estudos. Depois da solidão de Landes, no meio dos pinheirais aromáticos, agora o corredor poeirento do Languedoc, a animação barulhenta da grande estrada de ferro do Sul, onde os trens se sucediam em curtos intervalos.
A vigilância do chefe da estação não devia facilitar um só instante.
Apesar de ser, no fundo, uma boa pessoa, o chefe da estação de Moux não correspondia às exigências de sua função, à regularidade de um trabalho para o qual não estava preparado, não tinha a pontualidade ou a vigilância necessária.
Sua esposa mal dissimulava sua preocupação. Felizmente, o pequeno Leon supria as falhas do pai.
Mais uma vez, abandonando seus queridos livros, iniciou-se logo no manejo do "Bréguet" e era ele quem tomava conta dos telegramas e da contabilidade.
Apesar de toda a sua dedicação, a estação de Moux foi teatro de alertas perigosos.
A passagem de um trem expresso, vindo com um atraso inusitado, lhe dava calafrios na velhice, ao se lembrar do fato.
Contou-nos, entre muitos outros, um caso engraçado de sua vida de ferroviário infantil, quando sua presença de espírito evitou para seu pai uma punição que lhe teria produzido graves conseqüências.
Certo dia, o expresso da manhã que, normalmente, não parava na estação de Moux, parou para desembarcar um inspetor da estrada.
Este perguntou logo pelo chefe. Nada do chefe.
Por felicidade, Leon estava presente, mas não sabe onde se encontrava o pai. Que fazer? Seria uma punição em perspectiva e, talvez, demissão.
Avistando um carregador no meio de um grupo de trabalhadores descarregando mercadorias, disse:
- Meu pai? responde o rapaz, estendendo a mão naquela direção, ele dirige o carregamento daquele vagão. O inspetor, achando em ordem os papéis, tomou seu trem, que partiu.
Mais uma vez, na estação de Moux, se passou por um susto.
Definitivamente, Joseph Denis não tinha vocação para o posto e, em 14 de outubro de 1862, se demitiu.
Na época, se construia a estrada de Montluçon a Limoges e conseguiu um lugar de chefe de obras, tendo depois obtido a supervisão de outros trabalhos ferroviários, além de mais alguns menores, na estrada de Tours a Vierzon.
Arvore Genealógica De Leon Denis
FAMILIA LIOUVILLE FAMILIA DENIS
LIOUVILLE, François DENIS, Francois
nascido em Menil-la-Horgne, em 1792 nascido em Foug, em 1776
esposo de Rosalie Serrier esposo de Barbe Vaudeville
LIOUVILLE Emelie LIOUVILLE Anne-Lucie DENIS Joseph DENIS Louis
1817 1820 1814 1808
esposa de esposa de Denis Joseph esposo de esposo de Mercier
Crancier Claude Liouville Anne-Lucie
CRANCIER Leon DENIS DENIS Eugene
Henri-Sebastien Nascido em Foug, em I846 Nascido em Foug,
Nascido em Foug,1840 Falecido em Tours, em 12 de abril de 1927 em 1850
EM TOURS
Dessa vez, a família veio se fixar em Tours, definitivamente.
Transferida, empurrada para cá e para lá, desde a saída de Foug, iria encontrar, finalmente, nessa cidade, uma estabilidade ardentemente desejada pela mãe e pelo filho.
Todavia, os meios de subsistência continuavam precários
O adolescente que, na estação de Moux, mantinha os registros com sua bela letra e manejava o telégrafo, teve, como em Bordeaux, de se dedicar a trabalhos braçais, para os quais não tinha condições físicas.
"Aos 16 anos, escreveu ele, numa cerâmica de Tours, eu carregava os cestos nas costas, quando eram retirados os produtos do forno."
Como isso abalava seus projetos de estudar, de se instruir, ele que era apaixonado pelo estudo, ele que já havia demonstrado disposições excepcionais nas áreas de saber em que se havia ocupado!
Na impossibilidade de fazer coisa melhor, freqüentava a escola noturna municipal.
Um desenho da época, achado entre seus papéis - feito com uma rara perfeição - traz sua assinatura, com uma referência: aluno do curso de adultos do Sr. Grujon.
Exercitava-se, ao mesmo tempo, em trabalhos de cartografia, que fazem supor que ele desejava fazer algum concurso para entrar na administração da estrada de ferro.
Esses trabalhos, excelentes sob todos os pontos, atestam uma segurança de traço, mão apropriada e um acabamento difícil de ser superado.
Vemos aí, parece, o indício incontestável de disposições inatas e de secretas preferências.
Tudo o atraia para os estudos geográficos. Sem dúvida, já sonhava com viagens e longas excursões.
Não deveria manter essa preferência por toda a vida e procurar nos mapas do Estado Maior os segredos que não estavam nos livros?
Foi nessa época que nosso estudante solitário alimentou um desejo que há muito tempo estava em seu coração: adquirir, com seus próprios recursos, a Geografia
Universal de Malte-Brun, que era publicada em fascículos, ilustrados por Gustavo Doré.
Para tanto, sem revelar a ninguém, - porque poderia ser censurado por sonhar em fazer uma tal despesa com um livro - passou a economizar as gratificações que recebia a mais de seu salário, escondendo-as, a fim de obter a importância necessária para a compra.
Seus depósitos cresciam lento e lento, até que, num dia, sua mãe descobriu o esconderijo e, sempre em dificuldades, lhe deu um destino mais imediato.
A boa mulher jamais percebeu o real desgosto e a desilusão que aquele sumário confisco havia causado a seu filho.
Entretanto, nenhuma decepção, nem mesmo a tarefa diária e os trabalhos cansativos, que sobrecarregam os músculos e esvaziam o cérebro, chegavam a desanimar o jovem em sua vontade de se instruir.
Sem dúvida, seus pais o encorajavam, porém, a ânsia do saber estava nele bem como essa força soberana que dirige os ímpetos da personalidade, - o mesmo impulso que, do grão faz surgir o broto, depois a árvore poderosa que se cobre de verdor e de flores.
Assim, desde que o jovem operário tinha um momento livre, dedicava-se a seus caros estudos, apaixonada e alegremente, completando por seus próprios esforços uma instrução fragmentária, cujas lacunas bem conhecia.
Da cerâmica de Saint-Pierre-des-Corps, passou a trabalhar numa outra casa comercial, mais perto de sua casa e onde o trabalho era melhor remunerado.
Trabalhava no escritório, o que não o poupava dos rudes misteres manuais.
“Carregava as peles, nas horas de aperto - confiou ele - ou manejava a” "marguerite", grossa peça de madeira para amaciar o couro.
Seu pai obtivera da Administração das Estradas de Ferro uma pequena pensão e só se ocupava com as inspeções dos trabalhos e isto bastante irregularmente.
Nessa época, recaiu, em parte, sobre seus ombros a obrigação de atender às necessidades de seus pais, que já estavam velhos, e para isso se entregava a trabalhos constantes, com uma energia sem esmorecimento.
"Obrigado a ganhar, durante o dia, meu pão e o de meus velhos pais, disse ele, consagrei muitas noites ao estudo, a fim de completar meus conhecimentos e daí data o enfraquecimento prematuro de minha vista."
Na Casa Pillet - uma das empresas de couro mais importantes da região central -, tinham logo observado a viva inteligência e os excepcionais méritos do jovem empregado. Agora, ele se ocupava com a correspondência e a contabilidade.
Ele fazia os registros nos livros com sua impecável caligrafia. Iniciava-se nas questões do comércio de couros.
Desempenhando suas tarefas de dia, além de seus estudos, o adolescente abordava a Geografia, a História e as Ciências Naturais, negligenciando o campo das Matemáticas onde poderia brilhar.
Ocupava-se também com outras áreas do pensamento, interrogando os filósofos e a si mesmo, com uma certa inquietude.
Desde então, o enigma da vida se apresentava ao seu espírito com uma força imperiosa e ele não era homem de se curvar diante do dogma do Incognoscível.
Não temos necessidade de qualquer esforço para compreender a razão dessas preocupações, tão excepcionais num jovem daquela idade.
Leon Denis, por natureza e por necessidade, preocupava-se com problemas que o homem normalmente aborda muito mais tarde.
Já não estava ele, em comparação com os hábitos correntes, à margem de seus concidadãos?
Nos anos mais ingênuos, em que os jovens, comumente, ficam perto da mulher amada, do puro amor, ou buscam os prazeres fáceis, nosso estudante só possuis tempo para a mais austera das amantes - a que se consegue sob a luz da lâmpada, através das páginas dos livros. Só ele sabia à custa de quantos esforços, de quantas dificuldades, de quantas vacilações inevitáveis e, também, de quantas duras contrariedades, a fim de poder construir, pedra por pedra, o edifício de seu vasto e profundo saber. Todavia, é fácil imaginar a perseverança de seu labor durante essa rude etapa da sua vida.
Uma tal aquisição, obtida por um esforço exclusivamente pessoal, ganha, felizmente, em força, o que possa perder em brilho e em burilamento.
Não teve outros mestres, além dos conselheiros invisíveis que, sem dúvida, já o haviam divisado.
Se, como quer Platão, aprender é recordar, Leon Denis recordava com um encantamento incessante.
Contemplativo e amante da Astronomia, por natureza, desenhava mapas do Céu. Nesse campo virgem de uma inteligência excepcionalmente receptiva, a semente frutifica com uma facilidade surpreendente; nessa memória fresca, mas já experiente, as menores noções se imprimem com admirável destaque.
Entretanto, notamos, há nele uma estudo não consegue acalmar.
Os problemas que, comumente, o homem só enfrenta nas horas de agonia ou de doença grave, e que logo esquece, assim que o destino lhe sorri de novo, ou que a saúde lhe volta, Leon, logo de saída, lhes dá capital importância.
O homem se lança ao prazer, se embriaga de sensualidade, para fugir à idéia da morte, sem jamais conseguir esquivar-se dessa lembrança, pois, no fundo, ele se dá conta de que essa, é uma questão essencial.
Que é Sabedoria? É aprender a morrer, diz Platão. Que é a vida? É uma meditação da morte, afirma Sêneca. Assim, o jovem estudante ataca de frente o enigma sobre o qual tantas e tão altas especulações se chocam, sem lograr decifrá-lo.
"Eu já havia passado pelas alternativas da crença católica e do ceticismo materialista, mas não encontrara, em nenhuma parte, a chave do mistério da vida."
Uma de suas grandes alegrias infantis, quando ainda aluno, era contemplar nas vitrines das livrarias as belas encadernações dos livros premiados e as "imagens de Épinal", cujas legendas percorria até à última linha.
Conservara esse hábito e parava, prazenteiramente, muitas vezes, mais diante das mostras de livros do que diante das confeitarias.
Certa vez - tinha então 18 anos - o acaso, que por vezes trabalha bem, chamou sua atenção para um livro de título inusitado e perturbador. Era "O Livro dos Espíritos" de Allan Kardec.
Providencial encontro.
“Adquiri logo o livro, disse ele, e lhe assimilei o conteúdo. Encontrei nele umas soluções claras, completas, lógicas do problema universal. Minha convicção se firmou. A teoria espírita dissipou minha indiferença e minhas dúvidas”.
O Instrutor acabava de encontrar seu discípulo. Cabe aqui um episódio engraçado que vale relatar, porque é revelador da perfeita sintonia de pensamentos que havia entre a sra. Denis e seu filho. Demos a ele a palavra:
“Li o livro com avidez, escondido de minha mãe, que controlava, desconfiada, minhas leituras. Ela havia descoberto meu esconderijo e, por sua vez, lia essa obra na minha ausência”.
E acrescenta:
"Ela se convenceu, como eu, da beleza e da grandeza dessa revelação."
A moda, então, eram as mesas falantes.
"O entusiasmo era geral e, nenhuma festa, nenhuma reunião íntima terminava sem alguma experiência desse gênero."
Émile de Girardin iniciava, em Guernesey, a família de Victor Hugo; Vacquerie recolhia as observações que devia publicar, em Les Miettes de 1'Histoire; Eugène Nus, em sua casa, à rua De Beaune, recebia, na companhia de homens de letras e de artistas célebres, através de sua famosa mesinha (guéridon), comunicações de um significado filosófico profundo, a maior parte publicada em "Grandes Mistérios" e "Coisas do Outro Mundo"; Victorien Sárdou, Théophile Gauthier escreviam peças e novelas espíritas.
Médiuns célebres eram convidados para dar sessões nas Tulherias. Em Tours, como em Paris, e em numerosas outras cidades, círculos de estudo eram constituídos, abordando sem uma preparação adequada, os tremendos fenômenos do psiquismo.
A cidade de Tours foi uma das primeiras, na França, a conhecer o Espiritismo.
Desde 1862, ela possuía um Grupo presidido pelo Dr. Chauvet, autor de um livro intitulado: "Espírt, Force, Matière", refutação cerrada contra Büchner.
Esse Grupo compreendia, entre outros, o advogado Normand e o procurador Noirmant.
O jovem empregado, por causa de sua pouca idade e falta de tempo, não podia freqüentá-lo.
Isso não lhe impedia de seguir, como os outros, essa corrente com apaixonante curiosidade.
Ele mesmo fez experiências, juntamente com alguns amigos interessados.
“Como tantos outros, disse-nos ele, eu procurei provas, fatos precisos que confirmassem minha fé, porém, esses fatos demoraram em vir”.
De início, insignificantes, contraditórios, misturados com embustes e mistificações, estiveram longe de me satisfazer e eu teria renunciado, uma vez por todas, a qual quer investigação, se não fosse sustentada por uma teoria sólida e princípios elevados."
E acrescenta estas palavras, que os verdadeiros espíritas apreciarão:
"Parece, com efeito, que o Invisível quer nos provar, medir nosso grau de perseverança, exigir uma certa maturidade de espírito, antes de nos revelar seus segredos."
Leon Denis se encontrava nessa fase de seus trabalhos e pesquisas, quando um acontecimento importante se produziu em sua vida. Allan Kardec tinha vindo passar alguns dias em casa de amigos e todos os espíritas de Touraine tinham sido convidados para cumprimentá-lo. "Tínhamos alugado, disse ele, para recebê-lo e ouvi-lo, uma sala, na Rua Paul Louis Courrier e havíamos solicitado à Prefeitura a autorização para a reunião, pois, no Império, uma lei severa proibia qualquer concentração com mais de 20 pessoas.
Entretanto, no momento aprazado pela assembléia, uma recusa formal nos foi comunicada.
Fui encarregado de ficar à porta do local, para prevenir os convidados, a fim de se dirigirem para a SpiritoVilla, na casa do Sr. Rebondin, na Rua do Sentier, onde a reunião se faria no jardim.
"Éramos bem uns 300 ouvintes, em pé e apertados uns aos outros, apinhados sob as árvores, pisando nos canteiros de nosso hospedeiro.
Sob a claridade das estrelas, a voz suave e grave de Allan Kardec se elevava e sua fisionomia meditativa, iluminada por uma pequena lâmpada colocada sobre uma mesa, no centro do jardim, dava um aspecto fantástico.
Ele nos falava sobre a obsessão, que era um assunto em voga. Foram feitas perguntas às quais respondia com fisionomia sorridente.
Os canteiros do Sr. Rebondin ficaram bem pisoteados, mas cada um levou dessa noite uma inesquecível lembrança.
No dia seguinte, retornei a Spirito-Villa para fazer uma visita ao Mestre; encontrei-o sobre um pequeno banco, junto a uma grande cerejeira, colhendo frutos que jogava para a sra. Allan Kardec, - cena bucólica que contrastava alegremente com esses graves acontecimentos."
Era em 1867. Ele devia rever Kardec mais duas vezes, em sua casa, na Rua Sainte-Anne, em Paris, depois em Bonneval, onde o grande Instrutor tinha usado a palavra para os espíritas de Eure-et-Loir e de Loir-et-Cher.
Foi após a passagem do Mestre que se fundou, em Tours, o Grupo da Rua do Cisne, do qual se tornou secretário.
O Dr. Aguzoly, senhores Rebondin, Page, os irmãos Huault eram seus principais membros.
Lá, também, os fenômenos foram bastante medíocres. As mensagens obtidas pela escrita, as manifestações físicas pareciam mais animismo do que intervenção dos Espíritos e pessoas pertencentes a outros grupos sofriam obsessões bastante graves.
"Compreendi aí, acrescenta ele, como é perigoso entregar-se à experimentação espírita, sem preparação e sem proteção eficazes e esses exemplos me tornaram reservado em tais matérias.
A GUERRA
Foi então que a guerra de 1870 veio pôr um fim a essas preocupações. Léon Denis já estava com 24 anos. Apesar de dispensado do serviço militar, por causa de sua vista já abalada, mas estando a Pátria em perigo, prontificou-se a atender ao apelo das armas.
Logo após as desastrosas batalhas do começo da Guerra, o governo recorreu à convocação da Guarda Nacional nos Departamentos ainda não ocupados pelos alemães.
Léon Denis juntou-se, em Lã Rochelle, aos jovens solteiros do 26° Corpo do exército em formação.
Foi logo promovido a sargento, no 1 ° Batalhão da 19 Legião da Guarda, mobilizada em Indre-et-Loire, depois subiu rapidamente de posto, como se tivesse já exercido essa profissão.
"Em 15 dias, aprendi o manejo das armas e as instruções do pelotão, de modo a servir de instrutor para os quadros de meu batalhão. Dentro de 6 meses, passei a sargento, tornei-me, sucessivamente, sub-oficial, subtenente e continuaria sendo promovido, se a paz não tivesse sobrevindo."
Em último lugar, desempenhava com autoridade a função absorvente de major-ajudante, como recordam seus velhos camaradas de armas.
Com sua jaqueta azul-marinho, rosto quase imberbe, o tenente Denis nos aparece, numa foto da época, tal como gostamos de relembrar: o queixo altivo, ar grave e resoluto, homem responsável, antes de tudo.
Nada de dureza, porém, debaixo dessa austeridade. Sabemos, pelo testemunho dos antigos, que sua pontualidade no serviço e o escrupuloso cuidado em executar as ordens não alteravam de forma alguma a simplicidade de suas maneiras, sua urbanidade sorridente, seu humor inalterável, apimentado com uma ponta de malícia gaulesa de cunho muito pessoal.
Acrescentemos que, além de suas funções ativas, era responsável pelo registro das despesas da cantina dos oficiais de seu batalhão.
Não podiam ter escolhido um melhor furriel.
Não faltava trabalho para o tenente Denis, no campo de Dompierre.
Alojado em Chagnolet, após o término do serviço, poderia procurar distrações em Lã Rochelle, onde numerosos camaradas levavam vida muito alegre.
Entretanto, tais divertimentos não eram satisfazê-lo.
Para ele o trabalho, para os outros o prazer.
De resto, já não tinha o secreto pressentimento da tarefa que o aguardava?
O acaso quis que, mesmo em Chagnolet, a questão espírita fosse novamente objeto de suas preocupações imediatas. Durante alguns dias, esteve alojado em uma enorme e antiga casa, situada nas proximidades do campo militar. Ora, essa casa era mal assombrada, sendo impossível dormir nela.
"Um sargento da minha companhia era médium - escreve ele - conduzi-o para essa casa, numa noite de inverno, e nos colocamos ambos em torno de uma mesa, buscando descobrir o segredo dessas manifestações. A mesa foi logo agitada, depois foi virada por uma força irresistível.
Quebraram-se os lápis e rasgou-se o papel.
Pancadas repercutiam nas paredes; ruídos surdos se faziam ouvir. De repente, a luz se apagou. Um balanço mais forte que todos os precedentes fez tremer a casa, depois se perdeu ao longe, no silêncio da noite. Antes de deixarmos essa casa mal-assombrada, soubemos que ela havia sido palco de sangrentos acontecimentos."
A solução foi encontrar um local mais sossegado. Tendo-o encontrado, convidou o sargento-médium e alguns colegas e começaram a fazer experiências. Era fevereiro de 1871. Perguntava-se, com ansiedade, o que iria acontecer, no findar da guerra, com o país dominado, à mercê dos alemães.
Após os combates de Monnaie, o inimigo estava às portas de Tours e os convocados de Indre-et-Loire tinham pedido, em vão, ao general comandante do campo de Dompierre para colaborarem na defesa da cidade. A partida, porém, estava perdida. A queda do Império era iminente.
Em Chagnolet, no quarto do tenente Denis, torcia-se com entusiasmo por uma República liberal, que se pressentia estar próxima.
A liberdade, a fraternidade, à volta às tradições dos grandes princípios revolucionários iam, sem dúvida, fazer retornar a concórdia nacional e abrir para a Europa inteira uma fecunda era de paz.
No dia 24, o Grupo recebeu a comunicação seguinte: “A Alemanha e a França aguardam com ansiedade o resultado das negociações; esperam a hora da tão desejada paz, quando todas as famílias irão saber quais os que faltam ao chamado do coração de uma mãe ou de um irmão, os quais amaldiçoe rão, em ambas as nações, os tiranos que lhes roubaram àeus arrimos e suas únicas esperanças. Então precisareis aproveitar a ocasião para esclarecer vossos irmãos”.
Fazei-os ver a grandeza de Deus. Orai, consolai o sofrimento.
Numa palavra, fazei o bem."
No dia 28, houve uma mensagem sobre os mundos celestes, terminando com esta frase profética, que levou meio século para se concretizar:
“Meus amigos, um acontecimento solene se realiza agora, segundo o desejo dos homens. É a paz, que acaba de ser assinada e, dentro de poucos dias, vossas famílias vos abraçarão. Dentro de poucos anos, a Prússia, por seu turno, será derrotada e humilhada”.
Orai, orai."
Estava assinada: Lamennais.
O GRUPO DA RUA DO CISNE
As reparações de guerra impostas pela Alemanha não haviam abalado a vida do país. Apesar da derrota, os negócios reconquistaram, pouco a pouco, seu curso normal.
Léon Denis retornou a Casa Pillet para retomar suas funções interrompidas pela guerra. Seu pai havia por completo cessado de trabalhar. Era o filho quem devia
agora assumir a responsabilidade de sustentar seus velhos pais.
Entretanto, a França humilhada, diminuída aos olhos do mundo, embora com a honra salva, atravessava uma crise interna dolorosa.
A tormenta assolou o Império, mas o país, desamparado, preocupado com seu destino, estribava-se na ordem moral. As idéias republicanas tinham dificuldade de caminhar.
Filho do povo, generoso por natureza e apaixonado pela justiça, o ex-tenente resolveu contribuir com todos os seus recursos.
Servido por um dom natural de comunicação, ele se dedica à oratória. Orador aplaudido na Loja Maçônica dos Demófilos, assume papel importante.
Muito responsável em seus trabalhos materiais, tendo a confiança de seu patrão, que aprecia seus méritos e o tem em grande estima, decide-se ao estudo com uma energia redobrada.
O Grupo da rua do Cisne estava reforçado com um novo recruta notável: o capitão Harmant - antigo comandante do setor da Porta de Saverne, em Strasbourg, agora arquivista do 9° Corpo, e as sessões recomeçam com uma nova animação, na casa do Dr. Aguzoly.
Este possuía uma curiosa faculdade de vidência. Sabe-se que todo médium possui dons especiais que não se assemelham exatamente aos de nenhum outro. No estado de transe, ele revivia, com notável clareza, cenas do passado e descrevia suas visões com traços característicos, que lhes davam um extraordinário relevo.
Leon Denis, que já era médium escrevente, torna-se, também, médium vidente. Reconstitui, no estado de vigília, cenas impressionantes da História medieval e da História antiga.
Um certo número desses quadros são, segundo indicações de seu guia, relativos a vidas anteriores.
Então, chefe guerreiro de uma tribo franca, exorta seus guerreiros para uma matança de gauleses; depois, revive episódios de sangrentos combates, como filho de um célebre "viking".
Fato extremamente curioso, ele descreve, com o Dr. Aguzoly, os mesmos quadros, as mesmas cenas e essas cenas e quadros se sucedem no decorrer de uma só reunião, como um filme cinematográfico.
E essas narrativas de selvagem crueldade se alternam com mensagens de Espíritos familiares e de serena filosofia, com exortações afetuosas de "Sorella", a Egéria do Grupo.
Ela o tranqüiliza, reconforta seus amigos inquietos, ansiosos pelo rumo que tomam os acontecimentos no após-guerra e na revolta.
Após dar a seus amigos judiciosos conselhos a propósito da conduta a manter durante as revoluções sociais que se anunciavam, Sorella os anima ao labor.
“Após a noite virá o amanhecer. Então, soará para vós a hora solene quando devereis elevar vossa voz inspirada e espalhar em vosso derredor as preciosas doutrinas que vos foram confiadas como um sagrado depósito”.
Sabei conservar esse valioso depósito, fazei-o frutificar em vós, porque prestareis dele conta rigorosa. Agora, preparai-vos para as tempestades; enfrenta serenamente; elas passarão, porque nada farão contra vós.
Cabe a vós vencer a tempestade; somente a força de vossa alma vos protegerá. Se vos souberdes conduzir nas trevas, não vos faltará o apoio dos Espíritos para venceis."
Sorella é o gênio bom sempre disposto a assisti-los em seus estudos e suas pesquisas. E uma irmã e uma diretora de consciência. Suas instruções e revelações, porém, devem ter um fim útil.
“Eu vos fiz conhecer estas coisas, a fim de que compreendam quanto vos deveis sentir fortes em face das provas terrenas; prevenidos, devidamente, para o combate, podereis lutar contra os maiores perigos; sendo mais favorecidos, mais se vos exigirá. Trabalhai, pois, por vós e vossos irmãos; sedes boas, benevolentes para com todos”.
Consolai os que sofrem; socorrei os que têm fome. Nessas condições, podereis entrar no Reino de Deus."
Certo dia uma notícia lhes foi dada pelos amigos invisíveis. Durand, o Espírito-guia, lhes previne que uma surpresa lhes estava reservada, que não deviam espantar-se, mas guardassem silêncio e ficassem atentos.
O doutor adormeceu e a campainha soou mente; pancadas bateram na parede.
Leon Denis e o capitão notam, distintamente uma forma humana cujos contornos podiam observar, quando passava diante da janela iluminada; a sombra se dirige, lentamente, para a porta do salão, onde estaciona um pouco, depois desaparece pela parede.
Relatando o fato, Leon Denis acrescenta:
"Coisa singular. Não havia nenhuma mediunidade em jogo; se houve influência fluídica, não sentimos. Os Espíritos guias nos disseram, a seguir, que se serviram de um Espírito bem inferior, ajudando-o para extrair os elementos de materialização dos fluidos ambientais, para fortalecer nossa convicção na realidade do Espiritismo.
As proveitosas sessões da Rua do Cisne deviam realizar-se, semanalmente, até 1877.
Na noite de 31 de dezembro para 1° de janeiro de 1873, houve um outro importante acontecimento. Uma numerosa assembléia de Espíritos encheu, de repente, a sala cujas paredes e o teto se cobriram de centelhas fluídicas.
O doutor os reconhece e os designa por seus nomes e características, depois o fiel Durand (o controle) fica só, para revelar ao médium a história de Philippine, seu anjo guardião, que lhe aparece pela primeira vez. Sorella o acompanha (Sorella é a conselheira e amiga ainda misteriosa de Léon Denis).
Depois, retornam os quadros históricos, alternando se com as instruções e diretrizes.
Apenas como exemplo, eis uma das cenas descritas, que escolhemos por ser curta:
"Cena de guerra, no Cáucaso. Encontramo-nos suspensos, o doutor e eu, num caminho talhado na rocha, pois a vereda termina, de repente. Só podemos escalar a montanha com grande dificuldade, pisando com muito cuidado nas saliências das pedras. Chegamos; uma pedra que nossos pés viraram nos mostra a entrada de uma escada talhada na rocha; subimos e penetramos numa gruta imensa, cheia de estalactites.
No meio, numa pequena mesa, havia um grosso livro. Um Espírito, sob a aparência de um velho, nela se apoiava; calvo, grande barba branca, olhos profundos. - Aproximai-vos, meus filhos, disse-nos ele, eu vos esperava.
Fala-nos de uma revista, que logo deixará de circular; de uma publicação mais forte e mais séria que a substituirá.
Aqui, disse ele, chega, por um sistema elétrico que ainda não conheceis, a notícia de todas as publicações espiritualistas da Terra; sou como que seu relator.
Ele nos anima a trabalhar, anuncia que mais tarde uma nova ciência será revelada aos homens e que poderemos ajudar na sua divulgação.
Recusa-se a dizer quem é, pois, um dia o saberemos."
É curioso achar aqui, como em outras páginas do caderno de anotações íntimas, uma ilustração da tese teosófica, afirmando a existência dos grandes Instrutores espirituais do Budismo.
Em outros quadros, de um relevo extraordinariamente preciso, são reconstituídos para ele, aos pedaços, os lances mais marcantes de existências anteriores.
Dessa maneira se esboça, toma corpo e se anima, em breves aparições, um afresco muito sugestivo, bem palpitante de movimento e de vida.
Por vezes, na companhia do doutor, visitam junto o Vesúvio, voam sobre os vales romanos, assistem a uma exibição no Scala, de Milão, participam de uma festa veneziana, sobre as águas, na época do Doges.
Em certo momento, reunidos em companhia de seus guias, em certas encruzilhadas do tempo, por um destino comum, eles se separam, sem nunca se esquecerem, para mais tarde se reencontrarem numa nova existência.
Mas, oh! do sonho à realidade, que contraste doloroso! Do cenáculo dos grandes Espíritos, dos passeios deslumbrantes aos mundos maravilhosos, é preciso voltar à rotina da vida quotidiana, às exigências imperiosas de um labor cansativo e sem repouso.
Em torno de Léon Denis, mesmo em sua família, o ambiente é de incompreensão, hostilidade e sarcasmo, relativamente às idéias que lhe são caras.
Ele já padece de deficiência visual.
Uma oclusão intestinal mal curada, ao retornar de La Rochelle, lhe deixou perturbações digestivas. O trabalho que deveria enfrentar não teve interrupção. Felizmente, o anjo consolador vela por ele, atento e fiel, dando-lhe o bálsamo de que tanto necessita, reconfortando-o e animando-o.
“Venho ao teu apelo. Por que duvidar de mim? Bem sabes que estou sempre pronto a te dar assistência e a te sustentar com meus modestos conselhos”.
Caro amigo, imerso na tristeza, quantas vezes afliges meu coração! Queria ver-te mais confiante e mais resignado.
Para atravessar as sombras da vida é preciso coragem e perseverança; é preciso segurar sua alma com ambas as mãos, se assim me posso expressar e marchar, resolutamente, pelo caminho traçado.
Nada temas, porém. Os motivos que te fazem duvidar do futuro são quiméricos; deixa de lado essas apreensões vida te será suportável, do ponto de vista material. A luta será de ordem moral.
Coragem, pois, e prepara-te, porque o momento virá, talvez bem cedo.
Tem confiança em mim. Sabes que és sustentado, que numerosos guias e amigos te assistirão e te aconselharão nas horas de luta".
Ele indaga se os sonhos mais do que imaginação.
“Sim, amigo, é uma lembrança dos tempos passados, dos tempos em que vivíamos juntos e quando começamos a entrever a serena verdade. Esses tempos já estão longe de nós”.
Não é o passado que convém lembrar; é o futuro, o futuro que desdobrará seus íntimos recônditos plenos de provas, desfalecimentos e de combates, mas cheio também de progressos, vitórias e deslumbramentos.
Coragem, pois, amigo, estou perto de ti, derramando em tua fronte todas as afeições de meu coração e procurando te tornar mais suave a etapa que te falta transpor".
Alguns dias depois, o fiel guia lhe traz, por sua vez, seu socorro moral.
"Durand, escreve ele, veio me dar alguns valiosos conselhos de que minha contristada alma tinha necessidade".
A dúvida, da qual todo pesquisador consciencioso conhece os inesperados retornos, a interrogação muda e insistente, o assalta por um momento.
incríveis que tem tido são
"É necessário distinguir o joio do trigo, dizem-lhe. Em todas as manifestações, que se produzem entre Espíritos e encarnados, há sempre coisas vagas e confusas devidas à influência do meio. Sabei, porém, distinguir, nessa obscuridade, as verdades que vos servem para domar as paixões e a dúvida".
Só se chega a uma fé plena e completa, dirá ele, mais tarde, por meio de uma lenta e dolorosa iniciação. Ele sabia disso por experiência.
Em 31 de julho de 1873, uma nova revelação lhe foi feita. Ele revê um dos episódios mais importantes de suas vidas anteriores. Chega ao segredo que devia iluminar seu destino todo.
Encontra em Sorella, Joana, a companheira, a inspiradora, a amiga de sempre, a alta e virginal figura do amor e do sacrifício, a que jamais o esqueceu e jamais o abandonará.
Em 20 de agosto do mesmo ano, Leon Denis, seus amigos Aguzoly e o capitão Harmant conhecem as circunstâncias em que se fez o primeiro encontro entre eles, numa vida anterior, ao fim de uma batalha naval, no reinado de Luiz XIV. Novamente estarão reunidos, numa nova etapa de suas existências, segundo a lei que quer que os seres ligados por uma verdadeira amizade se reencontrem em situações imprevistas de seus destinos, segundo o eterno plano, impenetrável ao nosso pobre entendimento humano.
No ano seguinte patética exortação:
"Coragem, amigo! Agora que o destino se apresenta mais claro, agora que as horas da luta se aproximam, que provas mais fortes vão te assaltar, estarei ainda mais perto de ti, sustentando cada um de teus passos.
Não esqueças, amigo, que o alvo já está aí, o alvo que é preciso atingir, alvo que te abrirá as portas de um mundo melhor".
A rota estava traçada.
"Foste escolhido, disseram-lhe anteriormente, para cumprir uma missão útil aos homens. As vicissitudes te assaltarão, porém, segue sem temor. Vai sempre para diante. Nós te ajudaremos".
E o jovem missionário enveredou corajosamente pelo áspero caminho.
Cap. III
OS INÍCIOS
TREINAMENTO ORATÓRIO
Desde o ano de 1869, Leon Denis havia recebido a iniciação maçônica na Loja dos Demófilos, de Tours (rito do Grande Oriente).
Rapidamente, após a guerra, tornou-se o orador mais aplaudido.
Dotado do verdadeiro dom da palavra, entregava-se à arte oratória, sob a inspiração de seus guias, seus únicos mestres da eloqüência.
"Trabalho, coragem, esperança! repetia-lhe Sorella; eis qual deve ser tua divisa".
"Amigo, é preciso consagrar todos os lazeres ao trabalho espírita, ao estudo; é preciso, principalmente, te habituares a defender e esclarecer nossa Doutrina, não que devas, a partir de hoje, falar dessas coisas a todo instante; não. É preciso, porém, que estejas corajoso, preparado, em silêncio, para a hora solene que não te deve surpreender, mas te encontrar preparado".
Além de Sorella, Durand o assiste, sempre também pontual e fiel.
"É preciso trabalhar, disse-lhe ele, para se tornar um orador e um escritor." Nesse objetivo, preparar os textos e corrigi-los; depois, submetê-los à apreciação de seus amigos; se lhe fizerem observações, quer sejam justas ou infundadas, aceitá-las sempre de bom grado, depois julgar intimamente o que fazer, a propósito.
Será necessário estudar previamente o estilo, o encadeamento das frases nos autores que lhe serão indicados, ulteriormente.
Evitar, sobretudo a facilidade, a abundância romântica. Um estilo suave e severo ao mesmo tempo, simples na expressão, despojado de ornamentos inúteis, sempre bem corrigido".
Em 19 de fevereiro de 1873, fez seus primeiros exames oratórios perante cinco mestres espirituais, trazidos por Durand. Sorella o assiste, mas ficou emocionado como um candidato diante de uma comissão examinadora. Leu seu segundo discurso.
"Está tudo bem, disseram-lhe, exceto alguns pormenores fáceis de retocar.
Os progressos conseguidos são sensíveis e justificam as esperanças que pusemos em ti."
A 17 de março, ele falava sobre Materialismo, em sessão privativa, na Loja dos Demófilos. O discurso precedente, que havia marcado sua estréia na arte oratória, tratava de Patriotismo. O terceiro era uma apologia do Espiritualismo.
Temas vários, propícios a discussões de idéias gerais, suscetíveis de abordar as questões que ele reservava para mais tarde aprofundar.
Esse tema do Materialismo perante a Ciência e a Razão devia requerer todos os esforços do jovem divulgador e levá-lo a abordar, inicialmente, o maior acontecimento da História contemporânea.
"Quase todas as questões que agitam nossa época têm seu ponto de partida na República de 1789 que levantou, afirmava ele, o problema político e os problemas religiosos: governo dos povos pela democracia, religião das almas pela Ciência".
Infelizmente, as idéias espiritualistas dos grandes Convencionais não foram partilhadas por seus sucessores; a ciência materialista diminuiu o domínio da verdadeira ciência, minou o alicerce da religião, abalou a fé nas almas e levou os homens para as doutrinas negativistas, donde surgiram os males da atual sociedade.
Vemos anunciar-se o tema que ele desenvolverá, mais tarde, com mais profundidade e vigor em suas obras. Ainda são, apenas, exercícios de eloqüência.
Ele desenvolve outros temas, porém, todos convergem para a idéia principal: a predominância necessária do Novo Espiritualismo. Trata, sucessivamente, do Evolucionismo, da Religião Natural, da Família, do Centenário da Independência Americana, de Deus, a Alma e a Vida. São palestras particulares, discursos de recepção ou de festas da Ordem, valendo como treinos, nos quais se exercitava para o papel que se esperava dele.
Sua tarefa já aparecia singularmente complicada, se considerarmos que ele teve que se consagrar a uma tríplice atividade: o trabalho profissional, o estudo e o manejo da palavra.
Todavia, suas atividades comerciais se tornaram menos desagradáveis, menos monótonas, mais de acordo com seus gostos: viajava por conta da casa comercial.
Seu raio de ação é, de início, regional, mas ele deseja ampliá-lo. Inicialmente, visita o Centro, depois as províncias mais distantes: Lorraine, Normandie, Bretagne, Périgord, Auvergne e países vizinhos.
Em 1872, faz uma rápida passagem por Londres. Nos anos seguintes, percorre a França, em todos os sentidos: os negócios estão em franco progresso.
Inaugurou, por seu espírito de iniciativa, um novo método de trabalho, na época em que os viajantes comerciais se contentavam em fazer pequenas viagens, numa área restrita, que atendia às suas limitadas ambições.
Léon Denis, obediente a seu senso comercial, soube convencer seu patrão da necessidade de ampliar seu campo de trabalho. E assim que ele realizou roteiros cada vez mais longos e, sem dúvida, cada vez mais frutíferos.
Nota-se seu secreto contentamento, sua alegria sem igual, quando lhe foi traçado seu primeiro itinerário. Devia, dessa vez, visitar a região de Vaud, na Suíça, a Córsega, a Lombardia, depois a Algéria, Tunísia, com um regresso pela Itália.
Admiremos aqui como o destino se compraz em atender aos nossos mais ousados desejos e de colocar ao nosso alcance os mais ambicionados sonhos.
Assim, do modo mais fácil, seus mais caros desejos estão em vias de realização.
Denis vai partir para uma bela viagem. Além da expectativa, sente-se contente, porque Joana D'Arc, antes de sua partida, quis demonstrar-lhe uma inesperada prova de sua ternura e de sua fé.
A BELA VIAGEM
A 27 de setembro de 1876, Léon Denis deixava Tours.
Seguindo o caminho mais longo, percorria a Auvergne: Clermont-Ferrand, Thiers; depois, atravessando o Velay, foi para Lyon. Tendo visitado Fourvières, depois assistindo, em casa de amigos, a uma interessante reunião espírita, seguiu, a 3 de outubro para Genebra.
Essa cidade o havia encantado. Lausanne e a ribeira do Vaud acabavam de conquistá-lo.
O incomparável quadro dos grandes Alpes, o enorme espelho líquido do Léman, a amplidão do horizonte o comovem até suas mais íntimas fibras.
Ele aprecia, ao demais, a seriedade, a amabilidade das populações ribeirinhas, tão perto de nós pela identidade de origem, da língua e pela urbanidade dos costumes.
Alguns dias mais tarde, ele está em pleno Valais. Detém-se em Sion, uma localidade bem pitoresca, porém, suja. Chove. Os carros, puxados por bois ruivos, vão aos solavancos, pelas péssimas estradas da montanha; os habitantes da região recolhem os cestos das vindimas, em suas aldeias escondidas.
Felizmente, na partida do dia seguinte, um sol radioso dissipa a bruma que envolvia as encostas. Os cimos aparecem, envolvidos por suas neves resplandecentes.
Em Brieg, o cenário é maravilhoso. É preciso descer. Foi forçoso atravessar Simplon de carro. Um engenheiro valdense é companheiro de viagem de Denis.
Ambos almoçam num restaurante improvisado para uso dos turistas. A viagem é encantadora!
Para trás, os montes deslumbrantes de Tourtemagne e o vale de Zermatt. Os campanários das aldeias, de teto metálico, a torrente do Viège reluzem com um fulgor especial, produzindo um curiosíssimo efeito.
Em Bérisal, um jovem inglês substitui o engenheiro. Uma imensa perspectiva acaba de se abrir sobre o Valais.
O rio corre, ao longe, entre os montes, como uma fita de prata. A estrada faz inúmeras curvas; os viajantes, a pé, sobem através das pastagens e dos altos pinheirais.
Em Cavalrienberg, descobrem o Finsterhaorn e o alto Oberland. A noite sobrevém; é preciso parar e pernoitar na montanha, na pousada prevista.
No dia seguinte, às 7 horas, prosseguem o caminho. A vista é soberba. Brieg aparece lá em baixo a uma profundidade espantosa. Neve e geleiras cintilantes por toda
parte. Não há nenhuma vegetação. Os altos cumes revestem-se de um aspecto grandioso, porém, desolado, de uma austera solidão; o vento áspero açoita o rosto dos viajantes. Por todos os lados, rochedos abruptos, precipícios,
onde desabam avalanches por abismos tremendos.
O desfiladeiro, porém, foi transposto e começa a descida para a vertente italiana. O carro, que fora deixado na aldeia de Simplon, leva agora nosso excursionista para os vales do Ticino.
Para nada perder do admirável panorama dos desfiladeiros de Gorge, onde rugem as águas do Doveria, nosso viajante sobe no teto do veículo e se instala entre as bagagens.
O vento é frio e açoitaste, mas a vista é tão bela!
Em Iselle, foi preciso parar na Alfândega e já se avistam os mendigos, crianças maltrapilhas, o sol e as canções: é a Itália.
O vale se alarga, as aldeias, escondidas nas colinas ou espalhadas nas encostas, mostram, de longe, suas fachadas pintadas, seus campanários ocultos pelas folhagens.
Por todos os cantos, amoreiras, parreiras pelas muralhas e castanheiros que nos dão seus frutos espinhosos. Domo d'Ossola, bem limpa, bem delicada, lhe dá, na chegada, uma excelente impressão. Depois, aparecem Mergozzo e seu pequeno e lindo lago; enfim, Pallanza, à beira do Verbano encantando.
No dia seguinte, fez, com seus companheiros de viagem, a tradicional peregrinação às ilhas Barromeu e sente a magia dessas margens encantadas, mas não podia deter-se.
Em 12 de outubro, chega a Milão, a bela capital lombarda, toda ruidosa e animada por uma vida intensa. Veneza, porém, o chama! Não já havia percorrido, em sonhos a cidade do Doges? Não a havia visto, num quadro estranhamente sugestivo e para sempre fixado em sua memória e as deslumbrantes imagens, no tempo de seu esplendor?
Numa jornada de calor e poeira, ei-lo rodando para o Adriático. Bérgamo e seu velho castelo; Brescia, Lonato, de onde se descortina o lago de Garda; ao longe, Verona, depois, Vicenze desfilam diante de seus olhos maravilhados.
Sobrevém à noite, mas o viajante vê logo brilharem os fogos de Veneza.
A ponte é atravessada; eis a estação; eis as gôndolas que transportam. De repente, é a estranha impressão de um sonho acordado, o deslizar da embarcação entre as trevas das muralhas, onde os raios da lua brincam.
Tendo passado o resto da noite em sua hospedaria, levanta-se, bem cedo, para admirar a curiosa cidade em sua graça matinal.
Foi à Praça São Marcos e depois à Basílica. Subiu ao famoso Campanile, de onde se descobre a cidade toda cercada pelo mar luminoso.
A seguir, está no Palácio Ducal, vê as obras de Ticiano, Tintoretto e de Paulo Veronese. Deseja ver tudo: os museus, as escadarias e as estátuas, as praças e as igrejas, até o gueto sórdido e miserável.
À noite, após o último passeio na Piazza, retarda-se um pouco, envolvido pelos esplendores da cidade sem igual e embriagado pelo seu perfume violento, no terraço do Café Fabriani, admira a feérica visão noturna do Grande Canal.
Antes de abandonar essas maravilhas e a fim de que seus pais sejam informados de sua alegria, ele lhes descreve, envolvido pelo entusiasmo de suas primeiras impressões:
“Veneza, Hotel de Ia Luna. Queridos Pais”,
- Ver Veneza e, depois, morrer, dizem os italianos. Eu posso, então, morrer, porque já vi Veneza.
Passei aqui todo o domingo. Enquanto, na França, todos os meus compatriotas, envolvidos pela política, correm para a votação, eu sonho de dia, contemplo Veneza resplandecente de graça e de beleza, sob um céu azul e sem nuvens.
Desço do Campanario de São Marcos, cujo terraço domina a Praça, a 100m de altura. Fiquei ali mais de 1 hora, não me podendo desprender desse maravilhoso espetáculo de Veneza, espraiando-se, imensa, em meu derredor, no meio de um mar banhado de luz.
Os três sinos do Campanile soavam a meu lado, lançando em meus ouvidos um som ensurdecedor. Ao seu sinal, todas as igrejas de Veneza - existem mais de cem - começam a badalar.
O som dos sinos se elevava de todas as partes e formava um estranho concerto.
Sim, Veneza é bela. É a mais bizarra e a mais cativante cidade que tenho conhecido. Como é bom viver aqui!
A natureza é tão suave, o sol tão acariciante e o mar tão azul! Todavia, por que a população é tão má, tão vingativa e tão sórdida? Em toda parte, infelizmente, ao lado das maravilhas criadas pelo gênio humano, aparecem chagas revoltantes: preguiça, mendicância, paixões furiosas
Como descrever uma tal cidade! Impossível encontrar termos que lhe façam uma fiel imagem. Maravilha das maravilhas!
Tenho ouvido missa na Basílica de São Marcos, essa esplêndida igreja onde estão acumuladas todas as obras primas da arte veneziana e oriental (mármores, mosaicos, jóias preciosas e relíquias).
Os olhos ficam deslumbrados com todas essas preciosidades. E o Palácio Ducal e o dos Procuradores! Um mundo de admiráveis monumentos que se elevam em torno dessa Praça São Marcos, célebre no mundo inteiro. Convém ver, do Cais dos Esclavões, estender-se o mar sobre o qual o sol lança seus raios dourados; e as gôndolas deslizando, rápidas, silenciosas, nas águas calmas e transparentes.
Longe, as ilhas, o Lido, San-Pietro di Castello, La Giudecca, San-Giorgio Maggiore, etc. - Veneza inteirinha, suas inumeráveis abóbadas, suas ruas estreitas, suas pontes, suas praças animadas e ruidosas. Em torno dela, como um xale azul, lagunas e o mar, por toda à parte...
Escapuli de Milão para ver tudo isso e já estou de volta, mas retorno com uma poderosa imagem gravada em minha memória. Jamais esquecerei Veneza. Sinto-me como um estudante fazendo gazeta: não precisam saber que estive aqui, porém, tão perto de Veneza, não poderia resistir ao desejo de vê-Ia."
No outro dia, retornou a Milão, ficando, após, em Turin. Seus negócios o chamam a Menton, de onde seguiu para Gênova pela Riviera italiana e, de lá, Livorno, a fim de embarcar para Córsega.
Estamos no fim de outubro. Léon Denis peregrina pelas magníficas florestas de Cervione. Que importa que as hospedarias sejam mal cheirosas e a comida deixe a desejar!
O encanto envolveu toda a Ilha da Beleza. Partindo de Cervione com um certo Pestalozzi, dirige-se à Corte, montado, inicialmente, numa mula e, depois, numa carruagem. O encantamento prossegue. À medida que sobem, admiráveis vales vão surgindo, silenciosos, lembrando as idades primitivas, entre as altas encostas recobertas de castanheiros seculares.
O outono lança suas tonalidades ardentes sobre as frondosas copas e, através das aberturas das folhagens, brilham as cascatas, as torrentes que descem das neves dos montes.
Em Piedirocco foi preciso parar. Os animais estão cansados e o dia seguinte é dia de Todos os Santos.
Denis consagra, portanto, esse dia para um passeio solitário, na montanha, pelos caminhos pedregosos, sob os grandes castanheiros. No profundo silêncio, só se ouvem o jorrar das torrentes, no fundo dos vales, e o grito estridente dos falcões, no céu azul.
Às vezes, os sinos ressoam e com louvor a Deus.
No dia seguinte, ao meio-dia, puxada por um burro, chega à Corte.
O céu está de um azul profundo e brante.
Os cumes das montanhas estão envoltos numa atmosfera de admirável transparência.
Diante do panorama sublime do Monte d'Oro, lhe servem um suculento almoço, numa hospedaria perdida.
Ele se sente literalmente embriagado pela luz e pelo ar salubre. Infelizmente, chegando a Sartene e a Ajaccio, encontra plena febre eleitoral, no meio de uma população vociferante, que esquecia, por um momento, seu bom-senso e sua originalidade costumeira.
Retorna a Marselha; depois de curto descanso, embarca para a Argélia, a 20 de dezembro, com um céu encoberto. No dia seguinte, porém, já o céu está sem nuvens.
Admira esse espetáculo novo para ele, e o ruído inusitado, as cenas indescritíveis da vida árabe.
Tendo visitado Argel e Casbá, foi a Blidá, a rainha do Sael, que o deixa totalmente deslumbrado.
Aí, porém, nosso viajante é visivelmente tentado pelo desejo de penetrar mais fundo na vida indígena, de deixar as rotas comerciais movimentadas, para adentrar-se na montanha, no coração do país cabila.
Levado pela diligência a Tizi-Ouzou, viaja sempre de carro para o Forte Nacional. Em seu derredor, a terra é um vergel: jardins nas encostas, pastagens nas alturas. Ao longo da estrada bem conservada, circulam os naturais da região: pastores e camponeses, crianças e mulheres, algumas bonitas e sem véu, caminhando em todos os senti dos, numa grande algazarra
O sol invade com seus raios as cristas denteadas do Djurjura e é nesse colorido cenário pleno de vida que Denis almoça, no Forte Nacional, entre os cabilas acocorados e gesticulantes.
E hora de encontrar guias para a projetada excursão à montanha e não tarda a encontrar um.
Um certo Mustafá Belcassem, rapaz esperto, educado, limpo como uma moeda nova, que lhe havia sido recomendado, logo se oferece para acompanhá-lo em sua excursão.
Serve-se de um arrieiro, Ibraim, que conhece bem a região. Léon Denis deseja ir a Abkou, em pleno território cabila. Não havia impedimento.
Munido de um salvo-conduto, que lhe foi dado, muito amavelmente, pelo capitão do posto árabe, é-lo a caminho, desde cedo - montado em sua mula, ladeado por Mustafá e Ibraim, que vão a pé, rumo ao campo dos AinChelata.
A estrada é ruim, maltratada pelas recentes chuvas, porém, a paisagem é maravilhosa. De todas as partes há lavouras e grande quantidade de vegetação.
O campo que cerca as formidáveis muralhas do Djurjura parece um grande jardim. Os cabilas estão no trabalho. Cantos e gritos por toda parte.
As fumaças das aldeias sobem ao ar de um azul admirável.
Mustafá, que fala corretamente o francês, lembra cenas da insurreição de 1871 que o arruinou e aos de sua tribo, cujos bens foram confiscados.
Conversando sempre, o pequeno grupo sobe para Alta Cabila. Foi abandonada a estrada para seguir por veredas terrivelmente pontiaguda.
O burro em que estava nosso viajante sobe penosamente por entre enormes quarteirões de rochas.
Afinal, após uma hora de perigosa escalada, chega-se a Tifilcut, miserável aldeia de casas sórdidas, de uma sujeira repugnante.
Todos os três estão esgotados e a montaria não está nada bem. Vai à casa do “amin” pedir algumas provisões: leite e frutas. Cães ferozes latem em seus calcanhares; as mulheres fogem ao avistar um "roumi” (infiel) as crianças se escondem. Tendo Mustafá obtido as provisões solicitadas, nossos excursionistas se instalam para almoçar sobre as lajes da "djemaa".
Logo um círculo de curiosos os cerca. As mulheres, já refeitas do susto, mostram o "roumi" a seus garotos. Léon Denis, porém, tem muita pressa em seguir viagem, porque Abku ainda está longe, mas a má sorte os visita. A alimária, assustando-se com as roupas escuras de seu cavaleiro, foge, o que provoca riso incontrolável dos presentes.
Com grande sacrifício, Mustafá consegue recuperá-la, mas torceu o pé.
Seguem por um caminho errado, descendo pelas encostas, atravessando leitos secos e tornando a subir pelas ladeiras íngremes.
Anoitece. É preciso chegar, rapidamente, ao acampamento dos Ain-Chelata para ali passar a noite. Felizmente lá se encontrava o "amin", que ordena lhe traduzam o salvo-conduto e depois leva o "roumi" até sua casa.
Foram obrigados a segui-lo, através de um labirinto de muros, escorregando num lamaçal cujo mau cheiro invade as narinas.
Os cães rosnam e mostram suas presas aguçadas. Após pularem uma cerca, chegam a uma grande cabana, cuja porta está desconjuntada. E ali o pouso singular reservado ao turista, mas não havia escolha.
Por causa do forte frio, acende-se uma grande fogueira de galhos secos, no próprio chão. A fumaça invade todos os cantos. Noutra extremidade da choça, mulheres moem os grãos no pilão, mas desaparecem, com a presença do francês.
O mobiliário se compõe unicamente desses grandes vasos de pedra, da altura de um homem, onde os cabilas guardam seus cereais. O "amin" e seu jovem filho, acompanhados de parentes, entraram com os viajantes. Ficam acocorados em torno da fogueira e se aquecem ao calor. Trazem uma lâmpada indígena de cobre, sustentada numa alta haste de ferro.
O "muezzin" fez ouvir um canto triste e suave e as orações são proferidas. Os cabilas, envoltos em seus albornozes, já estão adormecidos.
Às nove horas, trazem o cuscus, num prato de madeira com pé, em forma de compoteira.
Numa outra vasilha de cerâmica azul, estão a fumegar as aves cozidas. O molho vem separado, num pote.
O "amin" pega uma comprida colher de ferro, cospe para limpá-la, depois a enxuga, gravemente, numa ponta de seu imundo albornoz.
Leon Denis vacila um momento... Entretanto, Mustafá dá o exemplo: ele faz um buraco no cuscus e se serve à vontade. O francês ainda demonstra alguma repugnância, mas é conveniente agradar o hospedeiro.
Pegando um pedaço de frango com a mão, o infortunado francês se dá por satisfeito; o cuscus está terrivelmente apimentado.
Felizmente, a moringa que contém uma água deliciosamente fresca vem amenizar em parte a irritação causada pela infernal iguaria. Entretanto, os outros convivas estão em festa: forram completamente o estômago e, em seguida, enrolam-se em seus trapos, para descansarem no chão. Todos dormem logo num sono profundo.
Só o chefe da expedição, ainda acordado, pensa na sua aventura, avaliando a surpresa da mãe e amigos, se o vissem naquela situação.
O ar frio da montanha entra pela porta mal fechada. A todo o momento, cabras e carneiros penetram no reduto, vão farejar os dorminhocos e se deitam entre eles. Legiões de pulgas começam a devorar o infortunado turista e lhe causam coceiras intermináveis.
As horas correm lentas, ao ritmo dos roncos humanos e dos suspiros dos animais.
A manhã, afinal, vem terminar seu suplício. Ele desperta Mustafá, agradece ao hospedeiro ainda adormecido, que lhe responde com resmungos entrecortados. Denis afasta-se depressa desse refúgio na verdade bem primitivo.
São 5 horas. A lua brilha e os cães ladram, furiosamente. Leon Denis se apressa, montado em seu animal, que é conduzido pelo imperturbável Ibraim e que Mustafá
Belcassem acompanha, manquejando, rumo a Abeku, que é o destino dessa memorável excursão, na Cabília.
Dessas excursões em terra africana, o representante da Casa Pillet, de Tours, devia guardar muitas lembranças de contratempos e de decepções que suportou com bom humor.
Viajando de Abku para Philippeville, daí a Guelma, a Bane, sacudido nos trens, nas diligências ou no lombo dos burros, ativo, curioso e encantado por tudo, realizou uma viagem bem difícil, para chegar a Túnis. Os embaraços haviam começado, desde o embarque.
Chegando ao cais, quando já haviam suspendido a escada, foi obrigado a agarrar as cordas, segurando-se com todas as forças, a fim de poder subir a bordo.
Até Calle a travessia foi encantadora e o mar estava calmo. De repente, o vento se tornou muito frio, e a pequena embarcação balançava cada vez mais.
A noite havia sido terrível. As ondas se lançavam sobre o convés. Tonéis, tambores, correntes e cordas rolavam pelo convés com um barulho infernal. Pancadas surdas e preocupantes ressoavam no porão, pela má arrumação da carga.
Nos camarotes, a louça se quebrava. Os passageiros precisavam se agarrar, firmemente, nas barras da embarcação, enquanto as mulheres e as crianças gritavam de pavor.
O controle do navio se fez cada vez mais trabalhoso, no meio da tempestade, mas tudo se acalmou, logo que foi dobrado o Cabo Farina.
Leon Denis queria ver Túnis, antes de retornar pela Itália; desejava visitar as ruínas da antiga Cartago e se sentir embalado pelo fabuloso mar, origem de nossa civilização.
É-lo na grande capital do Protetorado, suja, cheia de vida, barulhenta e colorida. Abandonando os bairros novos da Porta da Marinha, penetra nos "souks” (bazares). É aí que passa suas horas de lazer.
"Gosto de me internar, ao acaso, pelos quarteirões árabes de Tunis, buscando os recantos mais solitários e mais silenciosos."
No coração da cidade indígena, procurar descobrir os mais autênticos aspectos da vida árabe.
O campo também o atrai, o verde vale do Medjerda, repleto de brancas casas européias.
Antes de embarcar para Malta, que deseja visitar, não deixará Túnis, sem antes ver a Vila dos Mirtos, encantadora construção do estilo mourisco, pertencente a um banqueiro francês.
Desses floridos terraços, quer contemplar, mais uma vez, o espetáculo do sol poente, em terras africanas. Aqui está o quadro que ele nos traça com sua pena admirável:
"A noite se aproxima. O Sol, já abaixo do horizonte, lança seus derradeiros raios sobre Túnis, dourando as muralhas e os edifícios.
Ao longe, as montanhas se tingem de cores variadas, passando, sucessivamente, do azul ao rosa suave e ao violeta. À medida que o disco solar se abaixa, as cores se suavizam e mergulham no crepúsculo. Logo, os mais distantes cumes se iluminam e se deixam dourar pelas luzes do sol poente."
Eis o que sucede a esse feérico espetáculo:
A noite desceu e, num céu límpido, a luz se levanta e derrama sua pálida luz sobre Túnis, que dorme.
Faz brilhar as águas borbulhantes dos repuxos e os crescentes de cobre das cúpulas. Invade as arcadas dos pórticos e se reflete nos mármores das colunas, estendendo pelos campos as grandes sombras dos minaretes e das palmeiras.
Seus raios prateados penetram como flechas através dos tufos de verdura e brincam na areia.
Nenhum ruído, nenhum sopro perturba a paz da noite.”(*) Túnis e a Ilha de Sardenha.
Deixemos nosso viajante se inebriar, um instante, com esses encantamentos que eram novidades para ele e o deixemos passear, dois dias depois, em Malta, entre os pitorescos "highlanders" do exército inglês, os carregadores maltrapilhos e as mulheres da ilha, em seus mantos negros.
Agora o encontramos na Sicília, visitando Catânia populosa e miserável; Taormina, que fica num rochedo calcinado; Messina, com suas veneráveis igrejas, sempre curioso por tudo, percorrendo o cais dessas cidades, no meio de primitivos carros de bois, conduzidos por carreiros de semblantes selvagens.
É preciso andar depressa, rapidamente.
A 15 de dezembro, Léon , com destino a Nápoles. Observa, na popa dos pequenos grupos de passageiros do Estreito.
A proa vence os remoinhos espumosos de Caribde. À direita, sobranceiro, ergue-se o rochedo de Cila e os montes da Calábria, cobertos de bruma.
Após uma péssima noite, o Marco Pólo entra na baía de Nápoles.
O coração do viajante bate de emoção, diante do inesquecível espetáculo. Após desembarcar e se alimentar devidamente, toma um ônibus para Capo-di-Monte, onde desce, decepcionado por não ter podido visitar o Palácio Real, dirige-se a Chiagga onde desfilam as suntuosas carruagens da aristocracia napolitana. Pára em Margellina, apesar do vento frio, para contemplar o maravilhoso poente sobre o mar.
Voltou para o hotel pela Strada di Porto, onde fumegam as barracas ao ar livre e aí janta mal. A cozinha é terrivelmente italiana e lembra o cuscus da cidade de Cabila.
Consola-se, porém, em San Carlo, onde assiste ao "Trovador" e, para que a festa seja completa, vai ao cais ver a lua nascer sobre a baía adormecida.
Dois dias depois, tendo feito a obrigatória visita as ruínas de Pompéia, toma o trem para Roma.
Da janela do trem, vê desenrolar-se o comovente panorama dos lugares consagrados pela História. Depois dos Abruzos estéreis, surgem logo, cobertas de neve, as montanhas do Lácio, a Serra dos Volscos e, pelo mar, o promontório de Circe. Após, a região dos Sabinos, Albano, Frascati e, a seguir, os campos de Roma.
Longe, aparece a Cidade Eterna, com suas cúpulas, seus campanários brilhantes sob o céu azul, tudo destacando, em tons cinza, o fundo resplandecente dos Apeninos.
À esquerda, é a Via Apia, seus túmulos e, por toda parte, aquedutos, arcos semi desmoronados, inúmeras ruínas, todos os vestígios que falam bem alto à alma de um filho da latinidade.
Mal ficou instalado, após os pequenos aborrecimentos próprios da viagem, sua primeira visita é para a Basílica de São Pedro.
De início, a impressão não foi nitidamente favorável.
"Entretanto, diz ele, à medida que eu entrava, a maravilhosa colunata, em parte escondida pelas casas do fundo da Praça, desdobrava-se de ambos os lados. Da maravilhosa cúpula e das naves a impressão de grandeza se destaca, pouco a pouco; ganha em poder, à medida que percorro o interior desse templo sem igual.
Os raios do poente, penetrando nas vidraças, lançam reflexos chamejantes sobre as colunas do precioso mármore, sobre os túmulos dos Papas, sobre o ouro e as cores.
O gênio do Catolicismo ali está manifesto, ou melhor, o sentimento religioso dos homens da Renascença.”À noite, no Corso, a animação é grande.
Roma se agita por causa de uma crise ministerial. A formação do novo Gabinete Depretis-Crispi excita a paixão política dessa população ardorosa.
Denis consagra o dia seguinte a Roma dos Césares. Sobe o Capitólio, visita o Coliseu, as Termas de Caracalla. Diante das formas puras dos pórticos, evoca os grandes dias da Antiguidade.
Após jantar, sai para ir gozar do espetáculo das ruínas, iluminadas pela Lua. Em companhia de um jovem holandês, vai ao Coliseu. O edifício, de noite, apresenta um aspecto estranho. De repente, lhe parece que é o túmulo de todo um povo.
Os visitantes são numerosos; suas tochas errantes produzem reflexos fantásticos nas galerias profundas. O Fórum, aos clarões da Lua, reveste-se de um aspecto feérico. Sobre Roma adormecida se estende o céu pleno de estrelas. O silêncio noturno, no meio desses emocionantes fragmentos da História, enche o visitante de uma impressão inesquecível.
No dia seguinte, Denis completará o passeio com a visita ao Museu do Vaticano, no pátio do Belvedere e na Capela Sixtina, diante de autênticas obras-primas da arte antiga e renascentista.
E preciso, porém, abandonar as meditações sublimes. As exigências da atividade comercial não se acomodam muito com belos sonhos.
Adeus, Rainha da Tríplice Coroa! Quem já te viu uma vez, jamais te esquecerá.
O viajante, que está agora atravessando a Toscana para seu jardim - a França - enregelada sob um céu de inverno, leva para sempre, gravada em sua lembrança, entre tantas visões várias, tua face venerável, onde está impresso, para os séculos, um momento de Beleza do mundo.
OUTRA VIAGEM
Léon Denis deveria rever a Itália, visitar, com calma, suas cidades e seus museus; retornaria muitas vezes à A1géria, onde o chamavam as obrigações da casa em que trabalhava e, mais tarde, em tarefa de divulgador espírita. Sob essa rede tão variada de impressões superpostas devia permanecer, em seu frescor primitivo, a profunda variedade de lembranças acumuladas durante as maravilhosas viagens.
Quando criança, debruçado sobre seu Atlas, durante os anos de estudo, o filho do oficial de pedreiro de Foug sonhava com aventuras futuras, com longas excursões pelo mundo. E eis que essas quimeras estavam em parte realizadas.
Numa época em que os franceses pouco viajavam, ele percorria o país em todas as direções e se estendia além das fronteiras, de Barcelona até Haia, de Nantes a Milão. Ele tinha seu próprio sistema de viajar.
É verdade que não perdia tempo sentado à mesa farta dos restaurantes ou em mesas de bilhares.
Sabia evitar os caixeiros-viajantes prosas e inconvenientes.
Calçando seus borzeguins de viagem, pondo às costas sua mochila, como em 1870, partia em excursão, com uma boa bengala.
Excursionar, para ele, era percorrer todo o país com seus próprios recursos, com a única ajuda de um mapa militar.
Em 1871, em La Rochelle, exercitara-se em topografia. Com o fim da guerra, ficou disponível o estoque de mapas que se encontravam nos escritórios da 262 Divisão. Encheu com eles suas malas.
Jamais deixava de levar os que poderia utilizar em suas excursões, mantendo, por vezes, graças a isso, um malicioso prazer de fornecer aos habitantes do lugar informações de sua própria localidade.
Por esse hábito, as ruínas históricas, nenhum velho calvário, megalítico ou o menor detalhe, nada escapava às suas investigações e, assim, ele demonstrava perfeito conhecimento da região visitada.
Sua curiosidade nada deixava passar.
Além disso, ele era excelente andarilho. Para um turista dessa espécie é fácil adivinhar-se que pouco lhe importava o conforto do pouso ou da comida.
O que chamamos de conforto - hábito a que já nos acostumamos - não entrava em suas preocupações. Geralmente, comia debaixo de um árvore, à beira de uma fonte. Tirando de sua mochila alguns mantimentos, almoça como um simples camponês.
Às vezes, ia a uma aldeia próxima fazer sua refeição num albergue, com uma simples omelete e um pedaço de toucinho.
Dessa forma percorreu a Auvergne, a Sabóia, o Delfinado e cada uma das demais províncias francesas.
No lugar da boa cama do hotel da cidade prefere dormir na simplicidade de uma casa na montanha.
Os cumes das montanhas o atraem; ele gosta das alturas. A comida lá é muitas vezes escassa, mas como é saudável para o espírito!
Além de sua Lorena natal, da Auvergne austera, a região que mais admirou foi a Armórica.
Suas recortadas costas e suas ilhas selvagens; suas enseadas cheias de secreta magia; os pântanos e seus bosques cortados por invisíveis regatos; as verdes pastagens e suas culturas, tudo ele visitou.
De Trégon, na região de Léon, até Vannes, na Cornualha, passeou na contemplação dos monumentos e na evocação das velhas lendas.
Certa vez, na floresta de Paimport, derradeiro vestígio da antiga Broceliande, avista uma pastorazinha maltrapilha cujos olhos se esbugalham de espanto e de medo, ao vê-lo se aproximar.
A menina selvagem teve vontade de fugir, mas o viajante a interpela, em sua língua. Ela se encoraja.
- Poderia me dizer onde fica a Fonte de Baranton?
A pequena responde balançando afirmativamente a cabeça.
- Quer me levar até lá?
Mesma resposta, e ei-lo avançando, no meio das moitas, até à beira de um pântano, cujas águas apodrecem entre as ervas.
- É aí, disse ela, a Fonte de Baranton.
Amarga decepção! Eis o que resta do Espelho de Viviana e da escadaria mágica onde Merlin se sentava.
Mas não são apenas as belas lendas que interessam esse grande amigo da Natureza; observa a vida secreta tão profundamente variada da floresta. A árvore é sua confidente e amiga; o animal perseguido pelo impiedoso caçador lhe inspira um sentimento de fervorosa piedade. Uma vez, na floresta de Chinon, que ele conhecia muito bem, vê se precipitar numa encruzilhada, onde está fazendo sua refeição, um veado que foge de uma matilha.
O belo animal, coberto de suor, os flancos arquejantes, estaca a poucos passos do andarilho imóvel. Escuta o barulho dos cães e dos caçadores que se aproximam e, mudando rapidamente de direção, dá um salto prodigioso e se interna no interior da floresta.
Os cães farejam em vão; o rastro está perdido. Os caçadores interrogam Léon Denis que lhes disse ter visto, há poucos instantes, o animal perto dele.
- E por que não o espantou para que voltasse? exclamou um deles.
- Pois evitei fazê-lo, lhes disse ele, imperturbável, rindo-se por dentro, pela decepção e ar zangado dos caçadores.
De todos os espetáculos da Natureza, nada o encantava tanto como a montanha. Seu lema "Sempre para mais alto!" se aplicava tanto para o mundo físico como para o mundo espiritual.
Cada uma das numerosas cartas ilustradas que ele enviava para sua mãe, quando em viagem, traz uma cruz que marca o pico que ele escalou.
Passeio, excursão, subidas tudo lhe agradava, desde que fosse a pé.
"Não me falem de outra forma de passear que não seja a pé, principalmente nas montanhas, alegrava-se ele em repetir.
Sim, Jean-Jacques ainda teria mil vezes razão contra vós, homens do século XX, apesar de vossos funiculares e dos automóveis barulhentos.
É a pé que se dilata verdadeiramente o pulmão e, ao mesmo tempo, a alma.
Não se despreze o esforço dispendido, o prazer de vencer o obstáculo, de escalar os picos, a fim de contemplar panoramas que vos escaparão aos olhos, sempre que utilizais a máquina.
É assim que, de minha parte, muitas vezes escalei os Piriaeus, em Gavarnie, o Pico de Gers, atravessei os Alpes, em São Bernardo e em Simplon e garanto que isso vale mais que todos os vossos túneis eletrificados onde se fica asfixiado - isto na montanha não existe! - e mais do que todos os vossos carros que se despencam muitas vezes nos precipícios.
Concordo em que nem sempre isto acontece, mas prefiro desfrutar o prazer que a montanha oferece aos que a escalam a pé."
O menor passeio era para ele motivo para observações, meditação e elevação.
Nada se perdia nas anotações que ele registrava. Tudo era cuidadosamente anotado e catalogado.
Dessa forma, suas anotações pessoais ajudavam a esclarecer os textos por vezes obscuros.
A Natureza revelava, um a um, a seu grande amigo, os segredos que, normalmente, não se encontravam nos livros.
Nesse sentido, pode-se adiantar que suas numerosas viagens contribuíram grandemente para o desenvolvimento integral de sua personalidade.
O CONFERENCISTA DA LIGA DO ENSINO
No ano de 1872, seguindo a importância dada no país, foi fundado, em Touraine, um Círculo regional pela Liga do Ensino.
Sabe-se qual a louvável finalidade de que estava imbuída essa Liga: estimular a instrução do povo, nos locais desprovidos de escolas; concorrer, através da doação de livros, por meio de subvenções especiais, para a criação de cursos de adultos e de bibliotecas populares.
Era, em suma, uma grande federação intelectual, sem qualquer entrave burocrático, cujo objetivo era que a França adotasse o ensino obrigatório gratuito e leigo e consagrar a independência da escola perante as Igrejas.
Apenas tolerada, essa obra começou, em Indreet-Loire, bem modestamente com a fundação de uma biblioteca com cerca de seiscentos volumes.
Em 16 de maio, a Liga começou a ser combatida. Em Tours, o Círculo teve proibido a distribuição de certas obras de seu catálogo e, por isso, diminuiu sua atividade. A obra subsistiu, graças ao zelo de seus fundadores.
O Dr. Belle, deputado por Indre-et-Loire, que estava sinceramente imbuído de idéias republicanas, tomou a si a direção do Círculo e lhe imprimiu um vigoroso impulso.
Apreciava o jovem viajante da Casa Pillet por sua inteligência e sua atividade e colocou-o como secretário geral do Círculo. Não podia ter feito escolha mais feliz. Filho do povo, tendo comprovado por si mesmo quanto às classes pobres estão, por falta de instrução, postas em estado de inferioridade, face às classes abastadas, Léon Denis se entregou inteiramente à tarefa que lhe acabavam de confiar.
Foi em 15 de setembro de 1878 que se inaugurou, oficialmente, o Círculo, em Touraine, com uma grande conferência, sob a presidência do Dr. Belle.
Léon Denis, ali, magistralmente, desenvolveu o tema da instrução popular. Era a primeira vez que ele se apresentava, publicamente e logo se destacou como conferencista de grande capacidade.
Encontramos essa afirmação num artigo aparecido, no dia seguinte, na Union Libérale, jornal de Tours e do departamento de Indre-et-Loire.
"O Dr. Belle, ali está dito, deu a palavra ao Sr. Denis, secretário da Liga, que proferiu um notável discurso, no qual mostrou qualidades oratórias de primeira ordem, obtendo calorosos aplausos e um sucesso total.
É com o maior prazer que juntamos nossas felicitações às que o jovem orador recebeu, no final de seu discurso, de todos os membros da mesa e do auditório inteiro.
No anos que se seguiram, o ardoroso propagandista leigo acompanhou Jean Macé nos Círculos regionais, onde houvesse uma biblioteca em formação.
Habilidoso em transmitir sua energia aos homens devotados, em seu derredor, o promotor desse grande movimento de emancipação intelectual não se demorou muito em valorizar a colaboração do secretário de Tours.
Juntos, visitaram Châteaurenault, Langeais, Bourgueil, Richelieu, Loches, no Departamento de Indre-etLoire, depois outras cidades dos Departamentos vizinhos: Jaulnay-Clan, no Departamento de Vienne, Orléans, Angers, Le Mans, Nantes, etc.
O jovem colega de Jean Macé desenvolve uma atividade, um ardor tão cativante que o mais completo sucesso o acolhe, onde ele se apresenta.
"Conferencista de primeira ordem, escrevem, palavra fácil, expressões escolhidas, períodos brilhantes e claros, além disso demonstra uma ciência profunda e conhecimento das coisas e dos lugares, graças às numerosas viagens das quais é um apaixonado.
“Conferencista de grande mérito, apregoa-se, ele sabe cativar seu auditório e, com sua palavra ardente e colorida, as mais árduas questões adquirem um encanto inesperado.
Ele sabe como despertar um grande interesse no auditório, porque os temas que escolhe são tratados com uma grandiosa elevação de pensamento, numa linguagem honesta e pura, ao contrário de certos conferencistas que acham não ser possível instruir eficazmente com expressões e fraseados muito simples “.
Simplicidade e clareza já se notam como suas qualidades dominantes e deviam ficar como uma constante de seu talento.
As declarações seguintes acabam por caracterizar a arte já bastante segura do jovem propagandista:
"O sr. Denis possui as qualidades que o tornam um orador: erudição profunda, memória prodigiosa, elegância de forma, harmonia de períodos, sobriedade de gestos e, acima de tudo, a presença, que torna sua eloqüência particularmente comunicativa e conquista logo a simpatia do auditório".
Não estranharemos mais a admiração muito especial conquistada por nosso conferencista em certos auditórios, geralmente refratários, renitentes, prevenidos e que se
tornavam pouco a pouco atraídos por sua palavra honesta e tão humanamente convincente.
Como secretário-geral do Círculo da Liga do Ensino, em Tours, vemo-lo realizar uma série de grandes conferências nas cidades do Oeste: Tours, Le Mans, Angers, Nantes, Poitiers, etc.
Os assuntos escolhidos por Denis nessas cidades permitem esclarecer alguns problemas sobre os quais bem que gostaria de falar livremente, mas é preciso, entretanto, levar em conta as dificuldades que um tal empreendimento apresenta. Sob o patrocínio da Liga nem seria possível pensar nisso.
Lança-se, então, a desenvolver temas gerais de História: A República Americana, Astronomia Popular, As Terras do Espaço, Os Universos Distantes, etc.
Em sessões privativas, ele trata de assuntos mais específicos, tais como: O Mundo e a Vida, Os Problemas Morais e Religiosos, etc.
Em 1880, proferia uma de suas primeiras grandes conferências: O Progresso. Fala sucessivamente em quatro cidades diferentes: Tours, Bourgueil, Châteaurenault e Orléans. Esta brilhante palestra, de um alto teor literário, bem composta, foi publicada, num opúsculo, no mesmo ano, a pedido de seus numerosos ouvintes.
Alguns meses após, aparecia "Túnis e a Ilha da Sardenha", assunto que ele houvera igualmente tratado verbalmente, servindo-se de suas anotações e recordações de viagem.
O renome do jovem orador da Liga já estava garantido.
Jean Macé lhe dedicava real estima e o presidente do Círculo de Tours tinha por ele grande consideração.
Num boletim da Liga, onde o Dr. Belle apresentava os conferencistas em viagem, assim se expressava, após ter destacado os méritos do jovem propagandista, sempre envolvido em dificuldades sem conta:
"O que há de notável em Léon Denis é que ele é o” Vir Probus “por excelência. Jamais se apresenta por exibicionismo. Sua palavra é sempre honesta e criteriosa; os assuntos de que trata são sempre elevados. O coração está pleno de vida e a alma forte." E termina assim: "Só temos uma restrição a fazer a Léon Denis: ele é muito modesto."
Com essa modéstia e essa probidade o célebre presidente do Círculo de Tours da Liga do Indre-et-Loire acabara de comprovar o excepcional valor de Léon Denis.
Aspirando ao Senado, estava pretendendo fazer de seu secretário-geral um deputado - escolha das mais felizes, se esse desejo fosse correspondido pelo seu jovem colaborador, - mas esse opôs logo uma resistência, que surpreendeu e decepcionou a Jean Macé.
Falou-lhe com sua franqueza costumeira:
"Refleti bastante sobre a conversa que tivemos em meu escritório da Rua Santo Elói e minhas reflexões me fizeram lamentar a decisão que tomou. Você poderia exercer uma salutar influência sobre nossos concidadãos.
Acrescentarei que tenho a certeza de que a carreira política se lhe abriria com facilidade, se quisesse sair da modéstia em que se compraz.
Desejo ardentemente descansar e eu não seria temerário, se afirmasse que você poderia substituir-me na Primeira Circunscrição de Tours. Não recuse, por sua modesta situação econômica. Graças aos Céus, estamos numa época em que essas considerações pouco preocupam as massas, sobretudo no setor que eu represento.
Garanto-lhe que não sou o primeiro a pensar em sua candidatura.
Ficaria feliz em poder ceder meu lugar a meu amigo Denis que, a uma honestidade absoluta se junta uma energia suficiente para não se deixar levar por atitudes danosas à Pátria.
Se lhe digo que pode desempenhar um papel importante, feliz para a cidade, por que não me acredita?
Você há de concordar em que já adquiri alguma experiência no trato com os homens. Calado, muitas vezes, porém, sempre observador, posso, como qualquer um, eu quase diria - melhor que muitos outros, posso fazer sobre os homens e as coisas um julgamento com certa segurança.
E, se acrescentar que, podendo, na hora atual, ser útil à cidade, poderia mais tarde ser útil ao país, por que você recusaria sair de sua imobilidade?
Embora você diga o contrário, os homens são raros. Seus estudos, seus trabalhos, seu amor ao bem, sua busca ardente pela verdade, todas essas coisas fazem de você um homem. Mostre-se!"
Léon não podia aceitar uma tal oferta, se bem que lhe fosse das mais elogios.
Certamente, ele possuía as qualidades requeridas para a carreira parlamentar. Sabia manejar a palavra, empolgar um auditório. Possuía a simplicidade e a alegria que agradam às pessoas do interior e não lhe faltavam convicções sólidas e ardor combativo. Todavia, era infenso a qualquer ambição política.
Além disso, ele atravessava nessa época uma crise dolorosa: sua saúde estava longe de ser satisfatória; numerosas preocupações o retinham numa expectativa cruel, que prejudicava seu entusiasmo.
Certamente, custava-lhe muito desiludir o generoso amigo que o estimava e cuja atitude o sensibilizava, porém, era preciso tomar uma resolução; uma tal resposta não podia ser protelada.
Em 8 de maio, escreveu-lhe:
"Sua carta me tocou profundamente, meu caro Presidente. É preciso um impedimento bem grande para lhe ousar responder negativamente. Apesar de tudo, me é penoso dar esta resposta.
Quantos homens de meu conhecimento acolheriam com uma justa alegria tais propostas e a oferta de um apoio tão generoso.
Entretanto, é preciso pensar nas exigências da matéria.
Tenho-lhe dito, e é cruel constatar em minha idade: caí num estado orgânico que me obriga a renunciar ao trabalho e às ocupações absorventes.
Estou na condição do navio que faz água e lança ao mar tudo o que possa aliviar a sua marcha. Precisarei renunciar cedo, sem dúvida alguma, à Liga e, até mesmo um pouco mais tarde, às funções que exerço na Casa J. Pillet. Apenas a necessidade de assegurar meu futuro material e o dos dois velhos pais que Deus colocou a meu encargo é que me faz ainda lutar.
Minha vista, gravemente atingida, o estado de anemia e prostração a que me levou uma violenta doença de estômago, são advertências imperiosas às quais não posso deixar de dar atenção.
Não há dúvida de que eu tinha alimentado a esperança de consagrar minhas forças e meios de ação a serviço de uma grande causa, talvez não precisamente a do progresso político, embora me seja cara; pelo menos, devo inteira e oferece, do ponto de vista, a solução do maior problema que se apresentou, em todos os tempos, ao espírito humano: o de seus próprios destinos. É com este objetivo que eu me exercitava, manejando a pena e a palavra.
A constatação de meu estado físico, e de minha impossibilidade de fazer o bem que havia sonhado me deixaram triste; não lhe ocultarei, já que foi tão benevolente comigo, que as coisas do mundo me aparecem cada vez mais sombrias.
É principalmente nessa hora que reconheço a necessidade de uma convicção poderosa na justiça eterna, na esperança das vidas renascentes, vidas de trabalho, de progresso para ajudar o homem a suportar suas provações, a fazê-los trabalhar pelo seu aperfeiçoamento, por seu melhoramento moral.
Devo, pois, renunciar, de uma forma definitiva, (o sr. o compreenderá) aos projetos que idealizou para mim. Guardarei deles uma não menos profunda e reconhecida recordação do generoso homem que se interessou por mim, que me estendeu a mão, convidando-me a gozar de uma situação que minhas preferências e meu enfraquecimento físico não me permitem jamais ocupar."
Vê-se, pelo tom mesmo dessa carta, que Léon Denis saía de uma dolorosa provação, ao mesmo tempo de ordem física e de ordem moral. Seus deslocamentos contínuos, condenando-o ao regime do hotel, haviam comprometido seu estômago. Suas múltiplas ocupações impunham-lhe uma sobrecarga prejudicial à saúde.
Ao demais, sua vista lhe dava as mais graves inquietações.
Aos 35 anos, via-se restringido em seus recursos físicos, com a perspectiva de continuar sua vida sozinho, junto de seus pais velhos e enfermos.
Seria a miséria para seus pais, se sucumbisse na tarefa
Era também amado, desejando estabelecer um lar, um refúgio contra as tempestades da vida.
Esperança irrealizável! Poderia ele, numa situação das mais modestas, submeter uma esposa a encargos tão pesados? Por outro lado, lhe era penoso, no ponto em que já estava, repartir-se entre as doçuras, os cuidados da vida familiar e os compromissos cada vez maiores de uma missão, cuja revelação se aclarava cada vez mais.
Tais decepções e tais renúncias não ocorreram sem tristeza e Léon Denis, mesmo com uma vontade da melhor têmpera, possuía também um coração extraordinariamente sensível e vibrante.
Felizmente, como havia notado o Dr. Belle, a alma era forte. Da provação aceita e suportada, a alma de Léon Denis devia sair vitoriosa, tendo recebido um novo alento.
Cap. IV
0 APOSTOLADO
NA LUTA
O ano de 1882 marca, em realidade, o início de seu apostolado. No decorrer desse curso doloroso que o destino lhe impôs, Denis se fecha sobre si mesmo para melhor medir suas forças, em face das duras etapas que deverá percorrer.
Assusta-se por não se sentir em boa forma para travar um tal combate.
Quantos trabalhos a cumprir e quantos obstáculos a vencer!
O materialismo invade, em fortes ondas de maré deletéria, solapando os altos cumes da inteligência. O Positivismo domina na Universidade.
O idealismo é desprezado, o Espiritismo é objeto de chacotas. Os crentes de todas as confissões estão com os ateus, a ridicularizar e, se possível, aniquilar a nova Doutrina. Todavia, Léon Denis, o bom paladino, enfrenta a borrasca. Os companheiros invisíveis estão a seu lado para encorajá-lo na luta.
"Coragem, amigo, disse-lhe Joana; estaremos sempre contigo na vida, para te sustentar e inspirar. Não estarás nunca sozinho. Os meios te serão dados, a tempo, para cumprires tua obra.
E 2 de novembro, Dia dos Mortos, do mesmo ano, quando um outro acontecimento de capital importância se produziu em sua vida.
Aquele que, durante meio século, deveria ser seu guia, seu melhor amigo, mais ainda, seu pai espiritual, "Jerônimo de Praga", comunica-se, pela primeira vez, em sessão espírita, no meio de um grupo de operários, num subúrbio de Le Mans, onde Léon Denis estava de passagem. Ele próprio nos relata o acontecimento:
"Por certo que nenhum dos assistentes conhecia a história do apóstolo tcheco. Eu sabia bem que o discípulo de João Huss tinha sido queimado vivo, como seu mestre, no século XV, por ordem do Concílio de Constança e, no momento, nem pensava nisso. Revejo ainda, pelo pensamento, a humilde casa onde fazíamos reunião, com 12 pessoas, ao derredor de uma mesa de 4 pés, mas sem tocá-la.
Somente dois operários mecânicos e uma mulher apoiavam suas mãos rudes e sujas. Eis o que a mesa ditou, por movimentos solenes e ritmados:
"Deus é bom! que sua bênção se estenda sobre vós como orvalho benfazejo, porque as consolações celestes são prodigalizadas apenas para os que buscam a justiça.
Lutei na arena terrestre, mas a luta era desigual. Sucumbi, porém, de minhas cinzas surgiram defensores corajosos; eles marcharam na rota em que eu caminhei. Todos eles são meus bem-amados filhos."
No mês de março seguinte, o ousado pioneiro espírita recebia de Jerônimo a garantia formal de uma assistência que não deveria faltar um só dia. "Vai, meu filho, no caminho aberto à tua frente; marcharei atrás de ti, para te sustentar." E, como Léon Denis ainda pergunta se seu estado de saúde lhe permitirá estar à altura da tarefa, recebe a seguinte mensagem: "Coragem, a recompensa será mais bela!"
Desde esse dia, o jovem mestre se decidiu pelo caminho de onde não se pode sair, nem retroceder sem risco irreparável.
"Em 10 anos, deverás começar a luta, lhe haviam anunciado seus guias." O tempo havia chegado.
Sua resolução, porém, está tomada: Escolheu, definitivamente, seu lema: "Sempre mais para o alto!"
PRIMEIRO CONTATO
Em 31 de março de 1881, pediram-lhe para proferir a tradicional homenagem no túmulo de Allan Kardec, no cemitério de Père-Lachaise. Em dezembro de 1882, tomava parte preponderante nos trabalhos do Congresso, que deveria originar a Sociedade dos Estudos Espíritas.
O Dr. Josset presidia a reunião, assistido por Chaigneau e Delanne, pai, como secretários. Leymarie era, de alguma forma, o animador dessas primeiras sessões.
A sra. Allan Kardec, então bem idosa, tinha sido posta ao corrente das disposições que iam ser tomadas e foi em perfeito acordo com ela que o Presidente declarou que ela aprovava plenamente a idéia dessa ampla associação moral entre os espíritas franceses e com a fundação de um periódico - O Espiritismo - destinado a divulgar a Doutrina.
O Dr. Josset havia destacado o quanto à presença de Léon Denis era valiosa, num dia em que se deveria firmar a solidariedade entre os espíritas provinciais e os parisienses.
Denis, falando por último, lançou vibrante apelo para a concórdia e recebeu os_aplausos da assembléia.
"O que não podemos registrar - disse a ata da reunião - é o calor, a inspiração, a majestade da linguagem do eminente conferencista. A assembléia ficava suspensa a seus lábios; sentia-se sua alma vibrar sob as palavras comovidas do orador."
Na primavera seguinte, época em que retomava suas excursões, ele abordava em conferência uma questão que o cativava particularmente: "O Gênio da Gália". Servindo-se dos trabalhos dos historiadores e dos filósofos, principalmente os de Henri Martin, E. Quinet e J. Reynaud, esclarecia esse grande tema com idéias pessoais, que deveria desenvolver mais tarde em suas obras.
Em abril, falava do Gênio da Gália, sucessivamente, em Nantes, Le Mans, Vendome, Tours, Angers e Châtellerault.
Os dirigentes do movimento espírita - é fácil de se adivinhar - desejavam a colaboração de um orador dessa envergadura. G. Leymarie que, nessa época, se ocupava do espólio da viúva de Allan Kardec, tinha pressa de encontrar Léon Denis, para se entender com ele, desejando uma ação conjunta, no interesse da Causa.
Ele lhe escrevia, a 31 de maio, assegurando-lhe seu inteiro devotamento à Causa Espírita:
"O sr. J. Guérin, de Bordéus, nosso amigo Lessard (de Le Mans) e este seu servidor pensam justamente que você deve nos ajudar em todas as iniciativas a favor do Espiritismo.
Pessoalmente, creio que você tem uma missão a preencher, que os jovens devem ter a oportunidade de demonstrar sua boa vontade, e você é um deles."
Léon Denis lhe respondeu da forma mais clara e firme:
"Tours, 13 de junho de 1883. Caro sr. e irmão em crença,
No retorno de minha viagem, encontrei sua carta de 31 de maio.
Também meu pai me deu conhecimento de sua visita e das amáveis propostas que fez para mim.
Não posso senão aprovar suas intenções e fazer justiça a seus perseverantes esforços. Compromissos para com a firma de comércio, na qual tenho importantes interesses, não me permitem, no momento, aceitar uma obrigação permanente, com certas responsabilidades. Todavia, como no passado, estou disposto a consagrar minhas folgas à propaganda espírita. Assim que chegar a época das conferências, isto é, de setembro a abril, estarei às ordens das Sociedades e me dirigirei para as localidades onde minha presença possa ser útil, isso de forma sempre gratuita e desinteressada, pois meus recursos pessoais me dispensam de recorrer a qualquer ajuda material.
Nesses limites, ficarei feliz de juntar meus esforços e meus meios de ação aos dos homens sinceros que, na divulgação da Doutrina Espírita, trabalham pela elevação moral e intelectual da Humanidade."
Léon Denis nunca se comprometia, levianamente. Com ele, coisa prometida era coisa devida.
No início de novembro, ele estava no Grupo Regional de Le Mans para o Dia de Finados. Esta data, já vimos, devia ser um dos acontecimentos dos mais marcantes de sua vida. Em Rochefort, a 14 do mesmo mês, ele falava das "Existências Progressivas dos Seres. Em Cognac, a 16, depois a Agen, no dia 19, tratava do mesmo tema.
Sua atividade estava em constante progresso.
No ano seguinte, ele repetiu o tema "O Gênio da Gália", dedicando-se particularmente à "Vida de Joana D'Arc".
Este assunto merecia uma atenção constante, porque contribuiu para esclarecer o mistério de sua própria vida. Sorella, o anjo da sabedoria, não estaria transformada em Joana, o anjo do amor sublime e do sacrifício? Não estava ela com ele, como ele estava com ela e sua vida vinculada e unida à dela, ao longo dos tempos, indissoluvelmente?
Do ponto de vista nacional, o milagre da Donzela destaca-se como um dos acontecimentos mais característicos de nossa História. São postos em evidência, para fins ignorados, os extraordinários recursos do gênio gaulês.
Desde então, Léon Denis mediu o campo de seu trabalho e fincou suas estacas num terreno sólido. Toda a Doutrina de Kardec devia se movimentar, no Ocidente, ao redor de uns pontos centrais, que é o ideal celta, tocado pela graça cristã, sendo o Espiritismo um dos aspectos da irradiação da eterna Verdade.
PRIMEIRAS OBRAS
Em face da propaganda das idéias que lhe eram caras, Léon Denis se exercitava, há uma dezena de anos, pela escrita e pela oratória. Todos os seus discursos eram escritos, antes de serem proferidos, donde sua forma sempre impecável.
Suas primeiras publicações datam de 1880. Começou por um opúsculo de umas 50 páginas, com o título: "Túnis e a Ilha da Sardenha". Eram recordações de uma viagem pelo Mediterrâneo e regiões da Beberia.
Essa pequena obra está escrita num estilo seguro e colorido, enriquecido de belas descrições e anotações muito originais.
Para Léon Denis, toda viagem contém material para uma avaliação aprofundada sobre os países visitados. Não é como diletante que ele os percorre, é mais como repórter. E que repórter esperto, preocupado com a exatidão, atento para tudo ver e compreender!
Uma excursão à Sardenha, naquela época, significava grande margem de imprevistos, para não dizer riscos reais. Portanto, após curta travessia, sai de Porto-Torres, ponto de embarque para ir a Sassari, distante cerca de 20 quilômetros. O trem não é confortável.
"Foi na Sardenha, escreve ele, que vi, pela primeira vez, viaturas de quarta classe para passageiros. Essas viaturas são semelhantes a nossos vagões cargueiros. Os passageiros viajam em pé e uma barra de ferro horizontal, no interior do veículo, é o que permite equilíbrio contra os choques.
Uma população barulhenta e maltrapilha superlota essas viaturas desconfortáveis “(*) Túnis e a Ilha da Sardenha.
Em Sassari, num quarto que poderia conter vinte pessoas, e cuja única janela, em forma de muxarabiê, dá para a praça do mercado, pode-se examinar, à vontade, os diferentes tipos sardos de um forte colorido, pois é dia de feira.
"Os homens estão montados em cavalinhos fogosos. Todos usam um boné de lã escura longo e dobrado sobre a nuca.
Na extremidade, há diversos objetos desconhecidos com uma grossa bola que saltita ao movimento do cavalheiro. Eles se vestem de cabaia preta e sem mangas, polainas pretas que vão até aos joelhos. Outros, agasalham-se com pele de carneiro, recoberta de lã, no interior e presa na cintura. Esse costume, muito incômodo pelo calor, lhes dá um ar estranho. Parece que é um preventivo contra a febre que grassa por toda a ilha. Assim são os homens.
"As mulheres se vestem com panos de cores brilhantes. Os corpetes são bordados de prata e de sedas com variadas cores, com belos desenhos. Esse corpete é aberto até à cintura e, sob a camiseta, deixa entrever todas as formas. As saias são vermelhas ou verdes, para as jovens e azuis, para as mulheres casadas.
Um toucado preso no alto da cabeça e caindo sobre os ombros, preto ou azul, com linhas amarelas, completa o vestuário que, geralmente, é caro e só é usado nos domingos ou dias de festas."
O tipo sardo, bem moreno, é de estatura baixa, feio e lembra os traços dos africanos.
Latinos, celtas, iberos, sarracenos em diferentes épocas e se instalaram regiões.
É o que explica porque ela ficou tanto tempo refratária à nossa civilização.
De Sassari a Cagliari, que se encontra no sul da ilha, Léon Denis é obrigado a fazer a viagem em diligência. São necessárias 20 horas, pelo menos, para atravessar a Barbaria deserta e selvagem. Dois carabineiros a cavalo, com o fuzil sobre a coxa, escoltam a carruagem, porque os ataques à mão armada são freqüentes na região.
Felizmente, a viagem acaba sem surpresas e o viajante chega ao fim da linha, encantado por ter podido atravessar essa terra, quase inculta, na época, porém, tão rica em recursos variados, onde o homem, ainda preso à ignorância e à superstição, ficou com seus costumes grosseiros e seus utensílios rudimentares, tal como épocas primitivas.
Uma estrofe das Túnis. abre o capítulo sobre de astros mil,
"A obscura cúpula das noites, plena Mira-se no mar brilhante e sombrio.
A alegre cidade, fronte velada de sombra, Parece, deitada à beira do golfo que a inunda, Entre as luzes dos céus e os reflexos das ondas, Dormir num globo estrelado."
Já vimos Léon Denis, em sua viagem às regiões ibéricas, circular nas tortuosas ruelas do Bei, após travessia das mais movimentadas.
Estas são suas impressões, que registramos aqui, seu primitivo frescor.
"Gosto de me internar, disse-nos ele, ao acaso, nos quarteirões árabes de Túnis, buscando os recantos mais solitários e mais silenciosos.
As habitações, massas compactas de alvenaria, se assemelham a sepulcros. A vida ali se oculta, deixando apenas ouvir ruídos vagos e fugidios. Todavia, no meio desses blocos de pedra, algumas vezes aparecem pátios e jardins encantadores. No limitado campo que fica para nossa visão, a abertura de uma porta, logo fechada, dá para ver pequenos quintais ornados de fontes, moitas de acácias, recantos plenos de frescor e animados pelo murmúrio das águas."
O que não se cansa de ver são os suques e os bazares, onde se concentra a vida exterior e a atividade dos naturais.
Ele os descreve num quadro vivo ou num pormenor agradável com a fina observação em que são bem retratados. Todavia, ele tem medo de se deixar levar pelo encanto da vida oriental e pelo sortilégio voluptuoso que emana das coisas.
Apressa-se em escapar desse perigoso encantamento e de rever "os ventos uivantes da sua pátria", seu céu geralmente nevoento, seu clima variável que estimula o homem, levando-o ao cumprimento de suas tarefas de trabalho, "lei santa que todos os povos devem seguir", sob pena de decadência e de morte.
As mesmas qualidades de estilo, o mesmo frescor de impressões se encontram nas duas novelas que ele escreveu, provavelmente na mesma época: "O Médico de Catânia" e "Giovanna", tendo esta aparecido inicialmente em folhetim na "Paz Universal" e, depois, na Revue Spirite, sob um pseudônimo. "O Médico de Catânia" é o mais antigo desses dois ensaios.
O manuscrito traz a indicação "Obra da Juventude". Não é com a caligrafia do Mestre; somente as correções estão com sua letra. O estilo ainda é, por vezes, hesitante, porém, não destituído de reais qualidades.
"Oh! os serões de inverno, ao canto da lareira! Quantos sonhos deliciosos se apoderam da alma, ao ruído da lenha que crepita, dos sarmentos que se retorcem como serpentes de fogo, das brasas que desmoronam, produzindo pequenas nuvens de cinzas. Sob a influência dessa intensa e misteriosa vida, que enche a lareira, quanto são agradáveis ao coração essas melancolias da noite, que aumentam, à medida que a ela se torna mais sombria em nossa volta."
É assim que começa "O Médico de Catânia".
Marcos T., um dos amigos de Denis, engenheiro de uma companhia que explorava jazidas de enxofre do Etna, saiu de Marselha rumo à Sicília, e lhe narra as aventuras que formam o tema do romance.
Ele toma contato com essa fabulosa terra, onde as ruínas dos templos gregos apresentam ainda suas linhas eternamente puras sobre um horizonte azul.
Amigo dos passeios campestres, apaixonado pela Botânica, encontra, no decorrer de uma excursão, Dr.Foscolo, um dos mais célebres médicos de Catânia. Os dois homens se entendem e se tornam amigos.
Foscolo é um sábio e um iniciado. Passou sua juventude a meditar sobre as obras dos filósofos. Esse homem latino é um admirador de Allan Kardec. Os dois
homens conversam muitas vezes sobre a Doutrina, no consultório do médico, ou se distraem com música. Foscolo conhecia todas as velhas canções sicilianas e possui uma voz admirável. É também, nas horas vagas, um inspirado poeta.
Tantos dons reunidos vão provocar entre seus conterrâneos inveja e ódio. Passaram a considerá-lo como um adepto das artes mágicas.
Durante uma de suas visitas aos pobres, que ele atendia, gratuitamente, encontra uma menina abandonada, Rafaella, filha de miseráveis emigrantes do Prata.
Pressentindo nela uma descendente de elite, e movido por um sentimento de caridade cristã, adota a menina e a confia a uma velha camponesa de seu conhecimento. A mulher de Foscolo, porém, levantem sensual, voluntariosa e cheia de instintos, interpõe-se entre seu marido e a protegida, quando este a quis trazê-la para casa.
Foscolo tornou-se um grande amigo da moça e, para ele, ela era um anjo consolador.
Rafaella é amada por um perigoso contrabandista, cujo coração está envenenado de ódio contra o médico porque, não sem motivos, vê nele um obstáculo a seus perversos desejos. Certa manhã, descobrem, na estrada, Foscolo apunhalado. Esse trágico fim vem resgatar um crime cometido, em vida anterior, e do qual o doutor já havia tido a revelação.
Em "Giovanna" Léon Denis traça um esboço muito apurado, o que se poderia chamar de romance espírita, gênero já tratado, desde então, por excelentes escritores cuja audácia teve justificado sucesso.
A ação se desenrola ainda na Itália.
Notamos, de passagem, a viva influência que exerceu em sua sensibilidade de escritor essa terra clássica das artes, cuja língua ele falava e cujos poetas gostava de citar.
A narrativa começa com uma admirável descrição do Lago de Como:
"Esse pedaço do céu da Itália, caído entre as montanhas, esse Paraíso Maravilhoso, onde reina a Natureza, enfeitada para uma eterna festa.
É em Gravedona, ao norte do Monte Lario, entre os altos cumes dos Alpes, que se desenvolve o tocante idílio do romance. O enredo é de extrema simplicidade.
Entre os pobres habitantes de Gravedona, a meiga Giovanna aparece como uma madona de um quadro de Luini.
Giovanna é uma bela moça empenhada em socorrer a miséria em seu derredor; uma dessas naturezas especiais, que aparecem por um instante, entre os homens, para consolá-los por sua feiúra física e enfermidades morais e que logo retornam à sua verdadeira pátria: o Céu.
"Giovanna Speranzi nasceu na Vila das Almecegueiras, de onde são vistos, do vale, os terraços alvacentos. Seus 18 anos escoaram nesses lugares bafejados pelo Sol e pelas flores. Dizem que a alma está ligada por secretas influências às regiões que ela habita e que participa da graça ou da rudeza do ambiente.
Sob esse céu límpido, no meio dessa natureza serena, cresceu Giovanna e todas as harmonias físicas e morais se uniram para fazê-la uma maravilha de beleza e de perfeição.
Giovanna é alta e esbelta; sua tez é clara, seus cabelos louros, espessos e sedosos; sua boca é mimosa, dentes pequenos e brilhantes. Seus olhos são de um azul profundo e suave. A fronte tem um ar majestoso e de grande pureza.
Quem não ficaria atraído por uma beleza tão encantadora?
Desde que aparece à porta do miserável casebre da viúva que ela protege, toda a casa se alegra, as crianças a rodeiam e lhe fazem festa.
Um dia, numa circunstância inesperada, uma violenta tempestade a coloca em presença de um jovem caçador, que veio refugiar-se na casa onde ela estava. É um jovem francês, Maurice Ferrand, filho de um político exilado.
Antigo aluno da Universidade de Pávia e um dos mais renomados advogados de Milão, Maurice Ferrand veio buscar, na casa de seu pai, que mora não longe dali, um repouso de que necessitava.
Poderia ver Giovanna, sem amá-la? Ferrand ficou perdidamente enamorado. Procura, desde esse dia, a companhia da moça e seu desejo se transforma em adoração.
"Quando ela estava diante dele, esquecia-se de tudo para contemplá-la e ouvi-Ia. n timbre de sua harmoniosa voz despertava em seu ser ecos de uma doçura infinita."
Nela ele via mais do que uma filha da Terra, mais que uma criatura humana, como uma aparição passageira, um misterioso reflexo de outro mundo, um tesouro de beleza, de pureza, de caridade, ao qual Deus dera forma sensível, para que, vendo-a, os homens pudessem compreender e almejar as perfeições celestes.
A fé ardente da jovem e seu cândido amor emocionam de um novo ânimo a alma do rapaz, pondo em seu coração um orvalho de inefável frescor.
Seu noivado, no panorama sublime do lago, exalta até ao delírio a felicidade que os enlaça.
Entretanto, Giovanna não experimenta uma verdadeira alegria. Sabe que a felicidade, neste mundo, é um simples instante, um sonho fugaz.
De repente grassou o tifo nessas regiões e, levando seus cuidados às famílias que protegia, Giovanna foi contagiada pelo terrível mal e morre, após dolorosa agonia.
O belo sonho desmoronou-se. Maurice está arrasado, prostrado, o coração dilacerado diante da forma tão bela, tão querida e já fria. Em torno dele nada mudou: o lago tremula aos raios da lua; tudo é luz e canto no seio da Natureza suave e perfumosa.
Eis o que a morte fez de sua efêmera felicidade. A morte? Não, a morte é apenas uma ilusão. Giovanna lhe revelou sua verdadeira face que estava oculta sob enganosas aparências. A vida prossegue sua evolução eterna. A morte é apenas uma metamorfose. Numa noite de inverno, quando, sozinho, Maurício medita sobre as páginas de um livro, diante da lareira, o anjo, materializando- se, reaparece, como outrora, a tocar ao piano sua melodia preferida e lhe dizer assim que nada pode separar os que verdadeiramente se amam.
Desde então, o jovem advogado é um outro homem. Nada lhe interessa mais na vida que o dever imperioso revelado por Giovanna. Proclamar a verdade, servi-la com todas as suas forças e por todos os meios será o objetivo de sua vida.
Tal é, imperfeitamente resumido, o enredo desse idílio tocante que, entre os encantos do belo lago Lombardo, terminou brutalmente como, no outono, a magia das flores sob o brusco assalto das borrascas.
Assim, na obra austera do Mestre, aparecem um instante essas figuras angelicais de mulher, Rafaella e Giovanna - como duas almas idealmente puras, duas flores de sonho revestidas de beleza ultra-humana, dignas, neste mundo, de ornar os jardins celestiais.
O opúsculo: "O Progresso", publicado em 1880, sob os auspícios da Liga do Ensino, contém o texto de uma de suas primeiras conferências, texto ao qual acrescentou um complemento filosófico.
Dissemos, antes, que Léon Denis não podia, naquela época, desenvolver todo o seu pensamento em seus discursos. Estava preso a certas precauções, a certos preconceitos diante dos auditórios que não estavam preparados para pensar livremente.
A tese do "Progresso" - lei de solidariedade que une todos os tempos e todas as raças, precisava de tempo para ser esclarecida.
"Quem sabe, dizia o orador, em sua conclusão, se um dia não viremos colher na paz e na alegria o que teremos semeado na dor? O progresso só pode ser feito na imortalidade."
Se a Humanidade progride lenta e penosamente, é que ela não sabe de onde vem, nem para onde vai.
Daí, suas crises de desespero, suas revoltas contra o destino, suas blasfêmias contra Deus.
Por que isso acontece? Porque a Humanidade ainda não acordou para a razão, porque está ainda acorrentada ao limo original. Se ela puder elevar-se aos cumes do espírito, compreenderá que uma vida não é nada, na série infinda das existências que nos falta percorrer, para adquirir tudo quanto nos falta. O homem é o artífice de seu destino, sua felicidade futura dependerá de suas obras.
"Uma a uma, forjaremos nossas próprias correntes." Chegamos a cada uma das nossas existências com uma nova bagagem, que é nossa própria herança intelectual e moral.
Progredir é quebrar os grilhões da escravidão à matéria, é consagrar-se exclusivamente aos prazeres da inteligência e às alegrias do coração. É sofrer em silêncio, aceitar as provações com resignação, confiar na justiça eterna.
É com este argumento desenvolvido com os meios de expressão mais simples e mais sugestivos, ao mesmo tempo, que devia sair, em 1885, a célebre brochura: "O Porquê da Vida".
Em setenta páginas de texto compacto, Léon Denis expunha, a todo leitor de bom senso, liberto de idéias preconcebidas, o problema da existência.
Seu objetivo não era, especialmente, propor uma tese filosófica aos pensadores inquietos, mas, antes de tudo, levar aos que a vida castigava duramente e a religião não pudera consolar uma razão plausível de crença e de esperança.
"É para vós, oh! meus irmãos e irmãs em Humanidade, para vós todos que o fardo da vida curvou, a vós que as ásperas lutas, os cuidados e as provações castigaram, que eu dedico estas páginas.".
Que secreto motivo o tinha para tentar uma demonstração tão arrojada?
Para tal tarefa os fracassos são incontáveis, não que seja nova a tese.
Pitágoras e Platão, na Antiguidade, tinham chegado perto desse problema, ao qual Allan Kardec devia trazer, em nossos dias, uma confirmação original, por meio da revelação dos Espíritos.
Léon Denis, por sua vez, dava seu testemunho pessoal, de homem experiente e que estava preparado para semelhantes pesquisas.
"Refleti bastante; meditei sobre os problemas da vida e da morte. Com perseverança, sondei esses profundos abismos. Enderecei à Eterna Sabedoria um ardente apelo e ela me respondeu, como responde a todo espírito animado pelo amor ao bem. Após ter duvidado, acreditei; após ter negado, presenciei. E a paz, a confiança e a força moral me envolveram. São esses bens que, na sinceridade de meu coração, desejoso de ser útil a meus semelhantes, venho oferecer aos que sofrem e se desesperam."
Léon Denis, após o Grande Iniciador, vinha aclarar a questão, confrontá-la com o ensino do Cristianismo, submetê-la aos métodos da ciência experimental.
Essa brochura, de preço barato, de uma leitura agradável, obteve logo uma enorme aceitação na França, Bélgica e em outros países, sucesso que ainda não terminou, pois o autor fez repetidas edições, fazendo apenas correções tipográficas.
O CONGRESSO ESPIRITUALISTA INTERNACIONAL DE 1889
Era essa a bagagem, na verdade pequena, de suas obras escritas, quando se instalaram, em setembro de 1889, as primeiras assembléias mundiais do Espiritismo. A fama do orador e do escritor já era grande.
O Congresso havia reunido as principais escolas espiritualistas: os Kardecistas, os adeptos de Swedenborg, os Teosofistas, os Cabalista e os Rosa cruzes.
A sessão inaugural foi presidida por J. Lermina, assistido pelo filósofo Charles Fauvety, pela duquesa de Pomar, Marcus de Veze e Eugène Nus.
Vê-se que era um verdadeiro areópago de celebridades. O relator dos trabalhos era nada menos que o Dr. Encausse (Papus), um ocultista notável que, naquela época, dirigia a revista hermética "A Iniciação".
A primeira Comissão se ocupava com o Espiritualismo em geral; a segunda cuidava da Filosofia e questões sociais; a terceira, do Ocultismo; a quarta, da propaganda.
Esta última era presidida por Léon Denis, que logo despertou a atenção dos congressistas e seu primeiro discurso foi entrecortado de aplausos.
"Com o olhar fixo em nossos ancestrais, dizia ele, avançaremos, por nossa vez, e seus exemplos nos ajudarão a suportar as provações.
Não penseis que tenhamos a pretensão de igualá-los, de conseguir as suas glórias. Oh! não, tal não é nosso pensamento. Pouco nos importa o que o futuro pense de nós. Que pereçam nossos nomes, nossas personalidades, nossas memórias, até mesmo nossa honra, se preciso for, contando que a Verdade triunfe e se eleve acima das armadilhas, iluminando com suas luzes até os que a negam e insultam."
Sem dúvida, havia homens de um grande saber e alto mérito, no Congresso, mas nenhum deles falava uma linguagem tão ardorosa, demonstrando tanta convicção. Léon Denis já se revelava como notável condutor de almas que iria continuar durante toda a vida.
Esse primeiro Congresso não ficou isento de desentendimentos muito fortes a respeito de certos pontos da Doutrina Espírita.
Foi no decorrer dessas discussões que o jovem mestre apareceu, pela primeira vez, como o mais seguro defensor da tese kardecista. O ilustre Presidente do Congresso havia aceitado essa tese com restrição, pois a considerava apenas uma hipótese de transição entre o conceito cristão e o do futuro.
No final de seu discurso, o Presidente, em 11 de setembro, com todas as correntes reunidas, emitiu a idéia de que, se cada alma, em particular, é uma emanação do pensamento eterno, uma alma universal e divina reúne todas as demais.
Era o conceito panteísta, cristão, e insistia o Presidente: "Vós não quereis acreditar conhecer."
Então, uma indisposição súbita continuar seu discurso.
Imediatamente, Léon Denis pediu apresentar suas observações.
Após um curto preâmbulo, entrou logo no assunto. Referindo-se às pequenas escolas dissidentes, que já criticavam a obra de Allan Kardec:
"Tem-se esforçado, dizia ele, por divulgar, na França, um Espiritismo chamado positivista, uma doutrina seca e fria nada tendo de comum com o Kardecismo."
Então, tomando a defesa de Kardec, com um tato e um vigor admiráveis:
"Allan Kardec tem sido, dizem, muito cauteloso e deu motivo em sua obra para as idéias místicas e católicas. Não é exato.
O Mestre defendeu o Cristianismo e não o Catolicismo. Allan Kardec manteve a moral evangélica porque ela não é somente a moral de uma religião, de um povo, de uma raça, mas porque é uma moral superior, eterna, que ela reconstruiu e haverá de reconstruir tanto as sociedades terrenas como as sociedades do Espaço.
Lógico que, com uma tal linguagem, Denis demonstrava firmeza perante os cabalista e rosa crucianos.
Em seu relatório, na revista "L'Étoile", então dirigida por René Caillé, o secretário-geral dessa publicação, o Padre Rocca, sacerdote de alma ardente e coração abrasado por uma fé cristã, opinava sobre o orador, nestes termos:
"Devo destacar as calorosas improvisações do sr. Denis, de Tours, que usou da palavra por mais de trinta vezes, sempre com o mesmo entusiasmo e o mesmo sucesso. Recordo-me, ao escutá-lo, da promessa de Jesus Cristo:” Quando tiverdes que testemunhar de mim, não vos preocupeis com o que ireis dizer: o Espírito aí estará e vos sugerirá todos os vossos discursos.
0 Padre Rocca fizera uma apreciação justa.
DEPOIS DA MORTE
A primeira grande obra de Léon Denis, que iria ter uma duradoura repercussão, apareceu no fim de 1890, com o título de "Depois da Morte" e, como sub-título:
"Exposição da Filosofia dos Espíritos, suas bases científicas e experimentais e conseqüências morais.
0 Congresso Espiritualista Internacional, reunido no ano anterior, havia aprovado que se publicasse um resumo da Filosofia Espírita, em edição popular.
O autor havia justamente anunciado a que estava elaborando suma tal obra:
"Será uma obra com 300 páginas, feita num espírito de ecletismo e de conciliação de todas as escolas, mas conservando como base o ensino do Fundador da Doutrina com seus princípios tão lógicos e tão sábios.
Apesar de louváveis esforços, não conseguiu condensar o conteúdo em 300 páginas. O livro continha 334, paginas jamais alguém se queixou.
Em seu número de 1° de fevereiro de 1891, a Revue Spirite, em artigo de E. Bosc, fazia uma substancial análise da obra e é desse trabalho que nos socorremos para avaliar a repercussão do livro nos meios espiritualistas da época.
“O autor, escreve E. Bosc, desincumbiu-se da tarefa que se impôs? Satisfez, ao mesmo tempo, o desejo do Congresso!”.
E o crítico reconhecia que, do ponto de vista da propaganda, a obra está bem compreensiva e o plano excelente. "É um Encheridion ou manual, posto ao alcance das inteligências mais modestas e, entretanto, um resumo completo dos ensinos dos Espíritos. É a verdadeira Doutrina, no que ela possui de amplo, de permanente e, por assim dizer, de universal."
A primeira parte do livro, descrevendo as grandes religiões da antiguidade, não agradava completamente ao autor, todavia, era materialmente impossível fazer uma exposição mais clara e mais completa da questão em tão poucas páginas.
Num interessante artigo de L'Initiation, Papus fazia a mesma observação. Felicitando o autor por seus belos capítulos sobre a índia, o Egito, a Grécia e a Gália, lamenta por vê-lo passar do Cristianismo ao Materialismo, sem falar do Hermetismo que, por todos os seus ramos, "assegurou a transmissão contínua da doutrina secreta no Ocidente."
A parte filosófica era em geral bem acolhida. É um resumo notavelmente claro dessas grandes questões que representa o mínimo que todo espiritualista deve conhecer.
"Disso nada de especial para se dizer, a não ser que ela é constituída de uma série de belos discursos, como Léon Denis os sabe fazer. A filosofia espírita ali está exposta em sua beleza e em suas grandes diretrizes. Vê-se ali a influência das idéias de Orígenes, tão estudadas por Allan Kardec e superioridade das concepções mais elevadas fornecidas pelas comunicações dos Espíritos."
As duas partem que se seguem eram consideradas como modelo de clareza na exposição, como sendo uma pequena enciclopédia do mundo invisível. Todavia, alguns o censuraram por não ter tratado a fundo às diversas influências em certos fenômenos.
Quanto, porém, teria o autor que escrever? Era-lhe necessário relegar a um segundo plano as questões secundárias.
A quinta parte da obra conseguiu os elogios unânimes da crítica.
"A parte moral é uma verdadeira obra-prima, dizia E. Bosc. Gostaríamos de vê-Ia numa separata.
Ela constitui, por si só, um pequeno tratado sobre a virtude e que deveria estar nas mãos de todas as pessoas. Não é possível, após ter lido "O Caminho Reto", que não se deseje ser melhor que antes desse belo trecho filosófico."
A mesma nota elogios se encontrava nos órgãos puramente literários, como a Revista dos Tempos Novos, onde Gaston d'Hailly escrevia: "Não conheço livro mais bem elaborado, escrito num estilo mais correto e mais elevado."
Afinal, B. Martin, no "Moniteur", de 15 de fevereiro, resumia o valor da obra em excelentes termos:
"Nesse quadro restrito, toda a Doutrina Espírita está exposta com uma lucidez e um encanto que tornam a leitura agradável e ao alcance de qualquer inteligência.
E, agora, qual o objetivo que o sr. Léon Denis se propõe, escrevendo este livro?
Naturalmente, não quis exibir ciência, apresentar-se como pesquisador, fazendo do livro um pedestal, para se impor à admiração dos sábios e dos eruditos.
O sr. Denis teve em vista um fim mais elevado e mais digno da missão a que ele se entregou.
Ele quis, diante das discussões sem fim, que existem no mundo científico, sobre Deus, a alma e a realidade das comunicações do mundo terrestre com o mundo espiritual, restabelecer os verdadeiros princípios, tais como resultam das revelações que, já faz mais de 40 anos, os Espíritos nos legaram.
E o escritor ajuntava:
"Muito embora se discuta, interminavelmente, sobre a maneira como os Espíritos se comunicam com os homens, um fato é verdadeiro: é que eles se comunicam."
Antes da publicação da obra, em 29 de outubro de 1890, tendo Léon Denis feito, em sessão espírita, no Grupo de Tours, a leitura dos últimos capítulos, seu guia habitual, Edouard Perinne, assim se pronunciou:
"Vosso raciocínio foi muito seguro e nada há que acrescentar, nada a eliminar. A verdade domina em tudo, impõe-se e atinge o alvo; tudo é claro e elegante em vosso estilo.
Para as massas que devem ler e que, espero, lerão estas paginas, soubestes amenizar certos pontos amargurados, despertando-lhes a imaginação. Quero referir-me ao tempo, que geralmente escoa entre as provações impostas e a recompensa.
Devo reafirmar que há todo um encanto nessas páginas, apesar da gravidade do assunto."
Nada há que acrescentar a esta apreciação do nobre espírito que, durante tantos anos, serviu de instrutor e de conselheiro ao autor desse admirável livro.
Era o primeiro fruto, perfeito e substancioso, de uma colaboração com as entidades tutelares que não deixariam de assisti-lo em seus trabalhos.
E, por isso, prestou a seus fiéis amigos invisíveis uma homenagem, na obra escrita sob sua inspiração: "Aos nobres e grandes Espíritos que me revelaram o mistério augusto do destino, a lei do progresso na imortalidade, cujos ensinamentos reafirmaram em mim o sentimento da justiça, o amor pela sabedoria, o culto ao dever, cujas vozes dissiparam minhas dúvidas, suavizaram minhas preocupações; às almas generosas que me sustentaram na luta, me consolaram nas provações, elevaram meu pensamento até às alturas luminosas onde reside a Verdade, eu dedico estas páginas.
0 sucesso da obra, desde seu aparecimento, foi rápido e nunca mais diminuiu. Sua repercussão foi imensa no público espiritualista e no público em geral.
Valeu a seu autor cumprimentos sem reservas; melhor que os cumprimentos, as homenagens de gratidão, impulsos de reconhecimento verdadeiramente tocantes.
Esses sucessos e esses elogios não partiam especialmente das classes populares, pouco aptas a entender as qualidades de um livro, vinham, principalmente, de homens de uma cultura superior, como testemunha esta carta do diretor de um grande jornal do Sul, datada de 1° de outubro de 1891:
"Quanta satisfação não deve o sr. estar sentindo, não somente por ter produzido uma tal obra, porém, melhor recebendo, desde agora, a recompensa de vossa boa ação, atraindo até o Sr. numerosos adeptos, tão reconhecidos pelos pensamentos profundos, plenos de beleza e de elevação, colocados com uma rara profusão em sua notável obra.
Entretanto, essa justa e animadora recompensa não se poderia comparar com a suprema alegria que desfruto, desde que meus olhos se abriram para a luz; que minha inteligência, até aqui obscurecida, se esclareceu, para se afirmar como segurança, diante das incertezas do amanhã; que minha razão, singularmente fortificada, busque em minha consciência, tornada calma e segura, o repouso benfazejo que a dúvida, a dúvida atroz, afastava, sem descanso, a cada etapa dolorosamente vencida...
Permita-me confessá-lo, porque esta confissão não o poderá deixar insensível; meu dever está agora traçado. Esforço-me por fazer brilhar a luz em meu derredor, sem temer as zombarias que vejo surgir de todos os lados, sustentado pela nítida consciência das obrigações que me incumbem, reconfortado pela nobreza e grandiosidade do combate.
Não falharei em minha tarefa e, se a fadiga me apanhar, buscarei, então, nos nobres ensinamentos que recebi do Sr. a força e a coragem de que terei necessidade para cumprir o que me parece hoje como a mais bela e a mais elevada das missões.
Quando o autor, alguns anos mais tarde, tirou uma edição de seu livro, revista e consideravelmente aumentada, as apreciações da imprensa se fizeram ainda mais elogios. Alexandre Hepp, no "Le Journal", escrevia:
"Existe um homem que escreveu o mais belo, mais nobre e mais precioso livro que eu jamais li. Seu nome é Léon Denis e seu livro:” Depois da Morte “.
Leiam-no e uma grande piedade libertadora e fecunda virá bruscamente da manifestação de nossas tristezas, de nosso medo da morte e de nossa grande dor por aqueles que acreditamos perdidos."
"Les Temps", de seu lado, apresentava a obra nesses termos:
"Esse livro é realmente notável. Possui todas as qualidades que lhe podem assegurar sucesso. Embora eminentemente clássico, profundo e sério, suas páginas irradiam uma viva luz e tão impregnadas de uma ardorosa eloqüência.
Como seu título indica, ele trata do formidável problema do destino humano e dá uma solução a essa problemática tão controvertida em todos os tempos: o porquê da vida.
Problema árduo, em verdade, porém, tratado com um tal encanto de estilo e de elocução que, em todo esse livro, não se encontra uma única página de leitura fatigante ou desprovida de interesse."
Em "Eclair", há os mesmos louvores, com certas reservas, que valorizam e destacam o livro:
"Este livro é destinado a atender curiosos do mistério do Além. Nele o autor defende o Espiritismo com uma rara convicção, sustentada por um talento de grande escritor. Seu estilo é claro, rápido, de uma correção irrepreensível, geralmente brilhante e poético, mas sem vãs fraseologias.
E certo que não podemos compartilhar das idéias do autor, mas é preciso respeitar o sentimento que o inspira e não se pode negar sua nobre sinceridade e a simpatia de que são igualmente dignos a obra e o autor."
"O livro todo é bom e incentiva a nos tornarmos melhores," dizia Ducasse-Harispe Synthèse “. em”Analyse et.
"Lede este livro. É de uma filosofia serena e profunda, numa linguagem florida e brilhante. Certas páginas são de uma eloqüência magnífica e todas irrepreensivelmente corretas. E um livro sério como um eucológio e atraente como um romance. É livro para se guardar e tornar a ler.
No dilúvio das produções inferiores ou grosseiras, que invade as livrarias e as bibliotecas, a obra do sr. Denis é uma flor desgarrada, que flutua na maré infecta.
Quando existem homens que escrevem livros dessa natureza e outros homens para apreciá-los, pode-se esperar que surgirão em nosso país dias melhores, que nem tudo está perdido e que o saneamento moral de nossa querida França não é sonho vão."
Apesar do elogio unânime, havia uma nota discordante: Gaston Méry, diretor do "Echo du Merveilleux" apresentava Léon Denis como um "sacerdote da religião espírita."
Após haver reconhecido a beleza da forma, põe o leitor de sobreaviso contra os perigosos erros que o autor propagava:
"Esse livro, em si, é bem feito", declarava ele e ainda acrescentava outros elogios. A crítica vinha em seguida, mas não alcançava o alvo. Segundo ele, o Espiritismo de Léon Denis era uma compilação do Cristianismo, mas sua doutrina conduzia necessariamente à negação das três virtudes essenciais: a Fé, a Esperança e a Caridade e substituía nas almas a idéia do dever pela do orgulho.
A crítica prosseguia nesse tom, para terminar assim: "Quando o Espiritismo tiver seus mártires, como o Catolicismo, poderemos retornar ao assunto."
Era, como se vê, uma argumentação das mais simplistas.
À crítica apaixonada de um literato oporemos esta página entusiasmada de um leitor, no qual a obra produziu uma repentina transformação nos seus sentimentos e suas idéias.
Esse homem acabara de perder sua mulher e era tão ateu como sua esposa. Dois meses se passaram depois desse acontecimento.
Posto diante do problema que teremos um dia que enfrentar, em toda a sua grandeza angustiante e sublime, caiu em si, meditou, investigou os mistérios e as religiões e leu os filósofos. Eis o que ele, comovido, escreveu a Léon Denis:
"Eu não ignorava, de todo, o que era o Espiritismo, mas quando se está bem de saúde, longe ainda da velhice, esperando ainda muito tempo de vida, para aproveitar bem todos os nossos sentidos, por que se preocupar com estas questões do Além?
Diante da imensidade dos mundos, às vezes se tem à intuição, até mesmo a certeza de uma Inteligência Criadora, mas essa impressão é logo substituída por preocupações menos abstratas.
Deus só nos interessa em fugazes aparições. Pensaste, antes de tudo, em se viver e em viver bem. De repente, abre-se diante de nós o abismo da morte.
Tenho lido, desde então, os livros de Allan Kardec. Li os vossos e ainda outros, que tratavam das questões espíritas. Li o "Depois da Morte" e chorei as mais abundantes e mais sinceras lágrimas de minha vida.
Escritores, jornalistas e pensadores vos têm dito que escrevestes um belo livro. Não é só isto.
Este livro, gostaria de ser rico, muito rico, para editá-lo aos milhões e vê-lo em todas as mãos, por toda a Terra. Nada já foi, nem será jamais escrito em nenhuma língua, que possa ter sido tão grande e tão belo."
Quando um livro recebe tais homenagens, é que ele possui em suas páginas a centelha sagrada.
Assim o considerava o Dr. Panait Istrati, inspetorgeral do Ensino Superior, ministro da Instrução Pública da Romênia, quando escrevia ao autor:
"Vosso livro, Depois da Morte, é um dos melhores que conheço. Uma tal obra, para a sociedade de meu país, que, embora jovem, já está corroído pelo materialismo rasteiro, seria muito útil para elevar os caracteres, alargar o pensamento puro e nos fortificar, na luta pela existência, lembrando ao homem o fim nobre da vida e seus deveres para consigo e seus irmãos.
Eis porque vos peço autorização para traduzir em romeno vossa obra."
Quando um semelhante elogio viria da Universidade de França?
AS GRANDES CONFERÊNCIAS
Suas grandes excursões de conferências começam a partir do Congresso de 1889. Naquele mesmo ano, ele desenvolve, em sessões polêmicas o tema "O Materialismo e o Espiritualismo Experimental perante a Ciência e a Razão".
Em 1890, só fala uma vez em público, por estar completamente absorto na elaboração de sua obra, mas, no ano seguinte, empreende um roteiro de propaganda intensa no Sul e, depois, na Normandia.
Convidado pela sra. Agullana a ir a Bordéus, pronuncia, em maio, duas conferências no Ateneu, perante um auditório numeroso, porém, bastante refratário.
O Espiritismo, violentamente combatido naquela cidade, por escolas rivais, ganha pouco terreno.
Em Toulouse, todavia, Léon Denis desenvolve o mesmo tema, no mês seguinte, diante de um público menos obstinado.
Jean Jaurès, então professor de Filosofia no Liceu e vice-prefeito, cedeu-lhe, facilmente, a sala de conferências da Faculdade de Letras. Os dois tiveram uma entrevista, no decorrer da qual o ecletismo de Jaurès se revelou. Isto, mais tarde, o faria conhecido como um dos mais poderosos tribunos.
Entretanto, estava bem claro, naquela época, que os espíritas e os ocultistas não se entendiam.
Controvérsias muito ásperas surgiram por toda parte, como a de Bordéus, entre os elementos das duas escolas. Os ocultistas achavam que o Espiritismo, sem as necessárias cautelas, conduz a um terreno ainda desconhecido e generaliza muito apressadamente.
Os espíritas negavam a existência dos "elementais" e, com isso, em pouco tempo, criou-se divergência sobre pontos fundamentais.
Mesmo quando essas divergências não eram feitas abertamente, nas conversações particulares assumiam, às vezes, aspectos ofensivos.
Léon Denis sofria com esses mal entendidos. Procurou, junto a seus guias, aconselhar-se e documentar-se; confiante, seguiu, sem fraquejar, o caminho traçado.
No intervalo das viagens, recebe de seu Grupo, em Tours, os mais irrestritos encorajamentos:
"Quero vê-lo partir corajosamente, afirmam-lhe.
Os Espíritos que o protegem e que, com grande poder, o ajudam, não o abandonarão. Consolide sua vontade com esse poderoso apoio e, apesar da fadiga e dos aborrecimentos, que não devem assustá-lo, há de ficar calmo, graças a essa boa e segura proteção."
Convém se diga que, a esses aborrecimentos, juntasse decepções mais graves. Nem todos os espíritas se mostram desprendidos. Muitos aparentam sentimentos que seus atos desmentem. O amor-próprio exagerado e o orgulho, prejudicavam, em muitos deles, as qualidades verdadeiras e os inegáveis dons.
Entretanto, não convinha atacar ninguém; pelo contrário, devia-se evitar ferir suscetibilidades. A circunspeção se impunha.
É nessas condições desfavoráveis que Denis deveria, um pouco em toda parte, reacender o zelo que diminuía, recolocar no bom caminho a Doutrina que se extraviava. Era tarefa infinitamente delicada e ingrata.
Podemos adivinhar suas perplexidades e suas preocupações. Está quase só, para assumir semelhante tarefa. Então, se pergunta se está conscientemente preparado para levar uma obra de tal porte até ao fim.
Fisicamente cansado por um trabalho sem descanso, vendo sua vista diminuir cada dia, teve que conciliar suas ocupações diárias, seus trabalhos de escritor, realizar constantes viagens e roteiros de propaganda, que exigem uma séria preparação.
Algumas vezes queixa-se disso a seus amigos invisíveis e solicita não que seja substituído, mas apenas um descanso momentâneo.
"Coragem", respondem-lhe, cuide da saúde e prossiga; estaremos ao seu lado."
Léon Denis continua, muitas vezes fatigado, deprimido, onde o dever o chame. Se a sala foi alugada, o público avisado e seus irmãos em crença o aguardam, como não corresponder a tal confiança?
Vai, às vezes, apreensivo por suas forças que fraquejam, mas sem nunca duvidar do apoio misterioso que lhe foi prometido. Ele prega e mais um novo sucesso o acolhe.
Estava nessa etapa de sua vida, quando recebeu, em 1892, da Duquesa de Pomar, um insistente convite para falar de Espiritismo em sua casa, nas célebres reuniões que então congregavam a sociedade mais importante de Paris.
Um semelhante convite, muito honroso, representava, entretanto, um esforço especial e se justificava sua hesitação.
Até então, Léon Denis só falava para auditórios heterogêneos, onde dominava o elemento popular. Agora, tratava-se de um platéia constituída de senhoras da alta sociedade, de lindas damas movidas pela curiosidade, de homens da alta roda e de sábios acadêmicos, mais ou menos céticos.
Que resposta deveria dar?
"As dificuldades de convencimento são maiores - disseram-lhe seus habituais conselheiros, mas o sucesso, quando se consegue, gratifica mais do que nos ambientes pouco selecionados."
Léon Denis aceitou o convite. O magnífico sucesso de sua obra tinha atraído para ele a atenção do público culto. O autor de "Depois da Morte" era agora muito mais que um conferencista provinciano.
Acabava de se classificar como escritor de primeira ordem.
Os grandes jornais, as revistas ecléticas lhe faziam uma propaganda inesperada; as edições de seus livros se esgotavam com rapidez.
Lady Caithness, Duquesa de Pomar, reunia, então, em seu palacete da Rua de Wagran, a nata da sociedade parisiense. Dava, ali, não somente esplêndidos bailes, mas convidava para essas festas os maiores músicos. Pedia, igualmente, aos conferencistas de renome para também discorrerem sobre assuntos da atualidade de então.
O Palácio d'Hollyrood era uma admirável evocação do século XV. Era constituído de salas que podiam rivalizar com os mais suntuosos salões do Louvre ou de Fontainebleau. Havia nessa extraordinária residência uma ala imensa, que servia como salão de danças, salões revestidos das mais ricas madeiras e tetos de brilhantes arabescos.
Ao demais, a Duquesa, ocultista fervorosa, franqueava aos iniciados o famoso oratório consagrado a Maria Stuart, com a qual dizia comunicar-se por via mediúnica.
Acrescentemos que Lady Caithness, mulher de alta cultura, dirigia, na época, "Aurore", revista mensal de Logosofia (ciência dos Logos ou Cristo).
Encontravam-se, nessas páginas, artigos da sra. Adam,de Edouard Schuré e de outros escritores espiritualistas conhecidos que ali figuravam igualmente.
Um Centro de Estudos Psíquicos também existia na revista, cujo secretário-geral era o Padre Petit, que tratava principalmente do Cristianismo esotérico.
Foi no salão das festividades desse palacete que Léon Denis pronunciou, em 7 e 14 de junho de 1893, duas conferências sobre o Espiritismo.
O senador Dide, o Padre Petit, Joseph Fabre e Flammarion ali haviam falado, anteriormente, sobre Ciência, História e Astronomia.
O orador de Tours foi ali religiosamente ouvido. Entre os assistentes estavam as pessoas mais importantes da capital, ao lado de duquesas, baronesas, marquesas, acadêmicos, escritores e artistas: Appert, Edouard Schuré, Dr. Darier, etc.
Eis os termos em que "Le Journal" narrava uma dessas apresentações:
"Reunião das mais elegantes foi ontem, na residência da Duquesa de Pomar, para ouvir a conferência de Léon Denis sobre "Doutrina Espírita". Com uma eloqüência bem literária, o orador soube encantar seu numeroso auditório, falando-lhe do destino da alma que pode, disse ele, reencarnar neste mundo até conseguir a perfeição. Ele tem a alma de um Bossuet! Exclamou um entusiasta espiritualista."
Mais tarde, um antigo freqüentador de Hollyrood, em "Evènement", escreveu que as belas ouvintes seguiam, atentas e emocionadas, os comentários severos do orador, que os conduzia bem além de suas habituais preocupações, para horizontes inesperados.
Realmente, que importam a vestimenta e os enfeites? A alma das mulheres não tem as mesmas preocupações, em face dos grandes mistérios?
No ano seguinte, Léon Denis deveria voltar a Hollyrood, com o mesmo sucesso, para outra conferência sobre "O Problema da Vida e do Destino".
Nesse mesmo ano de 1893, em novembro, discorria, em Lyon, sobre uma série de temas, em voga na época: "As Crenças e as Negações de nossa Época", "O Espiritismo perante a Ciência" e "O Espiritismo em face da Razão".
Nessa cidade, como em Bordéus, a hostilidade era patente. A imprensa local havia se recusado em anunciar as conferências. O Presidente da Federação Lionesa, o valente Henri Sausse, fez questão de destacar semelhante indiferença. Léon Denis, que se fizera ouvir e aplaudir, na Faculdade de Toulouse e na Universidade de Genebra, via-se - dizia ele - impedido de falar na sala do Palais Saint-Pierre, por uma municipalidade intolerante, que sofria secretas influências.
As conferências se realizaram, então, no salão de festas da Cervejaria das Estradas de Ferro, perante cerca de mil assistentes, no meio dos quais havia muitos magistrados e eclesiásticos.
No decorrer da última conferência, o Padre Favie, Doutor em Teologia, pediu ao orador para lhe fazer, de público, uma série de perguntas, não especificadas. Léon Denis não se recusou em atendê-lo.
Em conseqüência, atrasou sua partida por oito dias. O debate anunciado se efetuou diante de um seleto auditório, além de partidários de ambos os lados.
Denis falou da tese espírita e dos dogmas católicos. O debate foi caloroso e os lances, emocionantes. Os dois debatedores, fortemente documentados, se apegaram aos textos da Vulgata, sobre passagens dos Evangelhos, particularmente ambíguas, durante várias horas.
O Padre Favie, diz o relatório, provocou muitos aplausos, pela independência de suas apreciações e pela sólida erudição exegética.
Quanto a Léon Denis, sempre rápido nas respostas e vigoroso no ataque, foi sobremodo brilhante na defesa de sua Doutrina.
Como acontece, geralmente, nesses debates oratórios, os dois debatedores mantiveram suas opiniões, no meio de seus respectivos grupos, após comprovarem igual talento.
Mas o embate estava feito. Desses confrontos devia surgir, mais tarde, uma brochura, em resposta aos ataques do clero romano, ataques que se faziam, cada vez mais, muito violentos.
Em Bordéus, no ano seguinte, as mesmas conferências foram pronunciadas para um auditório culto, na sala do Ateneu, obtendo estrondoso sucesso.
O vento havia virado e nada conseguia desanimar Léon Denis, que era um soldado vinculado a uma causa que ele considerava como sendo a sua.
Comparecia a todos os auditórios, porém, preferia os homens do povo: camponeses, operários, pequenos artesãos, que não estão envolvidos de idéias preconcebidas e que conservavam um simplicidade de coração que faria inveja a muitas pessoa ; mais cultas.
Ele mesmo, filho do povo, de origem humilde, apreciava-os, por ter vivido muito tempo perto deles e partilhado de suas vidas laboriosas.
Estivera, anteriormente, em Liège, Seraing e Verviers, e retornara à Bélgica, na primavera de 1892, convidado para uma série de conferências.
No começo de 1895, haviam lhe pedido para falar sobre Espiritismo, em Borinage, para uma platéia exclusivamente de operários em minas de carvão.
Foi aí que ele abordou, pela primeira vez, a questão do Espiritismo Social, assunto que deveria desenvolver, mais tarde, com maior amplitude e profundidade.
Dessas viagens à região de Wallon, trouxera vários casos pitorescos que ele gostava de contar, com seu humor sorridente e inimitável.
Sua reputação como orador já havia transposto as fronteiras da França.
Não podia mais atender a todos os convites e, por toda à parte, os salões lotavam.
Na época, dois valorosos valões, V. e O.B., decidiram proporcionar uma divulgação mais rápida para o Kardecismo, na Bélgica, por meio de numerosas palestras e conferências, mas faltavam oradores de envergadura.
O.B. era fervoroso adepto da Doutrina Espírita, mas não sabia manejar a palavra e, quando abordava uma questão perante seus amigos ou familiares, atrapalhava-se e não sabia responder às perguntas de improviso e era humilhado com zombarias.
"Vocês triunfaram, senhores, dizia ele, aos zombadores, porque não sei falar, mas paciência! Ainda hei de convertê-los." Para tanto, apelou para um seu amigo, bem falante, vagamente espírita, sobretudo um bom beberrão de chopes.
No dia aprazado, para uma assistência numerosa, conseguida à custa de muitos cartazes e anúncios na imprensa local, o orador inscrito, mais inibido do que era preciso, por causa do excesso de bebidas, não sabia como encontrar as palavras e acabou dormindo diante de seu copo dágua, apesar dos desesperados esforços do azarado propagandista.
Pode-se adivinhar o efeito produzido na região por causa do lamentável fiasco.
Nessa ocasião, Léon Denis foi convidado por O.B. para acertar a situação tão gravemente comprometida. Ele aceitou. Os gracejadores, já avisados, compareceram em massa à nova convocação.
Apenas, dessa vez, a escolha havia sido mais feliz. O bom humor e a simplicidade encantadora do orador, o tom de sinceridade de sua palavra e a força de seus argumentos produziram bons resultados e o auditório foi conquistado.
Léon Denis amava essas populações de mineiros, rudes, porém, não destituídos de sólidas qualidades, apesar das falhas próprias decorrentes de seu gênero de vida, tão penoso e tão precário, naquela época.
Até no final de sua propaganda oral, não passou um ano sequer, sem rever os mineiros valões da bacia de Charleroi, de espírito tão franco, tão compreensivo.
Também visitava seus outros amigos belgas.
As conferências feitas em Bruxelas, Anvers, Charleville, Jumet-Gobissart e Verviers foram particularmente animadas, frutíferas, por causa dos debates sempre corteses que provocavam.
Léon se achava então em pleno apogeu de seu apostolado. Consagra o ano de 1895 à exposição do "Problema da Vida e do Destino" e da "Idéia de Deus".
No ano seguinte, é "O Milagre de Joana D'Arc", sua missão espiritual, que requer quase que todos os seus esforços.
Em 1897, marca um recorde: 25 conferências sobre assuntos já tratados, anteriormente.
Está na liça, por toda à parte: Bruxelas, Anvers, Nancy, Blois, Lyon, Grenoble, Montpellier, Toulouse, etc. Em 1898, por ocasião do cinqüentenário do Espiritismo, expande mais ainda seu campo de ação; fala em Haia, depois desce para Marselha, para os roteiros de costume.
Em 1899, ainda faz 14 conferências sobre "O Espiritismo no Mundo e a Idéia de Deus".
Léon Denis, nessa época, desenvolve uma atividade enorme.
Sem, contudo, deixar a Casa Pillet, vê-se obrigado a reduzir o tempo que ainda consagrava aos compromissos comerciais.
Sua tarefa o absorve cada vez mais e a elaboração de outra grande obra já estava no final.
Apesar da extenuante tarefa que deveria cumprir, o valoroso lutador experimenta uma grande alegria interior. Já se aproxima o dia - hora tão almejada - em que, tendo conquistado sua independência econômica, poderá dedicar-se, sem reservas, a seu caro labor, - digamos melhor - à sua missão.
Já é tempo; seu organismo cansado pede, imperiosamente, prudência, cautela e cuidados vigilantes.
Sua fraqueza de peito, uma tosse persistente com inflamação das vias respiratórias, o obrigam a fazer um tratamento termal.
Vai, sucessivamente, a Uriage, depois a Mont-Doré, a Cauterets e a Allevard.
Dessa última estação, escreve à sua mãe que, durante sua ausência, jamais ficava sem notícias:
"Querida mãe, acabo de chegar a Allevard,
Fiquei no Hotel do Louvre. Este é o cenário que escalei, em 13 de julho e de onde se tem uma vista esplêndida das geleiras da Meige e do Pelvoux. Mando-te um beijo."
Como de hábito, fazia uma cruz à tinta, no cartão postal, indicando o pico culminante de Tête-de-Maye, escalado pelo intrépido alpinista.
No dia seguinte, escreve de Grenoble:
"Querida mãe, terminei todas as minhas excursões. Amanhã, de manhã, estarei em Allevard. Não sei se vocês sentiram calor, em 14 de julho, em Tours, mas, quanto a mim, dormi no chalé, marcado neste cartão, no Lautaret, no meio das geleiras. O cartão postal apresenta um desfiladeiro. Eu estava gelado.
Mando-te abraços.
Com que alegria, nos anos seguintes, ele retorna ao meio vivificante de suas queridas montanhas! Excursiona, em todos os sentidos, mergulha, deliciosamente no seio da Natureza selvagem, respira o ar puro dos picos, goza inteiramente desse descanso necessário, dessa curta trégua no labor singularmente complicado da vida costumeira. Está feliz!
O Congresso de 1900 abrira a campanha de conferências do ano. Ele deveria usar da palavra sete vezes, no mês de novembro: Em Lyon, Grenoble, Pierrelato, Pont Saint-Esprit, Avignon e Arles.
Em dezembro, atravessou o Mediterrâneo, para falar em Argel, perante uma seleta platéia, nos dias 16, 25 e 27.
Assim que chegou, escreveu para a mamãe Denis: "Querida mãe, cheguei, ontem à tarde, após uma travessia magnífica. Mal desembarquei, fui cercado de visita .
O General N. estava no hotel, antes mesmo que eu tivesse recebido minha bagagem. O sr. e a sra. A. e outras pessoas me esperavam no cais. Tive que jantar com eles.
Estou hospedado no Hotel da Europa, cuja foto está anexa. Meu quarto está no lugar onde eu fiz uma cruz. Tenho uma admirável vista para o mar e a cidade. Faz tanto calor, que não se pode suportar um sobretudo. O céu está de um azul profundo.
P.S. - Irei a uma recepção, na casa do General e, domingo, em casa da sra. C."
Tendo as duas conferências previstas, sido muito aplaudidas, como de costume, foi então realizada uma terceira reunião, privativa, na Prefeitura, a fim de se fundar um Grupo Argelino.
Isto feito e após festejar o Natal entre seus amigos, embarcou em 1 ° de janeiro.
Ocupado na preparação de seu novo livro, só continuou suas viagens de propaganda no fim do ano, visitando de novo Flandres e a Bélgica, realizando 9 conferências sucessivas, de 3 de novembro a 15 de dezembro.
No retorno, reviu Lorena, sua cidade Natal, e deteve-se em Nancy, onde falou para um auditório superlotado.
No dia seguinte, escreveu para sua mãe um bilhete: "Querida mãe. Minha conferência se realizou ontem, à noite e provocou um verdadeiro entusiasmo. Os habitantes de Nancy são tidos como pessoas indiferentes, mas tal não aconteceu comigo. Daqui a pouco, teremos reunião na casa do sr. G., para analisarmos os meios de organizar o Espiritismo em Nancy.
Recebi dessa brilhante e distinta sociedade um cativante acolhimento.
Amanhã, de manhã, partirei para Vaucouleurs e Domrémy, que faço questão de visitar; depois irei a Bar, no dia 13, para uma conferência.
Pediram-me uma conferência para Verdun, onde falarei, provavelmente, no dia 21 ou 22. Serão mais três dias de atraso.
Um abraço."
Em 1902, no mês de março, proferiu uma palestra em Tours, dando suas impressões sobre Lorena; depois, visitava a Bretanha, Nantes e Lorient. Em seguida, foi para o Sul, conseguindo completo sucesso, diante de auditórios seletos, em Agen, Toulouse, Pau e Bordéus.
No início do ano seguinte, retomava seu tema predileto "Joana D'Arc", em Tours e, depois, em Paris.
Em novembro, retornava a Grenoble e Lyon, onde seus amigos queriam cada vez mais sua presença. Entretanto, ele estava pouco decidido para fazer essa viagem. A sra- Denis, que estava muito idosa e alquebrada, enfraquecia-se, visivelmente. Seu estado de saúde lhe causava preocupação e inquietude. Vendo-a assim, temia afastar-se.
Pediu a seu amigo, o Dr. Encausse, ( Papus, pseudônimo no Ocultismo.) então médico em Tours, que lhe desse sua opinião sobre o caso. Confiante na resposta confortadora do médico, foi a Lyon, onde era esperado com impaciência.
Logo que chegou, um telegrama o morte de sua mãe.
Teve que voltar, apressadamente, para os funerais, que se realizaram, em Tours, quinta-feira, 19 de novembro de 1903.
Dessa forma, o acontecimento previsto, mas temido, deixava-o só no mundo. Ele perdia mais que uma mãe plena de solicitude e de amor, perdia a única companheira de sua vida, a mais vigilante, a mais esclarecida das amigas.
Outrora, Denis a vira tremer por ele, no decorrer das rudes provas de sua juventude, quando a família vivia duramente castigada por um destino ingrato.
Obrigado a assumir, antes do tempo, as responsabilidades que cabem a um chefe de família, sempre achava, perto dela, o apoio firme e inteligente de que precisava.
Contra as tribulações quotidianas, as invencíveis tristezas, as decepções e os golpes da sorte, encontrava nos braços dessa mãe querida, nas horas difíceis, a paz desejada.
Seu pai, de caráter rude, de tendência materialista, indiferente às especulações intelectuais, nunca o havia compreendido. Sua morte só havia feito fortificar a afeição desses dois seres, que formavam um só coração. Espírita como o filho, a sra. Denis acompanhava, com uma real alegria, o progresso rápido da fama de Léon Denis, interessava-se por seus menores trabalhos, acompanhava-o, em pensamento, em suas constantes viagens.
Léon Denis jamais se cansava de lhe escrever, no decorrer de suas viagens, mantendo-a ao corrente de seus sucessos oratórios, de seus êxitos ou insucessos, em matéria de propaganda.
Quando retornava a Tours, ao seu apartamento, na Rua de 1'Alma, reencontrava, graças à sua mãe, o ambiente tranqüilo de que necessitava.
Ela lhe preparava, pessoalmente, os pratos de sua preferência, e dos quais precisava, quando regressava, cansado e, muitas vezes adoentado, das viagens pouco favoráveis ao bom funcionamento de um estômago delicado. Cuidava para que ele observasse, pontualmente, o tratamento devido para sua vista cansada.
E tudo isso, agora, já não mais existia.
Sua velha mãezinha acabava de deixá-lo. Sentia-se só, entre os homens.
Todavia, isso não deveria abater sua coragem. Embora duramente atingido, deveria concentrar-se em sua dor, deixar-se envolver pela tristeza, abandonar a tarefa que livremente aceitara?
Denis sabia muito bem que essa mãe que acabara de deixá-lo só, neste mundo, merecia um descanso, na nova vida que lhe estava reservada, e isto após uma existência de devotamento.
As provações materiais haviam terminado, mas as de Denis ainda não tinham produzido seus frutos.
Era necessário retomar, sem tardança, a tarefa interrompida, continuando a servir, com toda a sua coragem e toda a sua fé.
A conferência que deveria fazer, em Lyon, no dia 19, foi transferida para o dia 22. A palavra entusiástica do grande orador foi recebida com aclamações.
Em Valence, alguns dias após, Henri Brun e Henri Sausse, dedicados dirigentes da Federação Lionesa, vieram novamente expressar-lhe a profunda simpatia de seus adeptos e juntar seus aplausos aos de Valence. O sucesso obtido em Toulon, a 21 de dezembro, não foi menor.
Lá ele pôde avaliar quanto as idéias espíritas interessavam aos marinheiros.
Ele mesmo escrevia, após sua conferência, de Saint Raphael, para onde viera à busca de repouso, sob o saudável calor da Côte d'Azur.
“Caros amigos, terminei a metade de meu roteiro. Vou passar as festas aqui e, depois, recomeçarei, no sentido inverso, por Toulon até Lyon. Eu tanto tenho conferências a fazer na volta, como na ida. Em Marselha, o tempo ruim, um dilúvio, o que me prejudicou um pouco, porém, em Valence e Toulon, pediram-me, além de uma segunda Conferência pública, outras palestras particulares e perguntas intermináveis”.
O Procurador da República e as autoridades de Valence convidaram-me para um chá e a discussão durou até meia-noite.
Em Toulon, foi a Marinha que se preocupou com os temas. Um oficial superior confessou-me que se exercitava no Espiritismo, às escondidas, há 10 anos e tinha quatro senhoras médiuns, em sua família.
O Espírito de Bonaparte lhes ditou um livro de estratégia militar, que foi publicado com um pseudônimo, recebendo elogios dos críticos militares que o atribuem a um general anônimo.
Ele só conhece a tática naval, nada sobre as questões militares terrestres. Eu lhes contarei muitas coisas interessantes.”“.
Assim, cada ano, Léon Denis realizava essas constantes e cansativas excursões, em auditórios mistos, às vezes refratários, onde devia enfrentar as zombarias e sarcasmos de adversários pouco leais.
Perceber, nos outros, a resistência da inteligência prevenida ou rebelde é um incentivo que estimula e obriga a reunir forças, concentrar as idéias e utilizar o argumento certo como se fosse uma arma nobre; porém, falar para uma platéia ignorante, com a cruel incumbência de responder a tolos, encontrando somente o vazio de um pensamento inconstante e frouxo, - o que, na verdade, sempre acontecia - é, realmente, uma provação capaz de desanimar os mais corajosos.
Todavia, nada teria detido o "Apóstolo", se não fossem as forças que, no final, o abandonariam.
Estava perto de 60 anos, sua voz já não possuía a mesma potência; seus pulmões se fatigavam mais depressa e sua resistência diminuía.
Ora, numa reunião pública, o orador precisa utilizar todos os seus predicados físicos para conservar os ouvintes interessados e enfrentar os debates que possam ocorrer.
Até 1910, prosseguiu seu cansativo mister, falando sobre "O Espiritismo através das Idades", "O Problema do Além" e "A Missão do Século XX".
Cinco conferências, em 1901; seis, no ano seguinte; oito, em 1907, das quais 7 em dezembro, comprovam nele ainda uma grande capacidade.
O ano de 1908 marca o fim dessa longa fase oratória, cujo balanço acusou - durante 35 anos - cerca de 300 conferências.
Cidades até então não visitadas, tinham ouvido o ardente propagandista: Huy, Spa, no Norte e, no Sul: Montélimar, Aix, Nice, Cognac, Périguex, Carcassone, Béziers et Montpellier.
Em dezembro de 1905, em janeiro de 1906 e, após, em fevereiro de 1907, ele havia falado em Montauban, chamado pelo pastor Bénézech, que era um dos mais fervorosos adeptos da Doutrina, um de seus mais ardorosos e eloqüentes campeões.
O país inteiro tinha sido preparado, graças a seus incansáveis esforços, para receber a boa semente da Nova Revelação.
O GRUPO DA RUA DU REMPART
Convém, agora, retroceder um pouco, a fim de avaliar a extensão de semelhante atividade.
Em 1890, as sessões de experimentação, interrompidas desde a morte do Dr. Aguzoli, ocorrida fazia alguns anos, foram recomeçadas sobre novas bases.
Tinham vindo residir em Tours, dois homens importantes, que já haviam ocupado altos postos na Magistratura e no Exército: os senhores Périnne, presidente da Câmara, na Corte de Apelação de Argel e Lejeune, antigo Intendente da Guarda Militar de Metz.
Os dois eram espíritas e conheciam bem a Doutrina. Foi com o concurso desses dois senhores que Léon Denis conseguiu formar o Grupo da Rua du Rempart, que durou uns 15 anos, com proveitosas reuniões de intervalos bem curtos.
Foi esse Grupo que Alexandre Delanne quis visitar para um bom aproveitamento.
Havia cinco médiuns, sendo três de incorporação; os demais eram também videntes, audientes e psicógrafos. Léon Denis era o diretor do Grupo, mas só de vez em quando participava dos trabalhos, sempre que suas constantes viagens lhe davam uma oportunidade.
As primeiras mensagens foram, inicialmente, escritas, numa primeira fase da mediunidade e, depois, as outras faculdades dos médiuns se desenvolveram rapidamente.
Eduard Périnne Filho era o principal comunicante de efeitos intelectuais e, desde muito tempo, já se comunicava com seus pais.
Eduard Périnne, juiz de paz em Cherchell, morrera bem jovem e, logo após sua morte, seus pais receberam dele numerosas provas de identificação.
Às perguntas, às vezes delicadas, que o presidente ou Léon Denis faziam, o Espírito respondia imediatamente, numa forma bem clara, satisfazendo a todos.
Depois de Edouard Périnne Filhos, dois novos guias se apresentaram, desejando ficar no anonimato: Henry e Esperance. Suas comunicações versavam sempre sobre temas elevados, repletos de conselhos, revelando um tom persuasivo, ao mesmo tempo seguro e delicado, com exortações morais.
Havia também os íntimos: parentes e amigos mortos dos componentes do Grupo e, ainda, Espíritos desconhecidos.
Os primeiros, mais numerosos, manifestavam-se com sinais característicos: hábitos, manias, gostos particulares e preferências intelectuais, que os tornavam facilmente reconhecíveis.
Além disso, eles eram vistos pelos outros médiuns ou descritos, com pormenores e particularidades físicas, que tornavam fácil o controle por aqueles que os tinham conhecido.
Entretanto, entre os Espíritos desconhecidos do Grupo, havia uma comunicante de um bom humor inigualável: era a jovial Sofia que naquela época, dava comunicações em vários Centros da capital.
“Era verdureiro em Amiens, onde teria morrido, em 1860, segundo disse o Mestre. Inicialmente, comunicou-se em um Grupo parisiense, onde conheceu um de nossos médiuns, a quem se afeiçoou, particularmente”.
Durante mais de 3 anos, Sofia foi um Espírito familiar assíduo em todas as nossas reuniões, que ela alegrava com sua vivacidade e respostas oportunas, sempre repletas de delicadeza e bom-senso.
Após ter obtido a narrativa das impressões desse Espírito que, para resgatar suas faltas e o mal que fizera por suas indiscrições, teve de permanecer algum tempo no "escuro” , como afirmou, constatamos seu permanente progresso, graças ao contato e proteção de Espíritos Superiores, que se interessaram em sustentar sua boa-vontade.
Testemunhamos seu empenho em instruir-se e querer progredir, mesmo ainda mantendo certas prevenções e antipatias.
Enfim, presenciamos suas vacilações ou mesmo angústias, que precedem uma reencarnação, porque, no fim de julho ou em agosto de 1900, Sofia reencarnou, após ter se despedido do Grupo, com uma melancólica resignação.”“.
Os dois principais inspiradores do Grupo da Rua du Rempart foram, porém, Jerônimo e o Espírito Azul.
O primeiro desses guias se revelara, espontaneamente, a Léon Denis, em 1883, em Le Mans, num Grupo de operários.
Nunca mais deixou de assistir o Mestre, até seus derradeiros momentos de vida.
“Jerônimo de Praga, após ter sido vítima da intolerância religiosa, foi numa outra vida, um estudioso monge. Não nos devemos espantar com as anomalias e mesmo com as contradições que a série de nossas existências possa apresentar”.
Se, por esforço de nossa vontade, pudermos emergir de nossa memória subconsciente para a consciência as lembranças de nossas vidas passadas, ficaremos chocados com a variedade e os contrastes existentes, devendo reconhecer que essa variedade é indispensável à educação e à evolução das almas.
Jerônimo se comunica pelo mesmo médium utilizado pelo Espírito Azul. Não gosta de falar na obscuridade e suas primeiras palavras são sempre para reclamar da luz.
Sua palavra é vibrante e sua gesticulação ampla; exprime-se por frases eloqüentes. Forneceu ao nosso Grupo ensinamentos filosóficos, elucidou pontos obscuros, explicou as aparentes contradições de nossa Doutrina. Formulou leis de relacionamento entre encarnados e desencarnados.
Seu desejo, muitas vezes expresso, era ver a fusão do Espiritismo não com o Catolicismo atual, mas com os Cristianismo regenerados, livres de dogmas estreitos e de práticas superadas.
Quanto ao Espírito Azul, sua irradiação realmente angelical supriu, no crepúsculo da vida do Mestre, a luz que, lenta e irreversivelmente, abandonava seus olhos. Uma luz de um inefável encanto interior, que infunde no âmago do. coração um alto e puro amor.
0 Espírito Azul (assim chamado porque os médiuns - todos os médiuns o vêem sempre, envolvido por um véu azul) possui um brilho intenso.
O Espírito Azul é uma Entidade feminina de ordem bem elevada. Quando anima o corpo do :médium, que é uma; pessoa tímida e de pouca instrução, este muda as feições- do rosto que tomam expressão angelical, a voz se torna meiga melodiosa; a linguagem se reveste de uma grande, pureza.
O Espírito dirige, sucessivamente, a cada um. dos presentes, conselhos advertências, relacionados com sua vida: particular, que atestam, mesmo à primeira vista, um perfeito conhecimento do caráter e da vida íntima daquele quem se dirige.
Além dessa proteção: que o Espírito Azul reserva., a cada um de nós; proteção que poderíamos, comprovar com exemplos pessoais, ainda consagra, tempo para ensinamentos gerais; relativos sobretudo à família e a educação das crianças:; Nosso guia vê,: numa reforma inteligente da educação infanto-juvenil e o único remédio para: os males atuais, o verdadeiro meio para garantir a Humanidade um futuro
As principais mensagens desses grandes Espíritos era taquigráficos em registros muito bem organizados, que se tornaram propriedade do Mestre.
0 conjunto, disse ele, forma uns ensinamentos completos, filosóficos e morais, de acordo com os princípios expostos por Allan Kardec, porém, numa forma mais elegante e mais persuasiva."
Quando Leon Denis tinha necessidade de confirmar nem, ponto doutrinário, quando desejava um conselho- a propósito de uma ação a realizar, confidenciava com :seus amigos invisíveis e a resposta sempre vinham nítidos e satisfatórios.
Assim se manteve uma colaboração do mais cativante. interesse entre o escritor espírita e seus guias.. Estes lhe davam trechos: de discursos, exórdios de conferências, artigos- de. literatura,: controvérsias de ordem filosófica, até mesmo de cartas importantes sobre a. Doutrina, tudo por meio de médium de pouca cultura, com a instrução,igual das mulheres, naquela época.
Leon Denis tinha assim mil e uma razões para crer que seus guias e a confiança que depositava, neles jamais lhe faltou, porém, se fortaleceu como correr dos, anos até tornar, completa e absoluta.
"Como duvidaria deles, se nunca me enganar? Não apenas nunca me enganaram,,mas tive prova permanente de que em tudo, enxergam melhor e'-mais longe de nós.
Já que, até aqui, tenho me saído bem com seus conselhos, por que eu hoje os recusaria.
- De fato, Leon Denis nada fazia, sem ouvir Jerônimo e acabava sempre por se render às ponderações de,seu pai espiritual - belo exemplo de disciplina e de obediência filial, dado por um sábio de cabelos brancos.
CRISTIANISMO E ESPIRITISMO
"Cristianismo e Espiritismo" apareceu em agosto de 1898. As circunstâncias conduziram Léon Denis a tratar desse grande tema. Allan Kardec lhe havia, em parte, aberto o caminho, mas o discípulo entrevia nesse terreno novos aspectos.
Cristianismo e Espiritismo! Se "o Cristo é a própria voz da Humanidade em comunicação com a Divindade", como o Espiritismo poderia desinteressar-se desses sublimes ensinamentos? Cristo não é o Médium por excelência, o Mediador Supremo? Falar, porém, do Cristianismo sem abordar os pontos referentes aos dogmas das Igrejas, era uma coisa impossível.
A obra compreende 4 partes: As Vicissitudes do Evangelho, A Doutrina Secreta do Cristianismo, Relações com os Espíritos dos Mortos e A Nova Revelação.
"Sabemos, dizia o autor, no seu primeiro prefácio, tudo quanto a doutrina do Cristo contém de sublime; sabemos que ela é, por excelência, uma doutrina de amor, uma religião de piedade, de misericórdia, de fraternidade entre os homens. É, porém, essa a doutrina que a Igreja Romana ensina?
A palavra do Nazareno foi ela transmitida pura e sem interpolações e a interpretação dada pela Igreja está isenta de elementos estranhos e parasitas?"
Esses os pontos que o autor se propunha esclarecer, com toda a boa-fé.
A atitude que tomou, desde o começo, é clara e muito firme. Não esconde nada quanto ao seu desejo de esclarecer o problema obscuro das origens da religião mater, mas não é necessário dizer, seu livro não é uma obra de Apologética.
Seu estudo imparcial só pretende lançar um pouco de luz num assunto de tão grande interesse.
Entretanto, os ataques lhe vieram de dois lados, simultaneamente. Os protestantes empunhavam a Bíblia e os católicos apontaram seus cânones.
"Le Progrès Religieux", de Genebra, anunciava, em tom melodioso:
"Tememos que o livro do sr. Denis cause alguma impaciência entre os leitores que receberam do Céu cuidados de raciocínio rigoroso e da precisão no exame dos fatos.
Por pouco que conheçam a Bíblia, perceberão logo que o autor só possui apenas noções bíblicas superficiais. Em todo caso, parece-nos evidente que ele nunca teve em mãos o Antigo Testamento.
Certos complementos à biografia de Jesus produzirão um profundo espanto. De outra parte, porém, não é possível negar respeito e simpatia ao pesquisador sincero, ao espírito generoso que escreveu essas páginas."
Que os protestantes de Genebra tenham pouco se preocupado pela audácia de uma semelhante tese, não há porque se admirar.
O Espiritismo divulga as idéias adquiridas, em todos os domínios; entende como muito natural venham ataques dos mais diferentes pontos.
Observemos, todavia que a imprensa protestante admitia discutir um assunto, enquanto, do lado católico, só havia provocado zombarias e anátemas.
"La Semaine Religieuse de Genève", órgão do protestantismo evangélico, consagrou-lhe, em seu número de 2 de agosto, uma crítica magistral.
"O que nos tranqüiliza um pouco - escrevia o autor do artigo, Aloys Berthoud, é que o Cristianismo já passou por situações piores e comparava a nova heresia ao Gnosticismo, "embora negando ao Espiritismo a vantagem de possuir a poesia maravilhosa de sua antecessora."
Isto significava mudar a questão.
E prosseguia: “O Espiritismo, como o Gnosticismo, caracteriza-se pela sua incapacidade de entender o problema religioso, em suas profundezas morais e místicas; por sua ignorância a respeito do pecado, por sua repugnância pela religião de Israel, por sua impossibilidade de discernir os liames entre o Antigo e o Novo Testamento”, por seu desconhecimento da obra realizada por Jesus Cristo e por sua exegese eminentemente fantasiosa". Deparamos, depois, com algumas variações, os mesmos argumentos, apresentados por um crítico católico.
Inaptidão para entender o problema religioso em toda a sua extensão, ignorância da obra realizada por Jesus Cristo são críticas muito severas, mas os teólogos são mesmo assim ...
Quanto às acusações , de exegese fantasiosa, era muito imprudente tratar de tal assunto, porque o autor do livro condenado se abeberara nas fontes preferidas pelo mundo protestante. Expondo sua tese, desta vez como nas outras, Léon Denis não se prendia a nenhuma prevenção. Continuava servindo à idéia,que acreditava ser verdadeira.
O mau humor do, crítico ,se fazia claro em todo o artigo, mas devemos admitir que não faltavam originalidade, nem clareza em suas conclusões.
"Só há, na verdade, escrevia, duas religiões neste mundo: a do Cristo 'e seus apóstolos e a do homem natural. De um lado, a que, provindo de Deus, proclama a impotência do pecador de se salvar por si mesmo e lhe oferece uma salvação gratuita que, apenas por um ato de regeneração, pode fazê-lo passar da morte para a vida, do Inferno ao Paraíso, como o Bom Ladrão na cruz, ou como Saulo, transformado em São Paulo.
Do outro lado, as religiões do homem natural, pretendendo merecer a salvação por suas obras e ganhar o Céu por seus próprios esforços".
Léon Denis havia escolhido o segundo lado - o do homem natural - fortalecido por um forte bom-senso, contra o qual se vinham chocar as sutilezas teológicas, não podendo admitir que a soberana justiça recusasse a felicidade ao homem santificado pelos esforços constantes em busca da Sabedoria, abrindo as portas ao pecador, mediante um único sacramento.
Os católicos se haviam igualmente enganado quanto às intenções do autor. Todavia, ele declarara, expressamente, na Introdução:
"Não foi nenhum sentimento de hostilidade, nem de má-vontade que ditaram estas páginas. Não temos má vontade por nenhuma idéia-ou qualquer pessoa. Quaisquer que sejam os erros ou as faltas dos que se valem do nome de Jesus e de sua doutrina,eles não diminuem o profundo respeito e a sincera admiração- que temos pelo pensamento do Cristo."
Sem dúvida, ele dirigia palavras severas contra o clero- e não escondia seus sentimentos em matéria de dogmas.
As Igrejas Católicas, Apostólicas e Romanas, para assegurar seu poder espiritual e temporal, fez, ao longo dos séculos, uma couraça que ela mantém presa os seus flancos
O futuro revelará se é, este o instrumento de sua grandeza ou de sua queda.
A doutrina de Jesus, tal como se encontra expressa nos Evangelhos e nas Epístolas, °é uma doutrina de liberdade.
A Igreja achou ser seu dever manter-se intransigente contra o racionalismo moderno.
O direito de pensar, disse Leon Denis, é o que há de mais nobre no homem. A razão; sem dúvida, é, para muitas pessoas, um guia pouco seguro e demanda regras tutelares.
"Embora falível e relativa por si mesma, à razão humanidade se aperfeiçoa e se completa, buscando sua fonte divina, em comunhão com essa Razão Absoluta, que se conhece, reflete se possui e que é Deus."
É preciso-confiar na Humanidade.
A Igreja achou por bem condenar em bloco o Espiritismo quando teria sido melhor lhe evitar os abusos. Aliás, as manifestações ocultas a têm invadido, constantemente, sem que ela procurasse entender que tais Manifestações deviam dela fazer parte.
A Inquisição, apesar das mais terríveis torturas, não pode estancar as fontes das manifestações e hoje as ondas a cercam por todas os lados. De quem é a culpa?
“Os dignitários da Igreja que, do alto do púlpito, fulminaram as práticas espíritas, ficaram perdidos. Não souberam compreender que as manifestações das almas são uma das bases do Cristianismo, que o movimento espírita, a 20 séculos de distância, é a reprodução do movimento cristão em suas origens”.
Apenas se lembraram, a tempo, de negar a comunicação com os mortos ou, então, atribuí-Ia à intervenção dos demônios e colocar-se em oposição aos Padres da Igreja e aos próprios Apóstolos."
Isto não significa que Léon Denis não tenha reconhecido os excepcionais méritos da Igreja Católica como mestra da civilização ocidental.
"Apesar de suas manchas e seus erros, é grande e bela a História da Igreja, com sua longa seqüência de santos, doutores e mártires.
Nos tempos bárbaros, ela foi o asilo do pensamento e das artes e, durante séculos, a educadora do mundo. Ainda hoje, suas Instituições de beneficência se espalham pela Terra."
Essas não são as palavras de um adversário obstinado.
Ele mais tarde escreverá e serão suas últimas linhas: "O Cristianismo traz consigo elementos de progresso, germes da vida social e moral que, desenvolvendo-se, podem produzir grandes coisas. Sejamos, pois, cristãos, mas elevando-nos acima das diversas seitas até à fonte pura, onde nasceu o Evangelho.
O Cristo não pode ser jesuíta, nem jansenista, nem huguenote; seus braços estão amplamente abertos para a Humanidade inteira."
Se tais palavras não conseguem satisfazer, em seu conjunto, ao clero católico ou protestante, cremos que bastam para congregar um grande número de cristãos.
"Esta obra, lia-se em La Fronde, que a analisava, dá ao Espírito o alimento reconfortante e sadio e que conduz à verdadeira fé, a que não é inimiga da razão, porém, seu guia.
É o rastro luminoso que todos os grandes espíritos filosóficos deixam atrás de si."
Por sua vez, "La Revue de Ia France Moderne" declarava:
"Todos os problemas filosóficos e sociais de nossa época são passados em revista nesse livro, escrito num estilo límpido e florido, por um pensador animado de um vivo desejo de conciliação, ávido de uma síntese que satisfaça todas as almas verdadeiramente religiosas."
Esta síntese o autor a encontra nesse ensinamento superior e universal, até aqui patrimônio exclusivo de alguns sábios e que, proclamado hoje em todos os pontos da Terra, pelas vozes do além-túmulo, vai se tornar a herança intelectual e moral da Humanidade."
Finalmente, o "Reformador" não se mostrava menos favorável:
"Não poderíamos dar ao leitor uma idéia, mesmo pálida, dessa extraordinária obra, do vigor e da eloqüência dessas páginas onde o autor soube desdobrar-se, com toda a lucidez de sua alma de filósofo, de pensador e de artista.
Encontramos nela, ao mesmo tempo, um método de análise, que sabe utilizar todos os recursos de uma razão esclarecida, uma sólida base de ciência persuasiva, que dá, a tudo quanto a doutrina espiritualista encerra de belo e consolador, um relevo claro e nítido que domina e eleva o Espírito."
Esta segunda obra tinha precisado de numerosas pesquisas, de uma documentação abundante e de um trabalho intenso, porém, ainda mais uma vez, o sucesso vinha recompensar o escritor por seus sacrifícios e animá-lo a perseverar nessa rota, muito mais proveitosa que a propaganda oral.
O CONGRESSO DE 1900
O duplo sucesso de seus primeiros livros consagrou Leon Denis perante a atenção do mundo espírita.
Quando se instalou o Congresso Internacional de 1900, a 16 de setembro, em Paris, foi com aplausos unânimes da Assembléia, por proposta de Laurent de Faget, que Léon Denis foi nomeado Presidente efetivo. Ele estava assessorado por Heitor Durville, da seção de Magnetismo e por Gillard, da Teosofia.
O doutor Encausse (Papus) tinha sido mantido nas funções de secretário-geral, onde ele havia particularmente brilhado, em 1885. Victorien Sardou, Russel Wallace e Aksakoff tinham participado desse segundo Congresso Espiritualista, como Presidentes Honorários.
Papus, agradecendo à Assembléia, destacou a feliz escolha que acabara de se fazer na pessoa de seu Presidente, cujas qualidades de escritor combinavam com seu magnífico talento de orador.
Realmente, Léon Denis iria conduzir os debates do Congresso, às vezes bastante ardorosos, com uma segurança e uma autoridade não menor das que já dera prova, anteriormente.
Desde a sessão inaugural, expressou, sem vacilações, sua confiança nos destinos do Moderno Espiritualismo, em cujo seio se defrontavam teses não opostas, porém, de diferentes tendências.
"Deixai-me dizer-vos que estou bem à vontade para falar em nome de nossas escolas reunidas, porque sempre considerei essas escolas como se formassem um conjunto, um todo ...
O objetivo que temos em vista, para o qual devemos coordenar nossas vontades, nossos esforços e para onde devemos marchar, apoiando-nos uns nos outros, é a conquista de melhores destinos para a alma humana, e a conquista de um melhor futuro espiritual para a Humanidade."
No mesmo dia, na segunda sessão, falando em nome da Escola Espírita, deu as explicações sobre o papel que o Espiritismo deveria representar na luta de idéias que já estava iniciada.
Qual era a característica particular do Espiritismo? “Ei-la! A todos os argumentos, a todos os meios de ataque de que nos servimos contra nosso adversário comum, o Espiritismo vem acrescentar o poder dos fatos”.
A todos os argumentos da dialética, o Espiritismo vem ajuntar uma porção de provas, que vão crescendo, sem cessar, fortificando-se e que adquirem uma força irresistível, um poder diante do qual as fortalezas da própria Ciência se racham e se esboroam. E, por essas rachaduras, a idéia da sobrevivência se infiltra, pouco a pouco, nos mais refratários meios.
Foi o que vimos, recentemente, no Congresso Oficial de Psicologia. Apesar da hostilidade dos organizadores, foi tal a abundância dos testemunhos, que um dos membros da mesa não se conteve e confessou: O Espiritismo invadiu tudo!
É que hoje, irmãos e irmãs, não é mais apenas das fileiras dos humildes, dos obscuros pesquisadores que se elevam às afirmações, os testemunhos; é do seio dos sábios e dos meios universitários.
São os doutos membros das Faculdades, são homens que ocupam altos postos no mundo científico, político e administrativo que acorrem para atestar a realidade das comunicações com o Além."
Denis discorria em seguida sobre os pontos essenciais da questão com sua lógica e clareza costumeiras. Qual será a ação do Espiritismo no domínio do pensamento?
“1° - O Espiritismo deve contribuir, poderosamente, para transformar a Ciência, porque, apesar de suas conquistas, a Ciência se encontra estacionada como num impasse; a Ciência não pode mais avançar, sem abordar o estudo do mundo invisível; a Ciência nada pode explicar, sem fazer apelo às forças ocultas, sem deixar de lado e acima do mundo fugaz da matéria, o mundo imperecível do Espírito”.
2° - Assim como o Espiritismo ajudará a transformar a Ciência, também contribuirá para a transformação das religiões. Ele as forçará a sair de sua imobilidade, de sua letargia, insuflando-lhes sangue novo. O Espiritualismo Moderno forçará as religiões a evoluir, a caminhar com o espírito humano, a se elevar para uma compreensão mais alta do ser infinito eterno e de sua obra.
O mesmo sucederá com a Educação.
3° - Assim como o Espiritualismo Moderno transformará o ensino, influirá poderosamente sobre a economia social e a vida pública, porque sua concepção da existência e do destino facilitará o desenvolvimento de todas as obras de coletividade e de solidariedade."
Esses resumos, que ampliamos o possível, servem para explicar admiravelmente a questão; as idéias que eles contém não envelheceram.
No dia 21, na sessão da noite, o padre Nicole, antigo aluno dos jesuítas, pediu a palavra para explicar a questão dos dogmas católicos. Esse sacerdote, com uma louvável franqueza, fez uma corajosa e inesperada declaração:
"Acreditai, senhores, que, entre os 40.000 padres que há na França, muitos pensam como nós."
É importante destacar tal confissão.
Apoiando-se na tese tomista do mérito e do demérito, o padre Nicole defendia os dogmas, estacas necessárias no caminho da salvação para as almas e as inteligências frágeis, para os jovens ainda sem experiência de vida.
Ele afirmava que o dogma nunca impedirá a marcha da Verdade, pois é ela mesma uma verdade que crê em si.
Apresentava, sobre esse assunto, interessantes opiniões.
“Temos, dizia ele, criações e temos elementares, que são boas ou más. É absolutamente impossível, nessas condições, que o homem possuidor dessas criações más”. possa reerguer-se por seus próprios atos, por seus meios pessoais, se não tiver fé e não tiver o socorro de Deus."
Leon Denis lhe deu a seguinte resposta, onde demonstra toda a sua boa-fé, na qual prova seu desejo de conciliação, constantemente repelido pelo clero católico. "Desejo falar alguma coisa para desfazer qualquer equívoco: Eu disse que o Espiritismo não é inimigo das religiões, se bem que tenha sido perseguido por elas. Para os espíritos esclarecidos, como o padre Nicole, o Espiritismo deve ser um socorro que vem para as religiões, dizendo-lhes: A imortalidade da alma se comprova não mais com discursos, mas com fatos.
O Espiritismo vem estender a mão às religiões, na luta contra o materialismo; disso resulta que devemos seguir paralelamente. Não me convém examinar qual foi, no passado, a atitude da Igreja para com esses fenômenos, que foram proscritos em todos os tempos.
Por que essa hostilidade? Por que foram abafadas todas as manifestações?
Não tenho nada que explicar.
Qual tem sido o resultado da ação da Igreja através dos séculos? Foi ajudar a alma humana a progredir rumo a Deus. Qual tem sido, porém, o resultado do dogmatismo? O ceticismo invadiu o mundo. Atualmente, é preciso um outro ideal e esse ideal quem o traz é o Espiritismo.
Os mortos nos afirmam que a alma é imortal e vós, do vosso lado e nós, do nosso, devemos expandir a Boa Nova. Juntos extirparemos o materialismo do mundo."
Léon Denis iria empregar, durante o Congresso, os variados recursos de sua eloqüência, suas extensas aptidões e seu vasto saber, em matéria do Espiritismo experimental.
Tendo Firmin Nègre feito, no decorrer das sessões, interessantes declarações sobre as faculdades medianímicas comuns a todos os homens, o Mestre de Tours trouxe sobre o assunto uma contribuição das mais valiosas.
Tudo quanto se referisse à mediunidade não lhe era indiferente; esse assunto não tinha segredos para ele. A própria reencarnação exigia todo seu cuidado, pois, ainda era um assunto bem controvertido.
Ora, o dr. Moutin, Presidente da Sociedade Francesa de Estudo dos Fenômenos Psíquicos, trouxe para esses debates uma série de objeções relativas à tese reencarnacionista.
Léon Denis, baseando-se nos ensinos das velhas religiões do Oriente e nas tradições da sabedoria antiga, confirmadas pelas instruções do Kardecismo, utilizava todos os recursos de sua convicção em favor de uma tese, que ele considerava capital, tese que não se cansou de expor, de repetir e de aprofundar em todas as suas obras.
"Seiscentos milhões de asiáticos, ainda hoje crêem nela. Todavia, se aceitamos esse princípio das vidas sucessivas da alma, não ireis acreditar que seja somente porque os Espíritos o afirmam em nossas reuniões experimentais. Não! Se a aceitamos é, sobretudo, porque ela vem dissipar a dúvida que pesava no pensamento; é porque vem estabelecer a ordem, a luz, a harmonia, onde outrora só havia confusão, obscuridade e o caos!"
Em seguida, Denis examinava as teorias contrárias, não deixando nenhuma objeção sem resposta.
"Estudastes as leis da vida, dizia ele ao Dr. Moutin, examinastes a sucessão das idades e a lenta evolução dos seres em nosso planeta? Vistes uma coisa: é que, por toda parte e em tudo, a Natureza age com sabedoria, com método e lentamente. Foram precisos numerosos séculos para modelar a forma humana, que só apareceu após a longa série de formas animais.
Pois bem. A evolução física e mental, o progresso material e o progresso moral são regidos por leis idênticas e comuns. Não nos é possível cumprir tais leis numa só vida. E eu vos pergunto por que iríamos buscar bem longe; noutros mundos, os elementos de novos trabalhos, de novos progressos, se os encontramos por toda parte, em nosso derredor; quando esses contrastes, essas oposições de que falamos há pouco, são por si mesmos termos de comparação, meios de educação e de emulação, no sentido em que formam nosso julgamento pelas lições que eles nos oferecem, pelos exemplos que nos apresentam!" Concluía com força:
“De todas as nossas observações, de nossas pesquisas e de nossos estudos resulta uma coisa: é a lei dos renascimentos que preside ao nosso destino”.
A lei dos renascimentos vem explicar e completar a noção da imortalidade. O ser progride; é o que tudo prova e afirma. A lei do progresso rege todo o Universo.
Entretanto, toda evolução comporta um plano, um objetivo. O progresso é uma escada e não há escada sem degraus. Os renascimentos, as reencarnações são os degraus pelos quais o ser se eleva e progride."
Como no Congresso anterior, a Doutrina Kardecista tinha sido posta em debate. Havia o grupo dos fenomenistas, que invocavam, antes de tudo, a Ciência e contestavam a utilidade das explicações filosóficas e só queriam basear-se nos fatos.
A Doutrina do Iniciador não ficava, por vezes, sem sofrer ataques bastante brutais, porém, o discípulo fazia questão de deixar seu pensamento bem claro perante todos.
“O que caracteriza hoje o Espiritismo é a manutenção dos princípios codificados por Allan Kardec e seu constante desenvolvimento pelos métodos experimentais”.
Entretanto, para nós, o Espiritismo não está todo em Kardec; o Espiritismo é uma doutrina universal e eterna, que foi proclamada por todas as grandes vozes do passado, em todos os quadrantes da Terra e que o será por todas as grandes vozes do porvir."
Os maiores problemas foram tratados nesse Congresso de 1900 e abordados com notável largueza.
Uma das questões postas em estudo era esta: "Há condições para se afirmar a existência de Deus, nas conclusões do Congresso?"
Recordemos que o presidente do Congresso de 1889 havia julgado oportuno eliminar a palavra Deus dos debates.
Excelentes trabalhos e belos discursos tinham sido lidos ou pronunciados pelos oradores inscritos, cada qual apresentando sobre esse importante assunto seus pontos de vista pessoal.
Léon Denis não podia ficar fora de um tal debate e a ele se lançou, ardorosamente, com sua fé e sua alma de apóstolo.
Valeria a pena transcrever seu ardente, premente, convincente e verdadeiramente inspirado discurso:
“Não podeis separar o efeito da causa, explicava ele. Não podeis separar o homem de Deus!”.
E direi mais ainda: fora de Deus, da afirmação de Deus, não há Humanidade, porque a noção de Humanidade consiste em estarmos vinculados uns aos outros por uma identidade de natureza, de origem e de fim.
E tudo isso é Deus, tudo isso vem de Deus.
Deus é o pai da Humanidade e todos nós somos seus filhos e é por isso que estamos, para sempre, unidos uns aos outros.”“.
Mais adiante, Denis acrescentava:
“O homem não pode estudar-se, nem se conhecer, sem estudar Deus, não em si, mas nas relações que mantemos com ele. Não somente compreendê-lo, mas servi-lo”.
Será que não percebemos que o simples fato de afirmar que Deus é nosso pai faz surgirem em nós novas potencialidades?
A afirmação da existência de Deus é como uma luz, uma ampliação, uma alegria da alma, uma alegria de viver, a certeza do bem e da justiça e uma segurança do futuro, que se abre imenso sobre nós.
A afirmação da existência de Deus vale como uma explicação súbita e completa da harmonia das coisas e da harmonia de nossos destinos."
Denis continuava nesse tom para concluir com uma elevada exaltação "Para Aquele de quem se origina toda a força e todo o sustento", e para conclamar o Espiritismo a não falhar em sua missão, que é elevar as almas rumo ao Criador, sob pena de se ver “despojado de sua coroa de ideal divino pelas próprias mãos de seus representantes”.
Não podemos deixar de admirar em Léon Denis tanta segurança, bom-senso e prudência, aliados a uma fé vibrante e firme, ao lado de tanta simplicidade.
Desse Congresso de 1900, onde tantas idéias haviam sido discutidas por homens de grande talento, Léon Denis sairia ainda mais engrandecido, com uma coroa de Mestre.
NO INVISÍVEL
Nessa época de atividade intensa, a tarefa do conferencista se desdobrava na de escritor.
As conferências apenas tocam no tema, não o aprofundando. Ora, um problema requeria, então, os cuidados do apóstolo: a mediunidade. Sobre ela reuniu uma documentação ao mesmo tempo ampla e original.
Os guias do Grupo de Tours o haviam esclarecido sobre muitos aspectos. Era necessário torná-los conhecidos pelos seguidores espíritas.
Foi para atender a esse compromisso e a essa necessidade que publicou, em 1903, "O Mundo Invisível", importante obra com 500 páginas de texto.
A obra aparecia num momento adequado. A rapidez do desenvolvimento do Espiritismo constituía um sério perigo. Os que tinham fé demonstravam, freqüentemente, uma impaciência e uma intransigência nocivas à propagação da Doutrina nos meios refratários.
Os outros, indecisos, envolvidos pela dúvida, mostravam-se reservados e renovavam periodicamente suas críticas sobre a mediunidade.
Havia o grupo dos céticos, mais ou menos cultos, que obrigavam os militantes a se aprofundarem em suas investigações e a estudarem mais de perto os fenômenos.
Já as críticas científicas, renunciando ao seu detestável processo de aniquilamento pelo silêncio premeditado ou pelo ridículo, mostrava-se menos sistemática e adentrava, pouco a pouco, no caminho inexplorado do psiquismo transcendental.
Desde a publicação das obras de Allan Kardec, especialmente de O Livro dos Médiuns, um vasto e permanente movimento de experimentação mediúnica se desenvolvera, principalmente no mundo anglo-saxão.
Na França, ainda não existia uma obra, onde estivesse condensado o resultado de semelhantes pesquisas.
O novo livro de Léon Denis vinha preencher essa lacuna. Era uma apresentação da questão espírita no começo do novo século e, também, uma obra de divulgação e de defesa.
Tal obra não deixaria de apresentar extremas dificuldades de redação.
Os sérios problemas provenientes da mediunidade haviam recebido soluções mais ou menos fantasiosas; as hipóteses sobre o subliminal, a subconsciência e a dupla personalidade haviam complicado mais do que o necessário a questão.
Era preciso esclarecer o problema, reencontrar o fio da meada, dar a esses estranhos fatos umas explicações justas, apresentando as leis fundamentais da comunicação espírita.
Ninguém melhor que Léon Denis para desempenhar esse papel, onde era preciso não apenas argumentar, mas persuadir; não apenas aclarar a razão, mas sensibilizar o coração e a alma do homem.
“Todo adepto, escrevia ele, na introdução, deve saber que a regra por excelência das relações com o invisível é a lei das afinidades e das atrações. Nesse domínio, quem procura as coisas inferiores se confunde com elas e, o que prefere os altos cumes, os atingirá, cedo ou tarde, fazendo deles novo meio de progresso”.
Se quiserdes manifestações de ordem elevada, esforçai-vos por vos elevardes.
A experimentação, no que possui de belo e de grandioso, a comunhão com o mundo superior não é conseguida pelo mais sábio e sim pelo mais digno, ou melhor, por aquele que tenha mais paciência, consciência e mais moralidade."
Com efeito, ali está todo o Espiritismo. Ele será o que dele fizerem os homens: um meio de aperfeiçoamento moral, se for bem compreendido; uma causa de relaxamento moral, se dele fizerem apenas objeto de frívolas pesquisas.
Léon Denis se lançava, com veemência, contra os abusos da experimentação psíquica dos que, em nome da Ciência, pretendiam tutelar o fenômeno e contra os pesquisadores orgulhosos e imprudentes que abordam, sem uma prévia experiência, um domínio novo e perigoso, por causa de sua ignorância.
Na primeira parte da obra, que trata das leis do Espiritismo Experimental, havia considerações novas sobre a psicologia feminina.
Léon Denis, pressentindo o papel que a mulher representaria na sociedade de amanhã, acusava o Catolicismo - que tanto deve à mulher - de não ter compreendido esse papel segundo a angulação do Cristo.
A mulher, a quem cabe o papel de mediadora na família e no domínio das crenças, deve ainda servir de intermediária entre a nova fé que evoluiu e a fé antiga que declinou e se empobreceu.
Relegada a um segundo plano, em nossa civilização ainda bárbara, a mulher aspira a exercer no lar, no templo e na comunidade a um lugar que lhe cabe, junto do homem, seu igual.
"Tal mulher, tal filho e tal homem. É a mulher que, desde o berço, modela a alma das gerações."
Essas afirmações que hoje são naturalmente bem aceitas pelo mundo, pareciam ser, nesse começo de século, singularmente ousadas. Léon Denis devia tornar a elas muitas vezes, pois as considerava de alta importância.
No capítulo seguinte, tratava do Espiritismo Experimental, esforçando-se por estabelecer uma classificação dos fenômenos, preparando o terreno para a Metapsíquica, que ainda estava em seus primórdios.
Sua experiência pessoal lhe prestara um grande socorro nessa exposição tão complexa e tão difícil de resolver diante do leitor complacente.
Ele mesmo tinha sido médium escrevente, antes de se tornar orador. Seus dons de intuição e de inspiração apenas haviam se modificado. Sentia-se em relação permanente com seus amigos invisíveis. Enfim, pela incorporação, havia obtido mensagens de importância capital.
Uma constante experimentação, em tais condições, conferia a Léon Denis autoridade, com real competência, para tratar dos admiráveis fenômenos de mediunidade intelectual. Destarte, os capítulos referentes a essa questão eram tratados na obra, com segurança.
A última parte do livro era consagrada à mediunidade em geral, à sua prática, a seus perigos, às hipóteses e às objeções que ela levanta.
Abordando uma tal questão, o autor não se importa com as críticas que poderiam sobrevir da parte de certos espíritas, nem das diatribes interessadas de seus adversários. Prosseguia em sua caminhada, sabendo muito bem que o Espiritismo só poderia sobressair-se com semelhante debate.
No último parágrafo, "A Mediunidade Gloriosa", escrito de uma forma admirável, ele era como que arrebatado por um sopro de alta e ardorosa inspiração.
"Le Mercure de France", logo que apareceu o livro, dedicou-lhe um artigo, que era como uma consagração: "No Invisível é um tratado de Espiritualismo Experimental, porém, esse livro, se é instrutivo como um tratado, é sobretudo atraente como um romance. E que romance mais emocionante, misteriosamente angustioso e de triunfal alegria sobre a história da alma humana!
Seria trair o escritor, se apenas relatássemos numa fria enumeração, os materiais do seu trabalho. Não é a estrutura da obra que se deveria mostrar, é a própria obra, com sua substância, sua tessitura, sua medula e também com suas qualidades de encanto vigoroso e delicado colorido; são as apresentações das idéias e das palavras; são as breves observações desenvolvidas em frases lapidares.
Seria bom se poder registrar esses lances eloqüentes, essas páginas inteiras que estimamos novamente ler para melhor saboreá-las; páginas consagradas à mulher, à força do pensamento, à crença universal, à sobrevivência, etc.
O que mais dizer sobre esse delicioso capítulo sobre a mediunidade gloriosa, que irradia o clarão de cem gênios?
Finalmente, Laurent de Faget, numa bela conferência sobre "Os Pioneiros do Espiritismo", feita a 1° de novembro de 1903, na Sociedade Francesa de Estudo dos Fenômenos Psíquicos, dava sua opinião sobre a obra:
“O mais belo livro que Léon Denis hoje nos apresenta é o fruto sazonado de sua grande experiência, o resultado brilhante e sólido de suas investigações e de seu saber”.
Com ele o Espiritismo sai das práticas comuns, dos campos rivais, das capelas fechadas; eleva-se a uma concepção superior da vida espiritual e da vida moral. Passa do fato à idéia, da experimentação científica ao nobre impulso da alma em busca da virtude."
Melhor não se poderia ter dito.
O livro inteiro de Léon Denis é uma elevação comovente do pensamento rumo às Divinas Essências.
O CONGRESSO DE LIÈGE
No mês de junho de 1905, os espiritualistas belgas recebiam em Liège, para participar de seus trabalhos, com o título de Presidente de Honra, aquele a quem já chamavam de "Apóstolo". A data do último Congresso realizado em Liège remontava há 30 anos.
No substancioso discurso que Léon Denis pronunciou naquela ocasião, destacou a importância da realização daqueles certames mundiais com maior freqüência:
“Os Congressos são úteis no sentido de que representam uma afirmação de vitalidade de nossos princípios e de nossas crenças”.
Os Congressos são úteis porque contribuem para orientar a marcha do Espiritismo.
Neles medimos os progressos realizados. Neles acertam-se as formas de melhor organizar o trabalho de experimentação e de propaganda e torná-lo mais metódico.
Neles se estreitam os laços de solidariedade que unem os espíritas de diversas regiões, de diversas Federações.
Cada vez que os participantes desses Congressos retornam à vida ativa, na luta pelas idéias, é com um novo ardor, é com uma bem maior confiança."
Depois, entrando no cerne da questão, expunha o que, segundo ele, deveria ser o objetivo essencial do Espiritismo. Inicialmente, provocar, pesquisar e coordenar as provas experimentais da sobrevivência, por meio de um controle rigoroso, apoiando-se nos recursos do método e da crítica, desconfiando das afirmações prematuras. Em seguida, preparar, renovar as educações científicas, racionais e morais do homem em todos os seus ambientes.
"Creio poder dizer que o Espiritismo foi chamado para se tornar o grande libertador do pensamento, há tantos séculos escravizado.
A magnífica obra do Espiritismo será aproximar os homens, as nações, as raças, formar corações e desenvolver as consciências.
Para isso, porém, é necessário trabalho, perseverança e espírito de devotamento e de sacrifício." Tranqüilizando os neófitos, decepcionados com a aparente lentidão dos progressos da Doutrina, Denis escrevia:
- Ficamos impacientes porque nossa vida é curta. Todavia, já podemos dizer que o Espiritismo tem feito muito mais, em 50 anos, do que qualquer outro movimento, não importa em qual época da História.
Para mim é uma alegria poder dizer essas coisas aqui, na capital da Valônia, nessa terra de independência e de coragem, cujos filhos sempre compreenderam e demonstraram que nada se obtém senão ao preço do trabalho e da paciência."
A seguir, fazendo o histórico do Espiritismo, mostrava, num interessante resumo, como a Ciência, de início a contragosto, fora constrangido, pouco a pouco a se orientar no mesmo sentido.
"Faz 50 anos que os espíritas já sabem o que a Ciência pretende hoje descobrir."
E Denis registrava a impotente confissão e confusão da Ciência, profetizando que ela seria obrigada a uma completa revisão de seus conceitos, face à Doutrina Espírita.
Passando ao problema religioso, fez então importantes declarações que poderia comprovar:
"A idéia espírita, afirmou, penetrou nos meios ambientes religiosos mais refratários e mais ortodoxos." Citava o pastor Bénezech, entre os protestantes e o padre Didon, entre os católicos.
"Há em tudo isso um fermento que fará levedar as massas, em todas as instituições e em todos os meios sociais."
Terminava com uma admirável peroração na qual celebrava, além dos fatos experimentais:
"O esplêndido esforço do Além para tirar da alma humana suas dúvidas, suas vergonhas, suas lepras, suas doenças morais, a fim de obrigá-la a tomar consciência de si mesma, de suas energias ocultas, para forçá-la a realizar seu destino glorioso pela comunhão das almas que se chamam e respondem através da imensidão."
O PROBLEMA DO SER E DO DESTINO
A data do Congresso de Liège marca uma fase nova de um labor que vai sempre se acelerando.
Uma outra obra estava em preparação, demandando numerosas leituras e, principalmente, um enorme trabalho de consultas e de pesquisas aprofundadas. Sua vista deficiente o prejudicava muito e não tinha secretária.
Sua mãe já não vivia para velar por ele e obrigá-lo a se cuidar, coisa que ele esquecia por vezes de fazer. Envolto em seu roupão, inclinado sobre os escritos, anotando e escrevendo de manhã à noite, em seu pequeno escritório da Rua Alma. Também ele, como outrora Balzac, lembrava um "beneditino das letras."
Após ter escrito seu belo tratado de mediunidade, No Invisível, analisava agora o formidável problema do destino humano.
"São os mortos que despertam o interesse pelo problema de nosso destino", diz a doutrina xintoísta. Entretanto, no começo deste século, esta não era a opinião de todo o mundo.
O livro de Léon Denis aparecia na mesma data em que "Os Enigmas do Universo", de Haeckel penetravam nos meios universitários franceses. Léon Denis contra Haeckel! O duelo recomeçava entre dois adversários irreconciliáveis: o Espiritualismo e o Materialismo.
O filósofo alemão nada acrescia aos sistemas de Anaxágoras, de Epicuro ou de Lucrécio, mas agravava suas conclusões desenvolvendo seu sistema niilista.
Os filósofos da Antiguidade eram doutores, não negadores obstinados. Eles afirmavam: "A verdade é desconhecida", mas não impunham, como os positivistas modernos, o dogma do incognoscível, querendo ultrapassar seus mestres.
Afinal de contas, o que se pretendia com semelhante sistema?
Léon Denis, com sua habitual clarividência, demonstrou seus desastrosos efeitos. O homem, encontrando-se na mais completa ignorância do seu estado, das responsabilidades que lhe cabem como um ser consciente, tem, cada vez mais, tendência para desencadear seus apetites, humilhar e escravizar seus semelhantes, para conseguir o gozo integral dos sentidos.
Daí o arrivismo desenfreado, entre os cidadãos, as convulsões sociais cada vez mais freqüentes, as revoluções sanguinolentas, as guerras devastadoras que ameaçam precipitar, finalmente, a civilização contemporânea numa ruína definitiva.
Felizmente, o homem não pode, por muito tempo, satisfazer-se com semelhantes doutrinas.
Um instinto seguro o conduz para rotas menos estreitas. Mesmo quando duvida e parece contentar-se com soluções hesitantes da Ciência, um sentimento inexplicável, o medo de agir mal e, também um velho fermento de esperança invencível o reconduzem aos limites do dever, limites bastante mal definidos, é verdade, porém, suficientes para impedi-lo de abdicar do controle de seus pensamentos e de seus atos.
A essas negações ou a essas afirmações gratuitas, a essa metafísica do nada, o autor do "Problema do Ser" vinha contrapor sua filosofia viril e consoladora, que nada mais era do que a concepção rejuvenescida e adaptada à mentalidade moderna dos maiores sábios da Antiguidade.
“O Espiritismo nos fornece o meio de afastar a dúvida de vosso coração e de vosso pensamento; ele vos desperta e vos persuade, arrastando-vos irresistivelmente, rumo a um horizonte onde brilham inesperadas claridades”.
Fé do passado, Ciências, Filosofias, iluminai-nos com uma chama nova; sacudi as velhas mortalhas e as cinzas que as recobrem. Escutai as vozes reveladoras dos túmulos; elas nos trazem uma renovação do pensamento com os segredos do Além, que o homem tem necessidade de conhecer para viver melhor, agir melhor e morrer melhor."
O interesse dessa revelação vinha justamente da perfeita analogia entre as mensagens dos Espíritos, os ensinamentos das Filosofias e crenças mais antigas, e da qual nos trazia uma fórmula mais precisa e mais conforme a nossos gostos atuais.
Em seu livro, o autor mostrava exatamente a evolução lenta, porém, contínua do pensamento intuitivo, preparando o terreno para a Ciência; a sucessão dos aspectos diferentes da sabedoria modelando as elites, a lenta ascensão da Humanidade tomando consciência de seu papel, no objetivo ainda distante para chegar à fusão necessária e esperada de todos os sistemas filosóficos e religiosos no seio da verdadeira Ciência, porque o meio de se alcançar o conhecimento só pode ser pela Ciência
O homem moderno é sequioso por provas.
Exige que o sentimento e o intelecto sejam atendidos ao mesmo tempo. Fatos, eis o que ele quer, e daí a oportunidade do Espiritualismo Experimental.
A Ciência estuda o átomo, a radioatividade dos corpos, a misteriosa eletricidade e as ondas hertzianas. Por que não perscrutaria os estranhos fenômenos do parapsiquismo?
É nesse terreno que precisa adentrar-se para ter a chave do problema mal conhecido do destino humano.
O autor só se aventurava nesse assunto alicerçado por farta documentação.
Impusera-se um aprofundado estudo das obras dos padres Didon e Marchal, os belos ensinamentos mediúnicos do pastor Stainton Moses. Leu os trabalhos de Myers e de William James, de Russel Wallace, de Crookes e de Hyslop. Compulsou os documentos mais específicos dos "Proceedings" e meditando sobre as conclusões dos mestres da Biologia e da Psicologia contemporâneas: Claude Bernard, Théodule Ribot, Wundt, Pierre Janet, etc.
Bem a par dos interessantes trabalhos do Coronel de Rochas sobre a exteriorização da sensibilidade, tendo até mesmo experimentado em Tours, Les Mans, Lyon, Marseille, Nancy e Paris, em numerosos Grupos Espíritas.
Ninguém, portanto, estava mais qualificado para realizar semelhante empresa. Léon Denis, todavia, não alimentava ilusões, quando escreveu esse livro. Sabia que seria preciso retornar muitas vezes sobre esse assunto e acumular fatos sobre fatos.
É nessas condições que a crítica cederá, finalmente. Pelo menos, o franco sucesso, que obteve com esse ensaio de Filosofia Espiritualista, gratificou-o amplamente pelo seu esforço.
Os jornais e revistas fizeram os mais elogios referências à nova obra. Ed. Grimard, na Revue Spirite, o Dr. Bécour, na "Vie Nouvelle" fizeram-lhe um relatório dos mais elogios.
"Le Journal" elogiava o estilo eloqüente, arrebatador e luminoso do autor.
"Ninguém escreve numa linguagem tão clara, tão simples e com uma eloqüência tão persuasiva e brilhante. Todos os seus escritos são impregnados de uma grande beleza moral."
"Eles elevam e purificam", dizia "Le Mercure de France", citando alguns pensamentos dos quais destacava a exatidão e a profundidade.
O "Echo de Paris" faz a mesma acolhida:
"Todos desejarão ler essas páginas de uma Ciência e de uma Filosofia profunda, embora acessíveis às mais simples inteligências. Acrescentemos que a nitidez das idéias, o colorido do estilo, a beleza da forma e a lógica das deduções tornam esse livro um regalo para o espírito, um reconforto para a razão e uma alegria deliciosa para o coração."
Finalmente, Emmanuel Glazer, no "Figaro", prestava ao autor uma comedida homenagem, por isso mesmo bem significativa:
"Dos fatos e mesmo das teorias nada posso dizer, a não ser que são expostos com muita Ciência, convicção e também com bastante clareza. O que desejo enaltecer, com toda a sinceridade, é o espírito que anima as conclusões, esse desejo de encontrar uns Ideais Novos, que devolva “ao homem a confiança e o ardor pelo Bem”, na certeza profunda de que "a alma humana não pode morrer", enfim, essa vontade de traçar "o caminho para a futura Humanidade, da qual ainda faremos parte integrante" e de ofertar aos homens os meios de uma vida melhor, para agir e morrer melhor."
Assim, esse importante volume de cerca de 500 páginas recebia, como os precedentes, da crítica em geral, os mais elogios demonstrações de consideração.
Seu sucesso não terminou, porque ele encerra, sobretudo na sua parte filosófica, páginas que permanecerão no rol das mais brilhantes e mais profundas que o Mestre já escrevera.
O CASO MILLER
Foi no ano seguinte que começou a crescer o mal-estar causado pelo "caso Miller". Um grande escândalo estava para estourar entre os espíritas parisienses, espalhando a discórdia e a divisão em suas fileiras.
Desde o ano de 1906, um médium chamado Miller, francês de origem, porém, residente em São Francisco, na Califórnia, onde se dizia comerciante de antiguidades, vinha, anualmente, a Paris, para seus negócios comerciais e realizava sessões de materialização.
Naquela época, os meios espiritualistas se mostravam particularmente interessados nesse gênero de fenômenos. Como a fama do americano era grande, disputava-se o privilégio de recebê-lo.
Miller aceitava convites, bem realizava sessões pagas.
Sua mediunidade não transparecia dúvida para ninguém e, apesar de suas atitudes pessoais, era disputado cada vez mais.
Uma coisa estranha e que denota, nos meios espíritas da época, uma confiança e uma ingenuidade desconcertantes; deixava-se Miller fazer o que quisesse e, como não aceitasse controle, exercia-se uma fiscalização tímida e insuficiente.
Destaquemos, também, que homens como Léon Denis, Gabriel Delanne, Papus, César de Vence, Camelo Chaigneau, Paul Leymarie e inúmeros outros diretores de Grupos ou de revistas espiritualistas, não podiam, visto só serem convidados para essas famosas sessões, cercar se de precauções, que certamente tomariam, caso tivessem a responsabilidade pelas reuniões.
Que se passava, exatamente, naquelas reuniões?
Do inquérito, que resultou no escândalo, porque houve escândalo, pode-se concluir que Miller possuía uns inegáveis dons mediúnicos, suscetíveis de, por vezes, provocar extraordinários fenômenos. Além disso, tinha uma grande capacidade de ilusionista, da qual se utilizava, nas oportunidades.
As pessoas acostumadas a essa espécie de pesquisas não demoraram em descobrir as fraudes do espertalhão, mas, por educação, calaram-se, não querendo, diante de seus anfitriões, causar constrangimentos, fazendo uma tal revelação.
Entretanto, semelhante estado de coisas não poderia perdurar.
Até mesmo para as pessoas menos entendidas ficou patente que ele representava uma farsa indigna e que isso devia terminar.
De todas as partes o rumor se alastrava, causando penosas discussões e a cizânia entre os espíritas.
Havia dois grupos: um torcia por Miller, o outro não escondia o repúdio que lhe inspirava uma tão vergonhosa mistificação. Uma polêmica tomou conta das revistas espiritualistas parisienses.
Léon Denis, cuja boa-fé o envolvera, de início, tendo falado a favor de Miller, no decorrer de suas conferências, depois de certo tempo, passou a se resguardar.
Qual partido, porém, convinha tomar na questão? Anteriormente, observamos um certo número de fenômenos produzidos por Miller, em condições satisfatórias de controle, e que tinham dado resultados de incontestável autenticidade.
O autor do "Problema do Ser" havia participado de uma dúzia de sessões de fato interessantes.
O mesmo sucedera com Gabriel Delanne, Chevreuil e grande número de amigos, que puderam, por sua vez, observar fenômenos sob todos os pontos notáveis.
"Na maioria das sessões a que assistimos era evidente a sinceridade dos anfitriões e a qualidade dos visitantes era inatacável.
Eram vistas, nessas sessões, Branly, do Instituto de França; o barão de Shickler; Maxwell, substituto do Procurador-Geral da Sena; os generais Amade e Fix; Dr. Baraduc; Dr. Encausse; Dr. Péchin; Dr. Chazarain e numerosos representantes da imprensa parisiense, dos padres, dos pastores, dos advogados da Corte de Apelação, etc. etc."
Sem dúvida alguma, convinha agir, porém, com uma grande cautela.
Se ainda se tratasse apenas de fenômenos duvidosos! As provas, porém, eram esmagadoras.
Era evidente que Miller estava zombando dos espíritas.
Não se tratava mais de trapaças e de fraudes, em estado de transe, mas de verdadeiras mistificações. Qual era o objetivo desse médium? Era o que se precisava descobrir.
Em seu artigo de outubro de 1908, Léon Denis fazia a pergunta com uma prudência que não excluía a firmeza. Miller não deu a menor importância. O Mestre teve o escrúpulo de preveni-lo sobre o que pretendia fazer, pedindo-lhe, insistentemente, que renunciasse às suas detestáveis mistificações.
Miller respondeu de Nova York, em 23 de dezembro, "negando tudo e nada prometendo".
Depois disso, Léon Denis não vacilou mais. Publicou, em La Vie d'Outre Tombe, em Liège, a 15 de janeiro, e na Revue Spirite, a 1 ° de fevereiro, um artigo escrito em Marselha: "Últimas Apreciações". Esse artigo havia sido escrito para obedecer às orientações de seus guias e também sob a pressão dos acontecimentos.
"Que toda a verdade seja revelada, qualquer que seja - diziam, de Paris, os Espíritos de Jerônimo e do padre Henry. Os que se lançaram, tantas vezes, na vanguarda, para aclarar o caminho e mostrar o alvo a seus irmãos, hoje lhes devem prevenir pelas armadilhas e perigos que se encontram em sua estrada."
"O silêncio é uma falta, diziam os guias do Mestre. Não é permitida qualquer vacilação. É preciso publicar a verdade."
Em Bordéus, na casa da sra. Agullana; em Marseille, na casa da sra. Thivollier; em Paris, na casa de R. e no Havre, no Grupo Grellé, a resposta foi a mesma.
O artigo era seguro e comedido; todos os termos haviam sido bem ponderados.
Léon Denis apresentava suas provas, comprovava suas acusações de tal sorte, que não poderiam dar margem a nenhum equívoco.
As trapaças de Miller estavam postas à luz do dia, simplesmente e sem qualquer violência de linguagem. Denis concluía assim:
"Se 40 anos de trabalho, de devotamento, de sacrifício pela causa do Espiritismo deram à minha palavra um pouco de autoridade e de crédito perto de meus irmãos, dir-lhes-ei: Tomem cuidado! Há um grande perigo para nossa crença e para todos nós.
Quanto a mim, repudio doravante qualquer solidariedade para com esse homem hábil, astucioso e dissimulado que zomba, sem ter vergonha dos mais respeitáveis e dos mais sagrados dos interesses."
O caso, porém, não estava encerrado.
Segundo informações sobre Miller, soube-se então que ele, desde sua juventude, trabalhava como parceiro de um refinado impostor, não era possuidor de qualquer diploma e não gozava de nenhum prestígio na América.
Em São Francisco, era conhecido como inveterado mistificador e hábil ilusionista, dotado de ventríloqua. Desacreditado em seu país, conseguiu iludir os parisienses. Que pretendiam suas intenções?
Entretanto, Léon Denis não deixou de ser criticado pela atitude corajosa que acabara de tomar junto com seus confrades C. de Vesme e L. Dauvil, também desejosos de servirem à Verdade.
Aprovado por uns, mente, por outros.
Teve que se defender, ulteriormente de certas acusações injustas e retornar ao assunto que parecia encerrado, escrevendo o artigo "Pró e contra Miller", dando explicações complementares. todavia, foi criticado publica
Escreveu Denis:
"Advertido sobre os perigos que nos fez passar, sinto-me feliz de ter saído dele o tempo e não me arrependo nada do que fiz e do que disse!
Entretanto, é muito triste constatar que, enquanto me exponho e tomo atitudes pessoais, para sair da crise em que estivemos, muitos dos que me deveriam sustentar, se voltam contra mim."
Se fossem apenas os invejosos, os adversários costumeiros com que todo homem de valor topa! Havia, entretanto, certos companheiros de luta, até mesmo alguns familiares que não lhe escondiam sua desaprovação.
Por isso, sofria calado, mas nada o fez mudar em sua decisão. Preferia sacrificar tudo a capitular sobre um ponto que considerava fundamental para o futuro da Doutrina.
“Por mais de trinta anos, eu e alguns companheiros consagramos nossos esforços, nosso tempo, nosso sossego, para divulgar e defender o Espiritismo. Para tanto, comprometemos nossas energias, nossa saúde e nossa vida. E, agora, iríamos comprometer toda a nossa obra com imperdoáveis desculpas?”.
Deixaríamos profanar, sem nada dizer, o que há de mais sagrado: o respeito aos mortos e a fé na imortalidade?
Felizmente, as aprovações não lhe faltaram e provinham das mais eminentes e respeitáveis personalidades: Claire Galichon, Paul Leymarie, C. de Watterville, C. de Amelungen, Pablo, Marie Noeggerath, que lhe levaram, publicamente, na Revue Spirite, seus concordantes testemunhos e suas felicitações.
Um redator de um grande jornal parisiense lhe escreveu, afetuosamente:
"Compreendo quanto lhe deve ter custado liquidar assim Miller, porém, se essa liquidação penosa, mas leal, lhe resultar algumas inimizades, por outro lado ela lhe garantirá numerosas demonstrações de simpatia e de profunda amizade."
"Sua perfeita lealdade produzirá um grande benefício à nossa Causa e fará com que reflitam esses ingênuos que tanto mal lhe fazem", afirmava-lhe um general, amigo seu.
“Admirei sua coragem, no caso Miller, porque calculei quanto deve ter sofrido, ao ser levado a protestar. O senhor agiu bem e comprovou, mais uma vez, ser um homem honesto e sincero. Sei que certos grupos o contrariaram, mas seu dever foi cumprido, enxotando os mercadores do Templo”.
O que espalha a desconfiança, no movimento do qual o sr. é um dos mais respeitáveis chefes, é exatamente a cegueira de certos grupos que favorecem, por sua indiferença quanto à sinceridade dos fenômenos, aos mistificadores e aos que se regozijam com essas fraudes."
Essa carta, que partia de um homem de alto saber e ocupante de um dos mais elevados postos do Estado, deve ter sido bem gratificante àquele que, continuadamente, punha acima de quaisquer preocupações o interesse da Causa a que se devotara, irreversivelmente.
A VERDADE SOBRE JOANA D'ARC
Foi no meio dos debates sobre o caso Miller que apareceu "A Verdade sobre Joana D'Arc".
Léon Denis, apoiado em revelações de caráter pessoal, que o haviam fortemente esclarecido, jamais cessara, desde sua juventude, de meditar sobre o mistério da vida e da morte da heroína nacional francesa.
Desde 1877, abordava em suas palestras esse apaixonante assunto: "As Grandes Cenas da História da França.
Retornou ao tema, alguns anos após, em "O Patriotismo na Idade Média", "O Gênio da Gália" e "Nossas Verdadeiras Tradições Nacionais."
Em 1896, em Agen e, depois, no Havre, desenvolveu sua tese sobre a missão da "Donzela", em três grandes conferências: "Joana D'Arc, sua vida, seu processo e sua morte", "Joana D'Arc, suas Vozes" e "Joana D'Arc e o Espiritualismo Moderno".
De novo, voltou ao assunto em sua palestra sobre "Joana D'Arc em Touraine" e "O Papel da Mediunidade na História". Era o momento de condensar tudo em capítulos definitivos, fazendo um livro que trouxesse uma contribuição nova ao estudo desse grande tema.
No começo do novo século, muito se falava de Joana D'Arc e, como de costume na França, haviam subordinado a preocupação pela verdade histórica a preferências de ordem política ou religiosa.
Obras e ensaios contraditórios nasceram desse apaixonado movimento de idéias e de sentimentos, dos quais a memória da "Boa Lorena" mais sofria do que ganhava.
Depois de Thalamas e Anatole France, que só fizeram confundir a questão, Léon Denis abordou essa página da História com um novo método.
Nossos grandes historiadores tinham perfeita compreensão de que, com Joana D'Arc, se achavam diante de um fato excepcional, dificilmente explicável pelos processos habituais. "Jamais a História se aproximou tão perto do milagre", disse um deles, que não era místico. "Quer a Ciência queira ou não, será preciso admitir suas visões", afirmava o sábio e probo Quicherat. A Ciência nada tem a perder, reconhecendo a verdade.
A mediunidade é um fato patente.
Ao afirmar que toda a epopéia de Joana se baseia nessa faculdade ainda mal definida, Léon Denis tentou uma obra certamente audaciosa, mas de forma alguma anticientífica.
A novidade desse método era de ordem psicológica. Somente os conhecimentos psíquicos aprofundados possibilitam encontrar o "fio condutor que orientará os historiadores, no meio dos episódios daquela incomparável existência.
Eis porque os escritores, que se basearam exclusivamente nos documentos dos arquivos, nada compreenderam dos prodígios de uma tal vida.
Os historiadores ou hagiógrafos católicos modernos fazem de Joana uma visionária, uma santa.
A Igreja a canonizou; os escritores materialistas anticlericais, baseados numa tese médica perigosa, fazem dela uma histérica.
Em quem acreditar? Como preencher essa lacuna?
"A maior parte dos fenômenos dos passados afirmados em nome da fé, negados em nome da razão, podem, agora, receber umas explicações lógicas, científicas.
Os fatos extraordinários que marcam a existência da Virgem de Orléans são dessa ordem.
Somente seu estudo, tornado mais fácil pelo conhecimento de fenômenos idênticos, observados, classificados e registrados, em nossos dias, pode nos explicar a natureza e a intervenção de forças que atuavam nela, em seu derredor e que orientaram sua vida para um nobre fim."
Tal é a tese que o escritor espírita vai sustentar.
De qual natureza são essa forças? Eis o primeiro ponto a estabelecer. O Espiritismo demonstrou, disse Denis:
“Que laços poderosos unem a Humanidade terrena ao mundo invisível, que uma ação recíproca exerce nos dois sentidos, por seus efeitos, uma estreita solidariedade”.
É por uma incessante ação dos Espíritos sobre a Humanidade, combinada com os efeitos da lei superior de justiça, que se explicam o fato da História.
O aparecimento, no meio das tempestades sociais, de seres especialmente dotados, de missionários encarnados para um objetivo previamente traçado, dá, igualmente a chave de fatos prodigiosos, incríveis, se, para julgá-los, nos limitamos em ver neles o lado puramente terrestre."
E isto é tão verdadeiro para certos povos, como para certos seres predestinados.
Esta versão, examinada sem partidarismo, não deixa de aclarar, singularmente, o "Caso Joana D'Arc". Todavia, quando da publicação da obra, tanto quanto hoje, ela não poderia agradar nem a católicos, nem a ateus.
Léon Denis afirmava, comprovadamente, que Joana não admitia intermediários entre "suas vozes" e Deus; que, mesmo observando os ritos e práticas religiosas de seu tempo, ela se colocava acima de todas as autoridades estabelecidas neste mundo, repetindo, inúmeras vezes, que só se dirigia ao Criador.
O autor foi violentamente marginalizado pelos escritores "bem pensantes". Por essa razão encontrou defensores do lado oposto. "Le Journal", "Eclair" e "Le Matin" o sustentaram, vigorosamente.
"Espiritualistas e científicos, dizia Denis, se estenderão as mãos, por causa dessa interpretação? Pelo menos é uma oportunidade que se lhes oferece, apresentando lhes essa nova tese."
Notou-se que "A Verdade sobre Joana D'Arc" havia tido alguma repercussão, porém, foi em 1912, quando o livro reapareceu com novo título , que obteve inesperados elogios de um alto professor universitário: Desdevizes du Désert, então decano da Faculdade de Letras de Clermont-Ferrand.
Em um magistral artigo de alta crítica, publicado no "Lien", órgão dos "crentes livres", ele apreciava a obra com uma serena imparcialidade.
"Os Orléans de 1429 - escrevia ele - viram em Joana uma santa enviada por Deus, um anjo salvador; os ingleses quiseram que ela fosse uma bruxa. Apesar de toda a nossa vaidade moderna, ficamos limitados a essas duas opiniões primitivas, um pouco modificados."
Fazer da boa Lorena, robusta e valente, de juízo perfeitamente sadio, uma histérica é fora do mais elementar bom-senso. A explicação do escritor espírita é ainda a melhor que pode explicar "suas vozes".
Quanto ao processo, o eminente crítico afirmava que:
“O julgamento iníquo do tribunal eclesiástico pesa igualmente sobre a Igreja, a coroa da Inglaterra e a coroa da França”.
Foi, acrescentava ele, um belo processo da Inquisição, igual a tantos outros.
O mais odioso do processo não foi a fogueira e sim a abjuração arrancada de Joana pelo terror e mais tarde falsificada.
O mais sublime da história da "Donzela" foi a retratação, foi a retomada de consciência, após um instante de fraqueza, foi a coragem com a qual ela exclama diante da fogueira: "A voz me disse que era uma traição abjurar. A verdade foi que Deus me enviou. O que eu fiz, está bem feito."
O professor assim terminava:
"Aí está porque Joana nos deve ser tão cara: é que ela não admitia nenhum intermediário entre ela e Deus; certa de tê-lo consigo, enfrentou o mundo inteiro unido para a sua condenação."
Não é uma brilhante confirmação do que Léon Denis escrevera?
Quanto à segunda parte da obra, referente às "mensagens", o crítico respeitava, sem querer discutir esses fatos que não interessavam à História, porém, assinalava as páginas de "Jerônimo" sobre o futuro da Igreja, "que são certamente, as mais elevadas e mais nobres do livro." Terminava sua conclusão com uma firmeza perfeita, onde ele opunha a obra do escritor espírita à de Anatole France sobre o mesmo tema:
"A obra de Anatole France está aí para demonstrar a impotência radical do criticismo irônico para compreender o heroísmo e o ideal; e sejam quais forem os exageros dos místicos, é a eles que cabe louvar aqueles que foram grandes pela alma, pelo desinteresse e pela virtude.
Por estranho que possa parecer, por certos aspectos, o livro do sr. Denis é um belo e bom livro, como o livro do sr. Anatole France é um livro mau e feio."
Isto é que é falar claro.
Todavia, houve uma coisa que os críticos não destacaram suficientemente: foi o cuidado carinhoso do autor ao nos apresentar um retrato físico e moral tão real quanto possível, só lhe faltando falar. Para tanto, de nada se esqueceu. Não consultou apenas os textos, como um bom historiador, porém, quis impregnar-se na medida do possível, do ambiente no qual se escoou a curta vida da "Donzela".
E foi a Domrémy que ele se dirigiu, inicialmente.
"Filho de Lorena e, como Joana, nascido no Vale do Mosa, minha infância foi embalada pelas lembranças que ela ali deixou.
Já homem, quis seguir, através da França, as pegadas de seus passos. Repeti a dolorosa caminhada, quase que etapa por etapa. Não ficou lugar algum, por onde ela houvesse passado, que eu não tivesse visitado para meditar, orar e chorar, em silêncio.
Como os cristãos, que percorrem, passo a passo, o caminho que conduz ao Calvário, eu segui a via dolorosa que conduzia ao suplício a grande mártir."
Deduz-se que semelhante método, e um tal amor pelo tema deram uma profunda capacidade de penetração a uma alma dessa envergadura!
Denis percorria esses sagrados lugares, tão caros a toda a alma francesa.
"Revi a humilde cabana, onde ela nasceu, o quarto com estreito respiradouro, onde seu corpo virginal, destinado à fogueira, roçou as paredes; o armário rústico onde ela guardava suas roupas e o lugar onde, empolgada, em êxtase, ouvia suas vozes; depois, a igreja onde tantas vezes orou."
A capela de Bermont, por onde Joana vinha, seguindo pela vereda de Greux; Vouthon, a aldeia natal de sua mãe, Burey, onde se encontra a casa de seu tio Durand Laxart, o Bois-Chenu mais próximo; por todos os cantos ele passou, com o coração cheio de lembranças e o espírito aberto às vozes misteriosas do Alto.
Não foi assim, com essa efusão de alma, que deveria surgir, num passeio vespertino, a primeira comunicação de Joana com seu amigo?
"O ar tremia; tudo parecia iluminado em meu derredor; asas invisíveis vibravam no crepúsculo, uma melodia desconhecida descia dos espaços, embalando meus sentidos e fazendo jorrar minhas lágrimas."
Lembramo-nos desse prelúdio na bela página que abre esse livro.
Os historiadores, os poetas e os artistas tentaram, em oportunidades diferentes, traçar um retrato fiel da "Donzela".
Tarefa difícil, já que não possuímos qualquer desenho, nem a menor pintura autêntica.
Reunindo alguns fragmentos de documentos escritos que chegaram até nós, Léon Denis conseguiu nos apresentar, aos poucos, uma imagem verossímil, bem viva, da heroína.
Quanto ao físico, temos a seu respeito dados bem precisos:
"Ela era bonita e bem feita de corpo", "robusta e incansável", "tendo boa aparência sob as armas", e um "ar risonho e olhos fáceis para as lágrimas."
Os lances do processo nos dizem que seus cabelos eram negros, curtos "em forma de tigela, de modo a formar sobre sua cabeça uma espécie de calota, parecida com um tecido de seda escura."
"Vestida de branco, menos a cabeça, trazia na mão uma machadinha e montava um corcel negro", é como nos aparece Joana, segundo as descrições da época.
Ao demais, possuía uma elegância de maneiras e uma distinção natural, de fazer admiração aos senhores e damas da Corte.
De todos os pintores e escultores que tentaram reconstituir sua imagem, apenas Barrias e Antonin Mercié agradaram a Léon Denis.
Os outros, por ignorância ou falta de compreensão, fracassaram totalmente.
O retrato moral que Denis traça de Joana D'Arc é uma obra- prima de penetração.
"O que mais nos surpreende nela não é sua tarefa heróica, embora única na História, é o caráter admirável, onde se unem e se fundem as qualidades aparentemente mais contraditórias: a força e doçura, a energia e a ternura; a previdência, a sagacidade, o espírito vivo, engenhoso e penetrante, que sabe, em poucas palavras, nítidas e exatas, resolver as mais difíceis questões e as mais ambíguas das situações.
"Era muito confortador conversar com ela", diziam as pessoas de Orléans, chamadas como testemunhas, no processo de reabilitação.
Sua existência toda foi sempre um ensinamento, porque "Joana é tão admirável em suas idéias como em seus atos. Aqueles lábios de 18 anos proferiram afirmativas que merecem figurar ao lado dos mais belos preceitos da Antiguidade."
Ingenuidade e sabedoria, humildade e altivez, ardor varonil, pureza angelical e, acima de tudo, uma infinita bondade. Ela possuía todas as virtudes.
Foi, todavia, na prisão e no correr do processo e até na fogueira que essas virtudes brilharam com um fulgor sobre-humano.
O historiador espírita, tendo seguido Joana, durante sua maravilhosa epopéia, agora a acompanha na prisão e, depois, perante o tribunal.
Sabe-se que Joana ficou, durante meses, "a mercê de mercenários brutais, estúpidos e lúbricos", que tentaram violentá-la e a espancaram; que Stafford e o miserável Loyseleur buscaram comprometê-la.
"Pensemos nos horrores de semelhante situação, em seus pensamentos de mulher, nos receios dessa virgem, exposta a todas as surpresas, a todos os ultrajes a uma contínua privação do repouso e do sono, que lhe quebrantavam suas forças, no meio de ansiedades e incessantes agonias.
Como suportar semelhantes provações, sem a assistência fiel de seus amigos invisíveis, que ela denomina como seus "irmãos do paraíso"?
São eles que lhe dão as forças necessárias e a sustentam nessa hora extrema.
Depois, Denis nos mostra Joana diante do Tribunal do Santo Ofício:
"De um lado, tudo quanto o espírito do mal pode destilar de negra hipocrisia, astúcia, perfídia e ambição servil. Setenta e um padres e doutores, fariseus de coração insensível, todos membros de igreja, porém, para os quais a religião é apenas uma máscara para encobrir ardentes paixões: a cupidez, o espírito de intriga e o fanatismo radical.
Do outro lado, sozinha, sem apoio, sem conselheiro e sem defensor, uma menina de 19 anos, inocente, a pureza encarnada, uma alma heróica num corpo de virgem, um coração sublime e terno, pronto a todos os sacrifícios, para salvar seu país, cumprir com fidelidade sua missão e dar o exemplo da virtude, dentro do dever."
As páginas que Léon Denis consagra à prisão, ao processo e ao suplício são nítidas, incisivas, vingadoras e pungentes, como imagens gravadas em água-forte.
Uma bela luz ardente e serena ali se projeta, emanando um profundo tom de nobreza e de verdade.
Se a memória da Lorena ficou por muito tempo mergulhada em pérfidas sombras, agora se eleva ao seu verdadeiro lugar, que é o da glória imaculada.
"A justiça foi demorada para ela, mas, finalmente, surgiu, brilhante, absoluta e universal."
Será preciso relembrar aqui as singulares apreciações e os ultrajes de jornalistas e de universitários franceses, cegos pela paixão política e religiosa?
Não devem, hoje, envergonhar-se das ímpias palavras saídas outrora de sua pena imprudente?
Léon Denis lhes disse o que pensava deles.
Não apenas alteraram a verdade histórica conscientemente, porém, cometeram, como franceses, uma ação muito vil.
Deviam ler, para se conscientizarem, os autores estrangeiros, em particular os ingleses: Richard Green, Carlyle, John Stirling, Andrew Lang e Bernard Shaw.
Quanto ao seu próprio livro, pode-se afirmar que ele completa admiravelmente os de Michelet, Henri Martin e Lavisse, não quanto a aspectos da História, que não eram de sua obrigação, mas sobre a interpretação de fatos relativos ao milagre.
Esta interpretação tem algo semelhante com a tese católica, mas é, certamente, menos radical.
De qualquer forma, é a mais completa que se possa dar e a mais verossímil.
"Somente vós - escrevia-lhe Albin Valabrégue, depois da leitura de seu livro apresentastes Joana D'Arc em sua verdade total."
Não há sequer um admirador da boa Lorena que não subscreva tal julgamento.
Não é um fato significativo ver-se hoje os ingleses homenagearem aquela que, no passado, queria "enxotá-los para fora da França"?
Os descendentes dos bretões, em particular, os reconheceriam um parentesco espiritual do rei Artur com Joana D'Arc, a Velleda Lorena?
Será isto um novo milagre, um alma céltica?
Não obstante os desentendimentos passageiros, mais aparentes que reais, a fulgurante glória de Joana D'Arc trabalhou pela reaproximação de dois grandes povos, destinados a se entenderem e a se unirem numa tarefa civilizadora comum e também o radioso arcanjo, mais do que nunca vivo e atuante nos planos superiores da existência, se dedica, assegura-nos o Mestre, a desarmar os tolos ressentimentos e a acalmar os corações furiosos dos homens.
"Por que eu odiaria os ingleses? disse ela, em uma de suas mensagens; eu lhes devo uma bela coroa de luz." Assim, Jehanne de Domrémy continua sua missão de mediadora acima de nossas paixões e de nossas disputas, geralmente tolas ou imprudentes.
Escrevendo esse livro irradiante de fé espírita, Léon Denis só vislumbrava um objetivo: basear-se nos testemunhos históricos para refazer a verdadeira e sublime imagem da Santa da Pátria.
Devemos à sua filosofia tão humana, tão compreensiva e tão prudente uma obra profunda e de uma beleza que não será jamais ultrapassada.
O CONGRESSO DE BRUXELAS
No Congresso Espírita Universal, que se realizou em Bruxelas, de 14 a 18 de maio de 1910, Léon Denis foi convidado simplesmente como delegado da França e do Brasil. Todavia, o presidente, o Cavaleiro Le Clément de Saint-Marc, fez questão de saudá-lo, na sessão de abertura.
"Dirijo nossas saudações de boas vindas à delegação da França, tão numerosa e, ao mesmo tempo, tão bem selecionada. Estou particularmente orgulhoso por citar, em primeiro lugar, o sr. Léon Denis, ilustre escritor espírita, que tanto tem feito com suas obras para a divulgação de nossa Doutrina.
Aproveito a ocasião para lhe manifestar aqui o testemunho de nossa admiração por seus trabalhos, para lhe dizer quanto nos tem ajudado em nossos estudos. Outrossim, trazendo todo o bem que eu mesmo experimentei e pela propaganda espírita de que em nosso próprio país estamos tão necessitados."
Léon Denis agradeceu num improviso encantador, saído de seu coração de apóstolo, expondo, informalmente, novos pontos de vista, profundos e originais, a propósito das questões postas em estudo.
Nesse Congresso, tratou-se especialmente do Magnetismo, da ciência psíquica e psicósica.
Durante o Congresso, o Kardecismo foi deixado um pouco na penumbra.
Discorreu-se, é verdade, sobre o papel do sentimento no Espiritismo, porém, de forma tímida. Entretanto, a questão do ensino e o papel educador da mulher ali foram tratados com uma certa profundidade.
A organização do Espiritismo, tão deficiente ainda e o problema da mediunidade, sobretudo da experimentação, atraíram a atenção geral.
A maior parte das proposições apresentadas nas sessões se referiam a essas importantes questões.
Léon Denis, por sua vez, fez aprovar a seguinte sugestão:
"O Congresso Espírita Internacional de Bruxelas, preocupado com as numerosas fraudes produzidas no decorrer das sessões realizadas na obscuridade, realizadas por médiuns profissionais; preocupado com o prejuízo moral que causam à nossa Doutrina:
Convida os Grupos de Estudo e os experimentadores que pesquisam os fatos físicos, os "apports" e os fenômenos de materialização, a só realizarem as sessões na obscuridade ou semi-obscuridade sob condições de rigoroso controle;
Essas condições serão ulteriormente fixadas pela Comissão Nacional;
O Congresso dirige, além disso, um caloroso e urgente apelo aos médiuns honestos e desinteressados e lhes pede para redobrarem o zelo pelo serviço de uma verdade sagrada, verdade comprometida por simuladores desavergonhados, que não receiam em assumir as mais pesadas responsabilidades e se candidatam a amargas decepções no Além. Lembra-lhes que, se a patifaria merece uma justa e severa reprovação, em compensação, o devotamento e a sinceridade lhes proporcionarão a estima e o reconhecimento de todos os espíritas, além da assistência das altas inteligências invisíveis, que velam pelo progresso de nossa crença no mundo."
Em 17 de maio, na sessão da noite, Léon Denis proferiu um de seus mais notáveis discursos: "A Missão do Século XX".
Dessa bela demonstração de eloqüência, achamos uma apreciação entusiasta em Revue Spirite, de 19 de junho, sendo o mesmo assunto apresentado na Sala dos
Agricultores, Rua de Atenas, diante de um numeroso público.
"Apesar da grande concorrência de um sol brilhante, anunciador da primavera, já de há muito esperado, a conferência foi um sucesso inesquecível.
Os que tiveram o privilégio de ouvir o prestigioso orador se recordarão sempre daquela festa de almas, na qual o Apóstolo do Espiritismo, numa linguagem soberba, elevou, nas asas de sua inspirada eloqüência, seu auditório aos mais altos cumes do pensamento humano ..."
"A multidão, presente para ouvi-lo, comprimida, com sacrifício, na sala da Rua de Atenas, multidão onde se acotovelavam, numa mistura verdadeiramente democrática, todas as classes da sociedade, magistrados, advogados, médicos, artistas, etc... sob a vibração da palavra do Mestre, melodioso eco das harmonias do Além, como o "stradivarius" sob o arco de um Paganini ...
As grandes Entidades acorrem de todas as partes, para dar aos homens provas de sua existência e de sua amizade; tomam a direção do formidável movimento que se prepara; as manifestações do mundo invisível se multiplicam por toda a parte e assistimos às primeiras oscilações do pêndulo que deve marcar o ritmo dos novos tempos.
Durante uma hora e meia, Léon Denis desenvolveu esse tema e com que arrebatamento, magnificência de linguagem e abundância de imagens impressionantes!
A assistência inteira, presa aos lábios do orador, como que galvanizada pela beleza e elevação de seu verbo inspirado, vibrava de entusiasmo e interrompia com "bravos" frenéticos a profunda impressão experimentada." A carreira do propagandista acabara com esse brilhante sucesso. Léon Denis tinha 64 anos e lembremos que seu primeiro discurso data de 1873.
POLÊMICA PAUL NORD
Após o Congresso de Bruxelas, o autor de "A Verdade sobre Joana D'Arc", recém-publicada, ficou doente, por alguns meses, bastante deprimido.
Todavia não faltava trabalho. Provocado pela crítica, ia ser envolvido, contra sua vontade, numa polêmica ruidosa. Ele era invejado, há muito tempo, por causa de sua popularidade que se alastrava rapidamente, popularidade que não havia procurado, contentando-se em ser um servidor modesto da Causa Espírita.
Já em 1907, um debate começado em "La Tribune", órgão da Sociedade Francesa de Estudo dos Fenômenos Psíquicos, dirigida, então, por Chartier, havia se desvirtuado para fins políticos. Léon Denis, interpelado, a contra gosto, pôs um paradeiro à discussão.
"Não mais responderei a novos ataques. De início, tenho coisa melhor para fazer. Depois, esses debates têm mais é política, me parecem totalmente estéreis, saindo do objetivo da "Tribuna".
Por princípio, o Espiritismo se dirige a todos e deve permanecer fora dos partidos, não se apegando a nenhum. Se eu abordei a questão social, foi unicamente do ponto de vista filosófico, mas logo a discussão escorregou para um terreno perigoso.
Creio que seria prudente encerrar." Era o próprio bom-senso.
Eis que, porém, com três anos de intervalo, os mesmos aborrecimentos se repetiam, não mais de caráter político, mas, mesmo assim, desagradáveis para o apóstolo espírita.
Quem os provocava e assinava com o pseudônimo de Paul Nord era um jovem escritor espiritualista, filho de um amigo de Léon Denis, e recém-formado pela Universidade. Tinha talento, ardor e ambição.
O Mestre havia sido dos primeiros a esclarecer seu caminho e guiá-lo na rota que pretendia seguir.
Com esse objetivo, uma correspondência bastante ativa tinha sido trocada entre eles, tendo o neófito acolhido com respeito os conselhos do mais velho. Rapidamente, porém, revelou seu gosto pelas inovações. Acabava de sustentar, brilhantemente, em "L'Essor Moderne", uma tese bastante engenhosa, da qual ele era o protagonista e que se intitulava "O Universalismo", quando seu ardor um pouco precipitado o pôs em conflito com o filósofo espírita.
Já em seus comentários sobre a precedente conferência de Léon Denis ele o havia tratado um pouco rudemente e escrevia:
"A base do conhecimento, como disse Pitágoras, há muito tempo, é a lei dos números, que o sr. Léon Denis desconhece inteiramente. É o plano limitado entre o relativo e o absoluto, entre o finito e o infinito. Tudo são números e fórmulas de números, até mesmo e principalmente nossos mais sutis pensamentos e tudo quanto nos ultrapassa.
O futuro o comprovará. É a verdadeira língua universal. É o último substrato atrás do qual a matéria oculta o espírito.
O valor do Espiritismo, das ciências psíquicas, reside precisamente em seu colorido positivo".
Léon Denis estava, portanto, formalmente acusado de apresentar o Positivismo de uma forma errônea.
Que era o Universalismo ou Panmonismo? Demos a palavra ao autor:
"Há verdades comuns a diversas doutrinas, como há sínteses parciais. Todavia, só há uma verdade central universalista, como só há uma síntese integral.
Uma síntese, mesmo espiritualista, não é a síntese universalista que reconcilia os materialismos e os espiritualismos na unidade da verdade.
A empresa, vê-se, era bastante audaciosa. Digamos que ela era prematura. É desejável que se concretize uma tal síntese, mas é preciso dar tempo ao tempo.
Léon Denis pensava, com alguma razão, que ainda estamos longe da época da ciência integral. A juventude, contudo, dificilmente se acomoda a essa espera forçada e quer ultrapassar as etapas, acreditando chegar mais cedo ao alvo.
Desde 1906, num artigo intitulado: "Da Juventude para Léon Denis", Paul Nord conclamava o Mestre para aceitar, voluntariamente, essa verdade fundamental, que se avistava agrupando todas as verdades parciais, procurando "um campo de entendimento entre materialistas e espiritualistas."
Léon Denis havia respondido, manifestando suas formais reservas. Unidade de substância? Pode ser, mas, quanto a concluir desses fatos que a força se torna inteligente, em um determinado momento de sua evolução, vai grande distância. No momento, é uma simples hipótese. Para nós, entre o ser e o não-ser, há uma diferença de essência.
Contudo, Paul Nord, aproveitando-se de certas passagens do último livro, O Problema do Ser e do Destino, pretendia, de qualquer forma, envolver o Mestre em suas fileiras do Panmonismo.
Na falta de argumentos, tentava convencer o escritor espírita que ele, Léon Denis evoluía, sem perceber, cada vez mais, para o Universalismo, e que, realmente, ninguém era mais universalista do que ele.
"Que importa, pois, Léon Denis não se confessar universalista, se suas idéias o comprovam."
Vemos que Paul Nord o atacava fortemente.
Numa carta datada de 5 de abril de 1911, publicada no mês seguinte, Léon Denis protestava, formalmente, contra esse pretenso envolvimento.
"Universalista é, no meu entender, um termo bastante vago, nebuloso, que não chega a nenhuma conclusão a não ser à tolerância e à benevolência. Se eu sou universalista, dizia Denis, bem humorado, é da maneira como Jourdain .fazia prosa, sem o saber."
Em junho, no número seguinte, sempre na Revue Spirite, Denis completava suas observações.
"Quando, em 1906, animei Paul Nord em seus primeiros ensaios, jamais pensei que, 5 anos depois, ele me classificaria no rol de seus "discípulos".
O jovem escritor não encontrará, em parte alguma as palavras: universo, universal e outras similares, sem logo pensar que achou seu próprio retrato."
Afinal, no número de julho, apareceu o ponto final: "As idéias, que Paul Nord reivindica, levianamente, como de sua paternidade, já eram expostas na 1á edição de meu livro "Depois da Morte", em 1891. Ora, que idade tinha o fogoso escritor naquela época? Quatro ou cinco anos, mais ou menos!
Daí, que pensar de suas alegações? Cabe ao leitor a apreciação.
No capítulo XVI dessa edição: Matéria e Força; princípio único das coisas, página 185, pode-se ler: A Ciência do futuro explorará essas profundidades e aí encontrará a solução dos formidáveis problemas da unidade de substância e das forças diretrizes do Universo.
Mais adiante, continua: Pode-se afirmar que tudo, na matéria, converge para a unidade... O estudo dos fenômenos materiais, como uma corrente infinita, de elo em elo nos conduz à concepção de uma única substância, etérea, universal, etc., etc.
O capítulo inteiro é o desenvolvimento dessa idéia.E, assim, Denis continuava citando páginas e trechos da mesma obra e de seu novo livro, que estava em vias de publicação, onde a mesma concepção era apresentada, sem qualquer equívoco possível.
Um pouco aborrecido por uma polêmica que havia durado tanto tempo, encerrava, dessa vez, a questão em termos categóricos:
"Doravante, não mais responderei às divagações de Paul Nord, pois tenho melhor emprego para meu tempo." Ao demais, a direção da Revista informava que estava decidida a terminar, em suas páginas, com as intenções bem claras de tal correspondente, desejoso de pôr em destaque suas idéias e preferências pessoais, sem levar em consideração as de seus leitores.
Foi uma decisão sábia que Léon Denis, sem qualquer dúvida, aprovou, pensando que, na falta do universalismo, o Espiritismo é bastante grande para se bastar a si mesmo.
O GRANDE ENIGMA
Pouco tempo após, aparecia seu último livro: "O Grande Enigma, com seus capítulos: Deus e o Universo, seguida da Lei Circular, As Idades da Vida e A Missão do Século XX".
"Desde o tempo de Lucrécio, que muitos ambiciosos pretenderam liberar nossas almas da tirania dos preconceitos e da angústia atávica do Tenare!
Uns aconselharam as fantasias metafísicas e outros, a sonoridade das fórmulas milagrosas.
Léon Denis tem sua receita. Ela é eficiente e antiga. É a bondade e o amor.
Poder-se-ia desdenhar dessa Metafísica apaixonada, se a vida de Léon Denis não oferecesse por si mesma a comprovação mais brilhante dessa calorosa e estóica doutrina.
Entre os Pascal insatisfeitos, na busca da indecifrável solução do Grande Enigma, Léon Denis tem todo o fervor altivo de um Bossuet e a persuasão docemente obstinada de um Fénelon."
É com esses termos, que J.J. Brousson apresentava o livro em "Le Matin" de 14 de julho de 1911.
Certamente era uma receita antiga e bem feita, para provocar o sorriso dos incrédulos, porém, isso pouco importava ao nosso bom filósofo:
"Deus e o Universo ... Onde e como sonhei escrever este livro?
Era numa tarde de inverno, quando passeava pela costa azulada da Provença. O sol se deitava sobre o mar tranqüilo; seus raios dourados, estendendo-se sobre as ondas mansas, iluminavam o alto das rochas e dos promontórios, com suas cores vivas, enquanto a lua subia na imensidão sem nuvens.
Havia um grande silêncio envolvendo todas as coisas
E uma voz me disse: - Publica um livro, que nós te inspiraremos, um pequeno livro que resuma tudo quanto a alma humana deva conhecer, para se orientar na vida; publica um livro que demonstre a todos que a vida humana não é uma coisa vã que se possa viver, levianamente, porém, que ela é uma luta para a conquista do Céu, uma nobre e grave obra de edificação, de aperfeiçoamento, uma obra que dirija as leis augustas e eqüitativas, acima das quais paira a eterna Justiça, amenizada pelo Amor. (*)
Nessa base, se encadeiam os capítulos desse livro, que é um hino de adoração ao Eterno.
Deus - o Universo - o Livro da Natureza. Existe uma finalidade, há uma lei, no Universo?
Se a inteligência existe no homem, ela deve encontrar-se nesse Universo, do qual ele faz parte integrante. Quem, pois, governa os mundos, a não ser Deus, a Suprema Inteligência?
Onde encontrar, noutra parte, a fonte dos três elementos: substância, força e inteligência, de cuja união se constitui a vida universal?
São questões que o autor tentará resolver.
Contudo, a existência de Deus não se demonstra como um teorema da Geometria: concebe-se.
Qual é a concepção de Léon Denis?
"Deus se manifesta pelo Universo, que é sua representação sensível, porém, não se confunde com ele.
Da mesma forma como persiste em nós a unidade consciente, o eu permanece no meio das transformações do Universo e da incessante renovação de suas partes, também subsiste o ser imutável que é a alma, a consciência, o eu que anima e transmite o movimento e a vida."
Não é nos templos construídos pelos homens que devemos buscar Deus, mas na Natureza, que é um eterno templo e para além da Natureza visível, no Universo prodigioso que o Espírito nos revela, à medida que ele ganha em força e em elevação.
Esse Universo Léon Denis nos apresenta em sua unidade substancial, que as mais modernas hipóteses científicas buscam demonstrar.
Nesse Universo, cujo centro vivo é Deus, nós nos encontramos, "em relação íntima que liga a causa ao efeito".
"O Espírito universal se manifesta na Natureza e o homem é, na Terra, a mais alta expressão da Natureza. A prova é que, cada vez mais, ele a domina e a coloca a seu serviço.
Nascidas de Deus, todas as almas são irmãs.
Da paternidade divina decorre a fraternidade humana.
É neste sentido que se explica a afirmativa que o Apóstolo atribui ao Cristo: "Vós sois deuses."
E o escritor desenvolve, com seu ardor costumeiro, o tema tão belo da solidariedade e da comunhão universal. São essas harmonias do Espaço que lhe fazem sentir Deus. É "pela música, linguagem divina" que ele ouve, como Pitágoras, os concertos divinais.
Denis cita o exemplo de Beethoven, que tentava reproduzir, num estado de arrebatamento inusitado, a música divina que o inebriava e o arrebatava.
"Tudo nos fala de Deus: o visível e o invisível. A inteligência o percebe e a razão e a consciência o proclamam."
O homem, porém, é capaz de amar e o que o caracteriza é o sentimento, emanado do coração.
"O sentimento é um privilégio da alma." Em nós ele está, como íntimo refúgio, como uma fonte profunda, de onde podem jorrar ondas de vida, de amor, de virtude e de luz".
É nessa fonte que convém nos abeberarmos para conceber o Ser Supremo.
Também, a experimentação psíquica, quando bem orientada, nos conduz a Deus, porém, é preciso precatares contra o orgulho.
"Desde que a idéia de Deus abandona a alma, a noção do eu logo se expande." Daí a necessidade da humildade e da eficácia da prece.
Os homens modernos não querem Deus, nem Mestre. Que se acautelem, adverte Denis, pois que pode acontecer muito cedo a previsão de Voltaire: "O ateísmo e o fanatismo são os dois pólos da confusão e do horror."
Não há ideal sem Deus, porque Deus é a Perfeição realizada.
O autor retoma uma de suas idéias familiares.
A ação divina, negada por tantos homens, se manifesta de uma forma permanente na História.
Pode-se seguir, através do tempo - grandioso quadro! - esse impulso da Humanidade para o Bem, para o melhor, apesar dos desfalecimentos, dos inevitáveis recuos, frutos de seus erros e de seu estado de inferioridade.
"O que comprova, de forma brilhante, a intervenção de Deus na História é o aparecimento, no tempo certo e nas horas solenes desses missionários que estendem a mão aos homens e os reconduzem no caminho perdido, ensinando-lhes a lei moral, o amor pelos seus semelhantes, dando-lhes o grande exemplo do próprio sacrifício pela causa de todos ...
Em vão se colocam em seu derredor as forças e os patíbulos. As fogueiras se acendem. Eles marcham, de fronte erguida e de alma serena. Qual é, pois, o segredo de sua força? Quem os impele para frente, a não ser a mão de Deus?"
A segunda parte da obra é consagrada à Natureza, nos espetáculos sublimes do Céu estrelado, do Mar, da Floresta e da Montanha, o autor reconhece a presença divina, decifra a palavra do enigma, entende a suprema lição que o Criador dá à criatura: amar.
Ele descobre o segredo da verdadeira poesia da vida, feita com o eco íntimo da suprema harmonia do Cosmos em nossos pensamentos e nossos sentimentos.
Aí, então, seu cantar se torna um hino, hosanas sublimes, uma elevação serena. Seu coração transborda de alegria e de sua alma flui, espontaneamente, a prece, que não é um balbuciar mecânico, porém, verdadeiramente, uma projeção do ser rumo a Deus, sua fonte e seu fim.
A terceira parte trata da Lei Circular, da Palingênese e da Missão do Século XX. Uma síntese doutrinária e prática, sob forma de questionário, um catecismo espírita, de alguma forma que, acompanhada de notas complementares bem elaboradas, concluem esse bom e belo livro, muito inspirado, onde o pensamento do Mestre, sem deixar de ser firme em suas bases, alcança, sem esforço, a mais rica e mais intensa poesia.
O "Journal des Débats" apresentava a obra nos seguintes termos:
"Neste livro, de uma rara elevação dalma e de sentimentos, Léon Denis propõe uma nobre e sedutora explicação do destino humano.
É um espírito pleno de altas aspirações o que ele expressa com eloqüência.
Sua doutrina, amplamente espiritualista, está exposta com muita poesia. Não discutiremos sua tese. Basta-nos assinalar que é um livro generoso, elevado e sincero.
Basta contentar-se em repetir o que proclamamos, em cada página lida: Não há nada mais verdadeiro, mais belo e melhor!"
Esta elogiosa apreciação do Coronel Collet resume, admiravelmente, a impressão que cada leitor de boa fé sente, meditando sobre essas páginas.
AS BROCHURAS DE DEFESA
O notável sucesso obtido com o primeiro opúsculo: "O Porquê da vida" tinha animado seu autor a prosseguir na propaganda dessa forma comprovadamente prática e pouco custosa para o leitor. O título desperta a curiosidade; o preço barato anima o leitor a comprar uma semelhante publicação.
"O Grande Enigma" foi depois seguido de uma pequena brochura, com capa cor de rosa e umas trinta páginas, trazendo a "RESPOSTA DE UM VELHO ESPÍRITA A UM DR. EM LETRAS, DE LYON".
Uma ofensiva, em grande estilo, estava lançada contra "a nova heresia" pelo clero católico.
Por meio das pregações, das conferências, de artigos em jornais neutros, tentava-se atingir, por todos os meios, a doutrina incômoda e odiada.
Um violento ataque acabara de ser publicado, em Lyon, contra o Espiritismo e a resposta não se fez esperar.
O velho espírita, adivinha-se, era Léon Denis.
Essas manifestações de mau humor que surgiam em diversos pontos, simultaneamente, não pareciam espontâneas.
"Dir-se-ia que uma ordem fora dada e que algumas pessoas receberam ou pretenderam ter a missão de iludir a opinião e a consciência do público a nosso respeito.
Sua brochura de boa apresentação e de fácil leitura, tem a infelicidade - dizia o velho espírita - de ser apenas uma compilação eclética e apressada, composta de trechos isolados, tirados, aleatoriamente, de revistas ou de opúsculos mais ou menos sérios e, além disso, enxertados de histórias provavelmente copiadas de almanaques populares ou de páginas de jornais humorísticos."
Tentava-se, nessa época, atingir o Espiritismo pela ridicularizarão. A publicação era endossada pelo Cardeal Arcebispo de Lyon e podia ser assim resumida: Satã é a alma do Espiritismo e todos os espíritas têm o diabo no corpo. Era um tema já bastante conhecido.
Léon Denis não tinha dificuldade em contestar a improcedência dessas afirmativas; publicava, ao lado, o Credo Espírita, que não está tão distante do Credo da Igreja, como, aliás, ela procura argumentar.
Acompanhando, passo a passo, as declarações de seu adversário, o "Velho Espírita" destruía as afirmações gratuitas e os pretensos erros.
O "Dr." pretendia comprovar que os fenômenos espíritas não tinham nenhuma causa natural, nem científica. A Igreja, mais tarde, fez algumas concessões.
Os testemunhos dos sábios, naquele tempo, já eram reconhecidamente fortes contra semelhante maneira de ver. O Dr. em Letras, tendo citado um texto de São Tomás de Aquino, dele se aproveitou Denis para um sólido argumento:
- Quando os mortos aparecem - disse o Doutor Angélico - trata-se de suas aparências, de seus fantasmas, postos em movimento por Espíritos ou formados no pensamento do vidente.
"Pois toda a Doutrina Espírita está inserida nessas poucas palavras".
E colocou seu contraditor em posição insustentável, apresentando-lhe uma passagem típica de Monsenhor Chollet, bispo de Verdun, que escrevia em La Contribution du Occultisme à 1'Anthropologie.
"Pensamos que não devemos aceitar como ação dos demônios os fatos do Ocultismo e que, se essa ação ali se manifesta, só raramente acontece."
Sutilmente, o "Velho Espírita" ajuntava: "A verdade é que católicos importantes, em todas as classes da sociedade, são espíritas. Numerosos padres e religiosos, que estudam essa Ciência, assistem às reuniões e declaram abertamente sua simpatia pela Doutrina."
Denis citava ilustres prelados: o Cardeal Brossais Saint- Marc, o Cardeal Perraud, Lacordaire, o padre Didon, que se interessavam por essa Doutrina e se dedicavam ao Espiritismo Experimental.
Após ter demonstrado que os livros sagrados, os escritos dos Pais da igreja e a vida dos santos se relacionam com o autêntico Espiritismo, Denis assim concluía:
"Os futuros teólogos ficarão bem à vontade para recorrer às nossas descobertas, a fim de amparar o frágil espiritualismo das Igrejas e poderem contestar as doutrinas materialistas; será em nosso arsenal que eles se abastecerão dos elementos para uma nova posição teológica, no século XX.
Sem dúvida, um católico ignorante, rotineiro e tímido, não aceitará isso; todavia, um cristão instruído, atento, predisposto por sua cultura intelectual e moral às revelações do Invisível e de suas leis, longe de ver no Espiritismo um inimigo de sua crença, nele encontrará o complemento racional e necessário de sua fé, o "obsequium rationabile", de que fala São Paulo."
Posicionando, uma vez por todas, a Doutrina Kardecista, acrescentava, estas corajosas declarações:
"As religiões decadentes estão inquietas; temem que o Espiritismo procure suplantá-las.
Os príncipes da Igreja se perturbam, mas se enganam.
Não sonhamos fundar um novo Evangelho, certos de que o de Jesus nos basta.
Somos uma Ciência e uma Fé.
Como fé, pertencemos ao Cristianismo, mas não a esse Cristianismo desfigurado, encolhido e amesquinhado pelo fanatismo, pelo misticismo próprio dos corações sofridos e pelas pobres almas, porém, à religião de Jesus, àquela que adora e que ora, em Espírito e em Verdade."
No ano seguinte, a campanha recomeçava disfarçada e tendenciosa. A luta começara por certos jornais de Paris e do interior. Tentava-se, nada menos, que fazer passar os espíritas como malfeitores públicos.
Tendo um funcionário se suicidado em Laval, acusaram os Grupos Kardecistas daquela cidade de terem induzido o infeliz, quando se tratava, na verdade, de uma dificuldade de carreira, que ele não soubera vencer.
"Do fato de terem encontrado em sua biblioteca um ou dois volumes espíritas, concluiu-se que eram exatamente essas leituras que o haviam conduzido ao suicídio.
Eis a lógica, eis a equidade de nossos adversários", escrevia Léon Denis.
É bom acrescentar que um Grupo Espírita.
A palavra de ordem tinha partido de Lyon, inicialmente; depois, de Nancy. O Monsenhor Turinaz acabara de publicar em sua "Nota":
"Uma grande parte das doutrinas do Espiritismo é contrária à fé; algumas são formalmente condenadas pela Igreja; todas são perigosas."
A acusação estava clara. Não se tratava mais, como antes, de uma disputa sobre princípios.
O bispo de Nancy destacava, em sua "Nota":
"que as práticas do Espiritismo perturbam a imaginação, impressionam os espíritos, exaltam a sensibilidade nervosa e produzem uma deplorável excitação, que leva, por vezes, à loucura.
o "Velho Espírita", novamente, puxa da espada, porém, dessa vez o duelo devia ser mais ferrenho:
"A Igreja faria bem em pensar duas vezes, antes de lançar suas condenações contra pessoas honestas, bons e leais operários da Verdade, que buscam somente levar sua modesta contribuição para o edifício intelectual do futuro."
O bispo não nos diz nenhuma novidade, respondia Denis.
Os perigos da experimentação estão assinalados nas principais obras do Kardecismo.
"Entretanto, acrescentava Denis, poderíamos citar mais de um caso de loucura religiosa, de histeria mística que causaram retumbantes escândalos ...
Quando, faz alguns anos, uma devota, acostumada à confissão e à comunhão, assassinou, em condições espantosas de lucidez e premeditação, o sábio e piedoso
Abade de Broglie, uma das glórias do clero francês, nunca nos veio à mente, a nós espíritas, utilizar semelhante fato contra a Igreja!
E ajuntava, sabiamente:
"Sabemos que, neste mundo, o homem abusa de tudo, mesmo das coisas mais sagradas. O Espiritismo tem seus embusteiros e os seus exaltados, como a Ciência tem seus charlatães e como a Religião tem seus impostores."
O eminente prelado fazia, também, alusão, em sua "Nota", às trapaças de certos médiuns:
"Fomos os primeiros a desmascará-los, solenemente, respondeu o "Velho Espírita", com o risco de contrariar certos admiradores cegos e descontentar meus melhores amigos: Amicus Plato, sed magis amica veritas!"
Na "Nota" do bispo, se dizia que grande número de manifestações espíritas, que pareciam maravilhosas, foram explicadas muito naturalmente e que muitas o seriam ainda.
"Assim o esperamos, respondia o "Velho Espírita", não temos, como a Igreja, a pretensão de manter, eternamente, a noção do mistério e do milagre."
Mas os espíritas negam o Inferno?
"Não, não o negamos, nós o explicamos ...
Onde, então, o nosso erro? Na noção das reparações, no Além. Não concordamos com os dois maiores gênios católicos: Dante e São Tomás de Aquino?
Quanto à noção do Inferno, tal como ensinam os Catecismos, nós a repelimos como infantil, ridícula e odiosa."
Léon Denis citava uma página sinistra, extraída do livro de Albert Denis, sobre: "Os Processos de Feitiçaria, em Toul, nos séculos XVI e XVII":
"Poderíamos multiplicar as lamentáveis citações. Aí está o que a Igreja produziu no mundo, com sua teologia do Diabo e o dogma do Inferno ... O de Dante, com suas trágicas paixões e seus grandiosos suplícios, é uma concepção sublime; mas o Inferno ridículo que a Igreja inventou foi apenas um Sabá obsceno e idiota."
A neurose satânica reinou no mundo até à Revolução Francesa. Não foi por sua causa que Joana D'Arc foi queimada? Depois foi reabilitada e canonizada numa reparação tardia e insuficiente para um crime inominável.
Denis concluía sua defesa, aconselhando a certos padres moderação e humildade, embora estes nunca lhe perdoassem a advertência:
"Tudo se resgata neste e no outro mundo; nada poderá impedir que a Justiça siga seu curso.
A História é fecunda em retornos instrutivos e severos e a perseguição que a Igreja Católica hoje sofre no mundo não é mais do que a cobrança do passado. O ódio é, geralmente, a colheita habitual dos que não semearam o amor ““.
O ALÉM E A SOBREVIVÊNCIA DO SER
Ao mesmo tempo, um outro opúsculo foi lançado à venda, não mais para defesa, porém, para estudo: O Além e a Sobrevivência do Ser.
Era uma nova contribuição ao Espiritualismo Experimental, um complemento às duas volumosas obras já publicadas: No Invisível e O Problema do Ser.
Uma a uma, as objeções da Ciência oficial ali estavam refutadas, por meio de novos testemunhos que acabavam de ser registrados, em diversos lugares, na Europa e na América.
Enriquecido com fatos novos e, na maioria, inéditos, o pequeno volume de 64 páginas, escrito num estilo claro, rápido e atraente, apresentava ao leitor, numa sugestiva seleção, um quadro exato da sobrevivência. O tempo não esgotou seu sucesso.
O CONGRESSO DE GENEBRA
Foi a Sociedade de Estudos Psíquicos de Genebra que se encarregou de organizar, em 1913, o Segundo Congresso Espírita Universal.
Instalou-se, a 10 de maio, sob a presidência de Ch. Piquet, que dividiu a tarefa com Léon Denis e Gabriel Delanne.
O árduo trabalho de secretário-geral foi confiado ao ativo e devotado Pauchard, cuja dedicação à Causa é conhecida de todos.
O casal Peebles, de Los Angeles, repartia os títulos de Presidente e Presidente de Honra com o sr. L. Gardy, de Genebra e a venerável sra. Rosen-Dufaure.
Ch. Piquet apresentou Léon Denis nestes termos, numa concisão elogiosa:
"Hoje, no momento da abertura deste Congresso, é uma verdadeira felicidade para mim poder saudar o sr. Léon Denis, como presidente do Congresso para esta sessão. Não tenho necessidade de elogiá-lo ou de vos falar dele.
Seus livros, seus generosos pensamentos e toda a sua vida falam por ele."
Logo que foi feita a apresentação das delegações, o Presidente da sessão tomava a palavra para definir a situação do Espiritismo.
Estabelecia que a Ciência e a Filosofia, de início irredutíveis quanto à hipótese espírita, iniciavam, aos poucos, suas concessões, mas notava as grandes dificuldades resultantes das exigências de certos sábios.
"A Ciência acha que os fenômenos devem ser repetidos à vontade ... Ora, estamos na presença de vontades livres, independentes, e seres que interferem, se quiserem ou se o puderem, em determinadas condições.
Todavia, todos os sábios que abordaram esse estudo, sem idéia preconcebida e sem preconceito, chegaram às conclusões pregadas pelo Espiritismo.
E citava, a propósito, Oliver Lodge, cujo livro sobre a sobrevivência era muito comentado, na época; registrava com prazer a tese bergsonniana da intuição, à qual se relaciona todo um conjunto de faculdades mediúnicas.
A influência das idéias espíritas, acrescentava ele, se faz igualmente sentir nas artes e na literatura, mas é sobretudo no domínio moral e social que a Nova Revelação prossegue sua marcha e penetra no coração do povo.
"O grande mérito do Espiritismo é também ter dado mais apreço à vida e ter mostrado que ela é o instrumento indispensável à nossa elevação, ao nosso progresso, à nossa grandeza futura.
Ah! Sim, a vida nos oferece, por vezes, horas difíceis e cruéis, penosas pelas tarefas que nos impõe, cruéis pelas aflições que nos causa e pelas provas que nos faz sofrer.
Mas a vida é o instrumento que nos permite pôr em ação todas essas forças de que vos falei, há pouco, e que nos elevarão da mais miserável condição à mais elevada, à mais gloriosa, à mais feliz.
Eis o que o Espiritismo tem feito.
Ele transformou a vida numa coisa sagrada, mostrando seu fim nobre e generoso, seu fim sublime.
É, pois, pela via moral que o Espiritismo triunfa, tanto quanto, pela experimentação científica, mas os progressos são lentos. É preciso ter paciência.
Foram precisos 400 anos para o pensamento do Cristo perfurar a dura couraça do materialismo e do paganismo romano.
Foram precisos 500 anos para a vida de Joana D'Arc sair da sombra acumulada sobre sua memória e mostrar, ao pleno dia, todos os grandes exemplos, todos os nobres ensinamentos de que está repleta a sua vida.
Será preciso também ao Espiritismo muito tempo para se expandir e apresentar seus frutos."
Esses tempos, porém, chegarão, com força, saudando a futura grandeza da obra de regeneração empreendida.
A ordem do dia da sessão inaugural tinha por finalidade o estudo e a discussão do "Papel do Espiritismo na evolução religiosa da Humanidade". Era uma questão espinhosa e, sem dúvida, prematura.
O último orador inscrito, sr. Philippe, advogado na Corte de Apelação de Paris, acabara de demonstrar, com talento, que o Espiritismo não poderia ser uma religião, quando o sr. Albin Valabrègue lhe objetou que seu ponto de vista pessoal não podia, por si só, enquadrar todos os espíritas.
Léon Denis, por sua vez, interferiu.
Após ter esboçado o problema da origem das religiões, depois de retratar em grandes pinceladas, sua história e estudado, em particular, os fenômenos capitais do Cristianismo, concluía:
"Só o Espiritismo pode estabelecer um vínculo entre a Ciência e a Religião; somente o Espiritismo pode ser o traço de união entre as crenças e a Ciência. E por qual processo?
Fornecendo à Humanidade uma Filosofia verdadeira, uma noção filosófica exata e positiva da natureza do ser, de seu futuro e da noção do Além, pelos fatos, o que nenhuma religião pode atualmente fazer e, por esse processo, ele dissipa essa terrível angústia que pesa sobre o espírito humano, a angústia do futuro, a angústia da vida, após a morte, que as religiões não podem curar."
No dia seguinte, uma áspera controvérsia punha em confronto Paul Pillault, do "Fraternista", e Gabriel Delanne, a propósito da "escola de médiuns".
Delanne preconizava o estudo de processos metódicos e científicos para formar os médiuns e Pillault invocava "a boa psicose".
Um tal debate deveria, infalivelmente, fazer ressurgir as conhecidas discussões sobre o apaixonante assunto, entre os adeptos do determinismo e os do livre-arbítrio.
Interferindo, após Gabriel Delanne, entre Pillaut e Béziat, Léon Denis manifestava, brevemente, sua maneira de ver sobre esse apaixonante problema, com prudência e precisão, mas da maneira segura, como o conhecemos.
Gabriel Delanne tinha pedido que lhe explicassem o termo "psicose", que é usado pelos espiritualistas fraternistas e acabara de rebater, com eloqüência, a tese do determinismo, segundo P. Pillaut:
"Pois bem! Minha opinião, dizia o Mestre, e devo ter também uma opinião, como os demais, é que o homem é livre, na medida em que o deseja e na medida em que se esforça para se tornar mais livre, liberando-se das falsas sugestões, das influências materiais, de todas as paixões, dos erros e da ignorância.
O homem é livre pelo nascimento e por natureza e nenhum sofisma destruirá jamais sua liberdade, porque a liberdade é a dignidade de sua vida, de seu valor moral e de seu futuro, porque, se não formos livres, como poderemos entender o futuro? Não teremos nem mesmo a idéia desse porvir, nem a capacidade de compreendê-lo.
Se o Espiritismo estendeu ao infinito os horizontes da vida, se ele pôs em destaque as forças ocultas do ser, se ele nos ensinou a utilizá-las, afirmo que não foi para nos reduzir a um papel passivo, não foi para nos curvar sob influências opressoras, mas foi para nos ensinar a conquistar, por nós mesmos, uma liberdade cada vez maior, uma situação sempre mais elevada, um papel e missões cada vez mais nobres e mais generosas."
Jean Béziat tinha, em seguida, respondido, com a dialética direta e a forma humorística que lhe são particulares, definindo "psicose" como:
" - a influência do mundo oculto, em cujo seio estamos mergulhados, como um peixe na água, influência essa, que pesa sobre o rebanho humano encarnado."
"No atual estado de coisas - acrescentou ele - eu sinto, pessoalmente, que estou mais sujeito do que livre; sinto que estou de tal modo perto dessa miséria universal que me envolve e ainda tão longe desse Deus de perfeição e desse absoluto, que o pequenino grão de liberdade que tenho não me permite morrer, nem nascer.
Lógico que esse brilhante discurso não convenceria ninguém e os partidários de ambas as teses permaneceram em suas respectivas posições.
No banquete, que reuniu os congressistas no Salão Comunal de Plainpalais, na noite do dia 11, o Mestre se elevou aos píncaros da eloqüência. Saudando a hospitaleira Genebra, "cidade esplêndida", e "grande centro intelectual europeu", evocou, com alegria, as duas conferências que ali fizera, em 1893, no anfiteatro da Universidade, repleta de ouvintes.
Recordando os grandes precursores e primeiros pioneiros da Causa, convidava a geração do futuro para sustentá-la e defendê-la com toda a sua energia.
"Um dia chegará em que desceremos para nossas sepulturas, onde compareceremos diante desse temível tribunal da consciência, libertos das sombras terrenas e diante da qual desfilarão todos os nossos atos, palavras e pensamentos.
Então, e mesmo antes disso, espero que entrareis na grande batalha humana, no conflito gigantesco das idéias, na grande rota do Espiritismo e continuareis na vossa tarefa, a de fazer os homens conhecerem seus destinos.
Oh! Sabei, então, que vossa tarefa será a maior e a mais bela que possa caber a um homem neste mundo. Servidores, defensores da Verdade, sabei que nada há maior e, para adquiri-Ia, para merecê-la, não haverá dores, nem amarguras, nem aflições que não devais afrontar e sofrer.
E, se as zombarias, os sarcasmos, o ódio choverem sobre vós, lembrai-vos, então, de todos aqueles que, no passado, sofreram e foram mortos pelo Bem, pela Verdade e pela Justiça."
Quisemos citar, inteiramente, essa bela página inspirada, ardente, impregnada da mais pura fé e da mais alta coragem, porque todo o coração do "Apóstolo" nela se encerra.
Na noite de 10 de maio, seu amigo, o comandante Darget, de Tours, havia obtido um franco sucesso, proferindo, numa sala repleta, sua conferência sobre os "Raios V" e as fotografias dos Espíritos.
Léon Denis se regozijou por poder aplaudir, no dia 12, seu outro bom amigo, o pastor Bénezech, de Montauban, em sua bela conferência sobre "Os Fenômenos Psíquicos."
A 1° de junho de 1913, diante dos membros da Sociedade de Estudos Psíquicos, Léon Denis fazia sua magistral exposição sobre a questão espírita, já apresentada no Congresso e recebia, antes de retornar à França, as mais calorosas e mais tocantes homenagens da parte de seus amigos de Genebra.
PROVAS E DECEPÇÕES
Dissemos, anteriormente, que o discurso de 19 de junho de 1910, sobre "O Século XX", em Paris, na Sala dos Agricultores, marcava o fim de sua carreira de conferencista. Não é totalmente exato porque, de Genebra ele foi a Marselha, onde falou numa reunião particular, depois foi a Challes, na Sabóia, onde, a pedido de alguns amigos espíritas, falou para uma assistência mais ou menos cosmopolita. Dessa vez seria a retirada definitiva. Pelo menos era o que pensava.
No começo de agosto, retornava a Tours, feliz em reencontrar a calma de sua vida laboriosa, após uma viagem que durara 3 meses.
Não deveria, porém, que esperava.
Surgiam, por instantes, invejas mais ou menos disfarçadas e rancores mais ou menos incontidos e, por causa disso, Denis sofria, no silêncio.
Todavia, seu silêncio não era bastante para conseguir o desejado repouso. Assim, resolveu tomar a decisão que se impunha. Em 28 de novembro, escreveu a Gabriel Delanne:
"As divergências que surgiram entre nós, em conseqüência do caso Miller e que eu já supunha superadas, acabam de despertar com uma nova intensidade.
Tenho sido, da parte de vários membros do Conselho de Administração da Sociedade Francesa de Estudo dos Fenômenos Psíquicos, objeto de ataques violentos, até injuriosos, em diversos jornais espíritas e antiespíritas.
Não tendo sido feita qualquer refutação, resulta daí que minha situação à frente da Sociedade se torna impossível.
Peço-lhe, pois, para retirar meu nome como Presidente de Honra.
Sendo esta resolução definitiva e levá-la ao Conselho de Administração.
É com profunda tristeza que me separo de homens e encontrar ali a tranqüilidade irrevogável, rogo de irmãos com os quais combati longo tempo por uma Causa querida, porém, minha dignidade e minha honra estão em jogo e, em tal matéria, a menor vacilação seria uma fraqueza.
Espero que esta decisão não alterará em nada os sentimentos de amizade que nos unem e sob o império dos quais temos trabalhado e trabalharemos ainda pelo progresso do Espiritismo no Mundo.
Com esse pensamento, aperto-lhe, cordialmente, as mãos."
Gabriel Delanne, verdadeiramente penalizado, respondeu-lhe logo que nada justificaria uma tal ruptura; que, divergências de vistas, a propósito de um médium, não poderiam separá-los e que o único ataque, de que tivera conhecimento, apareceu em "Echo du Merveilleux" e tinha sido retratado pelo autor, no número seguinte.
"Haja o que houver, dizia-lhe ele, terminando, não ficarei menos seu amigo e pode estar certo de que nenhuma diferença de opinião poderia alterar os afetuosos sentimentos que nos unem."
Os dois grandes paladinos da Doutrina, por uns instantes separados, não cessariam de se estimar e de continuarem, paralelamente, sua bela e nobre tarefa.
*
Naquela época, a vista de Léon Denis se enfraquecia cada vez mais. Essa era sua grande preocupação.
A operação da catarata, feita há 2 anos, não trouxera qualquer melhora. Os médicos e os médiuns curadores consultados não lhe conseguiram nenhum alívio.
Denis suportaria com calma e resignação esta prova, que ele via avançar numa implacável marcha, desde sua juventude.
Mas quanto sofria por isso!
Não apenas a luz diurna o incomodava - a luz que ele tanto amava - porém, eis que deveria abandonar a ferramenta que lhe restava: sua pena.
Sem dúvida, alguns secretários ocasionais o supriam nessa tarefa, mas adivinha-se a complicação de tal tarefa, à qual vinha juntar-se a dificuldade de revisão e de corrigir as novas edições.
Graças à sua capacidade de trabalho, seu gosto pela ordem e sua incomparável memória, ele conseguia realizar sua tarefa, sem que seus amigos e numerosos correspondentes ficassem prejudicados.
Após a morte de sua mãe, Denis mantinha uma criada para cuidar de sua pequena casa. Ele só exigia respeito absoluto por suas numerosas notas que ele mesmo arquivava com sua precaução costumeira, precaução meticulosa, porém, necessária.
Por causa dessa mania, que era uma qualidade, a Duquesa de Pomar o havia denominado "O homem dos papeizinhos".
Sua velha amiga, a sra. Forget, viúva fazia alguns anos, fazendo-lhe sua visita diária, zelava para que seu regime fosse mais ou menos respeitado.
As janelas de seu apartamento da Rua de 1'Alma davam para o belo jardim público de Prebende d'Oé. Durante o calor, a suave temperatura da Touraine permanece constante, da madrugada até o entardecer, entre as copas frondosas das árvores e, como presos ao espelho brilhante de seus lagos, nadam os cisnes.
Grupos de crianças ali se divertem, o dia inteiro, juntando seus gritos aos pios dos pardais.
Uma grande quietude reina por ali, nas horas propícias para meditação.
Anos antes, podia-se ver Léon Denis passeando pelas alamedas frondosas e levando seu velho amigo e vizinho espiritualista Valentin Tournier, que era cego.
Este se havia fixado em Tours, para estar mais perto do valoroso propagandista da Doutrina, que ele próprio servia com sua pena e com bastante talento.
Ambos conversavam familiarmente sobre política e principalmente, de Filosofia, muitas vezes acompanhados por Constant Hennion, excelente tradutor, em versos franceses, do poema Mireille, de Mistral. (*)(Trata-se de Frederico Mistral, que escreveu o poema em castelhano).
Era sobretudo no outono, no fim das férias, quando as viagens lhe deixavam algum tempo, que o infatigável conferencista fazia esses passeios.
Então, o jardim apresentava todo o seu esplendor. "Como o tempo deve estar bom em Tours! escrevia-lhe um fervoroso amigo da cidade.
Quantas saudades daqueles belos e calmos dias de outubro, daqueles crepúsculos melancólicos e suaves, que são a imagem de uma vida calma e piedosa, que se extingue aos poucos!
É sua estação predileta, caro Mestre, porque ela está em harmonia com seu sublime e doce evangelho de esperança e de imortalidade."
Assim, por sua vez, como sucedera a Valentin Tournier, que já havia falecido, a sinfonia das cores já não podia emocioná-lo e encantá-lo, como outrora.
Quase inteiramente fechado para o mundo das formas, seu olhar podia apenas voltar-se para o prodigioso espetáculo da vida interior, cujas luzes são menos ofuscantes e descortinam as profundezas infinitas dos horizontes.
Foi no começo do ano seguinte, após o enorme trabalho para lançar uma nova edição do "Problema do Ser", que ele caiu gravemente enfermo. Tivera um resfriado e sobreveio uma pneumonia.
O enérgico tratamento de seu médico colocou-o de pé, bem depressa.
Desde uma antiga doença intestinal, era a primeira preocupação séria, que o obrigava a interromper suas ocupações.
As sessões do Grupo da Rua Du Rempart haviam terminado nos fins de 1909 e acreditamos que o "caso Miller" também tinha contribuído para isso.
Todavia, as reuniões particulares continuaram, na casa da sra. Forget.
O Espírito Azul e Jerônimo ali se manifestavam, regularmente.
O pai espiritual e o filho já encanecido ali trocavam suas opiniões sobre os acontecimentos políticos da França, que tomavam uma direção preocupante.
A tempestade surgia nos Bálcãs e se tornava cada vez mais ameaçadora.
A Alemanha não escondia sua intenção de tomar a França como refém, em caso de um conflito.
A Guerra estava iminente. Assim julgava Jerônimo, enquanto quase toda a França, com exceção de poucos cidadãos mais avisados, estava narcotizada e adormecia numa grande e perigosa quietude.
Cap. V
A VELHICE
O MUNDO INVISÍVEL E A GUERRA
Quando, em julho de 1914, os boatos alarmantes vieram abalar os corações; quando, a 3 de agosto, foi decretada a ordem de mobilização, Léon Denis -foi tomado de pungente aflição. Ele, que havia visto a guerra anterior e compreendido a causa do desastre da França; ele, que sabia estar a Alemanha novamente preparada e que adivinhava as falhas militares francesas, não poderia alimentar muitas ilusões quanto ao resultado dessa terrível aventura. Entretanto, longe estava de imaginar que a luta seria tão longa e tão monstruosa.
Na ocasião, sua intenção era viajar para a estação de águas de Challes. Levava consigo a sra. Forget, também duramente atingida pela confusão geral.
Foi, pois, na Sabóia que lhe chegaram às primeiras notícias da guerra, o eco das primeiras batalhas e, depois da retirada de Charleroi, alegraram-se com a esplêndida vitória do Marne.
O perigo parecia momentaneamente afastado e retornaram a Tours. Foi então que resolveram viver junto, para diminuir as despesas com o aluguel e os empregados. Seus recursos eram modestos e era preciso prevenir-se, no meio de tais acontecimentos, contra o rápido aumento do custo de vida.
No ano seguinte, durante o verão, Léon Denis deixou, então, seu apartamento da Rua d'Alma para se instalar, com sua velha amiga, num local mais amplo e mais confortável, no número 19 da Praça das Artes, onde, um após outro, acabariam suas vidas.
Léon Denis tinha visto a maioria dos seus familiares partir para frente de luta.
Dizia-lhes: "Coragem, cumpram seu dever. Quanto a mim, lamento que seja muito tarde para acompanhá-los." Doente e com 68 anos, Léon Denis não podia alistasse, mas tomava também uma posição e seguia, pelo pensamento, o gigantesco esforço dos exércitos que recuam sob a avalancha alemã.
Mês após mês, escreveu artigos ardentes e palpitantes do fundo de seu coração de patriota e de apóstolo. (*) "Não são mais milhares, são milhões de homens que se defrontam, num choque formidável, numa luta tal como jamais o mundo viu igual."
Estamos pagando o terrível resgate da imprevidência, da ânsia pelo bem-estar, da indisciplina e do enfraquecimento do sentimento nacional.
"Não se acreditava mais em guerra e se procurava diminuir, ao máximo, os encargos e as despesas militares. A lei dos três anos tinha sido assunto de longas e penosas discussões e, mal votadas, tentaram minimizar lhe os efeitos! ...
Alguns sub-oficiais me declararam que, no lugar de combater, jogariam fora seus sabres e seus revólveres.
Os oficiais de um regimento do Sul se queixavam, na minha frente, da falta de patriotismo de seus soldados."
Debalde, evocavam diante deles os feitos heróicos da História francesa e os mais nobres sentimentos, porém, sua única resposta era a indiferença irônica.
"A guerra estoura e, de repente, uma mudança completa se produz nas almas. A mobilização se realiza com rapidez, seriedade e precisão.
Parte-se com a noção dos grandes deveres a cumprir, com a decisão de ir até ao sacrifício, até à morte."
É a França que se recupera. Supunham que ela estava em plena decadência, mas era apenas aparentemente. A França iria representar "a força moral da coalizão", retomar e defender "a causa imprescritível da justiça, da verdade e da liberdade dos povos, contra um adversário desonesto, criminoso e desleal"
À frente de combate se estabilizara, desde o mês de janeiro de 1915. Não se combatia mais a descoberto: era a camuflagem, a guerra disfarçada, rasteira e subterrânea. A doença, porém, e as intempéries faziam tanta destruição quanto os canhões.
"Quanto sangue e quantas lágrimas! Quantos jovens heróis tombaram! Quantos despojos humanos jazem sob o chão."
O velho patriota loreno se pergunta se a França não irá perder, para sempre, a força e a vida.
No decorrer daquele ano de luta obstinada que foi assinalada por ataques parciais, avanços e recuos próprios da guerra de posição, Léon Denis consegue a colaboração inesperada de uma secretária que era muito ativa e da mais dedicadas: a senhorita Camille Chaise.
Um fervoroso espírita de seu conhecimento, o sr. Rossignon, fugindo da invasão, viera também se refugiar na Touraine. A guerra operava essas aproximações imprevistas.
Então, Leon Denis trabalhava em rever uma nova edição de "Joana D'Arc, Médium".
Meses mais tarde, a senhorita Claire Baumard substituía, em suas funções, a senhorita Camille Chaise, obrigada a deixar Tours.
A nova secretária deveria preencher suas funções com uma pontualidade, com uma fidelidade, e um devotamento exemplares, até à morte do Mestre.
O sr. e a sra. C., amigos de longa data, começaram a freqüentar, assiduamente, o apartamento da Praça das Artes. O sr. G. C. era filho de um velho companheiro de armas de Leon Denis. Ficando cego, desde jovem, dedicou-se, como passatempo, ao estudo da Música e das Letras.
Acabava de descobrir que possuía dons mediúnicos: recebia mensagens através da escrita automática. Relatando o fato ao velho amigo, este o colocou logo em contato com a sra. Forget.
Apesar de sua idade avançada, a boa senhora ainda conservava sua mediunidade e, graças a ela, o novo médium se desenvolveu, rapidamente.
Todavia, a guerra continuava suas devastações. Jerônimo trazia, regularmente, suas mensagens no pequeno Grupo, informava "seu filho" sobre os acontecimentos, esclarecendo-o e tranqüilizando-o.
Joana de Domrémy estava trabalhando na frente de combate.
"Na agonia que a sufoca, a França ergue seus pensamentos para ela e invoca seu socorro. Pede-lhe, mais uma vez, para salvar a Pátria invadida."
Do seio dos espaços luminosos, a sublime guerreira atendeu ao apelo: consola os combatentes, em seus sofrimentos e suaviza as dores de seus familiares.
"Ela fez mais: à frente de um exército invisível, agiu, na frente de batalha, insuflando nos soldados a chama sagrada que a abrasa, animando-os ao combate e à vitória."
Era assim, como nos tempos de Homero, que os deuses comandavam as batalhas onde gregos e troianos se defrontavam.
O velho Mestre está pleno de confiança, pois sabe que, sobre as tropas aliadas, paira o arcanjo protetor.
Ela está, sozinha, a velar pelos combatentes?
Não. Assembléias de grandes Espíritos se congregam sobre as linhas de luta; estão todos ao lado de Joana, "os heróis das lutas de outrora", "os libertadores da Pátria".
Sim, o velho Mestre está mais calmo, desde que ficou certo de que Joana protege a Pátria, para a realização do Bem e do cumprimento da Justiça eterna.
"Os filhos da França - profetiza Jerônimo - escreverão as mais gloriosas páginas da História com seu próprio sangue."
O antigo combatente de 1870, embora não estivesse nas linhas de frente, como sabia exortar e animar os combatentes. Entre as costumeiras frases demagógicas usadas na ocasião, como ele utilizava expressões varonis!
"Vigiai e lutai. Combateis pelo que há de mais sagrado neste mundo, pelo princípio de liberdade que Deus colocou no homem e que ele próprio respeita, a liberdade de pensar e de agir, sem ter que dar contas ao estrangeiro...
Combateis para conservar o patrimônio que, há séculos, nos foram legados ... Defendeis os lares, onde gostais de repousar vosso espírito e vosso coração, o berço de vossos filhos e os túmulos de vossos pais.
Soldados, crescestes sobre a terra.
Agora deveis crescer para o Céu; é preciso elevar vossos pensamentos para Deus, fonte de toda a força e de toda a vida."
Em 25 de agosto de 1917, a morte de sua velha amiga e querida médium, que ficara ao seu lado, substituindo sua mãe, deixou-o terrivelmente desolado, na cidade inquieta, cheia de tropas em trânsito e de soldados feridos.
Que vazio em seu derredor, nos amplos cômodos, onde já não se ouvia mais o passo miúdo da velha senhora, em sua "marchinha de camundongo."
A guerra se arrastava, com alternativas de confiança e de angústia. Verdun havia consolidado as energias francesas e a Alemanha não estava mais com a iniciativa dos ataques.
Infelizmente, uma onda de pessimismo pairava em vários pontos do território.
O Exército, também, por um instante, havia passado pela mesma situação, mas, rapidamente, se alentara sob o comando de Pétain.
Na crescente ansiedade, sentia-se aproximar o desfecho. O Kaiser pretendia, pela última vez, tentar a derrota francesa, antes da entrada na luta dos grandes contingentes americanos. Ludendorff e Foch se defrontavam.
Como todos os bons franceses, Léon Denis não se havia desesperado.
Entristecido pelo seu recente luto, todavia, a confiança não o abandonava nessas terríveis conjunturas. "Espíritas, elevemos nossas almas acima dos males que ameaçam a Pátria e a Humanidade. É nos momentos de provações que se revelam as nobres virtudes e as coragens viris ...
Mantenhamo-nos inquebrantáveis e confiantes na vitória final. Oremos e saibamos aguardar a hora da justiça divina ... A grandiosidade da causa, a perspectiva do alvo a atingir nos ajudarão a tudo suportar.
Cedo, as nações, livres do jugo alemão, entoarão o canto da liberdade. Sursum corda!"
Os julgamentos que ele fazia, naquelas circunstâncias trágicas, eram bem penetrantes. Analisava com justeza as lições da guerra.
"Todas as nossas misérias morais, a debilidade dos caracteres, a fraqueza das consciências, tudo quanto era em vão, artificial e mentiroso em nossa sociedade vieram à tona, à luz rubra dos acontecimentos.
Por ter falseado a Verdade, um pouco por toda parte, quer nas transações, no ensino e na política, tivemos que sofrer, como castigo, a mentira no que ela tem de mais odioso."
Ele aludia à falsidade alemã.
Enaltecendo o exemplo dos soldados, que se sacrificavam para assegurar a salvação comum, escreveu as seguintes linhas, que nenhum dos antigos combatentes desaprovaria, atualmente:
"Sua obra contém uma grande lição moral; sob esse ponto de vista, pretendem prossegui-Ia, mesmo após a guerra. É, pelo menos, o que se deduz das numerosas e significativas cartas recebidas das frentes de batalha.
Elas desejam que um grande sopro de ar puro varra a espessa atmosfera que encobre nossa vista e nos oculta as terríveis realidades.
Sonham com um nobre Ideal, com uma sociedade espiritualizada, onde a vida da alma encontrará seu pleno desenvolvimento ...
Compreendam que foi por se ter querido vida fácil, a vida bafejada pela fortuna e pelos prazeres que tivemos que suportar as privações e a miséria.
Enfim, sentem que essa visão e essa compreensão das coisas superiores devem penetrar no pensamento e na consciência de todos, se quisermos deter nosso país no plano inclinado em que está."
Após dez anos, essas preocupações ainda estavam todas contidas nos cadernos de reivindicações da "França Ferida", quando da realização de um Congresso em Versalhes, preocupações também existentes nos corações de todos os bons franceses.
"Os perigos, as privações e as provações suportadas em comum aproximaram os corações, apagaram as diferenças entre os partidos e as religiões e fizeram em definitivo a sagrada união, imposta pela necessidade dos maus dias."
Era assim, profetizava o Mestre, no meio da tormenta, sustentado por uma invencível esperança nos destinos da Pátria.
No dia 12 de novembro de 1918, o velho loreno, participou da alegria dos corações franceses e entoou um magnífico hino:
"Para todos vós, heróis sobreviventes e mortos gloriosos, que combatestes, lutastes e sofrestes por nós; para todos vós, que assegurastes o triunfo da justiça e da liberdade neste mundo, que se tornaria inabitável, se a força brutal e a mentira tivessem prevalecido; para todos vós se erguem um hino de reconhecimento, o tributo de admiração e os impulsos de gratidão da Humanidade inteira."
Como poderia duvidar deles? Não se recordava das palavras da Donzela? "Os homens de armas lutarão e Deus dará a vitória.
Como não iria esperar até o final?
Seus amigos do Além lhe haviam comunicado, dia a dia, com melhor exatidão que os comunicados do Grande Quartel General, não cessando de tranqüilizá-lo sobre o desenrolar da guerra.
"Após a batalha de Charleroi, quando o exército alemão avançava como uma avalanche e quando as vanguardas de sua cavalaria penetravam nos subúrbios parisienses, nossos guias nos afirmavam que elas não entrariam em Paris.
Mais tarde, diante de Verdun, quando o inimigo Assim, graças ao homem de ação, que aparecia no momento propício, a delicada e difícil tarefa de organização do Espiritismo francês, que tanto o Mestre desejara, se achava, enfim, efetivada.
A Revue Spirite encontrou nele um colaborador de uma fidelidade exemplar. Até nos últimos instantes, atendendo à sua volumosa correspondência, à composição de suas obras e à redação de seus artigos, dedicou a Revue Spirite uma grande quantidade de substanciosa colaboração, escrita num estilo despretensioso, mas com uma serena simplicidade e que seus leitores habituais aguardavam, cada mês, como um benfazejo bálsamo.
A propaganda espírita tinha retomado, então, seu curso normal, o que propiciava a Denis uma viva satisfação.
Ele se ressentia de sua solidão e de seu isolamento, pois que se achava pessoalmente privado de qualquer contato com seus guias.
Uma visita inesperada, muito oportuna, deveria restabelecer esses contato.
Deixemos que ele nos conte em quais condições: "Após anos de uma cruel privação, vi, num belo dia de verão, duas senhoras parisienses chegarem, com uma carta de recomendação de Leymarie e que iriam passar um mês de férias na Touraine. Eu absolutamente não as conhecia.
No transcorrer de uma conversa, tendo falado de um amigo cego, que obtinha comunicações escritas, essas senhoras experimentaram o desejo de vê-lo trabalhar; organizei, então uma pequena reunião.
Eu não sabia que uma delas era médium, porque nada me haviam dito. Assim, minha surpresa foi grande, ao vela logo mergulhada num transe e ouvir uma voz forte anunciar a presença de meu guia, do poderoso Espírito, cujos sábios conselhos e terna solicitude sempre me dirigiram e sustentaram em minha faina de pregador.
Uma conversa se estabeleceu entre nós e, durante cerca de uma hora, esse Espírito me transmitiu suas opiniões sobre a situação do Espiritismo, falando de nossos trabalhos comuns no passado, com pormenores e particularidades que o médium não podia absolutamente saber.
Todos os que, outrora, participaram das sessões descritas em meu livro No Invisível, reconheceram Jerônimo de Praga, enquanto que a médium ignorava completamente tudo quanto se referisse a esse eminente Espírito.
Após algum repouso, durante a mesma sessão, a sra. Forget comunicou-se e explicou, na forma alegre que lhe era peculiar, que, tendo visto quanto seu amigo sofria por estar privado de todo o relacionamento com o Além, procurou e acabou por descobrir um médium e lhe sugeriu a idéia de vir a Tours, para visitar Denis.
Ora, acrescentava Denis, essas senhoras parisienses julgavam que tinham vindo à minha casa por sua iniciativa própria, o que comprova, mais uma vez, que os homens cedem, muito mais do que pensam, às influências dos Espíritos."
"O Mundo Invisível e a Guerra", publicado em 1919, era o conjunto de artigos lançados no curso da guerra.
O livro não foi muito comentado, a não ser pelas revistas e jornais espiritualistas. Apenas o "Eclair" lhe fez uma análise das mais elogios.
"O Mundo Invisível e a Guerra"! Todos os milagres são possíveis, e mesmo o do Marne, para aqueles que longamente refletiram sobre essas coisas e descobrem algumas influências do mundo espiritual, porém, para a grande maioria dos homens tais noções são vazias de sentido. Um tal livro, pois, não poderia atrair a atenção, nem dos sobreviventes das linhas de combate e que só almejavam um desejo: retornar à vida livre, à alegria, e nem dos civis, habituados aos mais ínfimos prazeres. Atingia a última linha de defesa dos fortes de Souville e de Tavannes, esses mesmos guias nos asseguravam que não se tomaria a cidade Lorena. Da mesma forma, nas horas mais incertas, antes que a sorte das armas fosse decidida, suas predições sobre a vitória final se realizaram."
Para ele era, portanto, mais que uma esperança, era uma certeza de que o fim da guerra iria transformar-se em alegria. Terminado o pesadelo, a esperança ainda era possível.
Nos fins de 1916, Jean Meyer veio procurar o Mestre, a fim de lhe comunicar a intenção de adquirir a Revue Spirite que, há um ano, não aparecia mais, por causa das dificuldades financeiras decorrentes da guerra. A Revue Scientifique et Morale du Spiritisme também suspendera sua publicação, de forma que a propaganda das idéias, nesse campo, se achava bastante prejudicada.
Léon Denis não podia senão felicitar e encorajar Meyer por uma iniciativa tão oportuna.
Graças à energia e à firmeza do impulso de seu novo diretor, a Revue Spirite reapareceu em janeiro do ano seguinte.
Na mesma época foi criado um laboratório de estudos metapsíquicos que, transferido para Avenida Niel, iria tornar-se o atual Instituto Metapsíquicos Internacional.
Restava organizar a União Espírita Francesa, que ainda estava embrionária. Jean Meyer convidou, logo de início, Léon Denis para presidente, porém, o velho Mestre não podia, por sua idade, suas enfermidades e sua distância de Paris assumir tão importante cargo. Aceitou a Presidência de Honra e deu à nova sociedade o apoio de sua longa experiência e de sua grande autoridade.
Leon Denis defendia a volta imediata à vida interior, no momento em que as paixões ilusórias retomavam toda a sua força. Ele não poderia ser compreendido.
"Não pretendo tomar partido em nenhuma discussão religiosa - dizia o articulista do”Eclair" - desejo apenas mostrar que, sem considerar os charlatães das maravilhas, há um homem de notável cérebro que, apoiado em experiências da moderna ciência, nos conduz aos paramos da mais pura moral, arrastando atrás dele crentes de todas as religiões e gostaria que os céticos e os zombeteiros, antes de sorrirem ou darem de ombros, lessem, com toda a sinceridade e refletissem sobre os livros desse grande autor.
Era um julgamento sensato que se opunha com força às críticas medíocres publicadas em outros jornais: "Idéias consoladoras, mas que não são sustentadas por qualquer comprovação", "a ausência de espírito crítico e, muitas vezes, até a ingenuidade desse livro são desconcertantes."
Não são essas reflexões que são desconcertantes? Entretanto, preferimos essa constatação simples e leal: Léon Denis não se lê, devora-se; é necessário rele-lo, para poder meditar e apreciar sua beleza moral e filosófica e a grandeza das suas idéias. Seu último livro não faz exceção à regra.
Realmente, é preciso relê-lo, distante dos acontecimentos, para sentir seu grande alcance. Encontramos nele páginas de um profundo sentido, de uma elevação sublime, que merecem muito bem ser colocadas em destaque na obra do Mestre que, certamente, permanecerão.
A RELIGIÃO DO FUTURO
No fim da Guerra, Leon Denis tinha recebido, em Tours, a visita da sra. Ella Wilcox, poetisa e romancista americana, de certo renome, que traduzia para o inglês "O Problema do Ser e do Destino". Estava acompanhada de alguns amigos ianques que seguiam o Espiritismo. Essas visitas eram um estímulo para Denis
Dentre seus familiares, uns haviam morrido na Guerra e outros ficaram feridos, mais ou menos gravemente, espalhados pelos hospitais militares.
Freqüentava sua casa, na mesma ocasião, um jovem escritor, militar em gozo de férias, e que Anatole France empregara como secretário, em Béchellerie.
Enquanto concluía "Le Petit Pierre", o autor de "Monsieur Bergéret" teve a curiosidade de ler os livros de seu vizinho, dos quais lhe haviam falado.
Sabe-se que o Ocultismo não era indiferente ao autor de "Rôtisserie de Ia Reine Pédauque".
O exame superficial dos livros de Denis não logrou converter o fino epicurista.
"Ele dogmatiza" - disse Anatole - com sua barba branca, devolvendo os livros.
Leon Denis teve conhecimento da crítica, que lhe proporcionou um sorriso ... um pouco contrafeito:
- Eu dogmatizo, mas ele "renaniza".
Nada aproximava os dois escritores. O autor de "Joana d'Arc, Médium", no fundo, não perdoava o historiador romancista por certas páginas irreverentes, com relação à Donzela.
Nessa época, Denis publicava regularmente, na Revue Spirite, juntamente com Camille Flammarion, profundos e substanciais artigos, recomendando aos conferencistas que recomeçassem a propaganda oral, usando a palavra não para brilhar, mas porque ela é uma força e sugeria, em face dos interesses populares, uma série de assuntos para desenvolver.
Em 1920, apresentou uma panorâmica moral do após guerra, numa série de páginas penetrantes.
A juventude atual, afirmava, sente em si o despertar de forças desconhecidas; ela tem ânsia de uma ação metódica e ordenada e não de ação tumultuada e revolucionária. Antes de tudo, construir é o seu ideal.
Para essa juventude que almeja criar uma ordem nova, o Espiritismo deve surgir como um meio de ligar o homem do meio transitório da vida presente à ordem universal.
"A elite a quem me dirijo, escrevia ele, é digna de ter um nome que ela saberá glorificar e imortalizar um dia; esse nome é a juventude idealista."
No ano seguinte, prosseguia com uma série de artigos impregnados de uma poesia profunda e serena, sobre a "voz das coisas" e pregava o "retorno à Natureza"
Naquela ocasião, o vento soprava contra o Kardecismo. O fenomenismo metapsiquista procurava combater a Doutrina sob seu aspecto filosófico puro.
Paul Heuzé dirigia ruidosa campanha em "Opinion", com suas entrevistas e comentários tendenciosos. Afirmava, a priori, que, à medida que a Metapsíquica evoluísse, o Espiritismo perderia terreno. Sua profecia não foi ainda concretizada.
Após a vigorosa resposta de Jean Meyer, na Revue Spirite, Leon Denis, por sua vez, interferiu, na qualidade de Presidente de Honra da União Espírita Francesa, numa carta ao "Matin", onde ele separava, com uma admirável clareza, o Kardecismo da Metapsíquica.
No mês de outubro do mesmo ano, aparecia, na "Revue Contemporaine", sua opinião sobre a Religião do Futuro.
"A religião - escrevia Denis - para ser realmente viva, para exercer o grande papel que lhe compete, na ordem social, de educador e moralizador, deve ser uma alta e clara síntese de tudo quanto a Humanidade pôde adquirir sobre o Universo e a Vida, sobre o elevado objetivo da existência e dos destinos da alma.
Este conhecimento se concretiza por dois modos: a Ciência, que é toda observação e experiência: é a obra humana. Depois, a Revelação: que é obra do Mundo Invisível.,
indispensável que a duas correntes de ensinos concordem nas conclusões e é na sua adoção que a Religião se torna realmente eficaz e atende às necessidades e às aspirações de uma época."
É o Espiritismo que garantirá a síntese da Ciência e da Revelação. É por ele que serão formadas as almas, preparadas contra o mal e submetidas à lei do dever e das disciplinas sociais, porque não haverá renovação possível de outra forma.
É por ele que se imporão as linhas mestras, as formas exatas dessa Religião do Futuro, que se esboça e se prepara sob tantos pontos, na hora atual; Religião de fraternidade e de amor, anunciada, há 2000 anos pelo Cristo e que os homens ainda não puderam compreender e praticar. Os ataques haviam recomeçado e a campanha contra o Espiritismo aumentava em violência.
O padre Coubé, em seus roteiros de pregação e na revista "L'Idéal"; o padre Mainage, em seu púlpito, na "Libre Parole" e na "Revue des Jeunes"; os cardeais inquisidores do Santo Ofício, em Roma, todos se uniam contra a heresia espírita.
Que afirmava o padre Coubê, em seus sermões e o que escrevia o padre Mainage em seus artigos? Nada de novo. Reconheciam a realidade dos fenômenos espíritas, mas concordavam em lhes dar um cheiro de enxofre.
O fenômeno espírita - escrevia o eminente diretor da Universidade Católica - têm por origem "um princípio mau, bem ativo, e que emprega os meios para cegar as almas e perde- Ias."
A esta opinião Leon Denis contrapunha Monsenhor Chollet, bispo de Verdun e antigo professor da Faculdade Católica; Monsenhor Benson, filho do arcebispo de Cantuária, convertido à religião católica, cujos escritos não são em nada opostos ao Espiritismo; o padre Lacordaire; o cardeal Bona, o Fénelon da Itália.
Remontava a São Tomás de Aquino, a Santo Agostinho, estabelecendo, facilmente, que os católicos, sobre esse assunto, estavam em completa contradição.
O Espiritismo, escrevia o padre Coubé, prosseguindo numa idéia fixa, é o culto a Satanás.
Seria preciso provar, inicialmente, que Satanás tem existência real, o que não está demonstrado.
Esse velho símbolo, tirado do Maniqueísmo, já está bem desgastado, respondia o Mestre; já serviu por tanto tempo, que não tem mais eficácia e se trata de um terreno escorregadio para a Igreja.
"Atribuir aos demônios os fenômenos espíritas é esquecer as almas do Purgatório, a comunhão dos Santos, a reversibilidade dos méritos, etc., isto é, tudo quanto resulta dos pactos concluídos com as Entidades do Espaço.
Os verdadeiros teólogos não podem desconhecer a analogia gritante que existe entre os fenômenos espíritas e os da doutrina cristã."
Parece que, embora um pouco tardiamente, isto vai sendo hoje compreendido.
O escritor espírita destacava, a seguir, com energia, quanto à atitude da Igreja contemporânea é contrária à sua própria doutrina e prejudicial a seus interesses e aos da civilização inteira.
Para introduzir na vida individual e coletiva elementos de disciplina, a religião deve colocar-se em harmonia com as necessidades intelectuais, com os conhecimentos e as aspirações da época.
Ora, a Igreja Católica e as Igrejas Cristãs "perpetraram o erro de crer que a comunhão espiritual estabelecida pelo Cristo entre ela e o mundo invisível tinha um caráter exclusivo e temporário, quando essa comunhão é, na verdade, permanente e universal.
Concluir-se que secou para elas a fonte de onde jorram, abundantemente, as forças, os socorros e as inspirações do Alto.
O influxo divino não veio mais fecundar o espírito do Catolicismo; a incredulidade e o ateísmo submergiram tudo.
Nessa mesma brochura, as contradições da Igreja estavam assinaladas com um grande vigor de argumentação. Um importante capítulo sobre a Reencarnação terminava essa incisiva, eloqüente e corajosa defesa da Doutrina.
No mesmo ano, foi publicado "Espíritos e Médiuns", opúsculo de propaganda, com setenta páginas que, como "O Além e a Sobrevivência do Ser", é uma contribuição ao Espiritualismo Experimental, enriquecida de novas observações e de conselhos relativos à mediunidade.
O ano de 1922 foi dedicado ao Espiritismo na Arte, acompanhado de glosas sobre mensagens do Esteta e as de Massenet, páginas plenas de um delicado encantamento, cuja alta significação nos é resumida no comentário final.
A seguir, publicou belos estudos consagrados às "forças irradiantes." A ciência das vibrações não é somente reveladora de força e de beleza, explicava o Mestre.
Ela revela não apenas os segredos da comunhão entre as almas, em todos os planos, mas reserva ao homem uma iniciação para a Vida.
A vibração universal narra à Humanidade a história das raças e dos mundos, porque contém em si todas as formas do presente e do passado que são geradoras das do futuro.
Depois, eram as "conversas do Geólogo" que vinham fornecer ao Mestre matéria para antecipações de um prodigioso interesse, cujo sentido não escapou a certos
homens de ciência, de espírito avançado, desembaraçados dos preconceitos habituais.
Após as interessantes comunicações de Jules Ferry e de Paul Bert, referentes ao ensino popular, foi à questão social, em suas relações com o Espiritismo, que absorveu a atenção do incansável ancião.
O ano de 1924 foi todo inteiro consagrado a esse estudo, cujos materiais deveriam fornecer os elementos para uma nova obra.
Os artigos encerram apreciações singularmente penetrantes sobre um sistema econômico e político que busca uma organização racional da democracia.
O socialismo que Leon Denis apresenta se confunde com o de Jean Jaurès, pleno de idealismo e de um sentimento profundamente humano.
"Quando o socialismo houver triunfado, dizia Denis, os homens compreenderão melhor o Universo, porque, vendo na Humanidade a vitória da consciência e do espírito, sentirão bem depressa que esse Universo, de onde saiu a Humanidade, não pode ser, brutal e cego, que existe Espírito por toda parte, alma por toda parte e o próprio Universo é uma imensa aspiração, no sentido da ordem, da beleza, da liberdade e da bondade!"
Assim, o socialismo pregado pelo grande tribuno é melhor, no conjunto, que um sistema regulador dos meios de produção e de troca; é, antes de tudo, a realização de um alto conceito do direito e da justiça.
É esta concepção que a Humanidade procura, de civilização em civilização, sob a influência mais ou menos clara desse ideal.
"O Universo é uma grande sociedade de forças e de almas que, solicitadas pelo bem e pelo mal, desejam, do fundo das contradições e das misérias, a plenitude e a harmonia da vida divina."
Quem fala assim? É o próprio Jaurès, subscrevendo, por antecipação, as conclusões do filósofo espírita.
LÉON DENIS E CONAN DOYLE
Foi no mês de abril do mesmo ano que apareceu The Mystery of Joan of Arc. Era a tradução de "Joana D'Arc, Médium", por Sir Arthur Conan Doyle.
O célebre autor de Sherlock Holmes, grande admirador das obras de Leon Denis, lhe escrevera, logo após o fim da Guerra, pedindo autorização para traduzir sua "Joana D'Arc", que ele saudava como um esplêndido livro, verdadeiramente inspirado.
Joana, o escrevia, no momento, aqui está na moda e falava do sucesso obtido na Inglaterra pela peça de Bernard Shaw: "Saint Joan".
Leon Denis logo lhe respondeu que uma tal solicitação não poderia deixá-lo insensível.
Uma correspondência das mais francas e cordiais se estabeleceu entre ambos.
O velho mestre enviava a seu novo amigo calorosas mensagens às quais Sir Conan Doyle respondia, num francês um pouco hesitante, com um humor todo britânico: - "Eu vos saúdo - escrevia ele - como um velho guerreiro na batalha ... e também como um grande escritor francês." Enviava-lhe fotos e documentos metapsíquicos.
Certo dia, Leon Denis recebeu um postal onde se via um instantâneo representando o propagandista inglês, de cabeça descoberta, caminhando por um terreno uniforme e ilimitado, provavelmente uma praia.
No alto, lia-se a menção autografada: A viagem da vida!
De outra vez, era uma curiosa fotografia, tirada pela sra. Dacne, sustentando o cenotáfio dos antigos combatentes, em Londres, a 11 de novembro de 1923, foto onde se destacam, dentre emanações fluídicas, um grande número, distintamente, de rostos perfeitamente materializados de soldados mortos na guerra.
Em 23 de setembro de 1924, Sir Conan Doyle, mandou seu secretário particular, entregar a Denis uma foto psíquica do Dr. Geley, obtida no "British College of Psychic Science", às 11 da manhã, no Círculo Crewe - documento muito divulgado, na época, pela imprensa espírita.
Houve, entretanto, uma divergência entre o autor e o tradutor. Foi quando Conan Doyle quis tratar de retribuição e estranhou por ter recebido de Denis uma recusa formal quanto a qualquer pagamento.
"Não é justo que eu retenha todos os lucros, dizia Conan Doyle, aceitai e encontrareis boas causas para ajudar."
Foi necessário insistir bastante, para dobrar o bom Mestre, que estabelecera o princípio de não receber nenhum pagamento pelo seu trabalho de escritor.
The Mystery of Joan of Arc é um belo livro, de boa apresentação, com sete ilustrações, além de um frontispício, que logrou, na Inglaterra e nos países de língua inglesa, um grande sucesso.
O próprio Sir Conan Doyle o apresentou ao público num elogios prefácio:
"Aprecio e admiro tanto seu livro, dizia ele de Leon Denis, que procurei seguir, fielmente, o texto, o quanto me foi possível. A apresentação de seu tema é tão completa, que nada mais me resta dizer, a não ser de que estou convencido de que Joana D'Arc é, depois do Cristo, o ser espiritual mais elevado, sobre o qual temos notícias verdadeiras.
Fica-se inclinado a se ajoelhar diante dela."
Sir Olive Lodge não havia sido menos elogios. Vindo de seus dois eminentes amigos de Além-Mancha, essas apreciações reconfortaram o autor, ainda tão contestado entre nós, quanto a este admirável livro.
O CONGRESSO DE 1925
A época em que se deveria realizar o 3° Congresso Espírita Internacional se aproximava.
Jean Meyer, que era seu promotor e organizador, pediu a Leon Denis que lhe aceitasse a presidência.
Tudo favorecia a escolha de Denis para tal posto: Presidente de Honra da União Espírita Francesa e da Federação Espírita do Brasil; Membro Honorário da Federação Espírita Internacional e das Uniões Espíritas da Catalunha; ex-Presidente de Honra da Sociedade Francesa dos Estudos Psíquicos; Presidente efetivo dos recentes Congressos; autor universalmente apreciado por tantas boas obras e orador ouvido, religiosamente, por toda parte e de reputação incontestável, ninguém poderia negar-lhe a necessária autoridade para presidir tais debates.
Sua idade avançada e suas enfermidades lhe causavam sérias preocupações.
Tendo uma amiga insistido para que aceitasse o convite, Denis retrucou com energia: "Pensa minha amiga que eu vou presidir Congressos, perpetuamente? Tenho oitenta anos ... Congressos já presidi muitos. Para mim é uma questão encerrada e bem encerrada."
Embora rindo, ele dizia isso com segurança, pois acreditava no que dizia.
Todavia era preciso decidir-se. Jerônimo insistia para que ele fosse a Paris. Tal solicitação era para ele uma ordem. Allan Kardec, igualmente, o aconselhou que aceitasse.
Apesar de hesitar por muito tempo, acabou por ceder às afetuosas insistências de Jean Meyer.
Ajudado e aconselhado por seus grandes amigos, pôs-se ao trabalho, com empenho, estudando as questões, meditando e preparando seus discursos.
Desde o começo da Guerra, ele só deixara seu apartamento para curtos e raros passeios pela cidade; só desejava repouso, tranqüilidade e o exercício diário de seu trabalho. Todavia, como discípulo obediente, a pouco e pouco ia se entusiasmando por essa tarefa e se dedicava, com alegria, ao novo esforço que seus amigos invisíveis esperavam dele.
Durante todo o verão, envolveram-no com seus fluidos benfazejos. Na véspera da partida, houve uma última sessão das mais emocionantes. Jerônimo veio conversar, pela derradeira vez, com seu filho e Joana lhe confirmou a missão e lhe transmitiu forças novas.
No dia seguinte, o Apóstolo apareceu a seus amigos, vindos para cumprimentá-lo na estação, cheio de disposição e de entusiasmo, bem rejuvenescido.
Deveria encontrar, em Paris, a mais acolhedora hospitalidade, na casa da senhorita Chaise, sua antiga e gratuita secretária, durante a Guerra, e que se tornara proprietária de um importante hotel, a dois passos dos grandes "boulevards".
Graças a ela, não precisou mudar seu regime de vida, nem seus hábitos de reclusão. Cercado de cuidados e de atenções de sua amável hospedeira, pôde, nos intervalos dos trabalhos do Congresso, isolar-se à vontade e usufruir a quietude e do repouso necessários.
De 6 a 13 de setembro, durante essa laboriosa semana, Leon Denis assumiu os deveres de seu encargo, em excelentes condições.
Esse Congresso, que reunia os representantes de vinte e quatro nações, revestiu-se de uma capital importância.
Aproximadamente, sessenta jornais deram cobertura a suas sessões, quase com imparcialidade.
Viam-se, lado a lado, fraternalmente perfeita comunhão de idéias e de fé, o grande espírita kardecista, Leon Denis; o célebre escritor inglês, Sir Conan Doyle; o organizador e animador do Espiritismo francês, Jean Meyer e aquele a quem cabia a árdua tarefa de secretário-geral dos trabalhos, o ativo e sorridente Ripert, sempre presente e à altura de sua difícil missão.
"Era um espetáculo emocionante, disse o Mestre, vendo-se desfilar na tribuna homens de todas as raças e de todas as cores. Todos vinham afirmar, nas mais diversas línguas, a mesma fé na sobrevivência e na evolução infinita do ser, na existência de uma Causa Suprema, cujo pensamento anima o Universo. Homens eminentes nas ciências e nas letras, tais como Sir Oliver Lodge, Sir Conan Doyle e o Procurador-Geral Maxwell deram suas formais aprovações aos vibrantes discursos dos oradores. Sentia-se perpassar sobre a assistência o sopro inspirador de uma multidão invisível e os videntes confirmavam a presença de mortos ilustres, que tomavam parte ativa na elaboração de uma grande obra."
São lembradas as questões postas em estudo, no decorrer dos trabalhos.
"O Congresso terá por finalidade debater o caráter científico do Espiritismo Experimental, bem como o alcance moral e social da Doutrina Espírita no desenvolvimento da fraternidade humana."
Por seu turno, Leon Denis lhe fixava os pontos essenciais, com um tato, uma prudência e uma perfeita segurança.
Inicialmente, ele explicava, dirigindo-se à delegação britânica, na sessão inaugural, que Espiritismo e Espiritualismo são duas palavras para definir o mesmo princípio, a mesma doutrina, doutrina baseada na Ciência, na Razão, com uma fé universalista, em substituição à fé especial das religiões reveladas.
De que forma se apresenta esta nova fé?
"A primeira Humanidade teve por mãe a Natureza; a segunda teve por mãe a Religião; a terceira Humanidade terá por mãe a Luz, a Luz do Amor", profetizava Albin Valabrèque, com seu verbo ardente e colorido.
A fé espírita termina, com efeito, no Amor, porém, aconselha, inicialmente, o conhecimento da alma, do destino e de Deus. Não é somente uma fé, é um ensino, "um critério que desafia a contradição."
O Espiritismo é, portanto, antes de tudo, baseado na experimentação científica. Parte dos efeitos para remontar às causas, segundo o movimento inverso da revelação religiosa.
É preciso, contudo, distinguir a experimentação espírita da experimentação metapsíquica.
Os sábios nem sempre foram compreensivos com os pesquisadores espíritas e, por vezes, se referiram a eles com desdém.
Nem sempre temos tido motivos para elogiar os metapsiquista, dizia Leon Denis, principalmente depois do Congresso de Varsóvia; ainda hoje não há assunto algum, no campo do psiquismo, sobre o qual estejamos completamente de acordo. Todavia, damos crédito a todos esses homens de ciência, na esperança de que suas inteligências e seu saber os aproximem, pouco a pouco, do ponto de certeza a que o Espiritismo já chegou, há três quartos de século.
Sobre o que repousa essa certeza? Isto quer dizer que os espíritas possam dispensar os novos métodos de investigação baseados na observação? De forma alguma.
"Tanto quanto os metapsiquista, amamos a Ciência, pelos imensos serviços prestados à Humanidade; reconhecemos a necessidade do controle científico, porém, discordamos quanto à sua aplicação.
Os metapsiquista só vêem a matéria; os espíritas se inspiram, acima de tudo, nas leis do Espírito.
Essas leis existem?
Leon Denis responde, afirmativamente, estribado numa demorada e minuciosa experimentação. Reconhecendo, embora, os fatos do animismo, incontestáveis e incontestados, destaca, energicamente, em sua exposição a importância capital da intervenção espírita na maioria dos fenômenos transcendentais do psiquismo.
"Para todos os que, deixando de lado numerosos casos de animismo, estudam os fenômenos espíritas com imparcialidade e sabem reconhecer as leis, esses fenômenos são causados por entidades independentes, pelos Espíritos dos mortos. Não se consegue nada de conclusivo sem a assistência, o concurso e a proteção dos Invisíveis, que pertencem a todos os graus da escala evolutiva e o valor dos fenômenos que são produzidos está na relação direta com seu poder e a sua elevação.
Aí está o que os metapsiquista não conseguem entender. Não querem seguir o fio de Ariadne, necessário para saírem desse labirinto.
É pela concordância com as forças irradiantes que fluem do Foco Superior; é pela comunhão completa com as entidades elevadas, que nos facilita encontrar esse fio maravilhoso.
Ora, que fazem os metapsiquista? Buscam as provas positivas da sobrevivência, apegando-se, de preferência, aos fatos mais materiais. Não que tais experiências sejam destituídas de interesse; porém, o perigo seria menor e as possibilidades de sucesso seriam maiores, se os pesquisadores levassem em conta a experiência espírita.
O perigo vem, exatamente, da invasão fatal, no plano físico, de legiões de Espíritos levianos e mistificadores, que, pouco evoluídos ou sofredores, geralmente trazem um elemento de confusão em tais pesquisas. E são os médiuns que sofrem suas deprimentes conseqüências.
O velho Mestre dirigia a todos suas palavras de prudência e alta sabedoria.
"Sem dúvida que é bom abrir caminhos, para penetrar no mundo invisível, mas tomemos cuidado, porque esses mesmos caminhos favorecem a invasão pelos piores elementos desse mesmo mundo.
A Humanidade já não traz consigo tantas causas de sofrimento, de aflições e de conflitos para lhe acrescentar ainda mais a fonte de outros males?"
Uma tal incompreensão está, com efeito, sujeita a graves conseqüências, pois se arrisca a movimentar forças cujo controle lhe escapa.
É nesse caso que aparece, imperiosa, a necessidade de "guias" seguros, para nos conduzirem no meio do emaranhado dos fenômenos.
Que é preciso para se obter uma tal proteção? "Possuir qualidades especiais: a sinceridade e o desprendimento; acima de tudo, a busca de uma boa moral, o desejo de instrução, de elevação e de aperfeiçoamento. Os "Espíritos Guias" lêem nossos pensamentos e só concordam em descer ao nosso planeta inferior e a suportar os fluidos malsãos que envolvem a Terra, apenas para servirem a uma Causa nobre e generosa."
Aqui está o limite entre a Ciência e a Religião. Os metapsiquista chegarão até lá? O Mestre tem esperança. "Talvez, por intermédio deles, a Ciência empunhará o facho do ideal que simboliza a fé superior."
É para essa Ciência que o Espiritismo alerta, com toda a sua força. São palavras serenas, cheias de um profundo sentido, que encontraram guarida no pensamento de todos.
Sentia-se que, realmente, Leon Denis era a alma irradiante desse Congresso Internacional e que o Grande Iniciador, a seu lado, o aprovava, sem reservas.
Era maravilhoso de ver com que tato, com que facilidade, com que autoridade o velho apóstolo, quase cego, conduzia esses importantes debates, pondo cada um em seu lugar, afastando as digressões, velando para que a ordem do dia fosse respeitada.
Grande número de seus companheiros de luta, entre os quais o saudoso Henri Sausse, ali estavam, felizes por ouvirem, pela última vez, a voz persuasiva e ardorosa, que os havia, outrora, arrastado, sustentado e reconfortado, na batalha das idéias.
Quantos admiradores, uns de cabelos encanecidos e outros, exuberantes de juventude, exultavam por conhecerem, enfim, o autor dos belos livros que lhes haviam trazido a consolação e a esperança!
As felicitações, os elogios, as mais tocantes demonstrações de respeito e de veneração chegavam a ele. Esses testemunhos, onde se percebia a maior sinceridade, eram, sem dúvida, agradáveis ao seu coração, porém, na sua modéstia, causavam-lhe constrangimento. Uma palavra amável, um sorriso, um aperto de mão e, rápido, ele se esquivava; tinha pressa em reencontrar o silêncio e a tranqüilidade do quarto do hotel.
Foi durante esse Congresso que se firmou, definitivamente, a amizade de Leon Denis com Sir Conan Doyle. Uma grande simpatia nascera entre eles, pelo devotamento à mesma Causa.
O ilustre escritor britânico, já o dissemos, admirava, sem reservas, o caráter e o talento do autor de Joana D'Arc, Médium, a obra que ele mesmo quisera traduzir e apresentar a seus compatriotas.
E Leon Denis apreciava o grande romancista inglês pela sua coragem de divulgar pelo mundo, através da pena e da palavra "a Nova Revelação".
Os dois homens mantinham entre si a maior consideração. O bom gigante inglês se curvava perante o ancião quase cego, conduzia-o, com uma solicitude encantadora, pelos meandros dos corredores da "Sociedades dos Sábios" e o ajudava a se sentar à mesa.
O bom Mestre sentia-se encantado por isso.
- "Como é Conan Doyle? Eu o enxergo muito mal!" - "Ele é muito grande, respondíamos. Tem uma bela cabeça redonda, olhos cinzentos e bigodes à gaulesa.
- "Não é anglo-saxão. Vejam o seu nome: Conan, o chefe, é um nome bretão."
E mostrava-se encantado pelo bom acolhimento e pelo sucesso que Conan Doyle obtivera em Paris.
Leon Denis estava inteiramente maravilhado com a organização da Casa dos Espíritas e do Instituto Metapsíquicos Internacional. Era a realização da idéia tão longamente desejada pelos primeiros campeões da Causa, uma realização que ultrapassava as mais ousadas esperanças. Uma grande animação dominava a Rua Copérnico: acabavam de instalar uma notável exposição artística, que deveria prender a atenção de muitos visitantes. Pascal Fortuny, Hubert Forestier, o jovem e ativo secretário particular de Jean Meyer, secundados pela senhoras Doche e Ducel, faziam, com uma encantadora amabilidade, as honras da casa.
Em seu discurso de encerramento, evocando o anterior Congresso de 1900, Leon Denis estabeleceu um impressionante paralelo entre os dois acontecimentos.
"Hoje não é mais numa construção de tábuas que sois recebidos , é num hotel magnífico, admiravelmente apropriado a todas as necessidades da Causa, tendo múltiplos serviços.
É uma obra completa e harmônica. Este local que todos conheceis está completado por um Instituto que possui todos os aperfeiçoamentos necessários à experimentação.
Tudo isso é devido a Jean Meyer, a quem tenho a felicidade de expressar a gratidão do Congresso inteiro pelos enormes sacrifícios que fez para dar à nossa obra uma apresentação digna, merecedora do respeito e da consideração de todos.
Além disso, devo agradecer a perseverança e a vontade obstinada com as quais, mesmo no meio das inúmeras dificuldades, Jean Meyer soube preparar esses grandes alicerces do Espiritismo, assegurando-lhe sucesso.
Nessa mesma sessão, Jean Meyer, vice-presidente da Federação Espírita Internacional, agradecendo aos congressistas, teve para com o velho Mestre afetuosas atenções, que lhe sensibilizaram o coração:
"O venerando Membro de Honra de nossa Federação Espírita Internacional e Presidente de Honra da União Espírita Francesa, o sr. Leon Denis, cuja obra memorável reanimou a esperança em tantos corações desesperados e cujos ensinamentos inspirados fizeram renascer entre muitos desiludidos a confiança e a certeza de uma vida melhor, o sr. Leon Denis não recuou, apesar da idade avançada e nem diante das fadigas de uma viagem, para trazer à nossa Assembléia a honra e a felicidade de sua presença."
Rompendo com seus hábitos de recolhimento, o Mestre aceitou o convite de seu amigo, que convidara os congressistas para uma recepção, na terça-feira, 8 de setembro, na Rua Copérnico.
Foi uma reunião das mais encantadores, onde se aglomeravam, numa atmosfera realmente fraternal, espíritas provenientes dos quatro cantos do mundo, onde senhoras da alta sociedade se misturaram, com a maior simplicidade, com as mais modestas delegações.
Nessa recepção, fizeram-se aplaudir reputados artistas: a senhorita Marie Charbonnel, da ópera de Paris; a sra. Barjac, da Comédia Francesa e Léonce Detroyat, jovem laureado do Conservatório.
Na véspera da partida, um lanche de despedida foi servido, em homenagem a Leon Denis, sob os cuidados de sua amável hospedeira, nos salões do hotel, sendo convidados apenas os amigos íntimos de Denis.
O casal Jean Meyer tinha vindo cumprimentar e agradecer ao seu velho amigo. Antes de seu retorno, a senhorita C., da ópera de Paris, uma de suas mais fiéis admiradoras, cantou para ele, com sua voz privilegiada, algumas das árias escolhidas de seu repertório.
Foram levantados numerosos brindes à sua saúde e ao sucesso da Causa Espírita. Denis estava deveras feliz. Não quis voltar a Paris, sem antes participar do pão da amizade com o pastor Wautier d'Aygalliers, professor de Teologia, na Sorbonne.
No dia seguinte, o velho Mestre voltava para Tours, levando de sua viagem a melhor e a mais reconfortante das impressões. Tudo tinha saído bem. Desse labor, junto com espíritas de todas as nações, nascera, verdadeiramente, uma amizade geradora de reconforto e de esperança. A Nova Revelação despertava, indubitavelmente, as atenções gerais.
A semana que terminara tinha, em verdade proporcionado bastante alegria ao Apóstolo Espírita, que não manifestava o menor traço de fadiga.
"Fui poderosamente ajudado, repetia. Meus amigos invisíveis me sustentaram. Como duvidar do valor desses socorros?"
A volta foi feita sem dificuldades. Sua boa hospedeira parisiense, a senhorita Chaise , fez questão de levá-lo, em seu próprio carro, até à estação de Orsay.
Quatro horas depois, seus amigos de Tours, que estavam à sua espera, mostraram-se admirados e felizes por vê-lo regressar em tão boa forma e visivelmente satisfeito por essa última jornada.
O GÊNIO CELTA E O MUNDO INVISÍVEL
Como não tivesse oportunidade de falar tudo no Congresso, Leon Denis recomeçou sua colaboração na Revue Spirite, para dar aos experimentadores os mais prudentes e judiciosos conselhos, em matéria de mediunidade.
No mês seguinte, voltou a se ocupar, com um carinho particular, de uma idéia que lhe era muito querida, desde sua iniciação na propaganda espírita. Seus artigos sobre o "Celtismo", na Revue Spirite de Allan Kardec, são de um interesse capital, já que o próprio Codificador sobre isso também escreveu.
Certa passagem de uma comunicação mediúnica anunciava a obra, que estava ainda em gestação no pensamento do Mestre:
"Chegamos a uma nova fase da evolução humana, pois, há fases na História, como na vida dos mundos e dos indivíduos. Todavia, em cada raça e em cada país dormita a centelha divina, que se revela e reaparece sob a forma de tradições.
Entre nós, a tradição remonta aos Celtas e é ela quem salvará o país.
O grau de elevação, em certos indivíduos, já se encontra bem desenvolvido, porém, por outro lado, as ambições materiais, muitas vezes, o entravam.
Eis porque esses artigos sobre a tradição céltica, tendo um certo valor como documentos premonitórios, devem ser conservados."
Os leitores da Revista ficaram surpresos, sem dúvida, por não verem mais, no cabeçalho dos números seguintes, o habitual artigo do velho Mestre. Já com 80 anos feitos, Leon Denis começava a escrever seu derradeiro livro: O Gênio Celta.
Adivinham-se, facilmente, as dificuldades que deveriam surgir de um tal trabalho.
Leon Denis, quase cego, cheio de enfermidades, não podendo dispor de sua secretária a não ser algumas horas por dia, estava numa completa impossibilidade de se consagrar pessoalmente às pesquisas necessárias.
Que importa! Os meios lhe seriam dados. Traziam lhe as obras solicitadas. Eram lidas para ele. Denis toma notas, estuda e compara os textos. A senhorita Baumard, faz o melhor que pode para ajudá-lo em seu trabalho.
Por via mediúnica, as mensagens lhe são transmitidas, regularmente, aplainando o caminho que ele mesmo deveria aclarar.
Pouco a pouco, esboçam-se os capítulos em sua facilidade, elaborava a nova obra, página por página.
O trabalho avança rapidamente. Denis está em pleno ardor de elaboração, quando chega a Tours o jovem e ardoroso escritor espiritualista, muito conhecido, Gabriel Gobron. Ele viera fazer uma conferência na Universidade Popular.
O Mestre admirava o talento seguro, valente e vigoroso do autor de "L'Ermonec", seu entusiasmo e seu ardor combativo.
Recebeu-o em sua casa, falou-lhe da obra em andamento e o impressionou pelo encanto de sua simplicidade e a juventude de seu espírito, e deixou no coração do "celta das Ardenas" um reconhecido sentimento de emulação.
Na sexta-feira de 12 de novembro, num agradável artigo do "L'Est Républicain", Gabriel Gobron saudava "o velho druida de Lorena" que, na província de Tours, às margens do Loire gaulês, reanimava a centelha, que parecia extinta, do celtismo imortal.
Alguns meses depois, no decorrer desse inverno tão bem aproveitado, e que deveria ser o último de sua vida terrena, André Ripert, o distinto secretário-geral da Revue Spirite, veio, por sua vez, fazer uma conferência sobre o Psiquismo Transcendental, na Universidade Popular de Tours.
Ele foi, igualmente, hóspede do Mestre e, perto dele, sentiu-se com novas forças e mais segurança.
Leon Denis confirmava ao novo propagandista o que dissera a Gabriel Gobron:
"Tenho amigos no Além, que me protegem e me sustentam com um zelo extremado."
Muito naturalmente, falava aos dedicados obreiros da Causa das boas novas que recebia do Alto e isso com uma tranqüila e serena segurança, que não deixava de impressionar seus simpáticos visitantes.
Passou o inverno normalmente, exceto um ligeiro ataque de gripe, que o reteve na cama apenas alguns dias. Seu trabalho não foi interrompido.
No mês de março, o manuscrito estava concluído. Era só remeter à tipografia essas folhas, terminadas com uma pressa febril, como se Denis pressentisse sua breve partida.
“Bendito seja o Druida, primeiro sacerdote e primeiro apóstolo da França! Graças à sua inspiração, os Espíritos desencarnados puderam dessedentar-se nas taças que divulgam a luz divina. Que as vibrações do espírito celta jamais cessem! Que os horizontes se aclarem sobre nossa bela Pátria! Que as almas mais cândidas, mais elevadas tenham mais interesse por vós, oh!, meu Deus!”.
Que este livro, escrito com sinceridade e com elevação, em consciência pura, permita a todos os franceses dirigirem suas almas para o Infinito.
Que a luz celta se alie à fé toda poderosa de Deus!
Foi em março de 1927 que apareceu, na Revue Spirite, seu último artigo: "Renovação".
Nessas páginas lúcidas e vigorosas, estão admiravelmente resumidas e esclarecidas as idéias centrais de seu livro, a saber: que a França, impregnada de celtismo e, necessariamente, cristã, deve continuar no mundo seu papel de pioneirismo, porque, sem seu concurso, nada se fará de sólido e de duradouro.
Toda a obra tendia para esta conclusão: "E' nas mais antigas tradições de nossa raça que dormitam as potências da vida, e os recursos de reerguimento da nação francesa ameaçada em suas energias vitais."
O Ideal celta! Não seria ele o clarão entrevisto, para o qual se orientam nossas mais íntimas aspirações? Recordemos a data de suas primeiras conferências sobre o "Gênio da Gália": 1883! Veio, em seguida: "Missão de Joana D'Arc", em 1888; depois, "Filosofia da Revolução".
Os mais eloqüentes capítulos de sua obra são consagrados a essa questão.
Em "A Verdade sobre Joana D'Arc", "O Grande Enigma", "O Mundo Invisível e a Guerra" e em inúmeros artigos publicados durante meio século, Denis estuda e reexamina, sob todos os aspectos, a idéia que considera capital: que o Espiritismo atual é, no fundo, o renascimento das práticas celtas e que ele contém um elemento de renovação que deve ser levado em grande consideração.
Esta concepção não é incompatível com a religião cristã. As duas crenças, muito longe de se entrechocarem, têm condições de se juntarem.
"A doutrina celta se dirige principalmente às almas valentes, que se esforçam por alcançar os altos cumes, a todos que vêem na vida uma constante luta contra os instintos inferiores, consideram as provações como uma purificação e evolui rumo à Luz, rumo à Suprema Beleza.
O próprio Cristianismo é o Espírito complacente que se debruça sobre o sofrimento humano; é a Providência que consola, sustenta e releva; é a mão protetora que guia a ovelha tresmalhada e a reconduz ao aprisco. Essas duas doutrinas se completam, reciprocamente, e se harmonizam, para constituir um elemento de perfeição."
Se Leon Denis, aos 80 anos, se impusera à tarefa de escrever esse livro, foi por sentir que seu "Depois da Morte" precisava de um complemento que determinasse, com força e clareza, o objetivo de seu pensamento.
Esse pensamento era o seguinte: "o Espiritismo kardecista não é outra coisa que uma adaptação das crenças de nossos ancestrais à nossa mentalidade moderna, porque coincide, exatamente, com o druidismo "e constitui um retorno às nossas verdadeiras tradições étnicas ampliadas pelos progressos da Ciência e confirmadas pelas vozes do Espaço."
Os que estivessem inclinados a contestar essa vinculação poderiam certificar-se, lendo esse livro, que ela está solidamente defendida.
No que toca à Revelação Espírita, libera cada um para fazer sua apreciação, na medida das buscas que todo pesquisador de boa-fé pode recolher em semelhante matéria.
Um bom número de pessoas já mantém essa opinião ... É a essas pessoas que o Mestre se dirige, quando declara, em sua habitual modéstia, que ele se julga pouco qualificado para ousar acrescentar alguma coisa aos trabalhos dos eminentes historiadores que o precederam, nesse domínio.
"Com tantas páginas sobre tal tema, eu não teria imaginado em acrescer qualquer coisa, se não tivesse um elemento novo para oferecer aos leitores, a fim de elucidar o problema de nossas origens, isto é, a colaboração do Mundo Invisível.
Com efeito, foi pelo incentivo de Allan Kardec que realizei esse trabalho."
Ora sabe-se que o grande Iniciador se considerava um Celta dos tempos passados; o nome que ele tomou e o dólmen que puseram em sua tumba atestam sua verdadeira origem.
Com atitudes por vezes contraditórias, pelo menos inseguras, certos escritores combateram violentamente o que eles chamam de preconceitos de raças, que nem por isso deixam de existir.
"Nós, franceses atuais, somos os descendentes dos Gauleses; latinos pela cultura e Celtas, pelo sangue."
Ele invoca, ainda, o magnetismo especial de um solo e de um meio, onde as gerações celtas se sucederam, através de séculos e séculos.
Sem dúvida, concorda Denis, numerosas colônias estrangeiras se instalaram entre nós, ao longo dos tempos, mas foram absorvidas pelos autóctones.
Só os francos, os visigodos e os burgúndios se fixaram na Gália, definitivamente.
Quantos eram eles? Uns e outros chegavam a alguns milhares de famílias. É preciso ajuntar, no Sul, a chegada dos focences, romanos, sarracenos e catalães, todavia, o elemento gaulês predominava por toda parte, numa grande proporção.
Sem negar a influência do solo, que deixa marca indelével no homem, no animal e nas plantas, não é certo se pretender que a mistura das raças está hoje totalmente realizada.
Elas tendem amalgamar-se, cada vez mais, porém, os "tipos" ainda permanecem, apesar das condições do meio.
Transplantados para a América, que é o berço da raça vermelha, os brancos, os negros e depois os amarelos conservaram sua cor original.
Em nossa época, é relativamente fácil distinguir um celta de um germano, de um latino, ou de um eslavo. Pode-se dizer que a presença celta predomina em toda a extensão do Extremo Ocidente.
Apoiando-se em trabalhos de eminentes celtistas, como Arbois de Jubainville e Camille Jullian, Leon Denis reconstitui, numa panorâmica, os principais episódios da invasão celta que, mais ou menos na época de Homero, dominou, em seu duplo fluxo gaélico e kínrico, as terras do Oeste europeu.
Todo o primeiro capítulo é consagrado à Irlanda, "a ilha verdejante, tão cara aos corações celtas", antigo santuário dos druidas. Mais do que qualquer outra região, "Erim" conservou a intuição do Ocultismo:
"Desse oceano de forças e de vida, povoado de multidões incalculáveis, cuja influência se estende sobre nós e segundo nossas disposições psíquicas, nos protege ou nos perturba, nos entristece ou nos alegra."
A Ilha dos Magos do Ocidente e, mais tarde, dos santos fundadores de mosteiros, ficou até hoje sendo a "Ilha dos Bardos", pois seus grandes escritores conservaram a mentalidade de outrora: um Yeats, um Georg Russel mergulham, graças às suas raizes íntimas, no velho fundo místico que sempre alimentou a alma gaélica impressionável, nostálgica, atormentada e apaixonada pelos mistérios do Além.
E Leon Denis destaca, com vigor, quanto é significativa, na hora atual, a ação paralela, no campo científico, de um Crawfort, em Belfast e de um Barett, em Dublin.
Da poética Irlanda, o autor nos conduz ao austero e grave País de Gales e, após, à Escócia nevoenta, onde a ação das forças subterrâneas e do mar está marcante, de maneira indelével, na estrutura das costas e dos montes de basalto e de granito.
Como a indomável Irlanda, o País de Gales e a Escócia souberam resguardar, apesar das perseguições seculares dos conquistadores saxões, sua língua e sua autonomia.
Sobretudo na antiga Câmbria, pátria do rei Artur e dos Cavaleiros da Mesa Redonda, o antigo bardismo pôde perpetuar-se, ao longo da História, conservar suas tradições secretas e renascer no moderno bardismo que não é mais do que um bardismo moderado pelo desgaste dos séculos.
Entretanto, o movimento renascentista, desabrochado há uns 60 anos, pôde estender-se e florescer, Além-Mar, onde se encontre um foco de celtismo, por menor que seja, prova que não houve esquecimento definitivo e que a fagulha estava dormitando sob as cinzas.
"Cardiff e o condado de Glamorgan se tornaram os mais íntimos centros da propaganda celta, onde se imprimem e se publicam (em língua celta) todas as obras dos bardos antigos e modernos."
Entre os bretões das ilhas e os da Armórica - o autor observou bastante - a diferença de mentalidade não é muito grande. Suas línguas apresentam analogias marcantes. A maior parte da população da Bretanha francesa descende dos emigrantes de Câmbria e da Cornualha, que ali se fixaram, na época da invasão saxônia, pelos fins do século V.
O bardismo, na Armórica, é, sem dúvida, mais discreto, mais apagado que no País de Gales.
Entretanto, as populações mantiveram o amor pela língua materna. Muitos intelectuais sonham, para sua província, não um separativismo ineficaz, porém, uma autonomia maior, semelhante à autonomia gaulesa, principalmente pela restauração de suas tradições antigas.
A característica do bardismo bretão, disse Leon Denis, é ser, como o irlandês, profundamente impregnado de Cristianismo, ou melhor, de Catolicismo, o que, aliás, altera seu verdadeiro caráter.
O fundo mesmo da alma da raça não mudou. Irmã da alma irlandesa e cambriana, é encontrada na obra de um Chateaubriand, de um Renan, de um Brizeux ou de um Le Braz, igualmente plena de música e de poesia, melancólica e sonhadora, sequiosa do Infinito.
Das margens da Armórica, eriçada de menires, Leon Denis nos guia para os altos lugares da Arvênia, onde, outrora, se erigiam os templos gauleses, entre os "cheires", os vales e as profundas florestas.
Da mesma forma como percorreram, bastão em punho, os santuários dos druidas, no país dos dolmens e dos perdões assim como quis conhecer a fundo a Arvênia, o antigo reinado de Bituit e os trágicos locais de encontro entre os exércitos gauleses e as legiões romanas: Gergóvia e Alésia!
"Lugares sagrados, onde a alma celta gosta de se recolher para meditar e orar."
É preciso ler as admiráveis e penetrantes páginas, dignas de nossos maiores historiadores, consagradas a César e a seu jovem e heróico adversário.
E o périplo acaba em Lorena, em Donon e em Santa Odila, "baluarte de defesa do mundo celta contra os germanos". Vercingetorix leva naturalmente a Joana D'Arc.
O capítulo que Leon Denis consagra à sua terra natal é impregnado da mais pura emoção.
Ele reúne suas recordações e se apossa dessa terra santa; reencontra, como espírita, em torno do Boi Chenu, os divinos poderes esparsos no vale do Mosa, ao mesmo tempo celta, latino e católico, como ali vira o agnóstico Maurice Barrés.
Denis evoca, junto à fonte das Groselheiras, a ronda das Druidesas.
Vidente e inspirado, Joana lhe aparece como irmã de Veleda, como a mais encantadora e a mais tocante personificação da alma celta, dominada pela intuição desse mundo celeste para o qual tendem as mais nobres aspirações dos homens. E Joana de Domrémy, o "Espírito Azul", mais uma vez veio abençoar essas grandiosas páginas em sua memória, num piedoso e nobre pensamento.
A segunda parte do livro trata mais especificamente do Druidismo, das Tríades Bárdicas, da Palingenésia, da experimentação espírita que se relaciona intimamente com essas questões.
O autor completa, bem oportunamente, os dados imperfeitos que temos sobre esses sacerdotes-filósofos do Ocidente, que foram, se acreditarmos nos Mestres Alexandrinos, os verdadeiros inspiradores da sabedoria antiga.
Ele lembra a frase de Valério Máximo, declarando, sem vacilações, que os gauleses, com suas bragas, pensavam da mesma forma que Pitágoras com seu manto.
Que nos legaram os Druidas com seus profundos ensinamentos?
Deles só sabemos, observa o autor do "Gênio Celta", o que os historiadores latinos nos disseram. O único documento escrito que nos resta, está, de forma indireta, na "Tríades Bárdicas", da qual, aliás, só temos uma reprodução imperfeita.
Mas, mesmo assim, com sua forma alterada pelas sucessivas redações, ainda constituem o único documento verdadeiramente filosófico.
Sua autenticidade tem sido contestada e até mesmo sua originalidade, que é impressionante.
É preciso ver, nesses velhos cânticos gaélicos, uma exposição verídica dos ensinos secretos dos antigos bardos.
O que se destaca, antes de tudo, nessa "Síntese dos Druidas", é a curiosa analogia que ela apresenta com a Doutrina Kardecista. Leon Denis dá uma explicação, acompanhada de muito bom senso.
No lugar de tentar explicar a semelhança de pensamentos entre os brâmanes, os pitagóricos e os druidas por trocas mútuas, é muito mais simples, mais lógico atribuir essas semelhanças, diz Leon, a revelações idênticas, provenientes do Mundo Invisível.
Leon Denis se entrega a um estudo aprofundado desses documentos admiráveis, onde o "néo-espiritualismo" se acha exposto - por antecipação - com uma segurança e uma penetração sem par.
Um capítulo do mais alto interesse é consagrado, mais adiante, à religião dos Celtas, expressamente baseada na correspondência entre o mundo material e o Mundo Invisível, nas influências dos astros e no poder misterioso dos seres e das coisas.
As considerações políticas e sociais, expostas no final do livro, acabam por lhe conferir um caráter de real oportunidade.
As lições que contém são, com efeito, de uma extraordinária oportunidade, seja porque se trate do papel da mulher nas sociedades modernas ou das aspirações espirituais das novas gerações.
Para a França, em particular, elas possibilitam condições de um possível reavivamento, nestes mesmos momentos em que os franceses se inquietam, ao descobrir em derredor os sintomas preocupantes de um relaxamento, que poderia, rapidamente, tornar-se irremediável.
Para que nossa Pátria reassuma seu verdadeiro lugar no mundo, é indispensável que saiba realmente o que é: celta ou latina?
Ela sempre hesitou, no curso de sua História, entre essas concepções opostas; daí, afirma Denis, provém o caráter intermitente da sua ação.
Ora ela se diz celta e, então, apela para esse espírito de liberdade, de retidão e de justiça, que caracteriza a alma da Gália; (donde o movimento de emancipação comunal, após a Revolução); ora se diz latina e, desde então, vão reaparecer todas as formas da opressão monárquica e teocrática, a centralização administrativa imitada dos romanos, com a habilidade e os subterfúgios de sua política, os vícios e as corrupções dos povos envelhecidos.
Retornar à sua índole primitiva é retornar à descentralização, ao federalismo das repúblicas gaulesas.
Não haverá nisto um perigo?
O que, de fato, faltava na Gália eram a ordem e a disciplina, atributos do gênio romano. Em compensação, essa ordem e essa disciplina implacável têm colocado, mais tarde, sobre a França um jugo que não é de sua índole suportar, quer seja militar, monárquica ou teocrática. Nosso país, disse o Mestre, só retornará à flexibilidade e à plenitude de sua própria índole através de um regime de verdadeira liberdade, de uma verdadeira democracia.
Essa democracia é preciso ser criada.
A França contemporânea aspira a uma nova ordem. Nem a Igreja, nem a Universidade conseguiram, no passado, dar a nosso país uma visão nítida de seu destino. Só enxergavam Roma, herdeira da Grécia, na obra da civilização.
Sem desmerecer o que devemos aos países latinos, Leon Denis afirma que o princípio de nossa grandeza e a razão de nosso equilíbrio moral residem no retorno às verdadeiras tradições celtas.
"Seria uma grande causa de fraqueza e, por conseqüência, uma desgraça para a França, ficar desprovida das noções exatas sobre a vida e a morte, de acordo com as leis da Natureza e das intuições profundas da consciência. Durante séculos, ela havia esquecido suas tradições nacionais e perdido de vista o gênio de sua raça, assim como as revelações dadas a seus ancestrais, para dirigir sua caminhada para um fim elevado."
Mas, eis que a Revelação se repete e se renova. Como nos tempos dos Celtas, o Mundo Invisível interfere.
É à França que cabe, hoje, entrar, resolutamente, na via traçada pelos antepassados e ela não deve mais falhar em sua missão.
Tal é esse grande livro, ainda palpitando da fé do apóstolo, livro onde as admiráveis mensagens de Allan Kardec e de Joanna de Domrémy apresentam um caráter de sinceridade singularmente emocionante.
Qual será a sorte desse último livro? É preciso aguardar as circunstâncias propícias, a oportunidade de lhe garantir a difusão. Desejamos que ele leve aos celtistas sinceros da França e da Inglaterra uma confiança maior no valor da antiga raça que é a única capaz de reanimar a luz do Espírito por sobre o mundo ocidental, mergulhado na confusão trágica de um baixo materialismo que só pode conduzir para as decepções e para as piores catástrofes.
OS DERRADEIROS MOMENTOS
A correção das provas do "Gênio Celta" estava no final.
Leon Denis acabava de ditar as últimas linhas do prefácio que Jean Meyer lhe encomendara, para uma nova edição da biografia de Allan Kardec, quando foi obrigado a se recolher ao leito.
Havia trabalhado, em todos esses últimos tempos, com uma pressa febril. Teria ele o pressentimento de seu próximo fim? Seus amigos foram os últimos a perceber.
A devotada empregada, que estava a seu serviço desde o fim da Guerra, a excelente Georgette, já bem notava que seu patrão se tornava cada vez mais pesado, que seu apetite diminuía e que se levantava cada vez mais tarde; isso, porém, acontecendo no fim de um inverno longo e frio, e que o havia mantido completamente enclausurado, não era motivo para alarme, apenas era para se ter cuidado.
Na terça-feira de 5 de abril, à tarde, a senhorita Baumard, notando seu estado febril, voltou, na manhã do dia seguinte, para saber notícias de Denis.
Assim que chegou, ela perguntou ao doente: - "Como passou nesta manhã, sr. Denis?"
- "Veremos isto mais tarde, respondeu-lhe ele. Já que está aqui, corrija-me esta prova, para levá-las, hoje, à tarde, para a tipografia."
Enquanto trabalhavam, a secretária e Georgette notaram que ele havia deixado a metade de seu almoço. Doía-lhe a garganta e sentia dificuldade para engolir, mas ficou de pé, a andar pelo apartamento.
Cambaleava, por vezes, como se estivesse deprimido por uma grande fraqueza.
À noite, Georgette lhe disse: - "O sr. está resfriado. É bom chamar o médico."
O Mestre balançou a cabeça; foi à janela, abriu-a toda e respirou longamente o ar fresco que entrava em profusão.
Durante a noite, passou mal.
Na quinta-feira, ficou de cama e recebeu a visita do médico, que se mostrou muito pessimista. Entretanto, no dia seguinte, logo cedo, Denis se levantou.
Por todo o dia, permaneceu em sua poltrona.
Parecia recuperado. Conversou com o médico, que viera vê-lo e aos seus amigos parecia estar bem.
No dia 9, porém, declarou-se uma pneumonia. Logo, a doença o dominou e o foi enfraquecendo, rapidamente. Sua respiração se tornava cada vez mais ofegante. Conservava toda a lucidez, mas articulava as palavras com dificuldade.
Seus esforços, entrecortados por sufocações, seus prolongados silêncios, seus esforços para se comunicar bem, provocavam uma situação comovente, que constrangia o coração de seus amigos e marejavam de lágrimas seus olhos.
Admiravam a fortaleza daquele pensamento, que não concordava em se render, face à desagregação iminente, que colocava as palavras em seu devido lugar, com precisão admirável, retomava-as quando se pensava que estivessem perdidas e as reencaminhava, até completar a frase, apesar da opressão, da tosse terrível, com uma lógica inflexível e elegância, que caracterizavam tanto sua conversação, como seus discursos.
Até nos momentos supremos da agonia, quando o coração não conseguia mais alimentar o cérebro e reaquecer o pobre corpo enfermo, a "psique" permanecia nele como um derradeiro raio que não quer concordar em se extinguir.
Essa lucidez extraordinária, para os que o velavam era motivo de espanto e de admiração.
Em seus momentos de descanso, Denis tentava contar fatos curiosos e pedia para que lhe lessem o jornal, a fim de saber como estavam os acontecimentos na China. Preocupava-se em saber se a enfermeira estava confortavelmente instalada em sua casa.
Seu livro "O Gênio Celta e o Mundo Invisível" o ocupou até o fim. Todavia, já terminada a tarefa, o bom obreiro merecia descansar; entretanto, gostaria de lhe ter acrescentado uma reflexão final.
Na terça-feira, 12 de abril, pelas 13 horas, o grande ancião só respirava com extrema dificuldade.
A vida parecia abandoná-lo, mas seu infatigável pensamento se recusava a ceder suas prerrogativas à morte que se apressava.
Articulou, com últimas palavras:
"Georgette (disse ele, dirigindo-se à sua criada, debruçada à sua cabeceira, para sustentá-lo), você foi capaz de compreender ... se quiser. Você sabe ... o que você vai ver ... chegar. Você sabe ... o que foi escrito ... é a expressão da Verdade ... da Verdade ... toda nua". E acrescentou em seguida: "Você terá que ouvir sarcasmos ... mas isso lhe deve ser ... indiferente."
Alguns instantes depois, Leon Denis, retomando a palavra, pela última vez, pronunciou estas palavras, legando à posteridade o exemplo de um labor ininterrupto, até mesmo à beira da tumba:
"É preciso terminar, resumir e ... conclusão (ele fazia alusão ao prefácio da biografia).
" - Fique calmo, respondeu-lhe sua fiel e devota secretária. Tudo irá bem."
Denis prosseguiu: "Envie a Meyer ... no dia 15." Foram suas derradeiras palavras. Nada mais podia, além de apertar, fracamente, as mãos de seus amigos.
Sua vida não era nada mais que um sopro e o sopro já não era mais que um estertor.
De seus lábios escapavam, por vezes, palavra ininteligíveis.
Seus olhos, constantemente abertos, pareciam fixar o mesmo ponto do espaço. Que via ele? Que ouvia? Seu rosto refletia uma serenidade perfeita.
Às nove horas, repentinamente, o estertor cessou. A enfermeira fez sinal para os familiares se aproximarem.
Mantinha na sua, a mão inerte do velho Mestre. Denis parecia em êxtase.
Fato notável: a expressão de seu olhar não havia mudado. Um silêncio pleno do mistério do Além impregnava o quarto.
A missão terrena de Leon Denis acabara.
Os funerais se realizaram a 16 de abril. Ele pedira um enterro modesto, sem ofício religioso de nenhuma igreja.
Foi o pastor Wautier d'Aygalliers que veio, em nome da amizade que os unia, assistir à transladação do corpo. Uma assistência comovida conduziu ao Cemitério de Lã Salle os despojos mortais do Mestre.
Na Praça das Artes, ao sair o corpo da casa mortuária, uma multidão respeitosa estava aglomerada para saudar o respeitável ancião, que Tours ignorava ter ele sido uma de suas mais puras glórias.
Coroas de sempre-vivas amarelas cobriam o carro fúnebre. Não havia outras flores.
Liam-se, nas coroas:
- "Ao Amigo, ao eminente colaborador, a Revue Spirite, seu Diretor e seus leitores agradecidos".
- "A Leon Denis, seus amigos pessoais, lembrança sincera e afetuosa."
Uma quarta coroa era oferecida pela cidade de Tours.
O cortejo mortuário era conduzido por Gaëtan Chauvigné e Gaston Luce, ambos amigos pessoais de Leon Denis; Jean Meyer, infelizmente retido em Paris pela gripe, estava representado por seu secretário particular, Hubert Forestier.
À beira do túmulo, Wautier d'Aygalliers prestou uma última homenagem ao venerando Mestre. Recordou, com emoção, aquela vida tão bela e tão nobremente vivida.
Enalteceu a sua obra - tão alta e de tão generosa inspiração - depois leu algumas passagens de "Depois da Morte", especialmente a prece de Jerônimo de Praga, recebida em mensagem mediúnica.
O sol, rompendo as nuvens que, pela manhã, lhe impediam a luz, envolvia agora os acompanhantes, em torno da sepultura, com uma serena luminosidade.
Após os discursos, cada um atirou sobre o caixão um ramo de sempre-vivas, retirando-se ao som dos sinos da Páscoa, que falam da Ressurreição.
Cap. VI
O HOMEM
Leon Denis era de estatura mediana e tinha ombros largos.
Andava balançando os ombros, como um velho lobo do mar.
Nele tudo dava impressão de força e solidez.
Quando jovem, esse loreno, filho de artesãos, devia possuir um real vigor físico, mas, logo cedo, o trabalho intelectual intenso a que ele se entregou dominou a maior parte de suas energias.
Sua saúde ficou delicada, mas isso não o impediu de ser um intrépido andarilho.
Em seus últimos anos, ele ainda espantava seus amigos pela maneira como subia ao segundo andar.
Quem se aproximasse dele, sentia que a força de vontade o dominava, soberanamente.
Queixo proeminente, sobrancelha cerrada e palavra lenta, clara, fácil, demonstravam uma auto-segurança.
No retrato, que tem sido reproduzido em várias de suas obras e nas revistas - foto que tem cerca de 50 anos - esses dados se notam claramente.
Sob a fronte moldada em relevo, a Victor Hugo, o rosto que mostra o bigode típico gaulês que irradia inteligência .
Em sua velhice, as faces e o queixo estavam envoltos numa barba longa emaranhada.
O olhar tinha perdido o brilho, sem deixar de continuar claro, apesar da cegueira quase total.
Os olhos, de um cinzento azulado, pareciam ocultar a chama que se retirava para o fundo, afastada e distante. Dessa forma é que ele aparecia aos visitantes, com um aspecto um pouco monacal, envolto num roupão amarrado na cintura, a cabeça coberta por uma touca ou um boné cinzento, um velho calmo, longe de nossas lutas apaixonadas, druida perdido em nosso frenético século XX.
Já dissemos, antes, que Leon era autodidata, e sua cultura foi às custas de um labor insano.
O trabalho era sua lei; admitia, além disso, também orar por todos.
Nenhum minuto de seu tempo era malbaratado nessas diversões banais a que a maioria dos homens recorre, para quebrar a monotonia de sua luta diária.
Quando ia a Paris, seus instantes de folga eram consagrados para ouvir, na Sorbonne, algum eminente celta: D'Archois de Jubainville ou Camille Julian.
Denis adorava música. Em suas viagens, após suas ocupações, quando havia oportunidade, nunca deixava de assistir a alguma ópera ou concerto.
A música dos grandes órgãos, os cânticos sacros produziam nele as mais altas inspirações, que ele buscava, quando ia fazer alguma conferência.
Gostava de tocar em seu piano algumas músicas populares e tirar alguns acordes para se distrair.
Por isso, Denis escreveu:
"Para que a alma se arrebate e se expanda no enlevo das alegrias superiores, é bom que a harmonia venha juntar-se à palavra e ao estilo; é preciso que a música venha abrir à inteligência as vias que conduzem à compreensão das leis divinas, à posse da eterna beleza."
Sua aptidão para o trabalho estava servida, como já notamos, por uma incomparável memória, que lhe permitia conservar, indefinidamente, as noções registradas para todos os fins úteis.
Avalia-se de quanto lhe foi útil tão preciosa faculdade, em sua velhice marcada pela cegueira.
A idade não lhe diminuíra a memória e foi por esse privilégio que ele pôde levar a bom termo sua laboriosa tarefa.
Possuía, igualmente, uma memória visual em alto grau, o que fazia a admiração de seus interlocutores, quando, a propósito de uma viagem, recebiam do Mestre pormenores que somente os naturais dos lugares pareciam conhecer.
É indubitável que foi a regularidade de sua vida que lhe permitiu conservar, em sua velhice, intactas, faculdades tão brilhantes. Sua sobriedade era exemplar.
Nenhum excesso em seu regime, quase exclusivamente vegetariano, nada de fumo, nem de bebida alcoólica.
"A água, alegrava-se em repetir, é a bebida ideal." Entretanto, ele isentava de seu cardápio de anacoreta os seus amigos, que ele tratava, fartamente.
"Não basta crer e saber, escreveu Denis. É preciso viver sua crença, isto é, colocar na prática cotidiana da vida os princípios superiores que adotamos."
Na regra diária, o primeiro desses princípios superiores não é a temperança? Leon Denis era coerente com seus princípios.
Como se equivocaram os que supunham que o Apóstolo do Espiritismo era um iluminado! Pelo contrário, ele era a própria razão. Nunca o pensamento humano iluminara um cérebro mais firme e mais sereno.
Não foi por simples fantasia que ele fez sua profissão de fé, no século XX, sob a orientação de Descartes: "Cogito, ergo sum". Complementando, porém, a afirmação do significado do ser, acrescentava: "Eu sou e quero ser sempre mais e melhor."
Alguns céticos afirmam que o trato com os Espíritos se processa com um certo delírio.
Que estas pessoas consultem as obras de Denis e verão que não há nelas qualquer vestígio febril.
Cinqüenta anos de controle permanente sobre si mesmo e sobre os fenômenos psíquicos parecem suficientes para tranqüilizar os incrédulos.
Lembremos que sua prudência e sua vigilância nunca diminuíram, durante sua longa existência, e que ele teve a suficiente coragem para denunciar a fraude, onde quer que aparecesse.
Nem o temor de perder preciosas amizades, nem o risco de desagradar aos exaltados puderam contê-lo na sua obra de triagem. Leon Denis era a própria lealdade.
Seus menores atos eram dirigidos pela mais escrupulosa consciência, entretanto, há notáveis homens de talento, cujo caráter nem sempre corresponde aos dons da inteligência. Para avaliarmos suas vidas precisamos examiná-las sob dois aspectos.
Com Leon Denis sua vida era um conjunto e sua perfeição moral é, talvez, o sinal marcante de sua grandeza. Isto não é um elogio, mas simplesmente uma homenagem à verdade de alguém que teve o privilégio de ver, viver e morrer como um homem de incomparável mérito. Por que iríamos silenciar? Em sua própria cidade, vimos à conspiração do silêncio que se tramava em sua volta.
Em nossa desconcertante época, já constitui grande mérito ensinar a virtude e Leon Denis ensinava e praticava a virtude.
Leon Denis mantinha uma intensa correspondência.
Entre as numerosas cartas que recebia, diariamente, havia coisas admiráveis; umas, tocantes, que chegavam, às vezes, ao sublime, pela expressão sincera de estados dalma desesperados. Também havia relatos fastidiosos e até mesmo alguns de ingenuidade incrível.
- "E o sr. vai responder? perguntávamos, depois de ler a carta."
- "Por que não? dizia o Mestre, com sua costumeira benevolência. Não se recusa um pedaço de pão ao mendigo, que nos vem bater à porta. Como recusar uma palavra, que pode, de alguma forma, tornar-se benfazeja, desde que toque uma alma atingida por uma verdadeira dor? Sim, certamente que responderei. Convém sempre responder."
Fora de seu horário de trabalho, recebia, com satisfação, os visitantes.
Atendia, o mais amavelmente possível e, muito freqüentemente, mantinha a palestra, pois gostava de conversar.
Ninguém reclamava, porque sua palavra era plena de encanto e de bom humor e tudo que falasse era com simplicidade, boas idéias e agradavelmente substanciosa. Todos saiam encantados com sua erudição, avivada pelo fulgor de seu ardente coração e de seu infatigável pensamento.
A quinta-feira era reservada para as compras e raras visitas.
Diversos velhos amigos vinham, nos domingos, à tarde, falar de política. Os boatos de fora, os mexericos da cidade e o noticiário banal morriam na porta de sua casa, todavia, se interessava vivamente pelos acontecimentos mundiais e pelos grandes debates parlamentares. anedotas picantes, gostava de discutir com Leon Denis. Era um velho octogenário, bem conservado, cujo espírito guardava uma admirável mordacidade.
De gostos e maneiras finas, materialista convicto, contrapunha ao seu parceiro uma incredulidade irredutível e sorridente.
Após uma série de ataques brilhantes e sempre corteses, separavam-se, sempre animados de uma recíproca estima.
Algumas vezes, eram amigos de Paris, que vinham vê-lo, solicitando reconforto espiritual.
Não era ele o consolador das almas inquietas?
Como convivera longamente com a dor, sabia como dominá-la, vencê-la, e dela fazendo um meio de progresso e de aperfeiçoamento.
A serenidade proveniente de sua conversação era contagiante. Tivemos disso prova, `num belo trecho de uma carta que, recentemente, lhe escreveu um alto professor universitário:
"Se, entre irmãos e irmãs, qualquer agradecimento é desnecessário, todavia devo apresentar meu reconhecimento, quando não ao inspirado Mestre, cujas palavras recolhi, piedosamente, e que tanto me instruíram, cumprindo um dos deveres de sua missão, pelo menos agradeço ao homem, que nos deu, à minha irmã e a mim, um afetuoso acolhimento.
Vossa mão estendida, vossas acolhedoras saudações, o tom confidencial de vossos comentários, vossa insistência em nos reter nessa casa, onde tendes vivido na meditação e em contato com os Espíritos que vos traziam as luzes do Alto, tudo me garantia que eu estava diante de um amigo antigo, por muito tempo negligenciado.
Lembrava-me da parábola do "filho pródigo", a quem se perdoa, sem mesmo lhe perguntar porque demorou tanto em retornar.
Deixando-vos, minha irmã e eu, ficamos emudecidos, por muito tempo, porque nossa emoção era indizível e somente o silêncio nos poderia dar a compreensão de quais sentimentos estavam nossas almas enriquecidas.
Havia lágrimas em nossos olhos, como se estivéssemos partindo para um exílio.
Entretanto, nossa fé estava fortalecida, nossa convicção aumentada e nossa esperança, mais firme.
Sim, pois tínhamos ouvido palavras de verdade, tendo, para nos orientar, um alto exemplo de um homem que, no meio da tolice, da ambição, da ganância e do ultraje, jamais deixou cair à flama confiada à sua mão. Atualmente, não há mais fogueiras, como a de Jerônimo, porém, a prevenção, a calúnia e a traição ferem tão cruelmente como as labaredas e elas não abalaram vossa indefectível boa vontade.
Bendito seja Deus pela clara e decisiva lição que recebi de vós!"
Afora suas visitas e suas horas de trabalho, Leon Denis tornava ao seu retiro.
Dando nova prova de paciência e de boa vontade, ele aprendera a escrita Braille, durante a Guerra, o que lhe permitia manter-se ao corrente dos acontecimentos e fixar no papel, por meio da "grade" especial, os dados de capítulos ou de artigos que lhe vinham à mente.
Em suas longas noites de inverno, cercado de seus gatos favoritos, meditava nos trechos de sua colaboração mensal ou no livro em andamento. Seu pensamento se elevava, sem esforço.
No alto de seu apartamento, que o vento oeste varria, rodeava-se de seus amigos do Além, que por toda a vida, faziam a vez de sua família.
Por vezes, no silêncio de seu quarto, ouvia-se Denis declamar algumas estrofes dos Versos Dourados ou de alguma Tríade Bárdica, de onde cada palavra reflete uma antiga sabedoria.
Uma vida assim, longe de entristecer o espírito do Mestre, pelo contrário, punha-o num permanente estado de serenidade.
Leon Denis era adversário da tristeza. Não se aborrecia e nem aborrecia nunca os outros.
Gostava da juventude, da alegria da alma, índice de uma boa saúde moral.
O humor desse loreno, que se tornara cidadão de Tours, era de uma originalidade encantadora.
Havia em suas brincadeiras, menos trivialidade e um pouco da malícia de Rabelais.
A essa alegria de espírito se juntava a atração pelas almas, que Platão atribuía ao mais fino dos atenienses. Pela força de sua inteligência e equilíbrio soberano da razão, não saberíamos, em verdade, se comparássemos Denis a Sócrates, o melhor e o mais sábio dos homens.
Cap. VII
A OBRA - O ORADOR - D ESCRITOR
A OBRA
A vida toda de Leon está em suas obras; faz corpo com ele; uma não se separa da outra.
Seria imprudente fazer-se, atualmente, um julgamento sobre a obra do Mestre, todavia, não deixa de ser interessante buscarmos suas diretrizes.
Todas as idéias que ela encerra gravitam em tomo de um foco central, que é o conhecimento de Deus - de onde decorre a lei moral.
É para esse conhecimento, disse ele, que devemos dirigir nossos pensamentos, a fim de a ele submeter nossos atos.
A ciência de Deus, porém, é uma ciência difícil.
A inteligência se perde no inextricável emaranhado dos efeitos e causas, entretanto, embora invisível, Deus está em nós, como em nosso derredor, presente, por toda parte, no Universo.
"Tudo quanto, na Natureza e na Humanidade, canta e exalta o Amor, a Beleza e a Perfeição; tudo quanto vive e respira é uma mensagem de Deus.
As forças grandiosas que animam o Universo proclamam a realidade da Inteligência Divina; ao lado delas, a majestade de Deus se manifesta na História pela ação das grandes almas que, semelhantes a imensas vagas, levam para as margens terrenas todas as potencialidades da obra de Sabedoria e de Amor.
Deus está também em nós, no templo vivo da consciência."
É nesse santuário que resplandecem as santas imagens do Bem, da Verdade e da Justiça. Ainda obscura, a consciência se purifica e se esclarece.
" .. honrando essas imagens divinas, rendendo-lhes um culto de cada dia."
Pelo conhecimento de Deus, chegamos, portanto, à posse e à compreensão da lei moral, que nos é indubitavelmente necessária para bem nos conduzirmos nesta vida. Sem ela, não podemos avaliar nossos recursos interiores, regular seu exercício, nem dela dispor, sabiamente. Nossas paixões serão sempre mais fortes.
Ora, "dominá-las é ser grande; deixar-se dominar por elas é ser pequeno e miserável."
Não há outro caminho para orientar o homem à vida moral e para a prática do dever. O dever, porém, é uma obrigação essencial?
"Nobre e santa figura, ele sobrepaira acima da Humanidade, inspira os grandes sacrifícios, os puros devotamentos e os belos entusiasmos.
Sorridente para uns e doloroso para outros, é sempre inflexível, surge para nós e nos mostra essa escada do progresso, cujos degraus se perdem em alturas incomensuráveis."
Quem, pois, imaginou que o dever tem um aspecto negativo e desencorajador?
"Por mais obscura que seja a condição do homem e mais humilde sua sorte, o dever domina e enobrece sua vida ... Seu culto é sempre agradável ao sábio e a submissão a suas leis é fértil em alegrias íntimas, que a nada se pode igualar."
Infelizmente, o dever não descarta as provações, as preocupações e a dor. Se o homem, espontaneamente, abandona os caminhos fáceis do prazer, quem lhe assegura que a vida lhe dará compensações?
Entretanto, parece que a finalidade da vida não é a satisfação dos instintos e dos apetites. Os gozos sensuais não bastam para preenchê-la. No homem, o objetivo supremo é seu aperfeiçoamento.
O caminho que a ele conduz é o do progresso. Ele é longo e o percorremos, passo a passo. O fim longínquo parece recuar, à medida que se avança, porém, a cada etapa vencida, o ser recolhe o fruto de seus esforços."
Nessa escalada para o progresso, não há privilegiados, nem proscritos. Todos percorrem, mais ou menos depressa, a mesma rota.
Nossa vida atual é a conseqüência direta de nossas vidas passadas, como nossa vida futura será a resultante de nossas ações precedentes. Neste mundo, onde a luz se alterna com as sombras, construímos, com nossas próprias mãos, nosso ser moral, porém, o edificamos na dor.
Deus criou os seres, por um ato de amor, entretanto, tudo que vive, sofre, neste mundo: a Natureza, o animal e o homem. Aparentemente, é uma formidável contradição.
Por que a dor? indaga o Mestre. Mas, logo, ele constata: no fundo, a dor é, simplesmente, uma lei de equilíbrio e de educação. Prazer e dor são duas formas extremas da sensação, porém, no sensório íntimo, sensação e sentimento se confundem.
"O prazer e a dor residem bem menos nas coisas exteriores do que em nós mesmos. É por isso que nos compete, regulando as sensações e disciplinando os sentimentos, comandar ambos, limitando-lhes os efeitos. Epíteto dizia: "As coisas são o que julgamos que sejam". Assim, pela vontade, podemos domar e vencer a dor ou, pelo menos, colocá-la em nosso proveito, tomando-a um instrumento de progresso."
Assim, o filósofo espírita exalta a sofrer" virtude do "bom e repete, com o poeta:
"O homem é um aprendiz, a dor é seu mestre e nada nos eleva tanto quanto o sofrimento."
Vê-se, por aí, que o gênio não é apenas "uma longa paciência", porém, ele é, freqüentemente, o coroamento e a apoteose do sofrimento.
É diante da dor que o herói, o mártir e o santo se transfiguram.
Eliminai-a e suprimireis, ao mesmo tempo, o que há de mais digno de admiração neste mundo, isto é, a coragem moral.
No lugar de nos rebelarmos contra ela, bendigamos a dor que Deus nos envia:
"É, do mármore frio, sem forma e sem beleza; da estátua feia e grosseira, que nossas mãos mal haviam esboçado, que ela fará surgir, com o tempo, a estátua viva, a obra-prima incomparável, as formas harmoniosas e suaves da divina Psique."
Aprende a sofrer, porque a dor é santa. Ela é o mais nobre agente da perfeição, ela é a maior iniciadora, diz o Mestre.
Haveria uma volúpia pela dor? Longe dele esse pensamento:
"Não te direi: procura a dor, porém, quando ela te procurar, inevitável, em teu caminho, acolhe-a, como amiga. Aprende a conhecê-la, a apreciar-lhe a beleza austera, a descobrir seus secretos ensinamentos; aprende a sofrer."
É preciso convir em que uma semelhante moral desperta as mais altas faculdades do ser.
Varonil, antes de tudo, ela é severa, sem ser deprimente. Longe de ser só resignação, ela nos convida a uma luta incessante, à conquista do Céu.
Sua primeira palavra é coragem e a última é esperança!
É nela que se deve procurar o viático necessário no meio do constante rebaixamento da consciência individual entre nossos contemporâneos.
A Grande Guerra só fez consagrar a falência moral do último século.
O egotismo de Beyle, o criticismo de Taine e o agnosticismo de Renan chegaram a um impasse.
Que sejam analisadas hoje suas imperfeições flagrantes e suas cruéis deficiências.
Nossas gerações dizimadas e desorientadas pedem mais outra coisa, além desse pão amargo.
A Ciência matou a Fé, mas o homem não pode viver sem crença, porque seu coração exige tanto ou muito mais que sua inteligência.
É ao Espiritismo que cabe o mérito de realizar a síntese entre a Ciência e a Religião. O verdadeiro fundamento da moral reside nele.
Eis o ponto que o Mestre, luminosamente, destacou em sua obra. O homem é perfectível, porque ele mesmo é um Espírito.
Realizar-se, dentro das possibilidades que lhe são fornecidas e compreender o significado da lei que o aproxima da Perfeição, para onde tende, através de uma série de esforços renovados, de vida em vida, eis seu objetivo.
Progredindo, livra-se das forças obscuras que procuram fazê-lo regredir aos descalabros dos instintos primitivos. Escapa ao determinismo e se libera, elevando-se para o Bem.
A ordem única é, pois, agir, agir corretamente. Doutrina viril, que aclara a inteligência, fortalece a vontade, aquece o coração e favorece o desenvolvimento do Espírito; doutrina que pede uma Fé raciocinada, isto é, um perseverante esforço, uma longa paciência.
O homem contemporâneo, segundo Leon Denis, é, de um modo geral, um ser pouco evoluído, apesar das sucessivas aquisições; nele ainda perduram os instintos inferiores. Da mesma forma, tem em si os germens das mais nobres virtudes.
Eis-nos, inesperadamente, longe do pessimismo de um Taine. Se quereis que o homem realize uma parte das promessas que estão nele, colocai-as, desde a infância, nas condições mais favoráveis ao seu desenvolvimento integral. O sucesso depende de uma educação bem encaminhada.
Se o melhorardes, desde o começo, melhorareis, também a sociedade inteira e preparareis os caminhos para a verdadeira civilização, que buscaria assegurar o pleno desenvolvimento dos indivíduos.
Os esportes e a cultura física, úteis por si mesmos, não devem ser tratados como meios únicos.
A própria Natureza do homem é o fator preponderante das mudanças sociais e a questão social é, definitivamente, uma questão moral.
Ora, a família e a escola são as duas instituições que preparam o homem social.
Infelizmente, constata nosso filósofo, a família, insuficientemente protegida na sociedade moderna, tende a se desagregar. A intimidade do lar se relaxa e a autoridade do pai enfraquece.
Quanto à escola, ela se mostra, em todos os graus, deficiente em matéria de Educação.
Coisa grave: a instrução, desenvolvendo exclusivamente o sentimento pessoal, fortifica, no adolescente, o egoísmo e o orgulho, que são as taras mais comuns na sociedade atual.
Se ao menos houvesse uma compensação! Sem autoridade, porém, em matéria de Educação, a escola, particularmente a escola primária, que atende a um público maior, só pode garantir apenas um rudimento de instrução
Ora, a semi-instrução altera, muito freqüentemente, o bom-senso e o natural e, quando contribui, além disso, a expandir as numerosas falsas idéias, termina, de fato, num resultado nefasto.
É preciso entender que a verdadeira arte e a verdadeira ciência são accessíveis apenas ao homem de alta cultura e isso é uma exceção.
Não importa o que se pretenda conseguir; a boa razão diz que há uma desigualdade intelectual entre os indivíduos, enquanto que a prática da virtude é possível a todos.
Conclui-se que uma base sólida de crença raciocinada seria importante para a imensa multidão dos homens que não podem chegar aos altos estudos.
Os fundadores da Escola do Povo, os J. Ferry e os Paul Bert, já haviam sentido essa necessidade.
Eles acreditaram que os princípios usuais da moral universal bastariam para preencher essa tarefa. Seus sucessores não pareciam ter semelhantes preocupações.
Eliminaram a Religião, mas nada puseram em seu lugar. Grave erro! O povo tem necessidade de crença. O malicioso sorriso de Renan não poderia preencher tal lacuna.
Como organizar a sociedade segundo a Justiça e assentá-la em bases estáveis, com elementos tão mal preparados?
Como fundar a Democracia, com cidadãos unicamente preocupados em atender às suas necessidades materiais, destituídos de um ideal?
Fala-se muito em Socialismo, sem se chegar a defini-lo bem. É um termo que agrada ao ouvido do povo e, com ele, os demagogos fazem suas plataformas.
"Cada um tem direito a uma situação, de acordo com suas aptidões ao trabalho e com suas qualidades morais - disse Denis."
Nada mais verdadeiro; sejamos, pois socialistas.
Entretanto, antes de ir mais além, convém se entender a propósito desse termo bastante vago.
As sociedades, que se dizem civilizadas, tendem, por vias mais ou menos diretas - porque em todos os domínios nada fazemos que tatear - a melhorar a sorte dos indivíduos que as compõem e todo Estado, qualquer que seja sua forma política, se modifica nesse sentido.
O que importa, porém, notar é que o homem só tem o poder de modificar as coisas naturais, se ele se submeter à ordem dessas mesmas coisas.
Certos socialistas, notadamente os comunistas, se recusam a aceitar tal realidade e pretendem submeter à ordem das coisas às suas concepções particulares, o que é um absurdo.
"O comunismo, disse Leon Denis, só é realizável no sede grupos restritos e cuidadosamente recrutados, cujos membros estejam animados de uma fé intensa e de um espírito de sacrifício. Não se poderia estendê-lo a todas as nações."
Um tal sistema, que nos mostre o Estado absorvendo todo o esforço coletivo, é contrário ao progresso do indivíduo.
Seria melhor, sem dúvida alguma, que a função do Estado fosse limitada, na proporção em que o indivíduo se desenvolvesse.
Em suma, o Socialismo seria apenas um sistema mais racional da comunidade, sistema baseado não somente nas necessidades imediatas dos indivíduos, mas, ainda, na lei de Justiça e de Amor.
Ensinar aos homens de onde eles vêm, para onde irão e qual é a finalidade da vida, segundo o ensinamento do Mestre, é orientar suas vontades no sentido do Bem, é fazer nascer neles o desejo de cooperar com o progresso universal, servindo à Humanidade; é elevar seus espíritos rumo à ordem divina.
Tarefa árdua, tarefa imensa, porém, a única que é fecunda!
Tal é a palavra de vida que Leon Denis nos legou, ao nos deixar.
Pensamos que não há razão para não o aprovarmos, quer por motivos científicos, quer por motivos religiosos. A Ciência já deu um passo decisivo nesse sentido e, quanto à Religião, ela não é tão rebelde como se imagina. Um falecido teólogo nos deixou seu testemunho, por seus escritos e seus atos:
"Lendo suas obras, caro sr., comunguei convosco a respeito de que não se morre.
Aprecio em suas obras esse sentido direto do Infinito e do Eterno, que reconhece o permanente através do tecido das coisas que passam.
Sabendo a que ponto a vida lhe é dolorosa, acho-me em companhia de um irmão, cuja Esperança e Fé não são, simplesmente, elementos de uma bela teoria ou de retórica, porém, são vivas e libertadoras potencialidades.
Não sou espírita, mas sempre o considerei um companheiro de viagens, através dessa existência crepuscular, tendo confraternizado, de preferência, com os que se orientam para o lado da Noite, que parece transparente.
Creio, de toda a minha alma, na presença de nossos entes queridos invisíveis. Fazem-me companhia habitual e caminho cercado por seu tranqüilo e sorridente cortejo.
Em homenagem a eles, gosto de cultivar o que eles amaram e agora que tantos jovens heróis transpuseram os limites que servem de separação para o outro mundo, considero toda obra justa e boa como um depósito que eles nos deixaram e que se tornou sagrado pelo sacrifício deles.
A santa solidariedade entre os vivos e os mortos; a presença, entre nós, dos que nos anteciparam; a crença no progresso dos seres, através dos sofrimentos, dos erros e
das faltas, rumo a uma Claridade Superior, um complemento naquilo que ainda nos falta, tudo isso é minha fé viva, que peço a Deus me seja aumentada, todos os dias. Pelo Evangelho, amplamente compreendido e praticado e por todas as aspirações que lhe assinalei, fico à vontade, portanto, para nos sentirmos perto um do outro, pois sei que a ninguém exclui, tudo esperando e proporcionando um ambiente de um horizonte luminoso, no cenário da vida."
Destacamos estas últimas frases que qualquer comentário poderia alterar seu alto sentido e diminuir sua pura beleza.
O ORADOR
Já vimos, nos primeiros capítulos, pelos relatos dos jornais,. como era grande o poder do conferencista sobre os que o ouviam.
Amigos e adversários, todos rendiam homenagem à sua brilhante eloqüência, cheia de imagens, persuasiva, interessada em despertar inteligências e em comover pelos meios mais simples.
Por causa de sua vista deficiente, não mantinha o auditório sob seu olhar, à maneira dos tribunos, que contam com os efeitos diretos da sugestão. Ele, porém, punha tal calor humano em sua oratória, um tal acento de sinceridade, que os mais arredios deixavam cair suas prevenções e se entregavam, pouco a pouco, por um invencível sentimento de confiança.
Se Leon Denis não enxergava o auditório todo, entretanto, nada lhe escapava, quanto às diversas reações que sua palavra provocava. Ele as sentia.
O orador de altos vôos, não desdenhava, todavia, as sutilezas da ironia, nem os inesperados parênteses, que constituem a astúcia maliciosa de um bom discurso francês.
Ele não proibia as discordâncias do auditório e até mesmo as incentivava.
A controvérsia animava nele seu ardor de proselitismo e aumentava seus recursos habituais.
Ao demais, ele tinha para todas as questões um arsenal de argumentos preparados, de que se servia com uma rapidez e uma oportunidade impressionantes.
Suas respostas, embora fulminantes, eram sempre corteses, pois não perdia seu domínio em nenhuma situação.
Certa ocasião, quando desenvolvia o problema de Deus, numa reunião de debates, numa cidade do Sul, um católico o interrompeu, supondo fazê-lo tropeçar num embaraçoso obstáculo.
"O sr. afirmou, disse o aparteante, que o inferno é só um produto da imaginação. Eu fui a Nápoles e vi o Vesúvio em erupção; é uma das bocas do inferno, que é, portanto, uma realidade!
-"Então, retruca Leon Denis, o sr. acredita que o inferno se encontra no centro da Terra!
A Terra, porém, foi, durante muito tempo, uma massa ígnea, um globo de fogo, antes de se tornar sólida e ser habitada, antes de ser criado o homem.
Assim, poder-se-ia comparar Deus a um grande senhor da Idade Média que, desejando fundar uma cidade, começaria por mandar construir, no Centro, a geena, a casa dos suplícios, o lugar de tortura e diria, em seguida: "Venham, meus amigos, instalar-se neste local, preparado com carinho!"
Com essas palavras, o salão foi sacudido por uma estrondosa hilaridade, que embaraçou o aparteante. Leon Denis preparava suas conferências com um cuidado todo especial, que as tornava como trechos seletos, pela boa apresentação literária e equilíbrio de suas partes. Ele as escrevia, depois as estudava, a fundo; a seguir, as repetia, cuidando, atentamente, da dicção.
Isto feito, nada tendo deixado por conta do acaso, dava asas à inspiração do momento e aos conselhos de seus pias.
E com esse fulgor espontâneo das idéias e da improvisação que são feitos os grandes oradores.
"Na eloqüência, escreveu ele, a movimentação do pensamento está representada não somente pela palavra, mas, também, pelos gestos que lhe acentuam os efeitos.
Nisso, mais do que em qualquer outra matéria, impõe-se uma justa medida, porque o excesso, como a ausência da mímica, devem ser igualmente evitados com cautela.
A maior parte dos grandes oradores sente o influxo do Invisível. A inspiração desce sobre eles em vagas sucessivas e faz surgirem às expressões, as formas e as imagens, que provocam o entusiasmo das multidões.
Em certos momentos, eles se sentem como arrebatados da Terra e envolvidos por uma irresistível corrente. No curso de minha carreira de propagandista da Doutrina Espírita, experimentei, muitas vezes, a sensação de um poderoso socorro oculto, cuja causa bem conhecia. O Espírito de Jerônimo de Praga, meu protetor e meu guia, sempre me assistiu, em minha tarefa de conferencista. Por vezes, no momento de aparecer diante de um numeroso público, indiferente ou mesmo hostil, e tomar a palavra, eu me sentia invadido por um mal-estar ou violenta enxaqueca que paralisava meu pensamento e minha ação.
Aí, então, atendendo a meu ardente apelo e à minha prece, o Espírito de meu guia intervinha.
Como por uma enérgica magnetização, ele restabelecia o equilíbrio orgânico e me devolvia a lucidez e os meios como agir.
De outras vezes, após debates contraditórios, que duravam várias horas, após lutas oratórias com contraditores encarniçados, materialistas ou religiosos, apesar de meu esgotamento, ainda encontrava motivos e entonação vibrantes que surpreendiam e abalavam o auditório." Por quais meios Denis chegava a captar esse precioso influxo da inspiração? Às vezes, a música é que o auxiliava.
"Sucedeu-me, por mais de uma vez, quando tinha que fazer uma conferência numa grande cidade, chegar de véspera e assistir a uma ópera, no Teatro Lírico. Lá, escondido no fundo de um camarote, completamente isolado, eu me desligava de tudo o que se passava no salão ou no palco, para me deixar enlevar pela obra musical.
Sob a ação combinada dos instrumentos e das vozes, uma onda de idéias aflorava a meu cérebro e uma beleza de pensamentos e de imagens surgia de minhas profundezas.
Nesses momentos, eu compunha meu tema com uma riqueza de elementos, uma profusão de argumentos, uma abundância de formas e de expressões, que não teria encontrado no silêncio e que não reapareciam sempre em minha memória, na hora oportuna."
Poderíamos mencionar aqui os numerosos testemunhos de seus amigos de luta, ainda vivos.
Eis aqui alguns deles, provenientes de simples ouvintes, que não poderão ser taxados de parcialidade. Inicialmente o de uma ouvinte:
"Além de seu grande talento incontestável e incontestado, o sr. Leon Denis é um encanto, o que nada o prejudica e se sua conferência de ontem não foi para mim o Caminho de Damasco, a culpa não é dele. Sem dúvida, não chegara minha hora, se é que chegará um dia."
Eu estava bem colocada, na segunda fila, bem diante do orador.
Não lhe falarei dele, fisicamente; seus retratos falam melhor do que tudo que eu lhe pudesse dizer.
As pessoas que estavam ao meu lado o conhecem e o acharam emagrecido e cansado. Seus olhos, com efeito, devem fazê-lo sofrer e ele usa óculos com lentes grossas, para protegê-lo da luz intensa, penso eu.
E de aspecto muito simpático, de gestos simples, oportunos e sóbrios; a seqüência de suas palavras é, inicialmente, um pouco monótona; a voz, um pouco velada, lembrava nosso irmão Henri, quando fala de alguma coisa, que conhece a fundo.
Pouco a pouco, sua voz se alteia, para vibrar em rasgos de entusiasmo, nos trechos patéticos e pungentes. Tem elocução fácil, a dicção perfeita, o estilo rico de imagens e maravilhosamente apropriado às partes complexas do tema.
Um sentimento de sinceridade e de profunda convicção se depreende do conjunto e essa palestra foi um triunfo para o orador, somado, sem qualquer dúvida, a outros já obtidos.
Nem é preciso acrescentar que ele já possui em mim uma admiradora a mais."
O trecho seguinte provém da esposa de um general. Foi tirado de uma carta endereçada a Leon Denis.
"Não pude impedir que minha amiga expressasse, em alta voz, sua admiração pelas belas coisas que nos foram ditas.
Todos estão de tal modo admirados, que alguns declararam que o sr. se transfigurou, mudou a voz, os gestos mais amplos e alguns sustentam que o sr. parecia bem maior.
O sr. não imagina a vitória que obteve, ao emocionar meu marido, de tal modo que ele nem podia mais falar. Ele, tão frio e reservado, tão cheio de si me confessou que, mesmo o espetáculo de um campo de batalha juncado de mortos não o emocionara tanto."
Leon Denis, nota-se, tinha, reunidos, todos os dotes de um orador nato e esses dotes ele os conservou até em sua extrema velhice, pois que, ainda no Congresso de 1925, conseguiu a admiração de quantos o ouviram, por sua facilidade e sua mestria em manejar a palavra e captar a atenção de seus ouvintes.
O ESCRITOR
Leon Denis era um autodidata. Alguns o censuraram, quando deviam felicitá-lo. Sim, Leon Denis formou-se sozinho; é mais um título para nossa admiração.
Mesmo não tendo estudado retórica, seu estilo era muito valioso: de uma facilidade e de uma simplicidade clássicas. É a vestimenta natural de um pensamento sempre em estado de equilíbrio.
Se seus primeiros livros apresentam uma forma oratória, é que, nessa época, Leon Denis era principalmente um conferencista que se entregou à tarefa de propagar a Doutrina pela escrita.
Ele se interessa, de forma imediata, pela participação de seus leitores em sua convicção.
Eis porque a eloqüência é natural nele e ele escreve como fala.
O tom, de ordinário familiar, fica impregnado de bom-humor, cheio de naturalidade, se eleva, insensivelmente, aos píncaros da linguagem e certos finais de capítulo passariam muito bem como páginas de Bourdaloue.
Esse estilo, de uma admirável elasticidade, presta-se a resumir: é preciso e rápido, como se exige para um estudo ou discussão de um ponto doutrinário.
Suas brochuras de propaganda ou de defesa são testemunha disso.
Em suas últimas obras, particularmente no "Gênio Celta", sua linguagem reveste uma forma absolutamente pura, despojada de qualquer ornato e que está na medida exata de um pensamento vigoroso, que já alcançou a serenidade.
A Natureza foi sua inspiradora e foi pelo seu contato que desceu sobre ele o influxo misterioso da intuição e da inspiração.
Suas páginas de exposição da Doutrina são de um excelente escritor; as que nos legou sobre o Universo, o Céu, o Mar, a Montanha e a Floresta são dignas de um grande poeta.
O dom poético é, com efeito, marca indelével de seu talento. Poeta em prosa, não se apega aos manejos sutis e exagerados da linguagem artística.
Denis tem horror ao convencional. A procura do termo raro e o burilamento da frase lhe são indiferentes. Tudo que se refira à alquimia verbal lhe parece preocupação pueril. Dá ao polimento literário uma importância limitada.
Certos artigos eram entregues, sem retoques, na forma em que foram ditados. O Gênio Celta, por exemplo, só teve revisões tipográficas.
Para ele, escrever não era um brinquedo de esteta, uma distração sutil para uso das pessoas cultas, mas bem uma outra forma de ação, um outro meio de divulgar idéias.
O escritor pode se enganar, mas deve ser sincero e seus leitores têm direitos sobre ele. Leon Denis é o tipo perfeito do escritor sincero. Há nele adequação perfeita do estilo ao pensamento; encontramos o homem inteiro no literato.
Sua prosa, abundante como era seu verbo, flui qual o rio Loire, cujo curso é sempre igual, largo e ritmado. Nada de traumas, de gritos desesperados, nada de arrebatamentos desordenados, nem delírios românticos.
As nobres idéias, com Denis, procuram apoiar-se na razão, antes de alçar vôo, sem desfalecimento que as transporte para além das brumas perigosas onde cantam as sereias.
A musa de Leon Denis, irmã da casta Urânia, só encontra sua alegria nas regiões da Luz e da Serenidade.
Para acompanhá-la, o poeta de "O Grande Enigmanão usa nenhum artifício, nenhum encantamento; não tem necessidade de nenhum excitante cerebral.
Colocar-se, por uma graça especial, ressonância com a beleza que o cerca, eis todo o seu segredo.
Abramos o seu Livro da Natureza.
Os grandes espetáculos do firmamento da Terra são os eternos temas, onde se inspiram a inteligência e o coração do homem, desde que foi dotado de linguagem.
Leon Denis não buscou fora disso a fonte de sua inspiração.
O amor - no sentido carnal que, comumente, lhe dão - não absorveu as fontes vivas de seu ser, como acontece entre numerosos escritores. É em Deus que esse sentimento encontra sua fonte e seu fim. Ele não exclui o amor humano, santifica-o.
É no cenário das belas noites consteladas que o poeta espírita encontrará a palavra de "O Grande Enigma' , a suprema lição que desce dos Espaços sobre as frontes irrequietas."
Cada um dos incontáveis mundos, perdidos nos abismos siderais, tem sua própria voz no concerto universal; cada um fala uma linguagem diferente à nossa alma.
"Todas as estrelas, disse Denis, nos entoam seu poema de vida e de amor e todas nos fazem ouvir uma poderosa evocação do passado e do futuro.
Elas são as moradas de nosso Pai, as etapas, as soberbas demarcações dos caminhos do Infinito e por ali passaremos e viveremos todos, até entrarmos, um dia, na Luz Divina."
À impressão de esmagamento e inacessibilidade, que um tal espetáculo faz nascer, sucede um sentimento de inefável doçura.
Esses astros que realizam sua trajetória fulgurante pelos espaços insondáveis parecem nos dirigir misteriosos apelos e deles nossa alma logo acolhe um secreto motivo de esperança.
Não são eles os eternos sinais da ordem divina e as misteriosas notas da sinfonia universal, de onde somente a música nos vem comunicar uma impressão satisfatória, embora bem imperfeita?
"A música, linguagem divina que exprime o ritmo dos números, das linhas, das formas e dos movimentos", eco enfraquecido da "harmonia soberana que dirige a marcha dos Mundos."
Entretanto, nessa prodigiosa sinfonia, os astrônomos descobrem dissonâncias.
Mundos nascem, outros morrem e alguns se entrechocam, em cataclismos gigantescos.
Esses acidentes, disse o Mestre, não poderiam destruir a soberana ordem; qualquer dissonância se dilui no conjunto, nessa música das esferas que, segundo dizem, Pitágoras ouvia e que é o cântico da Criação.
E justamente essa impressão de equilíbrio, de concordância total e de serena beleza que o sábio, o poeta e o artista devem buscar, envolvendo-se de calma e de silêncio, distanciando-se o mais possível dos ruídos furiosos, dos rumores inúteis e do turbilhão das paixões que agitam o mundo moderno.
Viremos "as páginas do grande livro aberto a todos os olhares". Da contemplação dos esplendores siderais, retornemos a Terra, nossa mãe.
Eis a Floresta, que nos oferece seu palpitante asilo, a antiga floresta, ornamento e verdadeira conservadora do Globo, primeiro refúgio e primeiro templo do homem.
"De seu ritmo majestoso, ela embalou a infância das religiões; serviu de modelo para as mais nobres manifestações da idéia religiosa em seu desabrochar estético.
É à sua misteriosa sombra, debaixo de suas copas seculares, que os druidas, nos tempos célticos, recebiam as inspirações e os ensinamentos do Alto.
Para Leon Denis, a Floresta guarda sempre seu augusto e sagrado prestígio.
Ela ainda é, hoje, o asilo do pensamento íntimo e sonhador e, sob suas ogivas palpitantes, sente-se, como outrora, o misterioso frêmito da religião eterna.
A árvore -apta às irradiações vindas do Espaço; entre o visível e o invisível se estabelece, graças a ela, um secreto diálogo. Os deuses falam na folhagem.
"É simpática às alegrias e compassiva às dores humanas," conselheira de aceitação paciente, de esforço viril e de esperança vivaz, em renovações sempre fecundas, a Floresta é, ainda, um deslumbramento para os olhos.
É nessas páginas, impregnadas pela atmosfera silvestre, que Leon Denis mostra seus mais belos dotes de paisagista.
Seu olhar que, de ordinário, busca as amplas perspectivas, aqui se apega, com um cuidado tocante, aos menores aspectos da árvore e da planta, indo da flor aos humildes animaizinhos que participam da vida intensa do mundo vegetal.
Nesse novo contato, a palestra do escritor se enriquece; ele se torna um magnífico pintor da selva: "Através das frondosas copas, a luz se dispersa, em raios dourados, sobre os troncos das árvores e sobre os musgos; as lufadas do vento brincam nas ramarias. O outono acrescenta a esses fulgores a sinfonia das cores, do verde amarelado até o ruivo fulvo e o ouro puro; ela matiza de esmalte, pinta de ocre os castanheiros, de púrpura as faias e debulha as urzes róseas da clareiras." (*) Diante dessa majestosa apoteose, seu pensamento irrequieto se eleva para a "Causa de tantas maravilhas para glorificá-lo." Entretanto, a marca manifesta da Beleza divina não se inscreve somente na fronte ondulante da Floresta.
O Oceano e a Montanha merecem, igualmente, nossa admiração.
Nas páginas que Leon Denis dedicou ao Mar, não encontraremos as magias suntuosas de um Chateaubriand ou de Pierre Loti.
Todavia, pela pena calma do poeta filósofo, quanta pureza, quanta fidelidade, na pintura e na evocação!
Eis, por exemplo, o Mediterrâneo provençal:
"Até aos confins do firmamento, o mar estende sua toalha ondulante, brilhando as luzes do dia.
Nem uma nuvem, nem uma brisa. O sol do Sul ilumina com fugidios clarões a crista das vagas.
Sobre esse imenso espelho, a luz brinca, em aspectos delicados e em cambiantes movimentações.
Envolve as ilhas, os cabos e as praias com uma claridade leve; suaviza o horizonte e idealiza as longínquas perspectivas."
A visão do Oceano, tonitroante, sob um céu agitado, não é menos vigorosamente fixada em seus traços essenciais.
"É sobretudo do alto dos promontórios armoricanos que o Oceano é majestoso, em suas horas de cólera, quando as ondas estrondam nos recifes, rugem nas angras profundas e secretas ou rolam em trovoadas, nas sombras das cavernas.
Os gritos das curicacas, das gaivotas e dos albatrozes, que voam, rodopiantes, no meio da tempestade, somam-se à desolação da cena.
A costa inteira está branca de escuma."
O Mar, para Leon Denis, é a imagem do poder, da extensão e da duração. Ele sente a respiração do Oceano e percebe suas pulsações. Os espasmos e os remoinhos do abismo líquido só agitam sua superfície, mas é em suas profundezas misteriosas que a vida continua a se elaborar. A verdadeira personalidade do mar nos escapa.
Ao lado da incessante agitação oceânica, está a calma plena de majestade das grandes montanhas.
De todos os aspectos da Natureza, a Montanha tinha a preferência de Denis.
"A Montanha é meu templo", gostava de repetir. Filho adotivo de uma região de planície que ele apreciava pela sua amável ambiência, ainda guardava, em sua velhice, a nostalgia dos altos planos.
Os horizontes da Touraine são de uma extensão considerável, mas o relevo dessa província é suave e sua atmosfera permanece, principalmente entre as margens do grande rio, impregnada de uma moleza voluptuosa.
É uma terra mais propícia ao descanso do que à ação. Na plenitude da idade, Leon Denis preferia a Montanha, fonte inesgotável de fortes impressões, de emoções nobres e de ensinamentos fecundos; a Montanha era a liberadora das nobres faculdades da alma.
Ouçamos Denis nos confiar os motivos de sua predileção:
"Como nos faz bem, na fresca madrugada, impregnada dos perfumes penetrantes da noite, galgar as encostas, apoiado num grande bastão pontiagudo, à sacola de provisões nas costas!
Em torno de nós, tudo é calmo; a terra trescala essa paz serena que retempera os corações, penetrando-os de uma alegria interior.
A vereda é tão graciosa em seus contornos, a floresta tão cheia de sombra e de misteriosa doçura!
À medida que subimos, a perspectiva se alarga e soberbos panoramas se abrem, ao longe, sobre as planícies. As aldeias mostram suas manchas brancas pela verdura, entre as plantações, os descampados e os bosques. A água das lagoas e dos regatos brilha como aço polido."
Tudo, na Montanha, o comove e o maravilha.
Seus dias ensolarados, plenos de eflúvios e de claridades, suas noites serenas cheias de estrelas, o concerto de seus pássaros e de seus insetos, os rumores de suas florestas, a grande voz das torrentes e das cascatas, "até suas tempestades repentinas e os clarões dos relâmpagos sobre os cumes.
Há, nessas páginas, uma suavidade de impressão, um colorido e uma poesia espontânea que nos encantam e nos arrebatam.
Magicamente, a Montanha toda se anima com sua verdadeira vida, freme com suas mil vozes familiares e eleva ao Céu seu cântico sublime.
"Para todos os que sabem compreendê-la e amá-la ela é uma longa e profunda iniciação."
As harmonias luminosas e os encantos de seus cumes são privilégio exclusivo dos que não receiam escalar os altos montes, porque a subida acorda o sentimento interior, as faculdades psíquicas se estimulam na atmosfera dos picos e, entre os de alma nobre, a comunhão com os mundos superiores se estabelece.
Os altos picos não foram os altares escolhidos pelos patriarcas e pelos profetas?
Eis porque as recordações surgem, em quantidade, aos apelos do pensamento do viajante; sonhos noturnos, à beira das torrentes dos Pireneus, meditações solitárias, perto dos lagos da Arvénia, perigosas escaladas nos Alpes coroados com suas neves e impressões relembradas no silêncio das altas solidões, onde se sente o estremecer do Infinito.
Com esse hino de adoração termina o livro, onde o Mestre colocou o melhor de si mesmo, a inalterável juventude de seu coração, o impulso mais arrojado de seu pensamento, o mais belo fulgor de sua fé.
A seus olhos, a Natureza não é madrasta; não lhe faz medo, porque toda a obra de Deus lhe merece confiança. Sabendo que nosso mundo é um mundo de provas, não de beatitude, aceita sua sorte, mantendo intacta sua força de esperança.
As ameaças de catástrofe e de aniquilamento não o abalam, porque ele está em segurança, no meio dos perigos que o cercam:
"Compreendeu as grandes leis que, ao preço de alguns acidentes, garantem o equilíbrio e a salvação das raças humanas."
Tudo isso comprova uma concepção bem alta do papel do escritor, que deve ser, antes de tudo, um educador. "Muitos acham que o Espiritismo é muito triste.
Pobres criaturas, se vocês soubessem!..."
Triste, um livro de Leon Denis? Por que fala sobre a morte? Mas, nele se aprende que a morte é também vida. Seus livros são transbordantes de alegrias. São luminosas taças encantadas, onde os lábios humanos, sedentos do Infinito, vão dessedentar sua sede superior, numa verdadeira exaltação do Além.
Os livros de Leon Denis "Cristianismo e Espiritismo", "Depois da Morte" e "No Invisível" não são mais tristes que a Via Sacra dos romanos, rodeada de túmulos, que os cemitérios floridos e perfumados do Oriente, onde os ociosos vão passear; que o campo santo de Aliscamps, em Arles, tremulantes de asas e de brisas, com as copas das romãzeiras, dos terebintos e dos ládãos; que os Campos Elíseos, onde casais de namorados se sentam nos antigos sarcófagos de pedra e vão permutar juras, nas claras noites de estio.
Quando se lê Leon Denis, tem-se a impressão de percorrer algum de seus sítios pitorescos, enfeitados por um suntuoso outono.
Há tonalidades fortes e matizes agonizantes, jogos de luz e de sombra, canções de alegria e vozes melancólicas. Acima de tudo isso, esse panorama, de onde sobem os ruídos da Terra e se estende o grande céu de azul e de luz.
Estas linhas, de um sentimento muito justo, nos ajudam a entender o pensamento do Mestre, em matéria literária, que pode resumir-se nestes termos: ser verdadeiro, com decência. Fora disso, toda arte está manchada pela frivolidade ou, melhor dizendo, pelo supérfluo.
A verdadeira poesia, escreveu Denis, é feita de ressonância íntima da sinfonia eterna em nós, de acordo com nossos pensamentos, nossos sentimentos e nossos atos com a regra de nosso destino.
Por esse motivo é que toda a sua obra apresenta essa concordância e por esse notável equilíbrio é que Denis é um verdadeiro poeta e um grande escritor.
APÊNDICE
I - TESTAMENTO MORAL
No final de minha vida, nesta hora crepuscular, quando uma nova etapa termina, em que as sombras descem, celeremente e cobrem todas as coisas com seu manto melancólico, recordo o caminho percorrido, desde minha infância e, depois, dirijo meu olhar para adiante, para essa porta que, brevemente, se abrirá para mim, para o Além e suas eternas claridades.
Nessa hora, minha alma se recolhe e se desprende, antecipadamente, dos liames terrenos; ela vê e compreende o objetivo da vida.
Consciente de seu papel neste mundo, reconhecida pelos benefícios divinos, sabendo porque veio e porque atuou, bendiz a vida por todas as alegrias e todas as dores, por todas as provas salutares que experimentou e agradece os instrumentos de sua educação e de seu progresso.
Bendiz a vida terrena, compenetrada, logo que a deixe, de que retomará mais tarde, numa nova existência, para ainda trabalhar, sofrer, aperfeiçoar-se e contribuir, por seus esforços, para o progresso deste mundo e da Humanidade.
Consagrei esta existência a serviço de uma grande causa: O Espiritismo ou Espiritualismo Moderno, que será, certamente, a crença universal, a religião do futuro.
Dediquei-me à sua divulgação, com todas as minhas forças, toda a minha capacidade e todos os recursos de meu espírito e de meu coração.
Tenho sido sempre e poderosamente sustentado por meus amigos invisíveis, aos quais irei juntar-me, brevemente.
Pela causa do Espiritismo, renunciei a todas as satisfações materiais, mesmo as da vida familiar e da vida pública, aos títulos, às honrarias e funções, vagando pelo mundo, muitas vezes só e triste, porém, no fundo, feliz de assim pagar a dívida de meu passado e de me aproximar dos que me aguardam, no Além, na Luz Divina.
Abandonando a Terra, quero que os recursos por mim deixados sejam empregados ao serviço dessa mesma Causa. É com este pensamento e com esta firme vontade que organizei a lista de meus herdeiros.
Inicialmente, para fins de difusão doutrinária, deixo ao sr. Jean Meyer, residente na Vila Montmorency, Avenida des Tilleuls, 11, Paris, 16°, a propriedade de minhas obras que constam da Biblioteca de Filosofia Espiritualista Moderna e das Ciências Psíquicas, que ele fundou. Se, por morte do sr. Jean Meyer, o funcionamento de sua biblioteca, acima referido, se achar comprometido, minhas obras cairão no domínio público e todos os interessados poderão reproduzi-Ias, com a condição de seguirem escrupulosamente o texto de cada última edição, sob o controle e vigilância de meus executores testamentários. (*)
Leon Denis.
(*) Fiel ao espírito de caridade que o animava e se fazia por meio de numerosos donativos, pelo zelo fraternal para com seus semelhantes, zelo que se exerceu durante a Guerra
e crescia com o tempo, Leon Denis legou grande parcela de seus bens ao Departamento de Assistência Social de Tours e ao Instituto de França.
II - COM UM DRUIDA DA LORENA
Convidado por meus bons amigos de Tours para fazer uma conferência na Municipalidade de Tours, não deixou de comparecer a esse agradável encontro, no esplendor de um dos mais célebres jardins de França, às margens de "meu Loire Gaulês" e lá vivi rápidas horas, usufruindo a "doçura do Anjou"...
Ao meio-dia, dirigi-me à casa de Leon Denis. O Mestre me acolheu com estas palavras: Ora, viva! Parece ter uma bela cabeça de loreno!"
Octogenário, com opulenta barba, o Druida da Lorena já não enxergava mais, suficientemente, para ler e escrever, mas ainda percebia em seu derredor o mundo das formas e das cores. Ele vive nas sombras e com as sombras.
O Loire, que passa debaixo de sua janela, as colinas que exibem o esplendor outonal de seus bosques, creio que ele não pode mais apreciar esses espetáculos...
Um fogo de lenha crepita vivamente no salão, aonde os gatos vão e vêm, silenciosamente, esses eternos companheiros dos místicos e dos pensadores.
Lá estão meus bons amigos da Touraine: Gaston Luce, mutilado de guerra, Cavaleiro da Legião de Honra, premiado pela Academia Francesa por seu livro de poesias: "Minha Touraine" e ronsardiano distinto do "Divas", importante falange parisiense.
Depois, Gaston Delavière, menestrel da Idade Média, com perfil e vestimenta de artista, cuja silhueta sempre espanta os anglo-saxões e os escandinavos atraídos ao vale do Loire, pelos castelos, pelos manes de Rabelais e de Ronsard, pelo Instituto de Tours para os estrangeiros. Delavière, também poeta, é o facho que abrasa todas as almas agrupadas nessa fraternal associação da Universidade Popular.
Há também aquele que, há meio século, se dispôs a serviço da Causa mais achincalhada, mais ridicularizada e a mais ignorada, sistematicamente: a Causa Espírita.
Atualmente, os livros de Leon Denis se espalharam pelo mundo inteiro e o Mestre me anuncia que a Alemanha se pôs a traduzi-los e propagá-los.
A tradução de seu consolador livro "Depois da Morte" acaba de ser lançada em Leipzig. De todos os lados, o Mestre recebe cartas de discípulos, de visitantes estrangeiros de passagem, que desejam conhecer, em Tours, um estranho Loreno.
Deliberadamente, Denis desprezou a Literatura e a Política, para assumir a tarefa ingrata de defender e de propagar as mais extravagantes teses, do ponto de vista dos professores, dos jornalistas e de outras categorias de céticos.
Sua consagração, no Congresso Internacional de 1925, foi magnífica e jornalistas incrédulos, como Géo London, do "Journal", reconheceram e confessaram a sublimidade da Doutrina Espírita.
Leon Denis me fala de seu nascimento em Foug, de sua modesta origem, de seus começos bem duros, bem trabalhosos, porém, com a proteção dos invisíveis:
"Possuo amigos, no Além, que me protegem e me sustentam com um devotado zelo", afirmava ele.
Suas palavras parecem com um frêmito, que demonstra o poder de sugestão que esse maravilhoso orador obtém sobre as mais diversas multidões.
Por vezes, em suas evocações poéticas, levanta para o alto uma da mãos, inclina a cabeça para trás, destacando as duas pontas da barba e, se estivesse com um roupão branco, parecia ver, diante de mim, ao lado do herói de 1914-1918, o menestrel da Idade Média, o Druida da Brocéliande...
Leon Denis é um Celta militante. E o caráter literário e histórico de nosso atual Espiritismo é esquecido: ele é um dos mais interessantes aspectos da renovação céltica que presenciamos.
Allan Kardec se acreditava a reencarnação de um druida da Bretanha, tudo como Leon Denis admira, em Joana D'Arc, a maravilhosa celta, como em Edouard Schuré, o Grande Celta da Alsácia...
Sim, há uma renovação do movimento celta, na França; a reedição do Vercingétorix, de Camille Jullian; a publicação, por André Lebey, de seu "Iniciação Religiosa de Vercingétorix"; o florescimento do Espiritismo e a difusão das literaturas célticas são outros elementos de espiritualidade contra os quais se esboroam as negativas universitárias.
Foi ainda de celtismo que conversamos com Leon Denis. Naturalmente!
... Um drama a Vatel não nos entristeceu, em nenhum instante.
O hoteleiro se esqueceu de tomar umas providências e a cozinheira ficou desorientada.
Era preciso fazer, bem depressa, um prato novo. E tivemos de consolar a cozinheira naquela aflição.
Que responsabilidade! Entretanto, todos nós dávamos tão pouca atenção ao que comíamos! Quando foi trazido o frango assado, não se achou ninguém que pudesse trinchá-lo.
Ei-los, os companheiros de Merlin, o Encantador!
Descobri que Leon Denis era um apreciador da água, o vinho de cor clara e gosto suave como um néctar. Observo, atentamente, o maravilhoso ancião, encanecido, de longas barbas brancas e ele me recorda admiráveis estrofes poéticas que parecem, em seus livros, essas harpas que os alemães expõem nos vitrais de seus castelos, para que o vento nelas module estranhas sonoridades...
Que bela figura a desse lutador que, durante 50 anos de combate, procurou, por toda a Europa, desvendar o segredo da vida e da morte!
Sua última viagem a Foug o decepcionou.Ele a definiu com esta palavra: desilusão: "O regato que murmurejava em frente à minha janela já não corre mais!"
Além disso, os velhos tipos - tais como Moussou, que me declarava ser um segundo Némorin Cocolinjo do "Ermonec" - desapareceram.
Muitos outros, mais jovens, tomaram desagradáveis hábitos de intemperança.
Denis me conta uma curiosa história de Bavarois, morto em 1870-1871, depois jogado em uma carroça e recoberto de adubo, passeando, por todo um dia, no meio dos inimigos pelo autor do golpe, como num desafio astucioso.
Depois, Joana D'Arc entra em cena, porque Leon Denis lhe consagrou um livro e páginas magníficas.
Ele recorda a visita do coronel Collet, no vale do Loire, nos passos da camponesa Lorena. E Denis se lembra de ter visto o bravo coronel chorar, copiosamente, ouvindo as explicações que lhe eram dadas sobre a "donzela".
Vendo o velho soldado chorar por Joana, comoveu tanto, que também fiquei muito emocionado! acrescentou Denis.
Nós nos despedimos. A hora se aproxima. Para nós dois, público de Tours. Para nós dois, ambos de Tours, onde há um ditado, que declara, uma indiferença:
- Turanguense, queres beber? - Sim!
- Turanguense, queres buscar o cântaro? - Não!
... E o público de Tours bebeu no cântaro que lhe dei, embora meu vinho não fosse mais doce e licoroso que o de Tours, mas, por vezes, mais duro e mesmo ácido.
Meu bravo Delavière, os de Tours fizeram sua comemoração. Vamos! Até logo, minha bela Touraine, até breve, meus bons amigos de Tours! E, a ti, velho Druida de Lorena, minha respeitosa amizade e minha cordial veneração."
- Eu sou de Toul-Nord e vós? Denis perguntou. Respondi-lhe: - "De Thiaucourt!". E ficastes mais contente do que eu...
- Poderíamos estar mais perto? dissestes-me também. Não, porque sou, como vós, o Loreno preocupado com o Além... Nossas regiões são bem as mesmas, ó venerável Mestre!
Gabriel Gobron.
III - O FIM DE UM SÁBIO
Deu-se pouca publicidade em torno da morte de Leon Denis. Não foi o bastante.
Podia-se jurar que a Humanidade - incrédula, na aparência, mas sempre crente, no fundo - tão poderosos são o enigma, o atrativo e a angústia do mistério - hesita em homenagear os derradeiros sábios que procuraram conciliar a ciência e a fé. Como se a paz e o progresso pudessem florescer, sem o maravilhoso apoio do ideal.
É preciso reparar essa injustiça.
A vida inteira de Leon Denis foi devotada à sobrevivência. Mais que ninguém ele negou o amesquinhamento total do ser pensante.
Poeta, sem dúvida, mas principalmente grande artista meditativo, sempre se esforçou em provar que não perdemos os seres que nos são caros, quando vão para a Eternidade e que sua invisível presença se manifesta, ao mesmo tempo, a nosso espírito e nosso coração, presente aos nossos sentidos, como prova de que, de forma alguma os deixaremos no esquecimento.
Nele, a inspiração não excluía o espírito científico. Assemelhava-se a Sir William Barrett, que proclamava estar o Espiritismo no caminho que conduz a todo progresso, nas conquistas humanas.
Com uma doce obstinação, quando o psiquismo paranormal disputava as escolas divorciadas do Espiritismo, que acredita na sobrevivência da personalidade humana, e do metapsiquismo, que só admite as interações das forças ainda tão mal definidas dos vivos, desenvolveu suas convicções nas obras de autoridade e onde o filósofo disputa com o sábio: O Além e a Sobrevivência, O Problema do Ser e do Destino, O Grande Enigma, Depois da Morte, O Porquê da Vida.
Aos 81 anos, persuadido de continuar sua obra no Além, de colaborar com a evolução da Humanidade, com uma assiduidade ao mesmo tempo enérgica e mais serena ainda do que desenvolveu no curso de sua longa existência de santo leigo, Leon Denis foi um comovente exemplo de fidelidade a seus princípios de inesgotável bondade.
Devemos nos inclinar diante da memória desse sábio tão digno, que dizia dos espíritas: "Tão ridicularizados e tão escarnecidos", dos quais foi o chefe, depois de Allan Kardec, ao lado de G. Delanne, de Camille Flammarion, de William Crookes e de tantos outros sábios renomados: "Eles tiveram esse mérito imenso de atrair a atenção da Humanidade pensante, não apenas para um conjunto de fatos que revelam a existência de todo um mundo invisível vivo, agitando-se em torno de nós, mas também para as conseqüências filosóficas e morais decorrentes desses fatos.
São um encaminhamento para o conhecimento das leis eternas que regem a vida, a evolução e garantem o funcionamento da justiça no Universo."
IV - BALANÇO DA ATIVIDADE ORAL
TÍTULOS DAS PRINCIPAIS CONFERÊNCIAS FEITAS POR LÉON DENIS:
O Patriotismo (10 de fevereiro de 1873)
O Materialismo
O Espiritualismo
Quadro do Universo
O Evolucionismo e o Espiritualismo
Apologia do Espiritualismo
O Ultramontanismo e a Franco-Maçonaria, em 1875
O Russos e os Ingleses na Ásia.
Deus, a Alma e a Vida.
O Centenário da Independência Americana
A República Americana
Grandes Cenas da História da França
A Religião Natural e Laica
Trabalho e Capital
A Família
A Instrução Popular
Problemas Morais e Religiosos
Ciência e Moral Espírita
O Progresso
As Terras do Espaço
Os Universos Longínquos
Os Mundos
Homenagem a Allan Kardec
A Tunísia e a África Francesa
Os Mundos e a Vida
A República dos Estados Unidos
A Pluralidade dos Mundos
A União Espírita O Espiritismo
O Gênio da Gália
O Patriotismo na Idade Média (Joana D'Arc)
A Filosofia da Revolução
Os Mundos e a Vida Universal
Existências Progressivas do Ser
A Propaganda Espírita
O Espiritismo e a Questão Social
O Gênio da Gália e a Missão de Joana D'Arc
Nossas Verdadeiras Tradições Nacionais
Os Mundos e a Vida Universal. As Existências Progressivas do Ser; Os Fenômenos Psíquicos.
O Espiritualismo Experimental: Ciência, Filosofia, Moral
O Materialismo e o Espiritualismo Experimental perante a Ciência e a Razão
A Vida Universal e o Destino dos Seres
A Instrução dos Adultos e as Bibliotecas Populares
O Espiritualismo e o Materialismo perante a História e a Revolução
O Espiritismo perante a Ciência
O Espiritismo perante a Razão
Cristianismo e Espiritismo
As Crenças e as Negativas de nossa Época
A Idéia de Deus e a Prática do Espiritismo
Socialismo e Espiritismo
Joana D'Arc, sua vida, seu processo, sua morte
Joana D'Arc e o Espiritualismo Moderno
O Problema da Vida Futura
O Espiritismo do ponto de vista Científico
O Cinqüentenário do Espiritismo
O Espiritismo e a Idéia de Deus
As Origens do Espiritismo
O Espiritismo e seu Papel no Mundo.
As Vidas Sucessivas
A Lorena
Joana D'Arc na Touraine.
Palestra sobre a situação do Espiritismo Conseqüências Morais e Sociais do Espiritismo
O Espiritismo e o Ideal Democrático.
O Espiritismo; suas dificuldades, suas vantagens
O Culto dos Mortos
As Sessões de Miller. O Espiritismo na Antiguidade
O Espiritismo através dos Tempos
O Espiritismo e a Missão do Século XX (19 de junho de 1910)
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V- ROTEIRO DOUTRINÁRIO DE LÉON DENIS | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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VI-LÉON DENIS NOS CONGRESSOS ESPÍRITAS
ANOS | EVENTOS |
1889 (set) - Paris - | Dirigiu a Comissão de Propaganda |
1900 (set) - Paris - | Presidente Efetivo |
1905 (jun) - Bélgica - | Presidente de Honra |
1910 (mai) - Bélgica - | Delegado da França e do Brasil Presidente: Le Clément de Saint Marcq |
1913 (mai) - Suíça - | Denis e Delanne: Assistentes de Charles Piguet (Presidente) |
1925 (set) - Paris - | Presidente Efetivo |
VII RENOVAÇÃO
O que mais falta a nossos contemporâneos não é, certamente, a inteligência; é, mais freqüentemente, esta força espiritual, este motor oculto, que dá ao pensamento, sua irradiação e sua luz, esta cordialidade, espécie de magnetismo que aproxima as almas e as faz cooperar, mais eficazmente que todas as forças materiais, com o progresso social, com a evolução dos seres e do mundo.
Quando era embaixador em Nápoles, Chateaubriand, numa carta que ficou célebre, já escrevia a Mme. Récamier que os franceses, muito bem dotados, em geral, com respeito ao espírito e à imaginação, o eram muito pouco, no tocante ao julgamento e à vontade. Os estrangeiros nos acusam de sustentar-nos na contradição, na oposição e ser hábeis na arte da crítica. Ora, a crítica não é suficiente para melhorar a mentalidade de um povo. O que nos falta é uma síntese, isto é, um resumo educativo, um procedimento que revele a todos, grandes e pequenos, o que as religiões e as filosofias não conseguiram inculcar-lhes, isto é, o objetivo real da vida e a grande lei de evolução.
Este resumo, esta síntese, o Espiritismo no-la traz com o ensinamento dos Espíritos dado em inúmeras mensagens que, multiplicando-se e renovando-se todos os dias e em vários países, comunicam-lhe uma autoridade e um poder que vão crescendo sem cessar. E eis que nós aí encontramos as duas grandes correntes da idéia céltica que se desenrolavam através dos séculos, freqüentemente ignoradas, invisíveis, mas que, nem por isso, deixavam de prosseguir, no mistério, sua marcha silenciosa para reunir-se em uma ciência, em uma crença que é a própria expressão do gênio de nossa raça.
A primeira destas correntes era a idéia política, o princípio de liberdade e o direito eleitoral proclamados pelas revoluções, corrente que nos reconduziu à forma democrática e social das instituições gaulesas.
A segunda corrente, filosófica e religiosa, desenhasse lentamente, seguramente. Por ela, a alma francesa se afirma em sua potência moral, em sua comunhão íntima com a natureza terrestre e a vida universal. Ela retoma com o mundo invisível o contato que perdera, a fim de assimilar suas forças e suas leis.
Os druidas, diz-nos Allan Kardec em suas mensagens, recebiam, pelas radiações do espaço, o pensamento revelador que os iniciava nos segredos do Além. Eles se impunham, por tarefa, fixar, condensar em fórmulas lapidares e em caracteres "Ogham" (mais antiga escrita céltica conhecida) os princípios desta revelação superior com vistas ao futuro. Seriam, pois, necessários séculos, para que o ser humano, por seu trabalho pessoal e sua progressão, pudesse assimilar todo o alcance deste ensinamento, a fim de que, em nossa época, a doutrina céltica e a doutrina espiritualista e científica fossem unidas por um elo imperecível.
Vê-se por aí que o plano da evolução humana ultrapassa em grandeza e confunde todas as nossas pequenas medidas terrestres.
Assim, realizam-se as previsões dos autores gregos e latinos que consideravam os gauleses como sendo depositários dos segredos da vida e da morte. Já nesta época longínqua, eles pareciam crer que nossa raça estava destinada a representar, no futuro, um papel revelador. E é o que ocorre, pois são celtas, druidas, reencarnados ou desencarnados, que vêm oferecer a uma sociedade céptica e desencantada o pão da vida, a bebida da imortalidade.
O espírito de Allan Kardec, cujos ensinamentos proponho-me a publicar, não é o único na obra; perto dele estão as almas dos grandes estudiosos dos celtas do espaço. Juntos, eles trabalham em reanimar em nossas consciências a fé que se apaga e a confiança que desfalece.
O Sr. Le Braz, professor na Faculdade de Letras de Rennes, estudioso dos celtas, bem conhecido, escrevia: "Os celtas são, talvez, de todas as raças, a mais tocada pelas preocupações com o Além". Por seu lado, o Padre Fournier, superior do Colégio de Saint-Dizier, em seu Manual da História das Religiões Não-Cristãs, conclui: "Um traço se desenha com tamanha intensidade nos descendentes mais autênticos dos antigos celtas, que é impossível não atribuí-lo igualmente a estes: é a profunda religiosidade o senso agudo do mistério angustiante da natureza e do destino, a comoção repercutida ao mais profundo das almas, diante do enigma do Além".
Estes testemunhos, emanando de um professor universitário e de um teólogo, não poderiam ser suspeitos de parcialidade.
Vimos como estas tradições, entre as vicissitudes da História, curvaram-se pouco a pouco para chegar a um período de incerteza e de cepticismo. Seria uma grande causa de fraqueza e, por conseqüência, uma infelicidade para a França, encontrar-se desprovida de concepções precisas sobre a vida e a morte. Sabe-se como, graças à ocupação romana, doutrinas estrangeiras vieram cobrir e apagar o foco de luz aceso pelos druidas. Estas doutrinas traziam, é certo, elementos de verdade e de beleza moral de que nossos pais beneficiaram-se nas horas difíceis. Mas a doutrina do Cristo, ela própria, alterou-se com o passar do tempo e, no final das contas, a França achou-se diante de um ensinamento teológico que restringira todas as coisas, reduzindo as proporções da vida a uma só existência muito desigual, seguindo os indivíduos para fixá-los em seguida numa imobilidade eterna. As perspectivas do inferno tornaram a morte mais temível. Elas fizeram de Deus um juiz cruel que, tendo criado o homem imperfeito, punia-o por sua imperfeição, mesmo sem reparação possível. E daí os progressos do ateísmo, do materialismo que fizeram da França uma Nação, em maioria, céptica, desprovida desta fé robusta e esclarecida que torna fácil o dever, suportável a prova e consigna à vida um objetivo prático de educação e aperfeiçoamento.
A revelação druidesa, ao contrário, ensina que o princípio de vida no homem, as forças, as energias que se agitam nele, não podem estar condenadas à inércia, que a personalidade humana é chamada a desenvolver-se através do tempo e dos espaços e a adquirir as qualidades, as potências novas que lhe permitirão representar um papel sempre mais importante no Universo.
"Viver, diz J. Reynaud em O ESPÍRITO DA GÁLIA, não é apenas estar fora do nada, é agir, é instruir-se, é usar suas faculdades e suas virtudes, é sentir-se livre; é conservar, desenvolver, multiplicar suas afeições; é elevar-se com a ajuda de Deus, na escala dos seres, mas nada perder, nem de si mesmo, nem de suas amizades."
Ora, esta tradição que dormitava no fundo das consciências célticas desperta, sai da sombra dos séculos e se manifesta no mundo sob o nome de Espiritismo. A voz dos céus profundos faz-se ouvir novamente na Terra para chamar os homens ao sentimento do dever e à compreensão do elevado objetivo da vida.
E assim, uma tarefa nova se desenha para a França; desde a guerra, seu papel já parecia crescer no mundo, do ponto de vista material, e nada de sólido e de durável se edifica sem seu concurso. Ela não é nem latina, como a Itália e a Espanha, nem germânica como a Alemanha, nem anglo-saxônica, como a Inglaterra e os Estados Unidos; ela é céltica e, por sua situação e suas origens, pode servir de intermediária, de traço de união entre seus vizinhos. A influência de seu pensamento e de sua ação, suas radiações penetram neles sem que eles o saibam.
Neste sentido, depois de sua obra de pacificação política e material, cabe-lhe trabalhar em uma restauração intelectual e moral, pois não pode haver restauração moral completa sem uma educação nova, inspirada por um ideal elevado, por uma fé racional e científica que eleve as almas acima dos horizontes estreitos da vida e lhes revele o objetivo a atingir.
Esta renovação necessária, a França deve nela trabalhar, primeiro para ela mesma e por seus próprios interesses. Pois que o tempo urge, assinalam-me, de toda parte, sinais não equívocos de decadência moral e de desagregação social. Parece que as forças vivas da Nação estejam ameaçadas. Mas, por outro lado, constatam-se atos de iniciativa privada, esforços generosos que, multiplicando-se, permitem tudo aguardar, tudo esperar. Com efeito, em muitos de nossos compatriotas a alma cristã, guardiã das virtudes do Evangelho, coincide, sem o saber, com a alma céltica menos passiva, mais viril, mais ardente.
A revelação dos Espíritos, o ensinamento do Além, ensinando-lhes a conhecer-se e a discernir o objetivo supremo, darão a estes dois suportes psíquicos o meio de fundir-se e haverá apenas uma alma, a alma francesa imperecível, imortal, evoluindo em direção a seus altos destinos. A grande voz dos espaços traz-nos o reconforto, a força moral, a confiança em nós mesmos e no futuro.
Já que outras doutrinas reconheceram-se impotentes para reagir contra os males que nos assediam e para fornecer-nos o pão saboroso da alma, remontemos, então, com o Espiritismo, a nossas origens, às puras tradições de nossa raça, ao que constitui nosso verdadeiro patrimônio. Enquanto estas doutrinas deterioraram-se em sua luta secular contra a matéria, nós reencontraremos nosso patrimônio intelectual e moral no mais profundo das consciências célticas, intacto e quase virgem.
O principal argumento de nossos detratores é que "as Tríades", esta magistral síntese dos druidas, é apócrifa e remonta, quando muito, à Idade Média. É verdade que nós possuímos-lhe a tradução francesa há apenas cem anos, mas, quase todos os autores antigos, gregos e latinos conhecem-na e, entre outros, Diógenes Laércio cita várias "Tríades" no século II de nossa era.
As "Tríades" representam uma epopéia da alma elevando-se do inconsciente, até à consciência mais alta por séries de etapas ou de vidas sucessivas das quais cada uma traz em si mesma seus antecedentes.
O Universo, escala dos mundos, é apenas um degrau para subir gradualmente na direção de grupamentos espirituais mais puros, mais sutis, mais radiosos e gozar de uma vida intensa e radiante.
Segundo as -Tríades-, o Universo é regido por leis, leis de evolução, de progresso, de justiça que emanam de uma fonte eterna de inteligência, de sabedoria, de luz; estas leis trazem em si mesmas sua sanção, fazendo recair sobre o ser todas as conseqüências de suas obras. Por uma espécie de mecanismo moral, o ser, por suas aspirações, por seus atos, se eleva para sociedades melhores, em cujo seio ele experimenta sensações mais delicadas, enquanto, por seus vícios e suas paixões, ele se acorrenta aos mundos materiais.
Esta revelação da pluralidade das vidas pelas "Tríades" lança uma viva luz sobre o destino do ser. Por ela, a personalidade do homem se engrandece; tudo se repara, tudo se resgata. O homem se torna o autor consciente, o instrumento responsável de seu próprio provir, ele se liberta pouco a pouco das baixas contingências planetárias e das brutais impulsões do interesse, desenvolvendo se por seus próprios esforços, por todas as aquisições de sua inteligência, de sua razão e de seu coração.
Cada vida traz-lhe um conhecimento, uma força e um poder novos, e a solidariedade mais estreita o liga a todos os seres. Ele se eleva, assim, através de degraus, em direção ao lar supremo do qual ele se torna uma radiação consciente e fecunda.
O ser é, então, chegado ao círculo da vida celeste: "Gssynfyd", que a "Tríade 45" descreve nestes termos: Três plenitudes da felicidade de "Gssynfyd": participar de toda qualidade com uma perfeição principal; possuir toda espécie de aptidão com um talento preeminente, enlaçar todos os seres em um mesmo amor, com um amor de primeira linha: ou seja, o amor de Deus; e é nisto que consiste a plenitude do céu ou "Gssynfyd".
Leon Denis
Ultimo artigo, escrito por Leon Denis, publicado na Revue Spirite de março de 1927.
VIII UMA COMUNICAÇAO DE LÉON DENIS - OBTIDA EM TOURS - 8 DE JULHO DE 1927 (por incorporação)
"Minha prezada senhora Renée, a impressão que tivestes, pessoalmente, entre 8:00 e 9:15 h, na noite de 12 de abril, é, naturalmente, em decorrência do êxtase, do desdobramento, da alegria, do deslumbramento e da luminosa vertigem que eu mesmo senti, trocando de mundo. Da vida terrestre, com seu movimento orgânico, à vida do Espaço, com sua sensação radiosa, há forçosamente, na mudança das situações, um ponto morto que fica em suspensão, em maior ou menor tempo, conforme a evolução, o estado. da alma e a observação do indivíduo. Após o momento em que cessaram os órgãos que animavam meu pensamento humano, no minuto em que despertei para a luz do Além, tive uma espécie de sonolência, de sono hipnótico.
Sentia-me como que entorpecido por condensações de vapor, que formavam em torno de mim uma espécie de casulo fluídico.
Meus queridos e bons guias trabalhavam, depois minha respiração deixou meu envoltório carnal e, como um débil fio, desligou-se sem choque.
Senti, então, todo o meu ser dilatado, vaporoso, atraído como por mãos invisíveis, que não eram senão os pensamentos d meus guias.
Esses pensamentos se concretizavam e tocavam meu espírito sob a forma de emanações luminosas, refletidas pelo perispirito de meus entes queridos desencarnados.
Eu flutuava em derredor deles como o pássaro que sai do ovo, mas que é frágil e dá seus primeiros passos em vossa Terra.
Havia deixado minha casa carnal e ensaiava as primeiras evoluções no Mundo da Luz, domínio maravilhoso criado por Deus.
Mais do que nunca, meus amigos, sei agora que todo ser humano rompe sua carcaça física, com maior ou menor dificuldade, conforme sua evolução e conforme o grau de fé e de confiança existente em sua bondade e na justiça de Deus."
Espírito de Leon Denis
(Revue Spirite, outubro de 1927)
FIM