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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Histórias e Anatoções-Francisco Cândido Xavier

 

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HISTÓRIAS E ANOTAÇÕES

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

IRMÃO X

CEU

Cultura Espírita União

Prefácio

Amigo leitor,

Conta-se que Tirésias, o sábio, já muito idoso e quase cego, habituado ao contato com a multidão, se reunia com numerosos populares nas praças de Tebas, de cuja grandeza ainda restam as ruínas de várias cidades, dentre as quais se destacam Luxor e Karnak, a fim de comentar as suas lembranças para os circunstantes em grande número, que o ouviam com atenção.

Tamanha era a ligação do orador com o espírito popular, nas narrativas e anotações de que ele se, fazia mensageiro, que a presença dele é recordada até hoje, na memória da humanidade.

Muito semelhante à ligação desse sábio com a mente do povo é a identificação do Irmão X, o culto escritor brasileiro, que soube cultivar na comunidade da nossa Pátria a admiração e o respeito.

Este livro lhe traz, leitor amigo, a personalidade original, instruindo-nos e edificando-nos, ao mesmo tempo.

Para reconhecer-lhe a altura da inteligência e a nobreza da cultura nobremente conduzida, entregamos-te este volume, volume este que nos fará sorrir e meditar.

Emmanuel

Uberaba, 18 de Junho de 1989

I

Viagens ao Espaço

Irmão X

Falas, entusiasticamente, em habitantes de outros mundos, como se não estivéssemos habituados à experiência espírita.

Ante a evolução dos projéteis balísticos, referes-te às criaturas de Marte e Júpiter, Vênus e Saturno, com o êxtase de uma criança. E pensas em alterações e reviravoltas milagrosas, como se a tela moral do orbe pudesse modificar-se de momento.

Lembra-te, porém, de que a vida estua, vitoriosa, em toda à parte, e de que a própria gota d’água é um pequenino mundo, povoado por miríades de seres dos quais o microscópio nos proporciona ampla notícia.

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Cada esfera quanto cada paisagem é habitada a seu modo. E todos nós, amigos desencarnados, formulamos votos para que o homem, nosso irmão, continue devassando pacificamente o espaço, surpreendendo novas características de vida no reino cósmico. Nota, entretanto, que há mais de um século os homens que “morreram” chamam, debalde, a atenção dos homens que “vão morrer”. E gritam que a vida continua para lá do sepulcro, que a matéria se gradua em outros estados diferentes daquele pelo qual é conhecida na Terra.

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Convidados à verificação da verdade, sábios eminentes como Crookes, Myers, Morselli, Ochorowiez, Aksakof, Lodge, empenham a própria autoridade, trazendo a lume observações e declarações indiscutíveis.

Médiuns consagrados ao bem colaboram na difusão dos novos conhecimentos. Home, Eusápia, Esperance, Piper, sem nos reportarmos às irmãs Fox, submetem-se a exigências constantes.

Os espíritos são vistos, ouvidos, apalpados, fotografados e identificados, mas, porque os medianeiros permanecem naturalmente unidos à mensagem, como o violino ao musicista, o notável pesquisador constrói com tal sutileza a sua filosofia da dúvida, que a Doutrina Espírita estaria transfigurada simplesmente em vasto laboratório de intermináveis experimentos, não fosse a legião de bravos que lhe sustentam o estandarte de amor e luz, como autênticos vanguardeiros do progresso, junto da Humanidade.

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Ainda assim, apesar de todos os empeços, avança a evidência do Mundo Espiritual.

Nos países mais cultos do Globo os fenômenos do Evangelho vão sendo revividos, imprimindo conseqüências morais por toda parte. Os assuntos da sobrevivência são reexaminados.

Outros médiuns chegam à sementeira das grandes revelações e o movimento prossegue, anunciando a continuação da vida no Além.

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O problema, contudo, é tão fascinante que até mesmo os espíritos, privilegiados do entendimento, manuseiam-lhe os valores como quem lhe desconhece a grandeza.Permanecem na realidade fulgurante, à maneira do homem comum à frente do Sol. À força de recolher-lhe, gratuitamente, a vitalidade e o calor, se esquece de agradecer-lhe a presença.

Não precisa perguntar-nos, assim com esse ar de encantamento, se pode habilitar-se a uma excursão até Vênus ou Marte, em época próxima. Queiras ou não, farás, como nós já o fizemos, uma viagem muito pais importante. Mesmo que bebas soros de longevidade, com geléia real de contrapeso, conforme as usanças do século, apresentarás as tuas despedidas no momento adequado.

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Creias ou não creias, conhecerás cidades prodigiosas e ninhos abismais, superlotados de gente que sente e pensa como tu. Não precisarás, para isso, tripular um foguete em velocidade. Virás mesmo na barca do velho Caronte.

Nem alarme, nem propaganda. Para os homens, nossos irmãos na Terra, estarás em silencia.

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Mas teus olhos verdadeiros mostrar-se-ão percucientes por trás da fronte marmórea e a tua voz se levantará, renovada, por cima da boca hirta. Tão logo comece a romagem, dirão no mundo que estás morto.

Pensa nisso para acostumar-te, desde agora, às dificuldades com que te haverás, depois, para seres recebido entre os homens.

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De qualquer modo, porém, encontrarás na Doutrina Espírita todos os recursos necessários à grande preparação. Se respeitada, ela te será precioso passaporte, laboriosamente adquirido, para que te dirijas, tranqüilo, aos domínios maravilhosos que desejas conhecer. E essa circunstância; no caso, é a mais expressiva de todas, porque, se podes chegar hoje, em carne e osso, a planetas diversos do nosso, a fim de observares o que é dos outros para morreres em seguida, amanhã desembarcarás nos planos da Vida Maior, em espírito e verdade, pêra receberes o que te pertence.

II

O Cultivador Infiel

Irmão X

-  Não me conformo – repetia irritado, o Dr. Novais Magalhães – o Espiritismo popular é vespeiro de confusão. Onde já se viu tamanha bagagem de embustes? É verdadeira escola de loucos e, freqüentemente, não se compreende tão elevado número de débeis mentais.

-  Mas, doutor – ponderava o Matos Lessa – há observações interessantes que cumpre não desprezar. Nem tudo é caso grosseiro ou indigno de análise. Claro que no intercâmbio com o invisível há que destacar deficiências mediúnicas. Se alguém se incumbe de um recado nosso, logicamente misturará suas expressões individuais no esforço de transmissão necessária.É o caso do médium. Se um político ou um cientista, distantes do lar ou do trabalho, apenas encontrassem humilde carregador capacitado à transmissão de uma mensagem à família ou aos colegas, naturalmente não sacrificariam o objetivo essencial ao processo exterior do serviço. É razoável que o portador satisfaça ao encargo, todavia, emprestando à colaboração características que lhe sejam peculiares. O dever, entretanto, estará cumprido, os detalhes, por certo, na maioria das vezes, deixarão a desejar.

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-   Não concordo, porém – reafirma o doutor – A observação justa não dispensa o método rigoroso. A meu ver, a sobrevivência está muito longe de ser provada, através das supostas comunicações com o Além. Temos somente apreciável acervo de fenômenos da própria subconsciência. As mensagens nunca ultrapassam a esfera de cultura do médium, os efeitos físicos são perfeitamente explicáveis pelo conhecimento do magnetismo em nossa época. Nada observo que transcenda o paralelismo psico-fisiólogico da ciência oficial.

-o-

Continuava a discussão acalorada, cheia de persuasão por parte do Lessa e de argumentos pesados do rigoroso investigador.

O Dr. Magalhães, entretanto, jamais cedia terreno. Sua mente de pesquisador vivia repleta de conceitos clássicos a derramarem-se-lhe da boca em terminologia científica. Não apenas Matos Lessa vivia a duelar verbalmente com ele. Amigos vários tentavam inutilmente renovar-lhe as interpretações. Novais era, porém, irredutível. Exibia chaves da ciência comum para todos os casos da fenomenologia. De qualquer reunião respeitável a que comparecia, instado pelos companheiros, retirava-se mostrando sorriso irônico e invariável ao canto dos lábios.

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-  Não observou aquela mensagem dirigida à senhora Castanheira? – Indagava o Morais, velho amigo dele. O médium desconhecia as particularidades da comunicação. Notou os nomes familiares? E a descrição da moléstia do filho? Como interpretará você o fenômeno, sem o concurso do Espiritismo?

Sorria o observador renitente, acentuando:

-  Simples transmissão telepática. Nada mais que isto. A ansiedade da família Castanheira envolveu a organização mediúnica e produziram-se as páginas de conselho. Ora, ora, o cérebro humano é aparelho que mal conhecemos...

- Mas, meu amigo – atalhava o outro - semelhante conclusão não satisfaz. Além disto, outros casos existem mais surpreendentes.

E Morais desfiava longo rosário de narrações, enquanto o doutor Magalhães de desfazia em comentários sobre automatismo, mecanicismo, subconsciência, patologia, telepatia, criptomnésia, telecinesia, psicogênese e outras teses respeitáveis do metapsiquismo contemporâneo.

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Ao fim da longa conversação, o investigador rematava:

-  Afinal de contas, não me farei ao mar da ilusão. Quero fatos tangíveis, expressões palpáveis. O Espiritismo popular com os seus doutrinadores ignorantes e médiuns embusteiros não atrai estudiosos de valor intelectual. Sou honesto, meu caro, e o homem honesto deve ser verdadeiro.

- Não somos menos leais – aduzia o companheiro serenamente – e não desrespeitamos os postulados científicos. No entanto – e acentuava com inflexão firme – será admissível que a simples enunciação de palavras complicadas resolva problemas grandiosos da existência humana? A teoria não realiza coisa alguma por si só. Você, meu caro Magalhães, pode ser excelente educador, na expressão verbal, mas não é irmão.

- Que pretendes dizer? – perguntou Novais agastado.

-  O educador explica, retalha, demonstra friamente e, por vezes, não vai além da lição teórica. O irmão é companheiro de luta, partilha as dores e alegrias do trabalho, compreende e consola.

- Alto lá! Não confundamos ciência e fé religiosa, raciocínio e sentimentalidade. A  lógica não toma apartamentos ao coração. Sigamos pelo método. Não tolero as farsas mediúnicas, com as velhas exortações descabidas e indigestas.

E toda argumentação tornava-se inútil. Por mais que se falasse de vôos sublimes à Espiritualidade Superior, Novais fixava olhos e pensamentos no chão duro das interpretações sem esperança. Ninguém lhe discutia a honestidade, nem lhe negava inteligência. Mas, a sua atitude mental era sempre irritante. Onde o amor dos espíritos benevolentes e sábios semeava consolações e energia novas, atirava ele dúvidas e desencantos.

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Semelhava-se ao jardineiro infiel que, ao em vez de auxiliar a planta e protegê-la, arranca-a da base vital, no intuito de contar-lhe as folhas, observar-lhe a seiva e analisar-lhe as raízes, muito antes da promessa de fruto.

Mas, como toda criatura terrestre, o doutor Novais Magalhães também entregou o corpo às exigências da morte. Com grande surpresa, porém, verificou que continuava vivo como dantes. Grande ansiedade por esclarecimentos particulares, enorme sede espiritual de revelação; entretanto, a solidão era absoluta. Ninguém para atender-lhe  a fome do coração. Novais começou a caminhar a esmo, ponderando agora as barreiras sensoriais.

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Ah! Se encontrasse um médium! Alguém que lhe pudesse levar pequeno recado à família, humilde notícias aos colegas! Ainda que esse médium fosse de vulgar instrução, aproveitar-lhe-ia o concurso sem hesitar... E se algum espírito amigo viesse encaminhá-lo a serviços novos? No entanto, o Dr. Magalhães não podia esperar colheitas onde nada havia semeado, no capítulo da fraternidade e da consolação.

O que mais o assombrava, porém, eram as sendas por onde se dirigia ansioso. Apenas divisava árvores mortas, ervas ressequidas, arbustos quebrados e, de quando em quando, a voz de alguém se mantinha invisível lhe gritava,ironicamente, aos ouvidos: “Mau jardineiro! Mau jardineiro! Cultivador infiel!...”

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Novais, que começara indagando, vivia, agora entre a súplica e a lágrima.

Após muitos anos de dor, surgiu, enfim, alguém, na paisagem desolada. Tratava-se também dum jardineiro. O antigo observador fitou-o surpreso. Era um velhinho de olhar muito doce, cabeça aureolada de fios de neve, empunhando instrumentos agrícolas.

Magalhães aproximou-se e lhe pediu socorro, angustiadamente. Face às amorosas interpelações do velho amigo, relatou a própria história, narrando-lhe as indagações do passado e as desilusões a que fora conduzido, afirmando sua honestidade e dedicação extrema ao método.

O ancião sorriu generoso e falou:

-   Quando na Terra, conheceu a formiga?

-  Sim... – respondeu Novais, estanhando a pergunta.

-  Pois é, meu amigo, o seu caso é semelhante ao dela. A formiga é prodígio de inteligência e organização. Edifica o próprio lar, trabalha metodicamente, preserva com rigor o patrimônio que a natureza lhe confere. É minuciosa, mas é também um assombro de operosidade e de método; mas... nunca olha para o alto e, enquanto vive no campo, é sempre a mesma formiga...

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Magalhães compreendeu a alusão e chorou com amargura; mas, o amorável mensageiro tomou-lhe a destra e murmurou com brandura:

-  Venha comigo. Aprenderá doravante a zelar as plantas de Deus. Compreenderá agora que, se a investigação é justa, a verdade palpita acima dela, pedindo compreensão para as bênçãos da vida. Esqueça a sombra e busquemos a luz. Se a ciência é necessária para o aprendizado de caminhos da Terra, é preciso não esquecer que o amor traça os caminhos o Céu.

III

Petições

Irmão X

Diante da Benfeitora desencarnada, que atendia por intermédio do médium, em plena reunião de atividades espirituais, exclamou à senhora, súplice:

-  Irmã Corina, sou Angélica de Seixas... Ainda não sou espírita, mas venho até aqui em grandes necessidades. Ampare-me, por amor de Deus!...

-  Diga, filha – respondeu a entidade benevolente.

A visitante prosseguiu, quase em lágrimas:

- Tanto e tamanhos são os meus problemas, que fiz uma lista de minhas petições. Posso lê-la?

-  Como não?

E dona Angélica, desdobrando larga folha de papel, passou a falar, atenta às notas escritas.

-  Eis o que desejo:

Cura de minha velha nevralgia.

Remédio para meus olhos.

Liquidação da angústia que me persegue.

Esquecimento da tristeza e do tédio que me acompanham.

Medicação para a insônia.

Sossego íntimo.

Dizem que sofro de obsessão e quero livrar-me.

Desaparecimento dos vultos e das vozes que me atormentam.

Recuperação do meu esposo, atacado de hepatite.

Restabelecimento do meu filho Damião, internado em repouso.

Casamento feliz para minha filha Ariléia.

Melhoria do temperamento de meu filho Avelino, que já consumiu dois automóveis, em menos de dois meses.

Solução dos papeis relativos ao recebimento da herança que nos foi legada por meu tio João de Seixas, que morreu no ano passado.

Calma e revigoramento para meu futuro genro, que anda extremamente nervoso desde a noite em que se embriagou, quebrando o braço numa queda de lambreta.

Bênçãos para a nossa fazenda, onde o gado, há muito tempo, está doente e mofino, sem que o veterinário descubra a causa.

Paciência e harmonia para as minhas quatro empregadas, que vivem reclamando contra mim.

Mudança pacífica do vizinho da esquerda, cuja casa é uma fábrica de barulhos constante.

Compradores corretos para os seis apartamentos que acabamos de construir.

Concessão de cinco telefones.

Encontro do meu anel de brilhantes, perdido há dois meses.

Despacho favorável num processo de despejo que movi contra dois inquilinos relapsos.

Dona Angélica terminou em pranto, mas a venerada Corina, compreendendo-lhe o desajuste psíquico, abraçou-a com afeto e ponderou  gentil:

-  Sim, minha irmã, confiemos na Divina Providência. Examinaremos todas as solicitações formuladas; no entanto, é preciso começar pelo tratamento adequado de sua própria saúde. Rogo-lhe apenas vir à nossa instituição durante meia hora por semana, a fim de que lhe seja administrado o tratamento magnético necessário, em nossos minutos consagrados à prece.

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Ante a pausa que se fizera natural, tornou a Benfeitora com a ternura de quem afaga um doente:

-   Poderemos aguardá-la, amanhã?

Dona Angélica, entretanto, abanou a cabeça, em sinal negativo, e alegou a multiplicidade dos compromissos que a reteriam no lar. Tropeços, dificuldades, trabalhos, obrigações...

A abnegada interlocutora, porém, observou, prestimosa:

-   Bem, a irmã não pode vir ao nosso encontro; contudo, não nos será difícil prestar-lhe a devida cooperação em sua própria casa. Bastará que se mantenha em recolhimento, por vinte minutos, de sete em sete dias, no horário e local a combinar.

Logo após, com assentimento da interessada, marcou-se a primeira etapa socorrista para a noite seguinte, e lá fomos, alguns companheiros em equipe de assistência, para a tarefa a realizar-se; no entanto, a irmã Corina esperou, debalde, no aposento indicado aos breves momentos de silêncio e oração

Dona Angélica de Seixas não conseguiu atender-nos, por estar mentalmente ocupada, em meio de alegres amigas, numa longa e agitada sessão de pif-paf.

IV

Duas Semanas

Irmão X

Quando penetramos no aposento íntimo do abastado comerciante João de Toledo, estavam à mostra as folhas do diário em que lançara, do próprio punho, as resumidas anotações das próprias atividades nas duas últimas semanas daquele mês de abril:

17 - Acordei hoje sobressaltado. Sonhei estar abraçando meu pai, morto há vinte anos. Não era precisamente um sonho. Era uma perfeita visão, dentro do quarto, mas compreendo a elucidação, pois comi lombo de porco à ceia, com boa rega de vinho verde. Ao almoço, contei o sucedido a minha mulher que acredita numa comunicação espiritual. Ora, ora! Crendices! Etelvina, apesar de boa esposa, é mulher de cabeça fraca. Na parte da tarde, consegui armazenar mais duzentos sacos de arroz, completando o total de mil e quinhentos.

18 - Etelvina amanheceu nervosa, chorando. Disse haver sonhado também com meu pai, a rogar-me serviço à beneficência. Dizia que o velho chegara a indicar o cofre, repetindo o meu nome em voz ,alta. Baboseiras de minha mulher. Ela não bebe e come pouco, mas é impressionável. Bastou que eu falasse de sonho à mesa para que igualmente se iludisse, a respeito de comunicações. Consegui adquirir mais trezentos sacos de feijão imunizado.

19 - Nova choradeira de minha mulher. Declarou ter visto meu pai morto (oh! estupidez humana!) e pediu em levá-la a um Centro Espírita. Neguei. Se as cousas continuarem dessa forma, devo levá-la a um psiquiatra. Dei um pulo a Caxias e obtive a promessa de mais centro e oitenta sacos de arroz. Ótimo preço.

20 - Uma comissão de pessoas religiosas veio hoje a minha casa insinuando a concessão de um dos meus lotes na cidade para o levantamento de uma casa destinada ao amparo de crianças vadias. Achei muita graça. Se querem posses que vão trabalhar. Virei-me quanto pude e comprei mais duzentos e vinte sacos de arroz, somando o total de mil e novecentos nos meus quatro galpões. Dentro de um a dois meses, a alta será compensadora. Pretendo adquirir mais imóveis.

21 - Passei o dia em Niterói, articulando com amigos a compra de quinhentos sacos de arroz paulista, do melhor. Margem excelente. O artigo chegará em caminhões.

22 - Etelvina passou o dia chorando. Disse ter visto meu pai a recomendar-me auxílio para as crianças necessitadas. Não compreendo. Meu pai morreu há muito tempo. Minha mulher quer ir a um Centro Espírita. Que vá sozinha. Não creio em bobagem. Ouvi vários atacadistas. O arroz subirá assustadoramente, depois da safra.

23 - Bolas! Etelvina veio do Centro Espírita com um papelucho escrito, dizendo ser comunicação de meu pai. A assinatura é a do velho. Pede para que eu assente a cabeça, a fim de cultivar a saúde. Fala em caridade, repouso, meditação! Ora essa! Sou um homem conhecido. Esses espíritas devem ser grandes velhacos. Proibi Etelvina de qualquer novo entendimento com esses mandriões. Amanhã, imitarão a letra de meu pai para arrancar-me o dinheiro. Tudo isso deve ser chantagem religiosa. Mensagem! O conto da mensagem, isso é o que é. Não sou tão lorpa. Recebemos quatrocentos sacos de arroz paulista. Verdadeira pechincha. Tudo indica bons lucros.

24 - Armazenei mais seiscentos sacos de feijão. Estoque excelente. Vantagens imediatas.

25 - Etelvina no mesmo choro em casa, declarando estar vendo meu pai constantemente. Isso é de enlouquecer. Os negócios me tomam tempo, sem que eu possa conduzi-la a tratamento. Os empregados querem aumento. Era o que faltava. Não dou um vintém. Rua para quem reclamar. Comprei mais seiscentos sacos de arroz brunido para saída breve. Espero cinco milhões em maio próximo.

26 - Chegada de mil e oitocentos sacos de arroz paulista. Acompanhei a descarga pessoalmente. Suei como estivador. Lucro certo.

27 - Uma senhora espírita com dez crianças veio procurar-me no armazém com uma lista de auxílio. Não assinei. Vi tudo. Etelvina no Centro atraiu a exploração. A senhora acabou solicitando um saco de arroz, mas aconselhei-a a levar os meninos para a Baixada e plantar. Caridade é manto de vagabundos. Comprei mais oitocentos sacos de feijão de Minas.

28 - Minha mulher piora, dia a dia. Contei ao meu gerente o que se passa e ele me falou que é mediunidade. Até ele! Não sei se um homem de bem, falando nisso, dá para rir ou pensar. Consegui mais quinhentos sacos de arroz.

29 - Passei o dia comprando mais feijão. A praça começa os primeiros sinais de alta.

30 - Etelvina quis conversar hoje em novas lições de meu pai e mandei que calasse a boca. Não quero comunicações, não quero notícia de mortos. Vou interná-la amanhã numa clínica de repouso, em Santa Tereza. Quero sossego. Meus representantes estão autorizados a começar as vendas depois de amanhã. Estaremos até a noite nos armazéns, recolhendo novas remessas do arroz que chegará de São Paulo. Uma frota de quarenta caminhões. Até vinte de maio próximo, espero o lucro de cinco a seis milhões para começar, em base mínima.

Estas eram as últimas notas do abastado negociante Pedro João de Toledo quando lhe vimos enfim no lar o corpo maduro e hirto, que tombara repentinamente na rua, depois de algumas horas em trânsito agitado para averiguações no necrotério.

V

Psicografia

Irmão X

Assevera você  que o médium, a serviço do livro no Espiritismo, deve ser analfabeto, para que o fenômeno da comunicação se mantenha insofismável.

Isso, porém, meu cão, não toa com os imperativos da lógica.

Exigir um atestado de ignorância aos medianeiros incumbidos de veicular à palavra dos instrutores desencarnados, é o mesmo que reclamar obra-prima de imprensa a quem não possua o mais leve conhecimento do caixotim tipográfico.

É claro que criaturas admiráveis podem realizar prodígios de beneficência, sem o concurso das letras.

Sublimes tarefas da natureza são executadas sem necessidade de informação cultural.

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A semente de que se faz o pão e a maternidade em que o lar se baseia prescindem de instrução da inteligência, contudo, os serviços que lhes são conseqüentes, reclamam técnica e condução. Sem a agronomia que aperfeiçoa, a gleba estaria enquistada na insipiência, e sem a escola que honorifica o templo doméstico, a dignidade feminina acomodar-se-ia ao nível dos brutos.

Não podemos prescrever princípios eternos como sejam afinidade e seqüência nos processos da vida.

Quem aprende a manejar o buril, por vontade própria, com um estatuário, naturalmente acabará escultor, tanto quanto quem se afeiçoa ao ladrão, admirando-lhe as aventuras, decerto, com mais segurança, se fará competente na arte do furto.

Problema de inclinação e de companhia.

Se determinado médium dedica bastante amor aos misteres psicográficos, oferecendo-lhe tempo e carinho, indubitavelmente merecerá atenção dos amigos desencarnados que se valem do lápis no auxílio aos semelhantes, qual o aluno aplicado À frente de professores conscientes e justos.

E, estabelecida à comunhão, o serviço progredirá na medida em que se desdobre a consagração do intermediário ao propósito de aprender e servir.

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Isso é mais que natural.

O trato de terra que suporte a presença do adubo e que se faça dócil À passagem do agente úmido é sempre aquele que mais produz, conquistando as mãos e s olhos do lavrador.

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Médium que se mostre constante na disciplina a que se revele submisso aos ditames construtivos da Espiritualidade obterá, inegavelmente, o amparo dos companheiros desencarnados que buscam na caridade e na cultura o caminho da própria renovação.

Há médicos notáveis, desenleados do carro físico, aproveitando operários humildes da fraternidade humana para o socorro aos doentes e cientistas ilustres que, ausentes do corpo carnal, não desdenham o concurso de apagados servidores da fé para a difusão do conhecimento nobre, no intuito de sublimarem, eles mesmos, o próprio coração.

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E quanto mais se devotam os medianeiros à bondade e à instrução, mais se lhes eleva o grau evolutivo no campo da alma.

Indiscutivelmente, na falta de pessoas alfabetizadas, os Benfeitores da Vida Superior não menosprezam os amigos privados da escola e, através deles, transmitem recados e ensinamentos que exprimem esperança e consolo.

Aliás, em circunstâncias propícias, utilizam-se até de animais para as tarefas que lhes digam respeito.

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Na Bíblia, temos o caso da jumenta de Balaão, cujas forças foram manipuladas por um Mensageiro Divino, a fim de que o fenômeno da voz direta alertasse o filho de Beor, no desempenho da missão que lhe fora cometida e, na atualidade há algum tempo, era possível observar o nosso prestimoso Canário, o burro sábia, cuja pata graciosa, manobrada por jovem estudante desencarnada, conseguia fornecer respostas interessantes a perguntas diversas.

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Ainda assim, os muares a que nos referimos não conseguiram abra mediúnica de maior vulto.

Faltava-lhes, pelo menos, um curso primário de letras humanas para o avanço preciso.

Enfim, meu amigo, estude a questão em seu próprio gabinete.

Lembre-se de que a carta primorosa foi naturalmente ditada por sua boca à datilógrafa que lhe grafou os conceitos.

Se ela não fosse quem é – colaboradora exímia do seu trabalho de homem consagrado ao pensamento – você com certeza não conseguiria expandir-se, no plano das relações e das idéias.

Você precisa dela, tão instruída e atenciosa, para instrumento de suas realizações, como nós outros, os espíritos desencarnados, não prescindimos de bons medianeiros para o serviço que nos compete.

Como vê, nossos irmãos ainda analfabetos poderão, muitas vezes, efetuar glorioso ministério de amor e humildade, do qual nos achamos todos distantes em nossa deficitária posição na virtude, mas, em matéria de psicografia, por enquanto, não podemos dispensar s médiuns que saibam ler e escrever.

VI

Apreciando os Satélites

Irmão X

Indaga você como apreciam os espíritos desencarnados a proeza da ciência humana enviando ao espaço os primeiros satélites artificiais e só nos cabe responder-lhe que nós, os estudiosos, desenfaixados da teia física, achamo-nos ao lado da iniciativa, assim como larga torcida de futebol, aguardando o êxito do nosso time terrestre.

Sem a preocupação do observador chumbado ao solo, de lente em punho, vimo-los também deslocando-se no céu, pequeninos fantasmas encerrando aparelhos e pilhas que recolhendo informações da imensidade e transmitindo-as com a lealdade possível, simbolizam por si as preciosas sementes das grandes astronaves imaginadas agora para as gerações do futuro.

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Aquecendo-se bruscamente ao contato dos raios solares, quando de passagem sobre a face iluminada do globo, e resfriando-se, de súbito, ao atravessarem a face noturna do orbe, endereçam aos homens valiosa contribuição ao estudo da ionosfera, da radiação corpuscular do Sol, das torrentes de forças cósmicas e dos campos eletrostáticos em zonas superiores da atmosfera, sem nos referirmos às observações positivas quanto ao comportamento das ondas de rádio e quanto à importância das correntes magnéticas circulantes que envolvem o corpo ciclópico do Planeta.

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Que essas máquinas primorosas constituem os primeiros passos do homem físico para a conquista do espaço cósmico, não duvidamos de leve.

Dominado o problema do combustível para a criação de motores que ainda não existem na Terra, o homem poderá realmente concretizar as idéias do radiotelecomando para foguetes interplanetários que o induzirão às mais arrojadas pesquisas.

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Desdobrar-se-lhes-ão aos olhos maravilhados caminhos que nunca pode fantasiar e a generosa moradia em que estamos residindo há tantos séculos, com seus continentes e mares, cidades e florestas estará reduzida a singelas proporções, ante os vôos imensos e sonhos astronômicos que tomará, de assalto, a mente do porvir.

Entretanto, ao lado das grandes aspirações da ciência moderna, que incluem viagens a Vênus e Marte tanto quanto a formação de bases na Lua, com escalas pelas ilhas volantes a serem construídas no firmamento, encontramos questões morais estarrecedoras.

É que, junto à física nuclear para fins pacíficos, suscetíveis de nortear a civilização para mais altos níveis de segurança e progresso, vemos a bomba atômica produzida em massa para golpear essa mesma civilização culta e nobre e, ao pé dos foguetes de propulsão que transportam os satélites de sondagem, situando-os a grande altura, assinalamos a presença do foguete balístico intercontinental, com capacidade de arrazamento jamais prevista.

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Desse modo, admiramos a grande empresa e formulamos votos sinceros para que os pioneiros da Astronáutica prossigam destemerosos, na gradativa superação do estágio humano, em plena conquista dos valores universais, associando, porém, aplauso e receio, alegria e dor, ante a estreiteza do sentimento que baseia o arrojo do raciocínio.

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Sem respeito à vida do próximo, o homem ameaça a estabilidade da própria vida e qualquer conflito entre as nações da atualidade pode trazer ao campo bélico a exibição de engenhos mortíferos capazes de envenenar o ambiente do mundo ou de alterar o leito das grandes águas, paralisando ou destruindo a construção que ultrapassa milênios numerosos de esforço da inteligência.

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Ainda assim, não somos clientes do derrotismo.

Prossigamos confiantes, trabalhando e aprendendo, na esperança de avançar nos domínios do Cosmo, guardando a certeza de que a Terra é uma casa de Deus concedida a nós, por empréstimo, a fim de que nela façamos o curso evolutivo que nos fala de perto, à luz da imortalidade, e se os homens nossos irmãos lhe complicarem os fundamentos, insultando-lhe os alicerces, resta-nos o supremo consolo de que a Misericórdia Divina, paciente e imutável, permitir-nos-á, como é certo, começar tudo de novo.

(Página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em reunião da noite de 12 Novembro 1905).

VII

De Pé os Mortos

Irmão X

Senhor!

O Brasil é o coração do Mundo e o coração nunca dorme.

É a Pátria do Evangelho, é a Terra espiritual do testemunho.

Confiaste-lhe a Árvore de Teu Infinito Amor e no País da Fraternidade estenderam-se-lhe os ramos verdes e fartos, acolhendo as criaturas.

Abençoaste os que choram. O Brasil incorporou torturados e oprimidos de outras raças à sua família generosa.

Atendeste a injustiçados. O Brasil sempre abrigou os perseguidos, proporcionando-lhes vida nova.

Exaltaste os pacíficos. O Brasil exerceu, em todo tempo, a bondade e a tolerância, perdoando criminosos, anistiando rebeldes, esquecendo traições e calúnias, por acolher irmãos bem-amados.

Elevaste os limpos de coração. O Brasil nunca tingiu as mãos no sangue fratricida, nas horas culminantes de renovação política, aceitando-Te os desígnios nos instantes solenes de sua história.

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Determinaste que os homens se amem uns aos outros, como nos amaste. O Brasil abriu suas portas de oito mil quilômetros de extensão à frente do mar e recebeu fraternalmente os filhos de todos os povos do globo, sem preconceitos de cor, de sangue, de nacionalidade, de religião.

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Agora, Senhor, neste momento grave do mundo, o Teu grande Brasil, nossa Pátria, foi chamado à defesa da verdade contra a mentira e a impostura.

Não Te reclamamos a assistência necessária. Sabemos que Tuas mãos misericordiosas pousam no leme, guiando aqueles que governam o destino dos filhos do Cruzeiro; mas, neta hora de suprema determinação histórica, reafirmamos-Te confiança e pedimos derrames Tua luz em cada coração, em cada anseio materno, em cada recanto do lar, para que todo o Brasil compreenda que esta não é uma guerra de irmãos contra irmãos, porém, a da luz contra as sombras, da civilização contra a barbaria, do direito contra a força, do equilíbrio contra a demência.

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Sabemos  que preservarás a Pátria do Evangelho, desde o vale do Amazonas às coxilhas do Rio Grande, envolvendo-a nas dobras do pendão auriverde, em que colocaste um coração azul enfeitado de estrelas, símbolo de Tuas sagradas esperanças; que irás de norte a sul, inspirando os que administram, orientando resoluções sábias, encorajando as mães, iluminando o conselho dos velhos, renovando energias da juventude, unificando o pensamento nacional. Entretanto, rogamos esclareças a todos os brasileiros, para que cada um se integre no espírito de serviço que dignifica o dever, a responsabilidade, o trabalho, a ordem e a disciplina. Auxilia-os a fazerem cessar neste momento as paixões, contendas, suspeitas, opiniões individualistas, interpretações políticas e sectarismos religiosos, a fim de que paire, acima das preocupações inferiores, a visão do Brasil imperecível, na integridade gloriosa dos bens que nos confiaste.

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Nós, os “mortos” da Pátria, estamos igualmente de pé.

Aqui nos encontramos para dizer aos nossos irmãos que a Vida Eterna resume as realidades sublimes e imortais, e que entrelaçaremos nossas mãos com as deles, nos testemunhos necessários.

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Jesus, acrescenta valores aos nossos valores, como tens acrescentado confiança à nossa fé; ensina-nos a transportar a flâmula auriverde, do topo radiante dos mastros aos nossos corações, a fim de a içarmos bem alto no cimo da consciência.

Senhor, o Brasil permanece contigo, por expulsar do templo da vida os vendilhões do direito e da paz, e cada brasileiro reconhece que Tu estás conosco, porque a Tua cruz é símbolo de resistência heróica e porque sabemos que combates, desde o primeiro dia do Evangelho, na guerra do bem contra o mal, que ainda não terminou.

VIII

Entre Dois Mundos

Irmão X

A fim de colaborar no socorro à Senhora M...., internada numa instituição de saúde mental, fomos compulsar-lhe o diário íntimo, em cujas páginas respigávamos tão somente algumas de suas observações mais específicas, em torno de suas próprias atitudes quanto à maternidade.

“1955 – 6 de maio – E, afinal, casei-me. Estou feliz, muito feliz...

8 de junho – Alfredo me falou hoje da possibilidade de termos filhos. Não concordo. Filhos para destruir-me? Que idéia!...

4 de novembro – Tia Emerenciana afirmou que os meus sintomas são de gravidez. Estou amedrontada. Alfredo não pode saber. Darei um jeito para livrar-me.

1956 – 4 de janeiro – Tia Emerenciana disse que não convém ficar sem filhos, que o casamento envolve obrigações muito sérias, perante o destino, e – coitada de minha santa velhinha! – tentou explicar-me que existem espíritos de eras passadas, comprometidos conosco, aos quais somos chamados a dar novo corpo, através do lar (!?), e que somente assim resgataremos nossos débitos de outras existências. Não entendi patavina.

8 de setembro – Tive um sonho terrível de ontem para hoje. Vi-me à frente de dois jovens, no quais acendera devastadora paixão. Tudo isso eu sentia, compreendia e via no sonho... Eles se rebaixavam, mutuamente, diante de mim, até que um deles sacou da arma, alvejando o outro e suicidando-se em seguida. Depois da cena triste, pareceu-me estar numa grande nuvem a fugir dos dois, ao mesmo tempo que escutava a gritaria de ambos, vociferando contra mim: “Assassina! Assassina!...” Acordei assustada e estou doente. Contei o caso a Tia Emerenciana, e ela declarou acreditar que me tenham voltado à memória minhas vidas passadas, que eu teria provavelmente provocado a morte desses moços, e que o sonho será talvez uma advertência do Plano Espiritual para que eu me decida a recebê-los agora, como filhos, em meu coração e em minha casa... não aceito essas superstições.

1958 – 7 de maio – Sonhei outra vez com os dois rapazes, exterminando-se por minha causa. A conversa sobre filhos foi retomada por Tia Emerenciana e por mim, junto de Alfredo. Meu marido admite a chamada reencarnação e quer filhos. Eu não tolero nem uma coisa, nem outra.

7 de novembro – Não suporto tanta gente a me falar sobre filhos. Detesto!

1960 – 5 de janeiro – Consegui hoje outro aborto. Dona Antônia me confessou que, se eu esperasse, teria gêmeos. Deus me livre!...

1961 – 6 de dezembro – Tenho a idéia de que fiquei muito fraca depois do segundo aborto. Ando triste, acabrunhada... E o terrível sonho voltando sempre...

1963 – 10 de setembro – Meu m,árido e Tia Emerenciana me levaram a um grupo espírita para ouvir preleções sobre assuntos de reencarnação. Querem que eu refaça minha saúde com sermões. Uma senhora simpática me garantiu que ficarei boa se me decidir a ser mãe, acrescentando que os tais homens que ando vendo em sonho, quase que constantemente, são entidades com quem me comprometi em existências pretéritas e que necessitam de mim para renascerem na Terra... Nada sei disso e nem quero saber.

1965 – 9 de junho – Sinto-me nervosa, muito cansada, enfastiada de remédios. E os sonhos agora parecem alucinações permanentes. Às vezes, chego quase a crer que os dois acusadores estão abeirando-se de mim, até mesmo durante o dia... Dizem por aí que me fiz obsidiada e que preciso ser mãe. Conversas!...

1966 – 8 de julho – Tia Emerenciana me comunicou haver recebido mensagem do espírito de minha vovozinha Candora, que me teria enviado um recado assim: “Se você, minha filha, receber os adversários desencarnados nos braços de mãe, abrigando-os por filhos, sua saúde voltará...” Como gostaria de acreditar numa história como está!

1967 – 8 de maio – Pratiquei outro aborto, mas estou pior, muito perturbada e deprimida...

10 de setembro – Comecei novo tratamento para nervos. Só vejo os homens do sonho na imaginação e escuto vozes por dentro de mim, condenando-me, ameaçando-me...

1968 – 2 de março – Tomarei qualquer espécie de anticoncepcionais. Não quero filhos, decididamente não quero!

1969 – 4 de abril – Estou arrasada. Minha cabeça é um turbilhão. Observo que até os médicos mais amigos não me agüentam mais...

18 de julho – As figuras infelizes e grotescas de meus sonhos não mais me largam. Parecem demônios que se combatem e, depois de lutas tremendas um contra o outro, se voltam contra mim. Coitado do Alfredo!... É um homem aniquilado. Desde que Tia Emerenciana morreu, no ano passado, já não tenho ninguém que me reconforte. Emagreci. Sou hoje uma sombra do que fui... Mas, o pior de tudo é a cabeça... Oh! Meus Deus, quem me auxiliará a tolerar a bola de angústia e de fogo que carrego nos ombros?...”

Nesse ponto terminaram as observações que nos interessavam, no curioso caderno. Entretanto, já sabíamos o suficiente para socorrer, de algum modo, a senhora M...., em dolorosas crises no hospício, arruinada nas forças orgânicas e mentalmente subjugada por dois implacáveis obsessores – os amados de outro tempo e filhos desditosos que não chegaram a nascer.

IX

Médiuns e Instrutores

Irmão X

Ante os enigmas da mediunidade entre os homens, você pergunta, espantadiço: “Não dispõem os Espíritos Benevolentes e Sábios de recursos suficientes para impedir o abuso e a má fé? Estaremos sempre à mercê de médiuns infelizes, capazes de amplo comércio com as forças da sombra, a tisnarem de lodo o serviço nobre dos medianeiros honestos? Por que não instituir o estudo metódico da Doutrina Espírita nos templos de nossa fé, plasmando-se o caráter do instrumento mediúnico, antes de guindá-lo à publicidade?”

Suas inquirições realmente chegam a comover pela sinceridade em que se expressam;no entanto, meu caro, respondemos com a mesma clareza que os amigos desencarnados não escravizam as faculdades dos companheiros que permanecem no mundo.

Somente as entidades inferiores avocam para si o privilégio da posse temporária sobre as inteligências enfermiças, nos tristes processos da obsessão. Entrosadas entre si, partilham, na Terra, a loucura e a delinqüência, provocando, onde passam, os mais estranhos sentimentos, que variam do ridículo à compaixão.

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Todavia, entre os que despertaram para a responsabilidade, a governanta tem o seu justo limite.

Os instrutores espirituais, qual acontece aos professores da escola comum, esclarecem e auxiliam sem constranger aos que lhes recebem assistência e bondade, encaminhando-os para a educação sem, contudo, violentar-lhes o livre arbítrio.

Do que posso deduzir, pelos estudos a que me consagro presentemente, milhares de tarefeiros da mediunidade foram conduzidos à Esfera Humana, durante o primeiro século do Espiritismo, todos eles munidos de honrosas designações de trabalho, em diversos países do Globo. Doutrinadores, materializadores, escreventes, assistentes, enfermeiros e condutores de opinião receberam preciosos títulos mediúnicos, renascendo na coletividade terrestre com a missão de servi-la, à feição de operários da luz; entretanto, raros atingiram o objetivo a que se propunham.

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Muitos desertaram, receando as preocupações do caminho; outros se distraíram excessivamente com as fascinações marginais; alguns esqueceram a conta que lhes seria pedida no Plano Divino, colocando-se na disputa ao poder humano; e alguns outros, ainda, preferiram acomodar-se a propostas menos dignas, descansando em felicidades ilusórias do mundo, como se pudessem fugir à sacudidela da morte.

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Partilhando as energias e os recursos dos Espíritos Benevolentes que os sustentavam, assim como pupilos amparados pelo prestígio e pela bolsa dos benfeitores que lhes estendem proteção e carinho, supuseram-se donos de possibilidades que lhes não pertenciam e, superestimando o próprio valor, entregaram-se a aventuras particulares, nas quais se iniciaram em dolorosas experiências, quando não se afundaram em escabrosos precipícios de frustração.

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Nessas circunstâncias, o médium está sempre na posição de criatura que sacou valioso empréstimo no Banco da Bondade Divina com determinada finalidade, gastando o dinheiro a benefício próprio, com agravo dos próprios débitos.

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E, como a administração de qualquer instituto bancário não pode interferir na consciência dos seus devedores, sob pena de cortar-lhes a ação, também a Espiritualidade não subtraíra de nenhum modo, a iniciativa dos espíritos que se reencarnaram, com esse ou aquele mandato específico, porquanto, é da Lei que a colheita corresponda à espécie da plantação.

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No entanto, o último tópico de seus apontamentos merece anotação especial. Efetivamente, compete às organizações espíritas indiscutível responsabilidade na formação e observação dos médiuns, com mais ampla tarefa na divulgação doutrinária. Isso, porque a mediunidade, interpretada no ponto de vista de sintonia, só por si não constitui galardão. Há médiuns de todo feitio, inclusive aqueles que, por força de seu próprio passado, ainda suportam pesada influência das sombras, esperando que a Doutrina Espírita lhes envolva o campo mental na bênção de sua luz, a fim de que possam executar as próprias obrigações.

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Ainda aqui, todavia, não podemos compelir os irmãos de ideal, nos variados setores de nossa edificação, a proceder nesse ou naquele padrão de conduta, de vez que os princípios do Espiritismo são claros para nós todos.

De qualquer modo, porém, não se atenha ao desânimo.

Cada noite é a introdução de nova manhã.

De uma verdade inconteste, podemos guardar absoluta convicção, e essa verdade é a de que Jesus não nos abandona em razão de nossas fraquezas, de que a Doutrina Espírita continuará brilhando sempre por chave de luz do Evangelho, acima de quaisquer desacertos humanos, e de que todos nós, seja onde for, receberemos sempre da vida, de acordo com as próprias obras.

X

Vinte Anos

Irmão X

Realmente, meu amigo, em dezembro de 1934, abandonei o corpo apressadamente, à maneira do inquilino despejado de casa, por força de sentença inapelável que, em meu caso, era o decreto da morte.

E você pergunta por minhas impressões da Vida Espiritual por todo esse tempo que, à frente da Eternidade, não tem qualquer significação.

Sinceramente, não tenho muito a dizer.

O homem que se desencarna sem as asas do gênio sublimado na fé e na virtude assemelha-se, de algum modo, ao navegador do século XVI que, descobrindo terras novas, plantava o domicílio no litoral, incapaz de romper os laços com a retaguarda, de modo a seguir gradativamente, na direção da floresta.

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Novidades por novidades tenho visto inúmeras.

Assim como o selvagem dos trópicos pode ser transportado até as vizinhanças do pólo, a fim de extasiar-se com o glorioso espetáculo da aurora boreal, sem compreender-lhe o jogo de luz, assim também tenho contemplado paisagens maravilhosas de outros mundos, sem, contudo, entender-lhes a magnificência.

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Terminado o estímulo da excursão educativa, eis-me de volta ao solo áspero de minhas próprias experiências, no qual devo cultivar os valores do porvir.

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Você será naturalmente induzido a indagar quanto ao pretérito. Atravessando a criatura múltiplas existências, de outras vezes terei igualmente regressado ao campo espiritual e, por isso, não posso estar pisando um terreno desconhecido...

Ainda assim, não suponha que algumas peregrinações na carne possam valer grande cousa, quando nosso esforço na própria elevação não seja indiscutivelmente muito grande.

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Viajamos no oceano das forças físicas, tornando a velhos continentes da recapitulação por alguns lustros apenas e regressamos ao litoral, a fim de prosseguir na construção das bases de progresso e segurança que nos habilitarão, um dia, aos altos cimos.

Por enquanto, é preciso vencer obstáculos e sombras, dificuldades e inibições no país de mim mesmo, para caminhar da animalidade que me caracteriza a Humanidade real de que ainda me vejo distante. E, nesse trabalho, não há muito gosto de alinhar notificações e surpresas, porque, tanto aí quanto aqui, não é fácil modificar a química do pensamento, com vistas à própria renovação.

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Desnecessário comentar nossas organizações e deveres.

Toda uma literatura copiosa e brilhante, nos mais diversos centros do mundo, revelam hoje os processos evolutivos da Terra Melhorada, onde presentemente me encontro, sem o pesado escafandro das células enfermiças e, por essa razão, você deve saber que vivem errantes aqui somente os que aí pervagavam, entre a ociosidade e a indisciplina, que apenas se precipitam nas trevas infernais os que, no mundo, já haviam organizado um inferno na própria cabeça e que os heróis passam por nós, de relance, com destino às Alturas em que se colocaram.

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Quanto a nós, pecadores penitentes e almas de boa vontade, estamos marchando, passo a passo, na superação de nós mesmos, entre o céu que sonhamos e o inferno que nos cabe evitar.

Ainda assim, o comboio da morte, todos os dias, derrama viajores em nossa estação. Não raro, por isso, observo antigos companheiros do mundo chegando aqui sob as farpas do sofrimento, mastigando resíduos de extremas desilusões. São amigos que choram o ouro largado no chão, que suspiram pelo poder ou pela evidência social de que o sepulcro os despoja, que deploram o tempo perdido em atividades inúteis ou que enlouquecem, tentando debalde reaver o corpo bem cuidado que o túmulo apodreceu...

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Não julgue que a recuperação seja obra de improviso.

Resignação, coragem, compreensão, paciência e valor moral não constituem artigos adquiríveis no estoque alheio. Representam qualidades que todos somos constrangidos a edificar no mundo que nos é próprio, ao preço de nossa renunciação e de nossas lágrimas.

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A única nota diferente que possuo em meu círculo individual é a que se refere à minha adesão intelectual ao Evangelho, sob a luz do Espiritismo. Digo “intelectual” porque ainda estou trabalhando o coração, como o lapidário burila a pedra, a fim de ofertá-lo efetivamente ao Senhor.

E não diga que a minha conversão surge tarde demais, porque assim como o esforço de vocês no bem é valioso investimento de recursos para a existência daqui, a nossa tarefa nessa direção capitaliza em nosso favor preciosas oportunidades para o estágio que aí nos compete de futuro, de vez que, em tempo oportuno, estarei de novo entre os homens, tanto quanto você estará igualmente entre os espíritos desencarnados.

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Como reparamos, vinte nos de vida espiritual são poucos dias para a restauração e para o reajuste, porque a dor e a experimentação, a prova e a luta ainda permanecem conosco, à feição de instrutoras, que não podemos menosprezar.

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Não se aflija nem desconsole, porém,. Diante de minha confidência fraternal.

Trabalhe e estude, ame e instrua-se, fazendo o melhor que puder no mundo e, se você retém qualquer dúvida em torno de minhas afirmativas, em breve, você mesmo estará aqui, depois de escalar pela casa da morte, a fim de melhor sentir a vida com o próprio coração e apreciar a realidade com os próprios olhos.

(página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier,
em reunião do mês de dezembro de 1954)

XI

Sinceramente

Irmão X

Diz você que é necessário inflamar a lâmina da crítica, em fogo de combatividade, para expulsar os vendilhões dos templos do Espiritismo e, exaltadamente, repete a palavra “conspurcação”, a cada trecho de sua carta, como se apenas encontrasse, em torno dos próprios passos, malfeitores e ladrões.

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Nesse afã de julgar e sentenciar, você se reporta à impressões de oitiva sobre determinados companheiros, descobrindo-lhes, desapiedadamente, as cicatrizes, à maneira de um santo convertido em juiz de consciências alheias.

E promete devassar a vida pública e privada de pessoas respeitáveis, incompreensivelmente indignado em nome do Mestre da Cruz.

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Mas, examinando os propósitos que você mesmo traz À nossa consideração, seria justo movimentar semelhantes golpes, em nome da caridade?

Seu zelo relaciona fraquezas e desventuras de irmãos nossos, aos quais você, se pudesse, deserdaria de todos os benefícios da proteção divina, a pretexto de preservar a pureza doutrinária.

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Mas, se o Cristo, cuja inspiração procuramos para os destinos de nossa fé, nunca se afastou dos transviados e dos enfermos, por que razão se recolheria o Espiritismo, num círculo de eleitos, sem qualquer vantagem para a nossa extensa coletividade dos sofredores a que nossa bandeira veio servir? Onde colocaríamos o nosso programa de regeneração fugindo aos mais necessitados? E se vamos condenar aquele que hoje procura acertar o próprio caminho, onde situar a doutrina de amor que pretendemos estender, na Terra, em favor do próximo?

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Se estamos interessados na recuperação humana com Jesus, é preciso lembrar que não sustentaremos a ordem de um edifício, atirando-lhes pedradas.

A cultura da fé assemelha-se à lavoura comum.

Para salvar um espécime entre milhares, ninguém se aventuraria a ameaçar a plantação inteira.

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E, ainda para defender um simples arbusto – se é que nos propomos realmente defendê-lo – não concretizaremos qualquer auxílio ao preço da violência.

O sarcasmo não constrói, tanto quanto o vinagre não mata a sede.

Uma doutrina religiosa é serviço de educação das almas.

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O Espiritismo não pode escapar à regra.

Dispomos no Brasil de mais de quinhentos mil espíritas confessos, mas poderíamos alimentar a vaidade de contar com meio milhão de heróis?

Sabemos que, entre as legiões dos companheiros de boa vontade, temos vastas fileiras de doentes, obsedados e aflitos... Declara-se você, contudo, disposto a guerrear os expositores da Doutrina que, segundo suas afirmativas, não cumprem o que ensinam.

Entretanto, estará você suficientemente seguro, quanto às alheias consciências, ao ponto de apreciá-las, com exatidão, pela superfície?

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Quantas árvores, desagradáveis pelo acúleos da epiderme, sustentam as fontes preciosas do mundo? Quantos cais, aparentemente enlameados, defendem povoações e cidades contra a fúria do mar?

Não nos consta a existência de alguma ordem de Jesus recomendando-nos a instalação de tribunais para a censura a irmãos, em experiências diversas da nossa; no entanto, não ignoramos que o Mestre nos exortou ao serviço do amor, em todas as circunstâncias...

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Atravessada a fronteira da morte do corpo, se nos mantemos efetivamente despertos para o desempenho dos deveres que nos cabem, ante as Leis Superiores, uma compreensão mais humana nos aclara o espírito e, dentro dela, meu caro, não há lugar para a ironia ou o fel.

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O sentimento de nossa pequenez impõe-nos a obrigação de cooperar no bem de todos, a fim de que nos não falte auxílio no crescimento para a Vida Eterna.

Acreditando, assim, que você nos escreve com sinceridade, devo afirmar-lhe, sinceramente, que não posso concordar com a sua cruzada de reprovações públicas.

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O tempo é uma dádiva do Senhor, com a qual necessitamos aprender a semear e a construir com o bem.

È possível que outrem lhe diga de minha incapacidade para corrigir, por ter errado muito, por minha vez, na Terra.

Outros dirão que não passo de um espírito perturbado, em razão de meus distúrbios intelectuais no mundo.

Não nego a minha condição de enfermo em reajuste.

Sou um pecador, trabalhando para não alongar a relação de minhas próprias faltas. Mas, no fundo, não posso prestigiar a sua campanha de crítica e de condenação porque eu sou um homem desencarnado, e porque você é um homem que vai morrer.

XII

Kardec, Obrigado

Irmão X

Kardec, enquanto recebes as homenagens do mundo, pedimos vênia para associar nosso preito singelo de amor aos cânticos de reconhecimento que te exaltam a obra gigantesca ns domínios da libertação espiritual.

Não nos referimos aqui ao professor emérito que foste, mas ao discípulo de Jesus que possibilitou o levantamento das bases do Espiritismo Cristão, cuja estrutura desafia a passagem do tempo.

Falem outros dos títulos de cultura que te exornavam a personalidade, do prestígio que desfrutavas na esfera da inteligência, do brilho de tua presença nos fastos sociais, da glória que te ilustrava o nome, de vez que todas as referências à tua dignidade pessoal nunca dirão integralmente o exato valor de teus créditos humanos.

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Reportar-nos-emos ao amigo fiel do Cristo e da Humanidade, em agradecimento pela coragem e abnegação com que te esqueceste para entregar ao mundo a mensagem da Espiritualidade Superior. E, rememorando o clima de inquietações e dificuldades em que, a fim de reacender a luz do Evangelho, superaste injúria e sarcasmo, perseguição e calúnia, desejamos expressar-te o carinho e a gratidão de quantos edificaste para a fé na imortalidade e na sabedoria da vida.

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O Senhor te engrandeça por todos aqueles que emancipaste das trevas e te faça bendito pelos que se renovaram perante o destino à força de teu verbo e de teu exemplo!...

Diante de ti, enfileiram-se, agradecidos e reverentes, os que arrebataste à loucura e ao suicídio com o facho da esperança; os que arrancaste ao labirinto da obsessão com o esclarecimento salvador; os pais desditosos que se viram atormentados por filhos insensíveis e delinqüentes, e os filhos agoniados que se encontraram na vala da frustração e do abandono pela irresponsabilidade dos pais em desequilíbrio e que foram reajustados por teus ensinamentos, em torno da reencarnação; os que renasceram em dolorosos conflitos da alma e se reconheceram, por isso, esmagados de angústia nas brenhas da provação, e os quais livraste da demência, apontando-lhes as vidas sucessivas; os que se acharam arrasados de pranto, tateando a lousa na procura dos entes queridos que a morte lhes furtou dos braços ansiosos, e aos quais abriste os horizontes da sobrevivência, insuflando-lhes renovação e paz, na contemplação do futuro; os que soergueste do chão pantanoso do tédio e do desalento, conferindo-lhes, de novo, o anseio de trabalhar e a alegria de viver; os que aprenderam contigo o perdão das ofensas e abençoaram, em prece, aqueles mesmos companheiros da Humanidade que lhes apunhalaram o espírito, a golpes de insulto e de ingratidão; os que te ouviram a palavra fraterna e aceitaram com humildade a injúria e a dor por instrumento de redenção; e os que desencarnaram incompreendidos ou acusados sem crime, abrançando-te as páginas consoladoras que molharam cm as próprias lágrimas...

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Todos nós, o que levantaste do pó da inutilidade ou do fel do desencanto para as bênçãos da vida, estamos também diante de ti!... E, identificando-nos na condição dos teus mais apagados admiradores e com os últimos dos teus mais pobres amigos, comovidamente, em tua festa, nós te rogamos permissão para dizer: “Kardec, obrigado!... Muito obrigado!”...

(página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier,em homenagem, ao aniversário de Allan Kardec)

XIII

O  Centenário de Hydesville

Irmão X

O centenário das manifestações de Hydesville desperta considerações especiais em todos os círculos espíritas da América.

Margaretta e Kate Fox, as jovens médiuns utilizadas pela Esfera  Espiritual na demonstração objetiva da imortalidade, são lembradas com respeito e carinho.

O ambiente característico de 1848 é reconstituído nos comentários de jornais e emissoras.

Num lar de evangelistas da Igreja Reformada, um homem invisível prova a sobrevivência além da morte e, não obstante o trabalho substancioso de abnegados missionários do espiritualismo, em ação no mundo inteiro, os fatos de Hydesville caminham através da grande nação norte-americana. Do vilarejo humilde, seguem para New York, de onde prosseguem, varando cidades e campos, até alcançarem o Congresso Nacional, numa solene petição em que alguns milhares de pessoas solicitam a atenção dos legisladores para o assunto.

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As meninas Fox passam a constituir tese viva nas conversações científicas, acadêmicas e universitárias. Aplaudidas e ridicularizadas, atraem para o movimento renovador as simpatias de administradores e juízes, filósofos e artistas, estudantes e operários.

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A luz guerreia a sombra, a revelação anula o dogmatismo, a verdade confunde a mentira. Em breve, os fenômenos se estendem mundialmente, os instrumentos humanos se multiplicam,  o conhecimento progride insofreável...

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Quem provoca, no entanto, semelhante revolução mental não é um mensageiro resplandecente de luz. Não é um anjo que se põe a confabular com os homens.

No recinto, não há relâmpagos do Sinai.

O autor perceptível do empreendimento é um homem... desencarnado, desconhecendo, ele mesmo, a importância da iniciativa.

Mostra-se apaixonado e inferior, quanto qualquer de nós.

Confessa que foi assassinado, todavia, apesar da posição de vítima, não foi promovido à Corte Celestial.

Condensam-se-lhe as idéias na experiência física.

Tem ânsia de conversar com criaturas que ainda se encontram na embalagem dos ossos.

Não ganhou, até ali, suficiente coragem para enfrentar o desconhecido.

Terá lido, naturalmente, muitas páginas edificantes, no esforço terrestre, mas encontra imensa dificuldade para esquecer a ofensa e perdoar o ofensor.

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Exibe complexos de inferioridade.

Pretende vingar-se.

Desejaria justiçar-se pelas próprias mãos.

Qualquer entendido de medicina ou psicologia lhe identifica a perturbação evidente.

Além disso, não é “morto” da véspera.

Declara que ali permanece, desde alguns anos, em torno dos despojos.

A morte não conduziu à glória divina, mas ao tormento infernal. Reintegrou-se na própria consciência e a mente dele, atormentada e sofredora, busca exteriorizar-se, por intermédio de sinais à maneira de qualquer náufrago perdido.

Não foi bafejado ainda por claridade santificante que não procurou. Alimenta-se de preocupações puramente personalistas.

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Após identificar-se pelas suas características de humanidade, prossegue aprendendo e evoluindo, tanto quanto nos ocorre no Brasil ou na Conchinchina.

Tal verificação, contudo, não impede a exaltação da verdade e a compreensão gloriosa da Vida Eterna.

O fenômeno inicial de Hydesville, comentado neste ângulo adquire mais expressão e vivacidade, porque se, há cem anos, o Plano Superior encaminhava o homem desencarnado, com seus apetites e paixões, mágoas e enigmas, à consideração e entendimento dos semelhantes, como a dizerem que a morte é simples continuação da vida, há muita gente aguardando o gongo final para receber as asas de cera e entrada gratuita no paraíso.

XIV

Problemas de um Médium

Irmão X

O médium Calixto iniciou a tarefa com verdadeira compreensão da responsabilidade que lhe competia. Criatura simples e de coração voltado para o dever, recebia as páginas dos mensageiros espirituais com a infantilidade do menino de boa índole que recebe um recado para transmitir, obediente e humilde.

Vestia-se pobremente e, nos pés, não exibia outro calçado que não fossem tamancos rústicos.

Recebendo-lhe, contudo, os trabalhos que psicografava, a maioria dos entendidos proclamavam sem rebuliços:

- É um ignorantão! Não conjuga cinco palavras com acerto. Puro jogral de espertalhões do mundo livresco, a serviço de fanáticos do espiritismo.

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Humilhado pelos repetidos insultos, Calixto mobilizou as próprias necessidades, de modo a diminuir os sarcasmos que, a propósito dele, se atiravam à Consoladora Doutrina de que se fizera pregoeiro.

Trajou-se com mais apuro e queimou as pestanas, estudando a gramática. Sabia agora conversar com relativa elegância e expor os princípios que os Espíritos Superiores lhe ditavam, com facilidade e clareza.

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Todavia, logo se lhe percebeu a modificação, o parecer público enunciou, solene:

-  Vejam só! É um homem genial. Produz em plano superior, através da própria inteligência. Quem revela, assim, tamanha cultura, escreverá com mais propriedade que os literatos mortos...

E os investigadores atilados concluíam, rematando:

-  Embuste, pastiche e mais nada.

O rapaz, embora surpreendido, continuou a tarefa. Evitou a multidão e fugiu às manifestações de público. Não seria mais justo recolher as bênçãos, na intimidade dos irmãos? Confinou-se ao campo doméstico dos princípios redentores que abraçara. Contudo, ainda aí, a censura vigorou, subtil e contundente.

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Se Calixto recebia mensagens, relacionando verdades duras, apontavam-no, sem piedade:

-  É um mistificador, obsediado pela mania de grandeza e virtude.

Claro que os emissários da Esfera Superior não menoscabam o poder da gentileza e ninguém por haver transposto as fronteiras da morte encontra alegria em acusar os semelhantes, mas se um amigo espiritual temperava os conceitos em sal de estímulo, buscando o soerguimento dos companheiros encarnados, indicavam-no, com acrimoniosa atitude:

- É um bajulador infeliz que se demora, sob a influência de perversos doadores de lisonja.

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Sob perplexidades consecutivas, o médium satisfazia as exigências do ministério, no entanto, era preciso interromper-se a cada passo para destrinçar enigmas pequeninos.

Se os viajores do Reino da Morte vinham falar da majestade do Céu, o intermediário era apontado por instigador da fantasia; se comentavam problemas da Terra, era definido à conta de cretino.

Jornalistas e escritores “mortos” utilizavam-lhe as faculdades a se fazerem sentir claramente, entretanto, as respectivas famílias, receiando-lhes a intromissão, ameaçavam o medianeiro, através de processos espetaculosos e humilhantes. Citado nos órgãos judiciários por miserável impostor, Calixto recolhia-se em prece, suplicando aos missionários invisíveis providências contra a perturbação estabelecida, mas enquanto os Espíritos Benevolentes adotavam pseudônimos, a fim de lançaram idéias renovadoras, com a facilidade possível, os companheiros de fé observavam-lhe, risonhos e irônicos:

-  Onde iremos? Os “mortos” também usam máscara?

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O confundido trabalhador era objeto de geral exame, dia e noite.O zelo com que atendia ao serviço pela própria manutenção era interpretado por excessiva defesa na vida material, mas se era encontrado fora da atividade comum por algumas horas, era categorizado por garimpeiro de vantagens especiais.

Tentava isolar-se por desincumbir-se das obrigações com mais segurança e eficiência, no entanto, era apontado, de imediato, por orgulhoso e frio, ante os sofrimentos alheios. Calixto passava, então, a comunicar-se com todos, entretanto, suas palavras convertiam-se em objeto de exploração aviltante e escandalosa.

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Discutido, atormentado, fustigado e seguido pela crítica incessante, através do todas as maneiras pelas quais procurava solucionar os compromissos a que se devotava, chegou o dia em que se deitou desanimado, à maneira do burro que arreia sob a carga pesada.

Não seria razoável parar? Como seguir adiante?

Foi então que lobrigou, de olhos nublados de lágrimas, a presença de um mensageiro divino.

Endereçou-lhe sentida súplica, mas notou assombrado que o emissário se mantinha sorridente ao ouvi-lo.

Finda a rogativa, entrecortada de soluços, o anunciador das Boas Novas Celestiais falou-lhe, bem-humorado:

- Calixto, levante-se e não se aflija! Banhe-se uma vez por dia, tome refeições regulares e faça o que puder. O Senhor não exige o impossível. Habitue-se a auxiliar por amor ao bem, contando com a incompreensão natural do mundo. A calúnia não piora ninguém, tanto quanto a bajulação não nos aperfeiçoa qualidade alguma. Quanto ao mais, meu amigo – e, nesse ponto, o mensageiro riu-se francamente – se Jesus retirou-se do mundo pelas portas sangrentas do sacrifício na cruz, será mesmo que você pretende ausentar-se da Terra nas fofas almofadas dum automóvel?

Com a interrogação, interrompeu-se a singular entrevista e Calixto, copiando os movimentos de uma muar resignados, ergueu-se de novo, e retornou o passo para o que desse e viesse.

XV

O  Crente Modificado

Irmão X

Certo devoto, em se retirando do templo, sempre encontrava pequena turma de pedintes e sofredores, com os quais distribuía os níqueis que lhe sobravam na bolsa. Em seguida, exortava-os à confiança no porvir, quando as administrações terrestres aprendessem a efetuar a justa repartição das riquezas. Contassem todos com o Senhor, rico de bondade para todos os dilacerados da sorte, e que lhes enviaria benfeitores leias para o suprimento de pão e bem estar no momento oportuno.

À noite, de mãos postas, elevava-se espiritualmente ao Céu e figurava-se, à frente do Cordeiro Divino...

Ajoelhava-se e pedia reverente:

- Senhor, teus pobrezinhos padecem frio e fome... Auxilia-me para que possa, por minha vez, ampará-los em teu nome. Para isso, ó Providência dos deserdados, digna-te conceder-me a mordomia nos bens materiais! É imprescindível que os celeiros de tua compaixão permaneçam sob a guarda de colaboradores eficientes e fiéis!...

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E o Salvador ouvia-o, complacente, sem prometer modificação de programa.

O aprendiz da fé retomava a luta habitual, sempre interessado na crítica fraterna.

De quando a quando, visitava instituições de benemerência e reparando a onda crescente dos necessitados ao redor dos trabalhos socorristas, inquiria santamente indignado:

- Onde se ocultam os ricaços sem deveres?

E, sem qualquer escrúpulo, justificava a indisciplina reinando na Terra.

Fazia carga asfixiante de palavras contra os favorecidos da fortuna e, não obstante cristão, declarava compreender o desespero dos pobres, quando se convertiam em revolucionários demolidores.

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- Impossível em equilíbrio social – asseverava, ríspido – quando os endinheirados alardeiam conforto excessivo ao pé dos indigentes.

Chegada à noite, tornava a rogativa, semiliberto do corpo físico e, sentindo-se diante do Mestre, voltava a solicitar:

-  Senhor, tenho encontrado dezenas de enfermos esfomeados plenamente esquecidos... Sofrem e choram, esmolando debalde na via pública... Os missionários da proteção coletiva, a quem emprestaste a autoridade e o ouro, esquecera-te as bênçãos e cristalizam-se no egoísmo feroz. Dá-me recursos! Tenho necessidade de espalhar os teus benefícios!

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O Salvador registrou a prece, sem alterar-lhe o roteiro.

E semelhantes cenas passaram à categoria de hábito inveterado. O devoto, em esforço verbal diário, defendia os órfãos, os doentes, as viúvas, os desempregados, os aflitos e os tristes, apaixonadamente.

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Nas rodas de companheiros, depois dos ofícios religiosos, pregava o advento do mundo novo em que os ricos da Terra seriam menos tirânicos e os pobrezinhos menos desditosos. Avançava, para isso, em teorias sociais de conseqüências imprevisíveis...

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Em certa ocasião, depois de grande calamidade pública, saiu a esmolar em favor das vítimas infelizes. A seca trouxera à cidade lamentáveis farrapos humanos. Inexprimíveis padecimentos desfiguravam centenas de rostos. Os infortunados pediam trabalho, mas, antes de tudo, requeriam remédio e alimentação.

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Tantas aflições presenciou o devoto, no círculo dos flagelados, e tanta indiferença surpreendeu na esfera das pessoas felizes que, à noite, em preces mais comovedoras e mais ardentes, subiu, em lágrimas, ao Trono do Cordeiro e suplicou:

- Senhor, os teus tutelados na Terra perecem a míngua de amor... Os afortunados escarnecem dos miseráveis, a opulência pisa os desvalidos. Dá-me acesso à riqueza fácil. Tenho necessidade de recursos urgentes para atender, no mundo, em nome de tua caridade infinita...

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O Mestre, tocado mo íntimo, através de tão reiteradas rogativas, alterou os desígnios e recomendou que o pedinte fosse conduzido, sem demora, ao manancial da prosperidade terrestre. E a ordem desceu de anjo a anjo e de servo a servo, assim quanto ocorre num exército humano em que a determinação do general supremo desce de oficial a oficial e de soldado a soldado.

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Em breve, o devoto era invariavelmente seguido por um mensageiro espiritual incumbido de soerguer-lhe o padrão econômico.

Atendendo aos imperativos da tarefa que lhe fora cometida, o emissário começou por observar-lhe as atividades comuns, identificando-lhe a posição de comerciante ativo e, examinado o melhor processo de conferir-lhe a doação celestial, passou a insuflar-lhe idéias favoráveis, utilizando recursos indiretos...

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Em algumas semanas, o crente sentiu-se compelido a realizar enormes aquisições de cereais, estimulado por inexplicável entusiasmos e, em sessenta dias, à face das exigências de exportação, o estoque gigantesco rendeu-se o lucro líquido de oitocentos mil cruzeiros.

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O auxiliar invisível, contudo, anotou-lhe profunda modificação íntima. O homem que possuía oitenta por cento de vocação para o desinteresse com Jesus e vinte por cento de comercialismo por necessidade fatal da experiência humana revelava estranha diferença. A mente dele, de inopino, acusou noventa e nove por cento de pensamentos alusivos à oferta e procura, compra e venda, restando apenas um por cento para o idealismo evangélico.

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O cooperador espiritual, sem acesso agora ao coração dele, buscou um companheiro de fé e inspirou-lhe a formular apelo ardente à execução da promessa ao Senhor, mas o crente, quase irreconhecível, respondeu, sem rebouços:

- Sim, efetivamente, em dois meses, ganhei oitocentos contos, todavia, é imperioso reconhecer que isto é uma insignificância para a nossa época. Além disso, a caridade pode esperar... O verdadeiro bem não é serviço que se faça afogadilho...

Fixou a máscara grave do homem de negócios excessivamente preocupado e concluiu:

-  Não posso esquecer igualmente que, acima de tudo, tenho a família e o futuro não é brincadeira...

Foi então que o mensageiro, fundamente desapontado, voltou ao domicílio que lhe era próprio e a nova notícia, de servo a servo e de anjo a anjo, subiu para o Senhor.

XVI

Pedro em Visita

Irmão X

Conta-se que Simão Pedro, há tempos, conseguiu chegar ao Rio de Janeiro, perfeitamente materializado. Utilizando preciosos fluidos da natureza, nos bosques floridos que marginam Petrópolis, desceu dos subúrbios para o centro, com o objetivo de verificar as realizações cristãs, entre os novos discípulos do Evangelho.

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Alpercatas de pobre, cabelos à nazarena, leve bastão a sustentar-lhe o corpo e singela túnica de estamenha, ia o apóstolo, de olhos vivos e doces, estranho aos automóveis e aos arranha-céus, na consoladora antevisão do encontro com os aprendizes do Senhor.

-o-

Achavam-se multiplicados, pensava. Trazia, mentalmente, o endereço de muitos, de conformidade com as rogativas que subiam da Terra para o Céu. Que lhe contariam, acerca dos ideais evangélicos no mundo? Não ignorava que o Planeta continuava sob o guante infernal da guerra, entretanto, sabia que os ensinamentos do Messias avançavam salvando almas.

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Ante o frontispício de admirável organização católica-romana, deteve-se, emocionado.

Aproximou-se. Tocou a campainha.

Pretendia avistar-se com os superiores da casa, a fim de trocarem idéias.

Um padre bem humorado atendeu:

-  Quem é o senhor?

-  Simão Pedro, para servi-lo.

O clérigo sorriu e anotou-lhe os desejos.

Findos  alguns minutos, um dos diretores apareceu, em companhia de vários religiosos. Ouviram o visitante humilde, com inequívocos sinais de incredulidade e sarcasmo.

Não chegaram nem mesmo a considerar-lhe s palavras.

- Volte segunda-feira, com o atestado policial – declarou o orientador da instituição – e providenciarei seu ingresso no asilo.

Simão tentou explicar-se.

O eclesiástico, no entanto, foi claro:

-  Não insista. Tenho mais o que fazer. Venha segunda-feira. O psiquiatra organizará sua ficha.

Sequioso de entendimento, pediu Pedro:

- Tenho sede. Permita-me entrar, por obséquio.

- Quê? Entrar? Não precisa disto para beber água. Na esquina próxima encontrará um café, e será atendido.

-o-

Em vista da porta repentinamente cerrada, o apóstolo, algo triste, cruzou várias ruas e estacionou junto de simpática vivenda.

Perguntou ao jardineiro pelo ministro da igreja reformada que a ocupava.

O robusto rapaz deu-se pressa em satisfazê-lo. Em momentos breves, trouxe consigo não só o pastor, mas também dois jovens presbíteros.

À primeira interrogação, o visitante respondeu, esperançado:

-  Sou Pedro, o antigo pescador de Cafarnaum.

- Entreolharam-se os presentes, espantadiços.

- Debalde buscou o velho Cephas esclarecer os propósitos que alimentava. O ministro evangélico, ai invés de prestar-lhe atenção, pos-se a ouvir os rapazes tagarelas.

- Penso que é portador da mania ambulatória – asseverou um deles – traz alpercatas e os pés não parecem muito distintos.

- Tenho ido pregar no hospício – informou o outro e conheço alguns casos de loucura circular.

O pastor dirigiu-se a Pedro e declarou, sem rebuços:

-  Pode retirar-se. Aqui, não posso recebê-lo. Procure o culto no domingo pela manhã.

-  Irmão, não me expulse assim... rogou Pedro, humilde.

-  Nada posso prometer-lhe – revidou o ministro, seguro de si – a congregação está longe de construir o nosso hospital de alienados.

-o-

Vendo-se novamente sozinho, o ex-pescador Galileu varou largo trecho da via pública e parou à frente de nobre domicílio.

Bateu, acanhado.

Ao rapazelho que atendeu, lépido, indagou pelo diretor de importante organização espiritista que ali residia.

Decorridos alguns instantes, o dono da casa veio em pessoa, seguido de dois confrades.

À inquirição inicial, respondeu tímido:

- Sou Simão Pedro, o discípulo de Cafarnaum.

Os novos amigos permutaram expressivo olhar.

O missionário da Nova Revelação, que o apóstolo procurara, nominalmente, afirmou calmo:

- Obsessão evidente. Creio esteja ele atuado por argucioso perseguidor invisível.

- Um vidente faria aqui a necessária verificação, acentuou um dos companheiros.

O outro, contudo, mostrando extensa intimidade com Richet, acrescentou, com algum pedantismo:

-  Tipo inabitual. Bem provável possa ser aproveitado aos estudos de criptestesia.

Adiantando-se, Pedro implorou:

-  Irmãos, tenho sede de comunhão fraterna em torno do Cristo, Nosso Senhor. Que me dizem do trabalho evangélico, na atualidade do mundo?

O principal do grupo afagou-lhe a destra que se movia suplicante e replicou: - Procure-me na sessão de sexta-feira, depois das vinte horas. Teremos doutrinação. A cousa vai melhorar, “meu velho”.

E, gentilmente, deu-lhe o endereço.

Fechou-se a porta e o trinco rodou, automático.

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Quem contou a história, disse-nos ter visto o antigo discípulo da Galiléia enxugar as lágrimas a lhe deslizarem copiosas do rosto e perguntar a esmo, fixando o céu tranqüilo do crepúsculo:

-  Senhor, onde estará pulsando o coração de teus aprendizes?!...

Em seguida, silencioso e taciturno, o velho pescador pos-se de novo, a caminho, na direção do mar...

XVII

Explicações

Irmão X

Não, meu amigo. Quando me desvencilhei do corpo físico, há quase vinte anos, o título de “espírita” não me classificava as convicções.

Como acontece a muita gente boa, acreditava mais no que via com os meus olhos e tateava com as minhas mãos.

Lia o Evangelho de Jesus e compulsava as impressões de vários experimentadores da sobrevivência, entretanto, sem objetivos sérios de estudo e sim na extravagância das galhas da inteligência que vão à lavoura do espírito, gritando inutilmente ou bicando aqui e ali para perturbar o crescimento das plantas e prejudicar-lhes a produção.

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Era um homem demasiadamente ocupado com a Terra para devotar-me às revelações do Céu.

Meus pensamentos jaziam tão vigorosamente encarnados nas preocupações mundanas, que nem a força hercúlea da enfermidade conseguia deslocar-me para as visões íntimas da Vida Superior.

Ilhado na fortaleza de minha pretensa superioridade intelectual, ria ou chorava nas letras, acreditando, porém, que a fé seria apanágio das criaturas ignorantes e simples, indigna dos cérebros mergulhados em maiores cogitações.

-o-

Situava-me entre a dúvida e a ironia, quando a Morte, na condição de meirinho da Justiça Divina, me intimou a comparecer no tribunal da realidade, mais cedo que eu supunha, e somente então comecei a interessar-me pelo gigantesco esforço dos homens de boa vontade que, nos mais diversos climas do Planeta, se dedicam hoje à solução dos enigmas inquietantes do destino e do ser.

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O túmulo não é apenas a porta de cinza.

Morrer não é terminar.

E, banhado ao clarão da verdade, por mercê de Deus,incorporei-me à imensa caravana dos que despertam e trabalham na recuperação de si mesmos.

Não estranhe, pois, se continuo em minha faina de escritor humilde, tentando nortear as minhas faculdades no rumo do bem.

É o que posso fazer, porquanto não disponho de especialização adequada para outro mister.

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Você pergunta porque me devoto presentemente ao Espiritismo com Jesus, quando fui intérprete da literatura fescenina, lançando vários livros picantes, e político apaixonado na corrente partidária a que me filiei, como defensor dos interesses de minha terra.

Creia que, realmente, errei muito.

Mas sempre consegui equilibrar-me na corda bamba das convenções terrestres e, muita vez, caí escandalosamente em pleno espetáculo, à frente daqueles que me aplaudiam ou me apupavam.

Entretanto, a morte constrangeu-me ao reajuste preciso.

Acordei para um dia novo e procuro comunicar-me com os que ainda se encontram nas sombras da noite.

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Admito que poderia fazer cousa pior.

Se me deixasse vencer pela tentação, efetivamente integraria a vasta fileira dos espíritos obstinados na perversidade que lhes é própria, cavalgando os ombros de meus desafetos.

Algo, porém, amadureceu dentro de mim.

Aquilo que me causava prazer impele-me agora à repugnância.

A experiência mostrou-me a parte inútil de minha vida e, por acréscimo de bondade do Senhor, voltei ao campo de minha própria sementeira, não mais para deslustrar o serviço da natureza, mas para colaborar com o bem, a favor de mim próprio.

-o-

É por essa razão que ainda estou escrevendo...

Convença-se, contudo, de que não possuo mais no vaso do coração a tinta escura do sarcasmo e esteja certo de que me sinto excessivamente distante de qualquer milagre da sublimação.

Sou apenas um homem... desencarnado com o sadio propósito de regenerar-me.

Depreenderá você, portanto, desta confissão que, em hipótese alguma, poderia inculcar-me na posição de guia espiritual dos meus semelhantes.

A sepultura não converte a carne que ela engole, voraz, em manto de santidade.

Somos depois da morte o fomos e muita gente, que anda por aí mascarada, aqui encontra recursos para ser mais cruel.

Quanto a mim, rendo graças a Deus por achar-me na condição de pecador arrependido, esmurrando o próprio peito e clamando “meã culpa, meã culpa...”

Nosso orientador real é o Cristo, Nosso Senhor.

Sem Ele, sem a nossa aplicação aos Seus ensinos e exemplos, respiraremos invariavelmente na antiga cegueira que nos arroja aos fundos espinheiros do fosso.

Procuremo-Lo, pois, auxiliemo-nos uns aos outros e você, que com tanta generosidade se interessa pela minha renovação, não se esqueça das oito letras de luz que brilham sobre o seu nome. Ser “espírita” é continuar com Jesus o apostolado da redenção e que você prossiga com o Mestre, amando e servindo, no constante incentivo ao bem, é tudo de mais nobre que lhe posso desejar.

(página recebida pelo médium Francisco Cândido Xavier, em reunião do mês de setembro de 1954)

XVIII

A  Receita Oportuna

Irmão X

Anacleto, o alegre orientador de uma reunião evangélica, recebeu a visita da Dona Clotilde Serra, que se banhava nas irradiações da fé, plenamente rejuvenescida em seus ideais novos e, ouvindo-lhe a palavra amiga, quanto à provável admissão dela nos serviços do bem, aconselhou, bondoso:

- Irmã Clotilde, comece a tarefa nas obras simples da oração. Encontrará precioso acesso à luz espiritual. Abrindo nossas almas às correntes sublimes que dimanam da prece, surgem para nós oportunidades mil de alegria e paz, sob a inspiração do Cristo.

A companheira reconhecida agradeceu e partiu, entusiasta; mas, depois de um mês, informava a amigo invisível:

- Infelizmente, não pude atender à sugestão. Iniciando o trabalho, fui ferida pelo sarcasmo de muitos. Fui severamente criticada e muita gente considerou-me hipócrita...

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-Minha amiga – obtemperou o benfeitor paciente – por que não ensaia a visitação dos enfermos? Há grande vantagem na sementeira de amizade e simpatia.

A consulente ausentou-se conformada, entretanto, alegava, depois de alguns dias:

-  Irmão Anacleto, não consegui obedecer-lhe a orientação. Junto aos doentes, recolhi chagas sem número. Não faltou quem me interpretasse por bajuladora na pista de legados e remunerações...

- Não esmoreça! – observou o instrutor – o trabalho útil é o nosso caminho para a luz. Auxilie as crianças! Há tanta promessa desamparada no reino infantil!... Jesus lhe abençoará o devotamento.

Dona Clotilde saiu encorajada, contudo, quando correram dois meses sobre a nova experiência, regressou clamando desalentada:

- Irmão, não me foi possível seguir adiante... Tentando socorrer os meninos abandonados, não faltou quem me designasse por sanguessuga da caridade e alguns vizinhos chegaram a caluniar-me, afirmando, de público, que meu apego Às criancinhas significava a reparação de crimes que não cometi...

Anotando as grossas lágrimas que lhe rolavam das faces, Anacleto afagou-a e ponderou, calmo:

- Não se entristeça! Volte-se para as nossas irmãs desventuradas. Ampare, sem alarde, as mulheres infelizes que a necessidade arrastou aos despenhadeiros de ilusão!... Quem sabe? Talvez encontre uma lavoura preciosa de amor.

A sensível senhora ausentou-se, consolada, mas quando duas semanas se escoaram sobre o novo trabalho, tornou à reunião, choramingando:

-  Anacleto, não posso! Não posso!... a maldade, desta vez, foi excessivamente rude comigo... Imagine que, em me derramando no socorro fraternal, fui nomeada por mulher indigna do nome que me gabo de sustentar!...

- Doem-me fundamente semelhantes insultos!...

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Registrando-lhe os soluços convulsivos, o prestimoso orientador sugeriu, compadecidamente:

- Clotilde, tente a mediunidade no auxílio ao próximo. A enfermidade e a ignorância campeiam em quase todos os setores da luta humana. Faça alguma cousa. A grande questão é começar. Não dê entrada ao desânimo! Sigamos na vanguarda luminosa do bem! Mais vale uma candeia brilhante palidamente sobre o óleo da boa vontade que um milhão de comovedores discursos contra  domínio das trevas!...

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Retirou-se a irmã tranqüilizada e confiante, mas, após o transcurso de algumas semanas, voltou a grupo e reclamou:

-  Ah! Que tarefa ingrata nos impõe o ministério mediúnico! O médium é um joguete desventurado entre a curiosidade e a suspeição!  Por mais se esforce não encontra a segurança do apoio e da fé naqueles que o rodeiam, e acaba sempre qual me sinto, sucumbindo de dor entre a desconfiança e a malícia de quase todos os companheiros... Anacleto, Anacleto! Que será de mim?

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Desta vez, porém, o mentor recolheu-se ao silêncio com visível tristeza e porque tardasse a resposta à servidora complicada inquiriu ansiosa:

- Que fazer, meu amigo? Como proceder? Auxilia-me com uma receita oportuna!...

Anacleto, contudo, razoavelmente desencantado, mas, ainda otimista, respondeu sereno:

-  Irmã Clotilde, compreendo agora o seu caso com mais clareza! O seu problema, por enquanto, é de medicina. Procure um especialista em moléstias de pele, com a presteza possível, e provavelmente, muito em breve poderá recomeçar...

XIX

Memórias

Irmão X

“Deve ser horrível – diz você –o escândalo, em torno de nossa memória. O nome arrastado ao pelourinho do escárnio público e ao pasto da maledicência deve ser uma fogueira de angústia para o coração acordado, além da morte.”

Você tem razão.

A ave, em pleno céu, que se visse constrangida a voltar à casca do ovo, ou a árvore opulenta, que se reconhecesse obrigada a retornar para a cova do lodo, sofreriam menos que a alma desencarnada, sob a intimação ao regresso às perigosas infantilidades da experiência humana.

-o-

Em tais circunstâncias, laços mais pesados nos religam o espírito com mais intensidade, a gleba da carne, e a voz dos nossos julgadores,não raro, nos converte os ouvidos em receptores gigantescos para os quais convergem todos os apontamentos justos ou injustos de quantos nos apreciam a conduta e as decisões.

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Você já pensou num homem cujo corpo seja uma chaga viva, tangido violentamente por milhares de mãos descaridosas e rudes?

Esse é um símbolo pálido com que ousamos qualificar o suplício do infortunado que lega aos contemporâneos as recordações da própria viagem na Terra, quando essas memórias se referem às situações que fazem o inferno dos seus semelhantes.

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Fustigado por reclamações e acusações infindáveis, o morto-vivo, com a infelicidade desse jaez, sofre golpes desapiedados, a torto e a direito,à maneira de um ferido na praça pública, visitado pelos sopapos e pelos impropérios de toda a gente.

E você não calcula o que seja o martírio trazido pela impossibilidade de qualquer esclarecimento digno.

Falar ou escrever levianamente é expor-se a ouvir o pronunciamento da insensatez; e por mais que o delinqüente do verbo falado ou da letra reprovável se proclame arrependido e diferente, mais a crueldade o toma de assalto, esbofeteando-lhe o rosto amarrotado e disforme, sem que lhe seja facultada a mínima frase de defesa.

-o-

Efetivamente, enquanto nos demoramos na carne, é impossível imaginar o que seja isso.

È o desespero impotente daquele que, em vão, deseja fazer-se compreendido, é a sede inestancável de entendimento e o pranto amargurado de quem observa o incêndio no próprio lar, sem uma gota d’água para extinguir a chama destruidora.

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A figura de Ugolino, o famoso chefe de Pisa, encarcerado na torre da fome, a devorar as vísceras mortas dos próprios filhos, encontrado por Dante nos recôncavos do Estige é, de alguma sorte, a única imagem para o confronto analógico nos casos a que nos reportamos, porque realmente ilhados na solidão de nós mesmos, entre o pesadelo e o remorso de não termos sido o que deveríamos ser, somos obrigados a tragar os detritos de nossas próprias obras.

Creia você que, em verdade, tudo isso é terrível e doloroso, de vez que o arrependimento irremediável nos transforma em duendes infortunados, em aflitiva peregrinação.

-o-

Não admita, porém, que isso seja apenas lamentável privilégio de alguns.

Não é necessário fixarmos reminiscências da Terra, em bronze ou papel, para que a vida nos revele aos outros tais quais somos.

Trazemos  conosco o arquivo que nos é próprio.

Sentimentos e idéias, palavras e ações são marcas em nossa alma.

Todos alcançaremos o plano em que nosso espírito é um livro aberto.

-o-

Intenções ocultas, interferências nos destinos alheios, assaltos disfarçados à felicidade do próximo, crimes consagrados pela admiração do mundo, misérias íntimas e desequilíbrios morais aparecem claramente espantando a nós mesmos, que não suspeitávamos, de leve, da nossa própria degradação.

Você que conhece tão bem o assunto, cuide dos próprios passos e vele pelo futuro de sua alma eterna, porque a existência, meu caro, seja onde for, é sempre um livro que o nosso coração anda escrevendo.

XX

Cordialmente

Irmão X

E se você perdoasse?

Declara-se aflito e exausto. Aproximou-se do espiritismo, como quem busca a fonte de águas vivas. Deslumbrado, feliz, você saciou a sede de conhecimento e consolação. Sentiu a grandeza da vida que se estende, sublime, além da morte, e passou a cooperar a fim de que outros recebessem a mesma dádiva.

-o-

Entretanto, alega a impossibilidade de ajustar-se a demais peças da máquina de serviço. Assevera, contrafeito, haver encontrado na organização doutrinária a inconsciência, a insensatez, a desconfiança e a maldade. Afirma que os irmãos não vibram no mesmo ritmo de fraternidade com que seu coração vai marcando as horas renovadoras.

-o-

Suas boas intenções são deturpadas, seus melhores sentimentos feridos...

No entanto, que lavrador do mundo encontrou o campo sem obstáculos e sem erva daninha, convidando-o ao amor da sementeira inicial?

Se você, de mãos postas no arado da própria redenção avançasse, firme, no esforço silencioso, provavelmente não seria defrontado pelo desapontamento.

-o-

Não espere que o amigo venha ao encontro de suas necessidades, nem estabeleça dívidas de gratidão que você mesmo teria dificuldade de aceitar.

Não fomos chamados a servir entre anjos. Criaturas imperfeitas quais somos, por que exigir um paraíso com exclusividade para os nossos desejos? Permanecemos num intenso campo de trabalho, onde cada servo foi trazido pelos Desígnios Superiores a recanto diferente.

-o-

O Espiritismo Evangélico detém gloriosa tarefa a concretizar-se através da colaboração dos homens de boa vontade. Se não nos sentirmos edificados para a melhoria dos outros, como realizar o cometimento?

Além disso, não creia seja você o único a tolerar. Todos nós arquivamos traços condenáveis na personalidade que outros suportam a seu turno.falhando-nos o senso de auxílio mútuo, como garantir a integridade das obras?

-o-

Por que a demora na exasperação ou no desânimo, se há tanto serviço nobre por fazer? Por que disputar funções alheias se cada qual de nós está situado na posição em que será possível produzir mais e melhor?

As abelhas, em plena atividade da colméia, quando visitadas por algum detrito, não perdem tempo, atribuindo-lhe demasiada importância. Envolvem o elemento indesejável em cera isolante e prosseguem na abençoada faina do mel.

-o-

Esqueçamos também o mal perturbador para que o bem não sofra perigoso intervalo.

Depois do sepulcro, na maioria das vezes, é que descobrimos o valor dos detritos nos círculos de luta em que você ainda se encontra. O corpo constitui para a alma o que a enxada representa para o lavrador -  instrumento bendito para a aquisição de experiência. E acaso poderíamos justificar a deserção do agricultor, diante de pedras e espinheiros? Para que a enxada? Para que a oportunidade de elevação?

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Não menoscabe o seu ensejo de aprender, trabalhar e servir.

Quanto à imperfeição dos companheiros, lembre-se de que o doente reclama remédio, tanto quanto o abismo anseia plenitude. As visões gloriosas e as gloriosas revelações não traduzem mais que responsabilidade. Paulo de Tarso contempla Jesus, radiante de beleza celestial, às portas de Damasco, todavia, voltando a si do êxtase divino, repara que a paisagem é a mesma e que os seus problemas individuais continuam inalteráveis, exigindo-lhe alta capacidade de renunciação e sacrifício para resolvê-los perante as Leis Eternas. O próprio Mestre, depois de maravilhosamente transfigurado no Thabor, desce o mente iluminado para escalar a cruz em plena sombra.

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Que deseja, pois, meu amigo? Voar sem asas? Não intente. Por enquanto trabalhe por alcançá-las.

É provável que você se aborreça com o meu parecer. Esta opinião, porém, é de um “morto” para um “vivo” e, por isto mesmo, não tem maior importância. Se você puder aproveitá-la, parabéns merece pela atitude arrojada, diante de si próprio, mas se estiver incapacitado, continue procurando a “boa vida” até que a morte lhe descerre a visão. A essa altura, aprenderá muita lição útil na compulsória, engaiolado no “cárcere do tempo perdido”, contudo, nem por isso esteja abatido e desconsolado porque você não será o primeiro.

Fim