NOS BASTIDORES DA OBSESSÃO
DIVALDO PEREIRA FRANCO
DITADO PELO ESPÍRITO MANOEL PHILOMENO DE MIRANDA
Exórdio
“Pululam em torno da Terra os maus Espíritos, em conseqüência da
inferioridade moral de seus habitantes. A ação malfazeja desses Espíritos é
parte integrante dos flagelos com que a Humanidade se vê a braços neste
mundo. A obsessão, que é um dos eleitos de semelhante ação, como as
enfermidades e todas as atribulações da vida, deve, pois, ser considerada
como provação ou expiação e aceita com esse caráter.” (*)
A obsessão, mesmo nos dias de hoje, constitui tormentoso flagício social. Está
presente em toda parte, convidando o homem a sérios estudos.
As grandes conquistas contemporâneas não conseguiram ainda erradicá-la.
Ignorada propositadamente pela chamada Ciência Oficial, prossegue colhendo nas
suas malhas, diariamente, verdadeiras legiões de incautos que se deixam arrastar a
resvaladouros sombrios e truanescos, nos quais padecem irremissivelmente, até à
desencarnação lamentável, continuando, não raro, mesmo após o traspasse... Isto,
porque a morte continua triunfando, ignorada, qual ponto de interrogação cruel para
muitas mentes e incontáveis corações.
(*) “A Gênese”, de Allan Kardec, 14ª edição da FEB, capítulo 14.
“Obsessões e Possessões”. — Nota do Autor espiritual.
As Disciplinas e Doutrinas decorrentes da Psicologia Experimental, nos seus
diversos setores, preferem continuar teimosamÉnte arregimentando teorias que não
respondem aos resultados da observação demorada e das constatações de
laboratório, como se a Imortalidade somente merecesse acirrado combate e não
investigação imparcial, capaz de ensejar ao homem esperanças e consolações,
quando tudo lhe parece conspirar contra a paz e a felicidade.
Desde as honestíssimas pesquisas do Barão von de Guldenstubbé, em 1855, e
as do professor Roberto Hare, insuspeito lente de Química, na universidade de
Pensilvânia, em 1856, que concluíram, pela realidade do espírito preecistente ao
berço e sobrevivente após o túmulo, que os cientistas conscientes das suas
responsabilidades se têm entregue ao afã da verificação da Imortalidade. E todos
aqueles que se dedicaram à observação e ao estudo, à experimentação e ao
fenômeno, são concordes na comprovação da continuidade da vida depois da
morte...
Nos Estados Unidos, se tornaram famosas as experiências psiquiátricas
realizadas pelo Dr. Carlos Wickland, que, utilizando-se da argumentação espírita,
conseguiu desobsidiar inúmeros pacientes que lhe chegavan, atormentados, ao
consultório. Simultâneanente, em seus trabalhos especializados, utilizava-se de
uma médium clarividente, sua própria esposa, que o ajudava na técnica da
desobsessão.
Diante de Alcina incorporada pelo espírito de Galeno, em plena sessão da
Salpetriêre, respondeu Charcot, aos interessados no fenômeno e que o inquiriram,
que lhes não convinha se adiantassem à própria época em que viviam... Sugeria
que se não buscassem raciocínios que aclarassem os resultados das investigações,
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devendo contentar-se somente com aquela «observação experimental», a que
todos haviam presenciado. Tal atitude anticientífica tem sido mantida por
respeitáveis investigadores, por temerem a realidade da vida imperecível.
*
Com Allan Kardec, no entanto, tiveram início os eloquentes testemunhos da
imortalidade, da comunicabilidade dos Espíritos, da reencarnação e das obsessões,
cabendo ao insigne mestre lionês a honrosa tarefa de apresentar conveniente
terapêutica para ser aplicada nos obsidiados como também nos obsessores. A partir
da publicação de «O Livro dos Médiuns», em janeiro de 1861, em Paris, todo um
conjunto de regras, com um notável esquema das faculdades mediúnicas, foi apresentado,
a par de seguro estudo do Espírito, nas suas diversas facetas, culminando
como exame das manifestações espiríticas, organização de Sociedades e palestras
dos Espíritos Elevados, que traçaram rotas de segurança para os que ingressarem
na investigação racional dos fenómenos medianímicos. A bússola para o sadio
exercício da mediunidade foi apresentada com rigoroso equilíbrio, através da Obra
magistral.
No entanto, diante dos lancinantes problemas da obsessão na atualidade, temse
a impressão de que nada até o momento haja sido feito a fim de ser modificado
esse estado de coisas.
De Kardec aos nossos dias, todavia, quantas edificantes realizações e preciosos
estudos em torno dos médiuns, da mediunidade, das obsessões e das desobsessões
têm sido apresentados! Este capítulo dos problemas psíquicos — «a
obsessão» — tem merecido dos cristãos novos o mais acendrado interesse. Apesar
disso, avassaladoramente vem-se mantendo em caráter epidêmico, qual morbo
virulento que se alastra por toda a Terra, hoje mais do que em qualquer época...
«Sinal dos tempos», a que se relerem os Escritos Evangélicos, prenúncia essa
dor generalizada, a Era do Espírito Imortal. Milhões de criaturas, no entanto, dormem
o sono da indiferença, entregues aos anestésicos do prazer e ao ópio da
ilusão.
Por todos os lugares se manifestam os Espíritos advertindo, esclarecendo,
despertando...
No entanto, o carro desatrelado da juventude corre na direção de abismos
insondáveis. Os homens alcançam a maturidade vencidos pelos desgastes da
quadra juvenil, e a velhice em desassossego padece ao abandono. Os altos índices
da criminalidade de todos os matizes e as calamidades sociais espalhadas na Terra
são, todavia, alguns dos fatores predisponentes e preponderantes para as
obsessões... Os crimes ocultos, os desastres da emoção, os abusos de toda ordem
de uma vida ressurgem depois, noutra vida, em caráter coercitivo, obsessivo. É o
que hoje ocorre como consequência do passado.
A Doutrina Espírita, porém, possui os antídotos, as terapias especiais para tão
calamitoso mal. Repetindo Jesus, distende lições e roteiros para os que se abeberam
das suas fontes vitais.
*
Este livro deveria ter sido escrito faz muito tempo...
Todos os fatos nele narrados aconteceram entre os anos de 1937 e 1938, em
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Salvador, na Bahia, quando da nossa jornada carnal, na Terra. Algumas das
personagens aqui aparecem discretamente resguardadas por pseudônimo,
considerando que algumas delas e seus familiares se encontram ainda
reencarnados...
Como nos impressionassem as técnicas da obsessão utilizadas pelos Espíritos
perseguidores e as técnicas da desobsessão aplicadas pelos Instrutores
Desencarnados, reunímos dados, fizemos verificação, e hoje apresentamos o
resultado das averiguações ao leitor interessado em informações do Mundo
Espiritual sobre o palpitante problema das perseguições espirituais.
Estes fatos transcorrem entre os dois mundos: o dos encarnados e o dos
desencarnados. Estes dois mundos se interpenetram, já que não há barreiras que
os separem nem fronteiras reais, definidas, entre ambos.
Grande parte das instruções, oriantações e socorros procederam do Mundo
Espiritual, durante as sessões realizadas com a participação de diversos membros
da União Espírita Baiana, quando presidida por José Petitinga, o amigo
incondicional do Cristo.
Diversos companheiros encarnados e nós participávamos, em desdobramento
parcial pelo sono, das atividades da desobsessão e das incursões no Mundo Espiritual
sob o comando de Abnegados Mentores que nos sustentavam e conduziam,
adestrando-nos nas realidades da vida eztracorpórea.
Desde vários anos, percebêramos a facilidade com que nos libertávamos
parcialmente dos liames carnais, em estado de lucidez, amealhando, desde então,
incomparáveis recursos para utilização oportuna. Quando nos aconteceram as
primeiras, experiências dessa ordem, no labor mediúnico em grupo, retornamos ao
corpo conservando intactas as lembranças, o mesmo acontecendo a diversos
membros daquelas atividades. Como se tornassem cada vez mais complexas as
tarefas em curso, a bondade dos Amigos Espirituais procedeu a conveniente
censura das lembranças, de modo a que a nossa vida material não fosse afetada
pelas recordações de tais realizações.
Em confabulações com Petitinga, quando ainda no plano físico, conseguíamos,
de certo modo, acompanhar as disposições socorristas dedicadas aos membros
envolvidos nas tramas da obsessão de que nos ocupamos nestas páginas.
Foi, todavia, em cá chegando, após a libertação dos liames fisiológicos pela
desencarnação, que pudemos reunir todos os apontamentos de que tínhamos
necessidade, contando, também, com a valiosa cooperação do venerando amigo
Petitinga e das Entidades Superiores, que nos ajudaram naquele tentame, então
coroado de êxito, mercê da Divina Misericórdia.
*
Alguns dos subitems que constituem os Prolegômenos desta Obra apareceram
oportunamente em alguns periódicos espíritas. Aqui se encontram por nós próprios
refundidos para melhor entrosamento no conjunto.
Reconhecemos a singeleza deste trabalho. Com ele, todavia, objetivamos
cooperar de alguma forma com os nobres lidadores da mediunidade, os infatigáveis
servidores das tarefas da desobsessão, que se dedicam confiantes e joviais aos
trabalhos de socorro aos irmãos atribulados deste lado de cá e do lado de lá,
cooperando com o Cristo na implantação do Mundo Melhor a que todos aspiramos.
Nada traz de novo, que já não tenha sido dito. Repete, fiel à técnica educacional
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de que o exercício é um dos mais eficientes métodos da aprendizagem, muitas lições
conhecidas. Longe de ser um tratado sobre obsessão e desobsessão, é um
ligeiro estudo prático, através de uma família anatematizada pelas perturbações de
além-túmulo.
Imenso e fértil campo a joeirar, a obsessão continua aguardando os estudiosos mais bem
adestrados e mais capazes para mais amplos esclarecimentos e mais eficazes elucidações.
O nosso pálido esforço tem o escopo de chamar a atenção para o problema. Que outros, como
já tem sido
feito por muitos, realizem a parte mais nobre e complexa da questão.
Reconhecidos e sensibilizados pelo auxílio recebido do Alto, que munca nos tem faltado com o
seu socorro, exoramos as bênçãos do Senhor para todos nós, servo incompetente que
reconhecemos ser, na Sua Vinha de Luz e Amor.
MANOEL PHILOMENO DE MIRANDA
Salvador, 12 de junho de 1970.
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Prolegômenos
“Os Espíritos exercem incessante ação sobre o mundo moral e mesmo
sobre o mundo físico. Atuam sobre a matéria e sobre o pensamento e
constituem uma das potências da Natureza, causa eficiente de uma multidão
de fenômenos até então Inexplicados ou mal explicados e que não encontram
explicação racional se-não no Espiritismo. “As relações dos Espíritos com os
homens são constantes. Os bons Espíritos nos atraem para o bem, nos
sustentam nas provas da vida e nos ajudam a suportá-las com coragem e
resignação. Os «maus nos impelem para o mal: é-lhes um gozo ver-nos
“sucumbir e assemelhar-nos a eles.” (1)
Os modernos pesquisadores da mente encarnada, fascinados pelas
experiências de Laboratório, surpreendem, paulatinamente, as realidades do Mundo
extrafísico. Ligados, porém, aos velhos preconceitos científicos, denominam a
faculdade através da qual veiculam tais fatos pelo nome genérico de “psi”. O “psi” é
uma designação que da elasticidade quase infinita aos recursos plásticos da mente,
tais como conhecimento do passado (telepatia), ou acontecimentos que tiveram
lugar anteriormente e se encontram gravados nas mentes de outras pessoas;
conhecimento de ocorrências no mundo exterior
(1) “O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec. Introdução, página 23, da 28ª
Edição da FEB. — Nota do Autor espiritual.
(clarividência), sem o contacto com impressões sensoriais; e percepção do futuro
(presciência).
Em princípio, os recursos valiosos da mente, nas experiências de transposição
dos sentidos, fenômenos de profetismo e lucidez, demonstrações de insensibilidade
táctil, nas alucinações, polarizações e despolarizações psíquicas, realizadas em
epilépticos e histéricos hipnotizados, ensejavam conclusões apressadas que
pareciam confirmar as características do “psi”.
Comprovou-se mui facilmente, através da sugestão hipnológica, que se pode
impressionar um percipiente a fim de que o mesmo assuma personificações
parasitárias momentaneamente, representando vultos da História ou simples
pessoas da plebe...
Considerando-se, todavia, em outras experiências, os fenômenos intelectuais,
como nos casos de xenoglossia e glossolalia, especialmente entre crianças de tenra
idade, ou naqueles de ordem física, tais como a pneumografia, o metafonismo, a
telecinesia, a teleplasmia e os diversos fenômenos dentro da metergia, constata-se
não haver elasticidade que se ofereça à mente encarnada que os possa elucidar,
senão através da aceitação tácita de uma força externa inteligente, com vontade
própria, que atua no sensitivo, a este conferindo tais possibilidades.
Estudiosos do assunto, no passado, tais como William James, acreditaram que
todos vivemos mergulhados numa «corrente de consciência cósmica», enquanto
Henrique Bergson supunha que «a mente possui um conhecimento de tudo, em
qualquer lugar, sem limitação de tempo ou de espaço», dando ao cérebro a função
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de velador de tal conhecimento.
Enquanto tais fenômenos se demoram sem explicação definitiva, a
sobrevivência do Espírito após a morte do corpo não encontra aceitação pelas
Academias; distúrbios mentais de vária ordem aprisionam multidões em cárceres
estreitos e sombrios, povoados pelos fantasmas da loucura, reduzindo o homem à
condição primitiva do passado...
Muito embora os desvarios da razão estejam presentes nos fastos de todos os
tempos, jamais, como na atualidade, o homem se sentiu tão perturbado.
Tratadistas estudiosos dos problemas psico-sociológicos do presente atribuem
grande parte dos distúrbios mentais à “tensão” das horas em que se vive, elevando,
cada dia, o número dos desarranjados psiquicamente e aturdidos da emoção.
Naturalmente que, além desses, afirmam os de procedência fisiológica, da
hereditariedade, de vírus e germens, as sequelas da epilepsia, da tuberculose, das
febres reumáticas, da sífilis, os traumatismos e choques que se encarregam de
contribuir larga e amplamente para a loucura. Fatores outros predisponentes a que
também se referem não podem ser relegados a plano secundário. Todavia, além
desses, que dão origem a psicoses e neuroses lamentáveis, outros há que somente
podem ser explicados pela Doutrina Espírita, no Capítulo das Obsessões estudadas
carinhosamente por Allan Kardec.
Fazendo-se ligeiro levantamento através da História — e os acontecimentos têm
sido registrados em todas as épocas do pensamento, mesmo nas mais recuadas —,
surpreendemos, ao lado dos alienados de qualquer procedência, magos e
sacerdotes manipulando exorcismos e orações com que pretendiam afastar os
Espíritos atormentadores, que se comprazem em vampirizar ou exaltar suas vítimas
em infeliz comércio entre os dois planos da vida: o corporal e o espiritual.
Os livros sagrados de todos os povos, desde a mais remota antigüidade oriental,
em se referindo às leis morais, reportam-se à vida extraterrena. às consolações e às
penalidades impostas aos Espíritos — tal como se a informação tivesse sido haurida
na mesma fonte, tendo como única procedência a inspiração dos desencarnados —
estudando, igualmente, as aflições e perturbações de origem espiritual, que
remontam às vidas pregressas...
Considerados inicialmente como anjos maus ou demônios, ao tempo de Jesus,
foram por Ele classificados de (espíritos Imundos», com os quais se defrontou,
reiteradas vezes, durante a jornada vivida na Terra.
Todos os grandes pensadores, artistas, escritores, filósofos do passado, “psi” de
religiões», “doutores da Igreja», são unânimes em atestar as realidades da vida
além da carne, pelos testemunhos inconfundíveis da imortalidade.
Aos Espíritos dos ditos mortos se referem Anaxágora, Plutarco, Sócrates,
Heródoto, Aristóteles, Cícera, Horácio, Plínio, Ovídio, Lucano, Flávio José, Virgílio,
Dionisio de Halicarnasso, Valério Máximo... que, em seus relatos, apresentam farta
documentação comprobatória do intercâmbio espiritual, citando outras não menos
célebres personagens do seu tempo.
Ricos são os comentários sobre as aparições, as casas (assombradas», os
(avisos) e as consultas nos santuários de todas as grandes Civilizações.
Mais tarde Lactâncio, Orígenes, Ambrósio, Basílio e Arnóbio dão farto e
eloquente testemunho das comunicações com os desencarnados.
A Escola Neoplatônica de Alexandria, através dos seus mais expressivos vultos,
pregando a multiplicidade das existências (reencarnação), afirma, por intermédio de
Plotino, Porfírio, Jâmblico, Próclus, a continuidade da vida concedida ao princípio
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espiritual.
A Idade Média foi farta em provas sobre os desencarnados. “Anjos” e “espíritos
imundos” sübitamente invadiram a Europa, e os “inspirados” e “endemoninhados”,
os “adivinhos» e “feiticeiros” foram levados à pira crematória, sem que
conseguissem extingui-los.
Das primeiras lutas entre o Empirismo e o Racionalismo intelectual à Era
Atômica, filósofos e cientistas não ficaram indiferentes aos Espíritos... No século 19,
porém, fadado pelas suas conquistas a servir de base ao futuro, no que diz respeito
ao conhecimento, a sobrevivência mereceu por parte de psicólogos e psiquistas o
mais acirrado debate, inaugurando-se a época das investigações controladas
cientificamente.
Foi nesse período que Allan Kardec, convidado à liça da cultura e da informação,
empunhando o bisturi da investigação, clareou, com uma Filosofia Científica — o
Espiritismo, calcada em fatos devidamente comprovados, os escaninhos do
obscurantismo, oferecendo uma terapêutica segura para as alienações torturantes,
repetindo as experiências de Jesus-Cristo junto aos endemoninhados e enfermos de
toda ordem.
Classificou como obsessão a grande maioria dos distúrbios psíquicos e elaborou
processos de recuperação do obsidiado, estudando as causas anteriores das
aflições à luz das reencarnações, através de linguagem condizente com a razão, e
demonstrável experimentalmente.
A Codificação Kardequiana, como um monumento granítico para os séculos
porvindouros, certamente não resolveu o “problema do homem”, pois que este ao
próprio homem é pertinente, oferecendo, todavia, as bases e direções seguras para
que tenha uma vida feliz, ética e socialmente harmoniosa na família e na
comunidade onde foi chamado a viver.
Psiquistas de nomeada, advertidos pelos resultados observados na Europa e na
América, em torno do fascinante assunto — comunicabilidade dos Espíritos —,
empenharam-se, então, em laboriosas experiências, criando, alguns, por mais
compatível com as suas investiduras acadêmicas, sucedâneos para a alma, que
introduziram na genética da Biologia, negando àquela o direito à legitimidade. O
Professor Gustavo Geley, por exemplo, criou a designação de “dínnamo-psiquismo”,
Pauley, a de “consciência profunda”, Hans Driesch a de “enteléquias” e teorias
metapsíquicas vieram a lume, em ferrenho antagonismo à imortalidade, esgrimindo
as armas do sofisma e da negação, sem conseguirem, no entanto, resultado
positivo.
O célebre Professor Charles Richet, estimulado pelas experiências
eminentemente científicas de Sir» William Crookes, elaborou a Metapsíquica e, ao
despedir-se da sua Cátedra de Fisiologia, na Universidade de Paris, deixou ao
futuro a satisfação de confirmar, de negar ou desdobrar as suas conclusões.
Com o advento da moderna Parapsicologia, novos sucedâneos têm sido criados
para o espírito imortal e, enquanto os pesquisadores se demoram no problema da
designação nominativa que inspira debates e celeumas, a Doutrina Espírita,
lecionando amor e fraternidade, estudo e conhecimento da vida sob a inspiração
dos Imortais, distende braços e liberta das malhas vigorosas da obsessão aqueles
que, por imprevidência ou provação, se deixaram arrastar aos escuros precipícios
da anarquia mental, perturbados ou subjugados por forças ultrizes da Erraticidade,
prescrevendo as mesmas diretrizes morais insertas no Evangelho de Jesus-Cristo,
vivido em espírito e verdade.
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Examinando a obsessão
“Entre os que são tidos por loucos, muitos há que apenas são subjugados;
precisariam de um tratamento moral, enquanto que com os tratamentos corporais
os tornam verdadeiros loucos. Quando os médicos conhecerem bem o
Espiritismo, saberão fazer essa distinção e curarão mais doentes do que com
as duchas”. (2)
Com muito acerto asseverou o Codificador que «o conhecimento do Espiritismo,
longe de facilitar o predomínio dos maus Espíritos, há de ter como resultado, em
tempo mais ou menos próximo e quando se achar propagado, destruir esse
predomínio, o da obsessão, dando a cada um os meios de se pôr em guarda contra
as sugestões deles». E o iluminado mestre, não poucas vezes, embora profundo
conhecedor do Magnetismo, convocado a atender obsidiados de variado jaez,
utilizou-se dos eficientes métodos da Doutrina Espírita para libertá-los com
segurança, através da moralização do Espírito perturbador e do sensitivo
perturbado.
«Obsessão — segundo Allan Kardec — é o domínio que alguns Espíritos logram
adquirir sobre certas pessoas.
(2, 3 e 4) “O Livro dos Médiuns”, de Allan Kardec, 24ª Edição da FEB.
Página 263.
Ao tempo da publicação de “O Livro dos Médiuns” — 1861 — as duchas
eram tidas como dos mais eficientes tratamentos para as enfermidades
mentais. Daí a referência feita por Allan Kardec. — Nota do Autor espiritual.
Nunca é praticada senão pelos Espíritos inferiores, que procuram dominar. Os bons
Espíritos nenhum constrangimento infligem. Aconselham, combatem a influência
dos maus e, se não os ouvem, retiram-Se. Os maus, ao contrário, se agarram
àqueles de quem podem fazer suas presas. Se chegam a dominar algum, identificam-
se com o Espírito deste e o conduzem como se fora verdadeira criança. »
Ainda é o egrégio intérprete dos Espíritos da Luz que comenta:
«As causas da obsessão variam, de acordo com o caráter do Espírito. É, às
vezes, uma vingança que este toma de um indivíduo de quem guarda queixas do
tempo de outra existência. Muitas vezes, também, não há mais do que desejo de
fazer mal: o Espírito, como sofre, entende de fazer que os outros sofram; encontra
uma espécie de gozo em os atormentar, em os vexar, e a impaciência que por isso
a vítima demonstra mais o exacerba, porque esse é o objetivo que colima, ao passo
que a paciência o leva a cansar-se... »
E prossegue: «Há Espíritos obsessores sem maldade, que alguma coisa mesma
denotam de bom, mas dominados pelo orgulho do falso saber. (3)
Obsidiados, sempre os houve em todas as épocas da Humanidade.
Repontando, vigoroso, o fenômeno mediúnico em todos os povos e em todos os
tempos, oferecendo roteiros iluminativos para muitas Civilizações, foi, também,
veículo de pungentes dramas de vultos que se celebrizaram na História.
Nabucodonosor 2º, o Grande, rei da Caldéia, perturbado por Espíritos
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vingadores, experimentou tormentos inomináveis, obsidiado, descendo à
misérrima condição de anormal...
Tibério, de mente dirigida por Espíritos impiedosos, atingiu alto índice de
crueldade, pela desconfiança exacerbada, insuflada pelos adversários
desencarnados...
Domício Nero, tristemente celebrizado, após uma existência de loucuras,
avassalado por cruéis inimigos do Além-Túmulo, não poucas vezes em
desdobramentos espirituais reencontrou a mãe Agripina e a esposa Otávia, que
foram assassinadas por sua ordem, pressagiando-lhe o termo doloroso...
E, no entanto, na epopéia sublime do Evangelho, que desfilam ao lado de
Jesus, em larga escala, os atormentados por Espíritos infelizes, que encontram nEle
o Médico Divino que lhes lucila o íntimo e os liberta do sofrimento.
Os discípulos do Rabi Galileu, vezes sem conta, aplicaram o passe curativo nos
inúmeros obsidiados que os buscavam, prosseguindo o ministério apostólico entre
os atormentados da Terra e os perturbados do Mundo Espiritual, como fizera o
Mestre.
E depois deles os registros históricos apresentam loucos de nomenclatura
variada, às voltas com Entidades atormentadoras, sofrendo na fogueira e no exílio,
no poço das serpentes e nos Manicômios sombrios, o resultado da convivência
psíquica com os que atravessaram o portal da Imortalidade e se demoram nas viciações
e nos sentimentos em que se compraziam...
Asseverou Allan Kardec: (Não foram os médiuns, nem os espíritas que criaram
os Espíritos; ao contrário, foram os Espíritos que fizeram haja espíritas e médiuns.
Não sendo os Espíritos mais do que as almas dos homens, é claro que há Espíritos
desde quando há homens; por conseguinte, desde todos os tempos eles exerceram
influência salutar ou perniciosa sobre a Humanidade. A faculdade mediúnica não
lhes é mais que um meio de se manifestarem. Em falta dessa faculdade, fazem-no
por mil outras maneiras, mais ou menos ocultas.”
«Os meios de se combater a obsessão — esclarece o eminente Seareiro —
variam de acordo com o caráter que ela reveste.» E elucida: «As imperfeições morais
do obsidiado constituem, frequentemente, um obstáculo à sua libertação.» (4)
A obsessão, todavia, ainda hoje é um terrível escolho à paz e à serenidade das
criaturas.
Com origem nos refolhos do espírito encarnado, obsessões há em escala infinita
e, consequentemente, obsidiados existem em infinita variedade, sendo a etiopatogenia
de tais desequilíbrios, genêricamente denominada distúrbios mentais,
mais ampla do que a clássica apresentada, merecendo destaque aquela
denominação causa cármica.
Jornaleiro da Eternidade, o espírito conduz os germens cármicos que facultam o
convívio com os desafetos do pretérito, ensejando a comunhão nefasta.
Todavia, não apenas o ódio como se poderia pensar é o fator causal das
Obsessões e nem somente na Terra se manifestam os tormentos obsessivos...
Além da sepultura, nas regiões pungentes e aflitivas de reajustamentos imperiosos
e despertamentos inadiáveis das consciências, defrontam-se muitos verdugos e
vítimas, começando ou dando prosseguimento aos nefandos banquetes de
subjugação psíquica, em luta intérmina de extermínio impossível...
Obsessores há milenarmente vinculados ao crime, em estruturas de desespero
invulgar, em que se demoram voluntàriamente, envergando indumentárias de
perseguidores de outros obsessores menos poderosos mentalmente que,
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perseguindo, são também escravos daqueles que se nutrem às suas expensas,
imanados por forças vigorosas e crueis...
Na Terra, igualmente, é muito grande o número de encarnados que se
convertem, por irresponsabilidade e invigilância, em obsessores de outros
encarnados, estabelecendo um consórcio de difícil erradicação e prolongada
duração, quase sempre em forma de vampirismo inconsciente e pertinaz. São
criaturas atormentadas, feridas nos seus anseios, invariàvelmente inferiores que,
fixando aqueles que elegem gratuitamente como desafetos, os perseguem em corpo
astral, através dos processos de desdobramento inconsciente, prendendo, muitas
vezes, nas malhas bem urdidas da sua rede de idiossincrasia, esses desassisados
morais, que, então, se transformam em vítimas portadoras de enfermidades
complicadas e de origem clínica ignorada...
Outros, ainda, afervorados a esta ou àquela iniquidade, fixam-se, mentalmente,
a desencarnados que efetivamente se identificam e fazem-se obsessores destes,
amargurando-os e retendo-os às lembranças da vida física, em lamentável
comunhão espiritual degradante...
Além dessas formas diversificadas de obsessão, outras há, inconscientes ou
não, entre as quais, aquelas produzidas em nome do amor tiranizante aos que se
demoram nos invólucros carnais, atormentados por aqueles que partiram em estado
doloroso de perturbação e egocentrismo... ou entre encarnados que mantém conúbio
mental infeliz e demorado...
*
Obsessores, obsidiados!
A obsessão, sob qualquer modalidade que se apresente, é enfermidade de
longo curso, exigindo terapia especializada de segura aplicação e de resultados que
não se fazem sentir apressadamente.
Os tratamentos da obsessão, por conseguinte, são complexos, impondo alta
dose de renúncia e abnegação àqueles que se oferecem e se dedicam a tal mister.
Uma força existe capaz de produzir resultados junto aos perseguidores
encarnados ou desencarnados, conscientes ou inconscientes: a que se deriva da
conduta moral. A princípio, o obsessor dela não se apercebe; no entanto, com o
decorrer do tempo, os testemunhos de elevação moral que enseja, confirmando a
nobreza da fé, que professa como servidor do Cristo, colimam por convencer o
algoz da elevação de princípios de que se revestem os atos do seu doutrinador,
terminando por deixar livre, muitas vezes, aquele a quem afligia. Além da
exemplificação cristã, a oração consegue lenir as úlceras morais dos assistidos,
conduzindo benesses de harmonia que apaziguam o desequilibrado, reacendendo
nele a sede e a necessidade da paz.
Nem sempre, porém, os resultados são imediatos. Para a maioria dos Espíritos,
o tempo, conforme se conta na Terra, tem pouca significação. Demoram-se,
obstinados, com tenacidade incomparável nos propósitos a que se entregam, anos
a fio, sem que algo de positivo se consiga fazer, prosseguindo a tarefa insana, em
muitos casos, até mesmo depois da morte... Isto porque do paciente depende a
maioria dos resultados nos tratamentos da obsessão. Iniciado o programa de
recuperação, deve este esforçar-se de imediato para a modificação radical do
comportamento, exercitando-se na prática das virtudes cristãs, e, principalmente,
moralizando-se. A moralização do enfermo deve ter caráter prioritário,
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considerando-se que, através de uma renovação íntima bem encetada, ele
demonstra para o seu desafeto a eficiência das diretrizes que lhe oferecem como
normativa de felicidade.
Merece considerar, neste particular, que o desgaste orgânico e psíquico do
médium enfermo, mesmo depois do afastamento do Espírito malévolo, ocasiona um
refazimento mais demorado, sendo necessária, às vezes, compreensivelmente,
assistência médica prolongada.
Diante dos esforços que se conjugam entre o assistente e o assistido, os
Espíritos Superiores interessados no progresso da Humanidade oferecem, também,
valiosos recursos que constituem elementos salutares e preciosos.
Sem tal amparo, toda incursão que se intente no ministério da desobsessão
será improfícua, senão perigosa, pelos resultados negativos que apresenta.
Um espírito lidador, devidamente preparado para as experiências de socorro
aos obsidiados, é dínamo potente que gera energia eletromagnética, que, aplicada
mediante os passes, produz distoniaa e desajustes emocionais no hóspede
indesejável, afastando-o de momento e facultando, assim, ao hospedeiro a
libertação mental necessária para assepsiar-se moralmente, reeducando a vontade,
meditando em oração, num verdadeiro programa evangélico bem disciplinado que,
segura e lentamente, edifica uma cidadela moral de defesa em volta dele mesmo.
Por isso o Mestre, diante de determinados perseguidores desencarnados,
afirmou: “contra esta casta de Espíritos só a oração e o jejum”, e, após atender às
aflições de cada atormentado que O buscava, prescrevia, invariável e incisivo: “Não
voltes a pecar para que algo pior não te aconteça”.
*
Quando, você escute nos recessos da mente uma idéia torturante que teima por
se fixar, interrompendo o curso dos pensamentos; quando constate, imperiosa,
atuante força psíquica interferindo nos processos mentais; quando verifique a
vontade sendo dominada por outra vontade que parece dominar; quando
experimente inquietação crescente, na intimidade mental, sem motivos reais;
quando sinta o impacto do desalinho espiritual em franco desenvolvimento,
acautele-se, porque você se encontra em processo imperioso e ultriz de obsessão
pertinaz.
Transmissão mental de cérebro a cérebro, a obsessão é síndrome alarmante
que denuncia enfermidade grave de erradicação difícil.
A princípio se manifesta como inspiração sutil, depois intempestivamente, para
com o tempo fazer-se interferência da mente obsessora na mente encarnada, com
vigor que alcança o climax na possessão lamentável.
Idéia negativa que se fixa, campo mental que se enfraquece, dando ensejo a
idéias negativas que virão.
Da mesma forma que as enfermidades orgânicas se manifestam onde há
carência, o campo obsessivo se desloca da mente para o departamento somático
onde as imperfeições morais do pretérito deixaram marcas profundas no perispírito.
Tabagismo — O fumo, pelos danos que ocasiona ao organismo, é, por isso
mesmo, perigo para o corpo e para a mente.
Hábito vicioso, facilita a interferência de mentes desencarnadas também
viciadas, que se ligam em intercâmbio obsessivo simples a caminho de dolorosas
desarmonias...
14
Alcoolofilia — Embora necessário para o organismo sujeito a climas frios, o
álcool em dosagens mínimas acelera a digestão, facilitando a diurese (5). No
entanto, pelas consequências sóçio-morais que acarreta, quando se perverte em
viciação criminosa, simples em começo e depois aberrante, é veículo de obsessores
cruéis,
(5) Alguns médicos falam sobre a desnecessidade do uso de alcoólicos
mesmo nos climas frios. — Nota do Autor espiritual.
ensejando, a alcoólatras desencarnados, vampirismo impiedoso, com consequentes
lesões do aparelho fisiopsíquico.
Sexualidade — Sendo porta de santificação para a vida, altar de preservação da
espécie, é, também, veículo de alucinantes manifestações de mentes atormentadas,
em estado de angústia pertinaz. Através dele, sintonizam consciências
desencarnadas em indescritível aflição, mergulhando, em hospedagem violenta nas
mentes encarnadas, para se demorarem em absorções destruidoras do plasma
nervoso, gerando obsessões degradantes...
Estupefacientes — Á frente da ação deprimente de certas drogas que atuam
nos centros nervosos, desbordam-se os registros da subconsciência, e impressões
do pretérito ressurgem, misturadas às frustrações do presente, já em depósito,
realizando conúbio desequilibrante, através do qual desencarnados em desespero
emocional se locupletam, ligando-se aos atormentados da Terra, conjugando à sua
a loucura deles, em possessão selvagem...
Alienação mental — Sendo todo alienado, conforme o próprio verbete denuncia,
um ausente, a alienação mental começa, muitas vezes, quando o espírito retoma o
corpo pela reencarnação em forma de limitação punitiva ou de corrigenda, ligado a
credores dantanho, em marcha inexorável para o aniquilamento da razão, quando
não se afirma nas linhas do equilíbrio moral...
Glutoneria, maledicência, ira, ciúme, inveja, soberba, avareza, medo, egoísmo,
são estradas de acesso para mentes desatreladas do carro somático em tormentosa
e vigilante busca na Erraticidade, sedentas de comensais, com os quais, em
conexão segura, continuam o enganoso banquete do prazer fugido...
Por essa razão, a Doutrina Espírita, em convocando o homem ao amor e ao
estudo, prescreve como norma de conduta o Evangelho vivo e atuante — nobre Tratado
de Higiene Mental — através de cujas lições haure o espírito vitalidade e
renovação, firmeza e dignidade, ensinando a oração que enseja comunhão com
Deus, prescrevendo jejum, ao crime e continência em relação ao erro, num vademecum
salvador para uma existência sadia na Terra, com as vistas voltadas para
uma vida espiritual perfeita.
*
O problema da obsessão, sob qualquer aspecto considerado, é também
problema do próprio obsidiado.
Atormentada por evocações fixadas nas telas sensíveis do pretérito, a mente
encarnada se encontra ligada à desencarnada, sofrendo, a princípio, sutis desequilíbrios
que depois se assenhoreiam da organização cerebral, gerando deplorável
estágio de vampirização, no qual vítima e verdugo se completam em conjugação dolorosa
e prolongada.
15
A etiologia das obsessões é complexa e profunda, pois que se origina nos
processos morais lamentáveis, em que ambos os comparsas da aflição dementante
se deixaram consumir pelas vibrações degenerescentes da criminalidade que
passou, invariàvelmente, ignorada da coletividade onde viveram como protagonistas
do drama ou da tragicomédia em que se consumiram.
Reencontrando-se, porém, sob o impositivo da Lei inexorável da Divina Justiça,
que estabelece esteja o verdugo jugulado à vítima, pouco importando o tempo e a
indumentária que os distancia ou caracteriza, tem Início o comércio mental, às
vezes aos primeiros dias da concepção fetal, para crescer em comunhão acérrima
no dia-a-dia da caminhada carnal, quando não precede à própria concepção...
Simples, de fascinação e de subjugação, consoante a classificação do
Codificador do Espiritismo, é sempre de difícil extirpação, porqüanto o obsidiado, em
si mesmo, é um enfermo do espírito.
Vivendo a inquietação íntima que, lenta e seguramente, o desarvora, procede,
de início, na vida em comum, como se se encontrasse equilibrado, para, nos instantes
de soledade, deixar-se arrastar a estados anômalos sob as fortes tenazes do
perseguidor desencarnado.
Ouvindo a mensagem em caráter telepático transmitida pela mente livre,
começa por aceder ao apelo que lhe chega, transformando-se, por fim, em diálogos
nos quais se deixa vencer pela pertinácia do tenaz vingador.
Justapondo-se sutilmente cérebro a cérebro, mente a mente, vontade dominante
sobre vontade que se deixa dominar, órgão a órgão, através do perispírito pelo qual
se identifica com o encarnado, a cada cessão feita pelo hospedeiro, mais coercitiva
se faz a presença do hóspede, que se transforma em parasita insidioso,
estabelecendo, depois, e muitas vezes em definitivo enquanto na luta carnal, a
simbiose esdrúxula, em que o poder da fixação da vontade dominadora consegue
extinguir a lucidez do dominado, que se deixa apagar...
Em toda obsessão, mesmo nos casos mais simples, o encarnado conduz em si
mesmo os fatores predisponentes e preponderantes — os débitos morais a resgatar
— que facultam a alienação.
Descuidado quase sempre dos valores morais e espirituais — defesas
respeitáveis que constroem na alma um baluarte de difícil transposição —, o
candidato ao processo obsessivo é irritável, quando não nostálgico, ensejando pelo
caráter impressionável o intercâmbio, que também pode começar nos instantes de
parcial desprendimento pelo sono, quando, então, encontrando o desafeto ou a sua
vítima dantanho, sente o espicaçar do remorso ou o remorder da cólera, abrindo as
comportas do pensamento aos comunicados que logo advirão, sem que se possa
prever quando terminará a obsessão, que pode alongar-se até mesmo depois da
morte...
Estabelecido o contacto mental em que o encarnado registra a interferência do
pensamento invasor, soa o sinal alarmante da obsessão em pleno desenvolvimento...
Nesse particular, o Espiritismo, e somente ele, por tratar do estudo da (natureza
dos Espíritos», possui os anticorpos e sucedâneos eficazes para operar a libertação
do enfermo, libertação que, no entanto, muito depende do próprio paciente, como
em todos os processos patológicos atendidos pelas diversas terapêuticas médicas.
Sendo o obsidiado um calceta, um devedor, é imprescindível que se disponha
ao labor operoso pelo resgate perante a Consciência Universal, agindo de modo
positivo, para atender às sagradas imposições da harmonia estabelecida pelo
16
Excelso legislador.
Muito embora os desejos de refazimento moral por parte do paciente espiritual,
é imperioso que a renovação íntima com sincero devotamento ao bem lhe confira
os títulos do amor e do trabalho, de forma a atestar a sua real modificação em
relação à conduta passada, ensejando ao acompanhante desencarnado,
igualmente, a própria iluminação.
Nesse sentido, a interferência do auxílio fraterno, por outros corações
afervorados à prática da caridade, é muito valiosa, favorecendo ao desencarnado a
oportunidade de adquirir conhecimentos através da psicofonia atormentada, na qual
pode haurir força e alento novo para aprender, meditar, perdoar, esquecer...
No entanto, tal empreendimento, nos moldes em que se fazem necessários, não
é fácil.
Somente poucos Núcleos, dentre os que se dedicam a tal mister — o da
desobsessão —, se encontram aparelhados, tendo-se em vista a tarefa que lhes
cabe nos seus quadros complexos...
Na desobsessão, a cirurgia espiritual se faz necessária, senão imprescindível,
muitas vezes, para que os resultados a colimar sejam conseguidos. Além desses,
trabalhos especiais requisitam abnegação e sacrifício dos cooperadores
encarnados, com natural doação em larga escala de esforço moral valioso, para a
manipulação das condições mínimas psicoterápicas, no recinto do socorro, em favor
dos desvairados a atender...
Nesse particular, a prece, igualmente, conforme preconiza Allan Kardec, «é o
mais poderoso meio de que se dispõe para demover de seus propósitos maléficos o
obsessor».
Por isso, em qualquer operação socorrista a que você seja chamado, observe a
disposição moral do seu próprio espírito e ore, alçando-se a Jesus, a Ele pedindo
torná-lo alvo dos Espíritos Puros, por meio dos quais, e somente assim, você
poderá oferecer algo em favor de uns e outros: obsessores e obsidiados.
Examine, desse modo, e sonde o mundo íntimo constantemente para que se
não surpreenda de um momento para outro com a mente em desalinho, atendendo
aos apelos dos desencarnados que o seguem desde ontem, perturbados e infelizes,
procurando, enlouquecidos, «com as próprias mãos fazer justiça», transformados
em verdugos da sua serenidade.
Opere no bem com esforço e perseverança para que o seu exemplo e a sua
luta solvam-sarando a dívida-enfermidade que o assinala, libertando-o da áspera
prova antes de você caminhar, aflito, pela senda dolorosa... e purificadora.
Em qualquer circunstância, ao exercício nobre da mediunidade com Jesus,
tanto quanto ao sublime labor desenvolvido pelas sessões sérias de desobsessão,
compete o indeclinável ministério de socorro aos padecentes da obsessão no
sentido de modificarem as expressões de dor e angústia que vigem na Terra sofrida
dos nossos dias.
*
a) Obsessões especiais
Ninguém se equivoque! Obsessores há desencarnados, exercendo maléfica
ínfluenciação sobre os homens, e encarnados, de mente vigorosa, exercendo
17
pressão deprimente sobre os deambulantes da Erraticidade.
O comércio existente entre os Espíritos e as criaturas da Terra, em regime de
perseguição, é paralelo ao vigente entre os homens e os que perderam a indumentária
física.
Obsessões especiais também identificamos, que são produzidas por
encarnados sobre encarnados.
O pensamento é sempre o dínamo vigoroso que emite ondas e que registra
vibrações, em intercâmbio ininterrupto nas diversas faixas que circulam a Terra.
Mentes viciadas e em tormento, não poucas vezes escravas da monoidéia
obsessiva, sincronizam com outras mentes desprevenidas e ociosas, gerando
pressão devastadora.
Aguilhões frequentes perturbam o comportamento de muitas criaturas que se
sentem vinculadas ou dirigidas por fortes constrições nos painéis mentais, inquietantes
e afligentes... Muitos processos graves de alienação mental têm início
quando os seres constrangidos por essa força possuidora, ao invés de a repelirem,
acalentam-lhe os miasmas pertinazes que terminam por as-senhorear-se do campo
em que se espalham.
Em casos dessa natureza, o agente opressor influencia de tal forma o paciente
perturbado que não é raro originar-se o grave problema do vampirismo espiritual por
processo de absorção do plasma mental. Quando em parcial desprendimento pelo
sono, o espírito parasita busca a sua vítima, irresponsável ou coagida, prosseguindo
no nefando consórcio nessas horas que são reservadas para edificação espiritual e
renovação da paisagem orgânica. Produzida a sintonia deletéria mui dificilmente
aqueles que alojam os pensamentos infelizes conseguem libertar-se.
Nos diversos problemas obsessivos, há que examiná-los para selecionar os que
procedem do continente da alma encarnada e os que se vinculam aos quadros
aflitivos do mundo espiritual.
O ódio tanto quanto o amor desvairado constituem elementos matrizes dessas
obsessões especiais. O ódio, pela fixação demorada acerca da vindita, cria um condicionamento
psíquico que emite ondas em direção segura, envolvendo o ser
almejado que, se não se encontra devidamente amparado nos princípios superiores
da vida, capazes de destruírem as ondas invasoras, termina por se deixar algemar.
E o amor tresloucado que se converte em paixão acerba, devido ao tormento que se
impõe quanto à posse física do objeto requestado, conduz o espírito que está
atormentado à visitação, a princípio de alma nos períodos do sono reparador, até
criar a intercomunicação que degenera em aflitivo quadro de desgaste orgânico e
psíquico, não somente do vampirizado, como também mediante a alucinação do
vampirizador.
Em qualquer hipótese, no entanto, as diretivas clarificantes da mensagem de
Jesus são rotas e veículos de luz libertadora para ensejar a uns e outros, obsidiados
e obsessores, os meios de superação.
Nesse sentido, a exortação de Allan Kardec em torno do trabalho é de uma
eficácia incomum, porque o trabalho edificante é mecanismo de oração
transcendental e a mente que trabalha situa-se na defensiva. A solidariedade é
como uma usina que produz a força positiva do amor, e, como o amor é a causa
motriz do Universo, aquele que se afervora à mecânica da solidariedade sintoniza
com os Instrutores da ordem, que dirigem o Orbe. E a tolerância, que é a
manifestação desse mesmo amor em forma de piedade edificante, transforma-se
em couraça de luz, vigorosa e maleável, capaz de destruir os petardos do ódio ultriz
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ou os projéteis do desejo desordenado, porqüanto, na tolerância fraternal, se
anulam as vibrações negativas desta ou daquela procedência.
Assim sendo, a tríade recomendada pelo Egrégio Codificador reflete a ação, a
oração e a vigilância preconizadas por Jesus — processos edificantes de saúde
espiritual e ponte que alça o viandante sofredor da Terra ao planalto redentor das
Esferas Espirituais, livre de toda a constrição e angústia.
b) Perante obsessores
Para que você atinja a plenitude da harmonia íntima, cultive a oração com
carinho e o devotamento com que a mãe atende ao sagrado dever de amamentar o
filho.
A prece é uma lâmpada acesa no coração, dareando os escaninhos da alma.
Encarcerado na indumentária carnal, o espírito tem necessidade de comunhão
com Deus através da prece, tanto quanto o corpo necessita de ar puro para prosseguir
na jornada.
Muitos cristãos modernos, todavia, descurando do serviço da prece, justificam a
negligência com aparente cansaço, como se a oração não se constituísse
igualmente em repouso e refazimento, oferecendo clima de paz e ensejo de
renovação interior.
Mente em vibração frequente com outras mentes em vibração produz, nos
centros pensantes de quem não está afeito ao cultivo das experiências psíquicas de
ordem superior, lamentáveis processos de obsessão que, lentamente, se
transformam em soezes enfermidades que minam o organismo até ao
aniquilamento.
A princípio, como mensagem invasora, a influência sobre as telas mentais do
incauto é a idéia negativa não percebida. Só mais tarde, quando as impressões
vigorosas se fixam como panoramas íntimos de difícil eliminação, é que o invigilante
procura o benefício dos medicamentos de resultados inócuos.
Atribulado com as necessidades imperiosas do «dia-
-a-dia», o homem desatento deixa-se empolgar pela instabilidade emocional,
franqueando as resistências fisiopsíquicas às vergastadas da perturbação espiritual.
Vivemos cercados, na Terra, daqueles que nos precederam na grande jornada
da desencarnação.
Em razão disso, somos o que pensamos, permutando vibrações que se
harmonizam com outras vibrações afins.
Como é natural, graças às injunções do renascimento, o homem é impelido à
depressão ou ao exaltamento, vinculando-se aos pensamentos vulgares compatíveis
às circunstâncias do meio, situação e progresso.
Assim, faz-se imprescindível o exercício da prece mental e habitual para
fortalecer as fulgurações psíquicas que visitam o cérebro, constituindo a vida normal
propícia à propagação do pensamento excelso.
Enquanto o homem se descuida da preservação do patrimônio divino em si
mesmo, verdugos da paz acercam-se da residência carnal, ameaçando-lhe a
felicidade.
Endividado para com eles, faz-se mister ajudá-los com os recursos valiosos da
virtude, palmilhando as sendas honradas, mesmo que urzes e cardos espalhados
lhe sangrem os pés.
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Todos renascemos para libertar-nos do pretérito culposo em cujos
empreendimentos fracassamos.
E como a dívida se nutre do devedor, enquanto não nos liberamos do
compromisso, ficamos detidos na retaguarda...
É por esse motivo que o Apóstolo dos gentios nos adverte quanto à «nuvem)
que nos acompanha, revelando-nos a continuada companhia dos desafetos
desencarnados.
*
Exercite-se, assim, no ministério da oração, meditando quanto às inadiáveis
necessidades de libertação e progresso.
Cultive a bondade, desdobrando os braços da indulgência de modo a alcançar
os que seguem desatentos e infelizes, espalhando desconforto e disseminando a
loucura.
Renove as disposições íntimas e, quando aquinhoado com os ensejos de falar
com esses seres de mente em desalinho, perturbados no Mundo Espiritual, una-se
de amor e compreenda-os, ajudando quanto lhe seja possível com a humildade e a
renúncia.
E recorde que o Mestre, antes de visitado pelos verdugos espirituais das Zonas
Trevosas, recolhia-se à oração, recebendo-os com caridade fraternal, como Rei de
todos os Espíritos e Senhor do Mundo.
Você não ficará indene à agressão deles...
Resguarde-se, portanto, e, firmado no ideal sublime com que o Espiritismo
honra os seus dias, alce-se ao amor, trabalhando infatigàvelmente pelo bem de
todos, com o coração no socorro e a mente em Jesus-Cristo, comungando com as
Esferas Mais Altas, onde você sorverá forças para vencer todas as agressões de
que for vítima, e sentirá que, orando e ajudando, a paz continuará com você.
c) Perante obsidiados
Sempre que há obsessão convém analisar em profundidade a questão da
perfeita sintonia que mantém o obsidiado com a entidade obsidente.
Todo problema obsessivo procede sempre da necessidade de ambos os
espíritos em luta aflitiva, vítima e algoz, criarem condições de superação das
próprias inferioridades para mudar de clima psíquico, transferindo-se
emocionalmente para outras faixas do pensamento.
O obsessor não é somente o instrumento da justiça superior que dele se utiliza,
mas também espírito profundamente enfermo e infeliz, carecente da terapêutica do
amor e do esclarecimento para sublimação de si mesmo.
O obsidiado, por sua vez, vinculado vigorosamente à retaguarda — assaltado,
quase sempre, pelos fantasmas do remorso inconsciente ou do medo cristalizado, a
se manifestarem como complexos de inferioridade e culpa - conduz o fardo das
dívidas para necessário reajustamento, através do abençoado roteiro carnal.
Quando jungido à expiação inadiável, por acentuada rebeldia em muitos
avatares, renasce sob o estigma da emoção torturada, apresentando desde o
berço os traços profundos das ligações com os comensais que se lhe imantam em
intercâmbio fluídico de consequências imprevisíveis.
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Atendido, porém, desde o ventre materno com medicação salutar, traz no
perispírito as condições próprias à «hospedagem», na ocasião oportuna, que se
encarrega de disciplinar o verdugo não esquecido pela vida.
Outras vezes, se durante longa jornada física não reparou o carma por meio de
ações edificantes, não raro é surpreendido na ancianidade pela presença incômoda
daqueles a quem prejudicou, experimentando enfermidades complicadas, difíceis de
serem identificadas, ou distúrbios psíquicos que se alongarão mesmo após o
decesso orgânico.
Em qualquer hipótese, no entanto, acenda a luz do conhecimento espiritual na
mente que esteja em turvação, nesse íntimo conturbado.
Nem piedade inoperante.
Nem palavrório sem a tônica do amor.
A terapia espírita, em casos que tais, é a do convite ao enfermo para a
responsabilidade, conclamando-o a uma auto-análise honesta, de modo a que ele
possa romper em definitivo com as imperfeições, reformulando propósitos de saúde
moral e mergulhando nos rios claros da meditação para prosseguir revigorado,
senda a fora... Diante de um programa de melhoria íntima desatam-se os liames da
vinculação entre os dois espíritos — o encarnado e o desencarnado, e o
perturbador, percebendo tão sincero esforço, se toca, deixando-se permear pelas
vibrações emanadas da sua vítima, agora pensando em nova esfera mental.
Só excepcionalmente não se sensibilizam os sicários da mente melhorada.
Nesse caso, a palavra esclarecedora do evangelizador nos serviços especializados
da desobsessão, os círculos de prece, os agrupamentos da caridade fraternal, sob
carinhosa e sábia administração de Instrutores Abnegados, se encarregam de
consolidar ou libertar em definitivo os que antes se batiam nas liças do duelo
psíquico, ou físico quando a constrição obsidente é dirigida à organização somática.
Quando se observam os sinais externos dessa anomalia, já se encontra
instalada a afecção dolorosa.
Assim considerando, use sempre a Doutrina Espírita como medida profilática,
mesmo porque, se até hoje não foi afetada a sua organização fisiopsíquica, isto não
isenta de, no futuro — tendo em vista que, aprendendo e refazendo lições como é
do programa da reencarnação para nós todos —, o seu «ontem» poder repontar
rigoroso, «hoje» ou «amanhã», chamando-o ao ajuste de contas com a consciência
cósmica que nos dirige.
Perante obsidiados aplique a paciência e a compreensão, a caridade da boa
palavra e do passe, o gesto de simpatia e cordialidade; todavia, a pretexto de
bondade não concorde com o erro a que ele se afervora, nem com a preguiça
mental em que se compraz ou mesmo com a rebeldia constante em que se
encarcera. Ajude-o quanto possa; no entanto, insista para que ele se ajude, contribuindo
para com a ascensão do seu próprio espírito auxiliar aquele outro ser que,
ligado a ele por imposição da justiça divina, tem imperiosa necessidade de evoluir
também.
d) Porta de luz
Imagine um dédalo em sombras, imensurável, hórrido, onde se demoram
emanações morbíficas provenientes de células em disjunção; charco miasmático
carregado de lodo instável, tendo por céu nimbos borrascosos sacudidos por
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descargas elétricas; paul sombrio que agasalha batráquios e ofídios, répteis e
toda a fauna asquerosa; região varrida por ventos ululantes, longe da esperança
onde uma tênue e célere perspectiva de paz não tremelha...
Considere-se relegado a esse labirinto nefasto, longe de qualquer amparo, a
mergulhar a mente em febre nos abismos do remorso que, fantasma incansável, assume
proporçôes inimagináveis; sob o estrugir de recordações vigorosas das quais
não se consegue furtar, ressumando erros propositais e casuais com que se distanciou
da paz; malgrado necessite de esperança ou refazimento, silêncio para meditar
ou uma aragem fresca para renovação, escute, inerme, outros companheiros de
desdita em imprecaçôes e lamentos, dominados pela própria sandice; onde a razão
se fez sicário impiedoso, sem entranhas, e se encarrega, ela mesma, de justiçar
com azorragues em forma de cilícios que lhe são involuntários; sem equilíbrio para
uma evocação suave, um painel de ternura, amor ou prece...
Avalie o significado de uma porta libertadora, que sübitamente se abrisse,
convidativa, banhada que fosse de fraca mas significativa luz, através da qual,
transposta a mínima distância entre você e ela, poderia ouvir consolo, chorar sem
desespero, lenindo as próprias angústias, e repousar; além da qual, doce canto
embalante ciciasse uma melopeia conhecida ou uma berceuse reconfortante; após
vencida, revisse paisagem esquecida e agradável e, dilatados os ouvidos,
escutasse a pronúncia de um terno nome, em relação a você: irmão! —depois do
que, roteiro e medicamento chegassem salvadores, inaugurando experiência feliz,
transpassada a expiação inominável...
Você bendiria, certamente, mil vezes, esse portal de acesso.
Tal região, não muito longe de nós, entre os desencarnados e os encarnados,
são os vales purgatoriais para os que transpõem o umbral da morte narcotizados
pela insânia e pelo crime.
Tal porta fascinante é a mediunidade socorrista de que você se encontra
investido na tessitura física, ao alcance de um pouco de disciplina e abnegação.
Examinando quanto você gostaria de receber auxílio se ali estivesse, pense nos
que lá estão e não demore mais em discussões inócuas ou em desculpismo injustificável.
Corra ao socorro deles, os nossos companheiros na dor, iludidos em si mesmos,
e abra-lhes a porta de luz da oportunidade consoladora.
Mergulhe o pensamento nos exórdios do amor do Cristo e, mesmo sofrendo,
atenda a estes que sofrem mais.
Não lhe perguntarão quem você é, donde vem, como se apresenta, pois não
lhes importa; antes, sim, desejarão saber o que você tem em nome de Jesus para
lhes dar. Compreenderão mais tarde a excelência da sua fé, o valor do seu
devotamento, a expressão da sua bondade, a extensão das suas necessidades e
também estenderão braços na direção do seu espírito.
Agora, necessitam de paz e libertação, e Jesus precisa de você para tal mister.
Não lhes atrase o socorro, nem demore sua doação. Possivelmente você já
esteve ali antes, talvez seja necessário estagiar por lá..
Se você conceber que o seu esforço é muito, para os ajudar, mentalize Jesus
transferindo-se dos Cimos da Vida para demorar-se no Vale de Sombras por vários
anos e prosseguir até agora conosco...
O Espiritismo que lhe corrige a mediunidade em nome do Cristo — Espiritismo
que lhe consola e esclarece — ensina-lhe que felicidade é moeda cujo sonido
somente produz festa íntima quando retorna daquele a quem se oferece e vem na
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direção do doador.
Doando-se, em silêncio, longe dos que aplaudem faculdades mediúnicas,
coloque suas possibilidades a benefício dos sofredores, nas sessões
especializadas, e granjeará um crédito de bênçãos que lhe ensejará, também,
liberdade e iluminação, à semelhança dAquele que, Médium do Pai, se fez o doce
irmão de nós todos, milênios a fora.
e) Reuniões sérias
As reuniões espíritas de qualquer natureza devem revestir-se do caráter
elevado da seriedade.
«Não sendo os Espíritos seres outros que não as almas dos homens» que
viveram na Terra, não podem eles isentar-se da comunhão imperiosa, resultante
das leis da afinidade. Nesse particular, convém não esquecer que os Espíritos
desencarnados, pelo simples fato de estarem despidos da indumentária carnal, não
são melhores nem piores que os homens, mas continuação destes, plasmados pelo
que cultivaram, fizeram e se aprazeram.
Elegendo como santuário qualquer lugar onde se vivam as lições incorruptíveis
de Jesus, o Espiritismo ensina que o êxito das sessões se encontra na dependência
dos fatores-objetivos que as produzem, das pessoas que as compõem e do
programa estabelecido.
Como requisitos essenciais para uma reunião séria consideremos, pois, as
intenções, o ambiente, os membros componentes, os médiuns, os doutrinadores.
As intenções, fundamentadas nos preceitos evangélicos do amor e da caridade, do
estudo e da aprendizagem, são as que realmente atraem os Espíritos Superiores,
sem cuja contribuição valiosa os resultados decaem para a frivolidade, a monotonia
e não raro para a obsessão.
Não sendo apenas o de construção material, o ambiente deve ser elaborado e
mantido por meio da leitura edificante e da oração, debatendo-se os princípios
morais capazes de criar uma atmosfera pacificadora, otimista e refazente.
Os membros componentes devem esforçar-se por manter os requisitos mínimos
de conseguirem instruir-se, elevando-se moral, mental e espiritualmente, através do
devotamento contínuo, incessante, para a fixação da idéia espírita de elevação que
lhes deve tornar pauta de conduta diária.
Os médiuns, semelhantemente aos demais participantes, são convidados ao
policiamento interior das emoções, dos pensamentos, das palavras e da conduta,
para se tornarem maleáveis às instruções de que porventura poderão ser
instrumento. A faculdade mediúnica não os isenta das responsabilidades morais
imprescindíveis àprópria renovação e esclarecimento, pois que, mais facilmente, os
Espíritos Puros se aprazem de utilizar aqueles instrumentos dóceis e esclarecidos,
capazes de lhes facilitarem as tarefas a que se propõem.
Os doutrinadores têm igualmente a obrigação de se evangelizar, estudando a
Doutrina e capacitando-se para entender e colaborar nos diversos misteres do serviço
em elaboração. Na mesma linha de deveres dos médiuns, não se podem
descurar do problema psíquico da sintonia, a fim de estabelecerem contacto com os
Diretores do Plano Espiritual que supervisionam os empreendimentos de tal
natureza.
As reuniões espíritas são compromissos graves assumidos perante a
23
consciência de cada um, regulamentados pelo esforço, pontualidade, sacrifício e
perseverança dos seus membros.
Somente áqueles que sabem perseverar, sem postergarem o trabalho de
edificação interior, se fazem credores da assistência dos Espíritos interessados na
sementeira da esperança e da felicidade na Terra — programa sublime presidido
por Jesus, das Altas Esferas.
Nas reuniões sérias, os seus membros não podem compactuar com a
negligência aos deveres estabelecidos em prol da ordem geral e da harmonia, para
que a infiltração dos Espíritos infelizes não as transformem em celeiros de
balbúrdia, em perfeita conexão com a desordem e o caos.
Invariàvelmente, as reuniões sérias de estudo ou socorro mediúnico se
convertem em educandários para desencarnados que são trazidos por seus
mentores. São atraídos pela própria curiosidade ou interessados na sua
destruição...
Sendo a sociedade do Mundo Espiritual constituída daqueles que viveram na
Terra, ou como aí, não faltam os ociosos, os de mente viciada, os parasitas, os
perseguidores inveterados, os obsessores cruéis, os infelizes de todo o jaez que
deambulam solitários ou em magotes, isolados em si mesmos ou em colônias
perniciosas, buscando presas irresponsáveis e inconscientes para o comércio da
vampirização...
Conseguintemente, necessárias se fazem muita vigilância e observação,
mesmo porque grande parte desses visitadores é trazida para que o exemplo dos
encarnados lhes constitua lição viva de despertamento, mudando-lhes a direção
mental e interessando-os na solução dos afligentes problemas que os infelicitam e
maceram, mesmo quando disso não se apercebem ou fingem não os experimentar...
Para que uma sessão espírita possa interessar os Instrutores Espirituais, não
pode abstrair do elevado padrão moral de que se devem revestir todos os
participantes, pois que se o cenho carregado e sisudo na Terra pode apresentar um
homem como sendo de bem, em verdade, só a exteriorização dos seus fluídos —
isto é, a vibração do seu próprio espírito, que é resultante dos atos morais
praticados — o distingue das diversas criaturas, oferecendo material específico aos
Instrutores Desencarnados para as múltiplas operações que se realizam nos
abençoados núcleos espiritistas sérios, que têm em vista o santificante programa da
desobsessão espiritual.
f) Em oração
Senhor: — ensina-nos a respeitar a força do direito alheio na estrada do nosso
dever.
Ante as vicissitudes do caminho, recorda-nos de que no supremo sacrifício da
Cruz, entre o escárnio da multidão e o desprezo da Lei, erigiste um monumento à
justiça, na grandeza do amor.
Ajuda-nos, assim, a esquecer todo o mal, cultivando a árvore generosa do
perdão.
Estimula-nos à claridade do bem sem limites, para que o nosso entusiasmo na
fé não seja igual a ligeiro meteoro riscando o céu de nossas esperanças, para apagar-
se depois...
24
Concede-nos a felicidade ímpar de caminhar na trilha do auxílio porque, só
aí, através do socorro aos nossos irmãos, aprendemos a cultivar a própria
felicidade.
Tu que nos ensinaste sem palavras no testemunho glorioso da crucificação,
ajuda-nos a desculpar incessantemente, trabalhando dentro de nós mesmos pela
transformação do nosso espírito, na sucessão do tempo, dia a dia, noite a noite, a
fim de que, lapidado, possamos apresentá-lo a Ti no termo da nossa jornada.
Ensina-nos a enxergar a Tua Ressurreição sublime, mas permite também que
recordemos o suplício da Tua solidão, a coroa de espinhos, a cruz infamante e o
silêncio tumular que a precederam, como lições incomparáveis para nós, na hora do
sofrimento, quando nos chegue.
Favorece-nos com a segurança da ascensão aos Altos Cimos, porém não nos
deixes olvidar que após a jornada silenciosa durante quarenta dias e quarenta noites,
entre jejum e meditação, experimentaste a perturbação do mundo e dos
homens, em tentações implacáveis que, naturalmente, atravessarão também
nossos caminhos...
Dá-nos a certeza do Reino dos Céus, todavia não nos deixes esquecer que na
Terra, por enquanto, não há lugar para os que te servem, tanto quanto não o houve
para Ti mesmo, auxiliando-nos, entretanto, a viver no mundo, até à conclusão da
nossa tarefa redentora.
Ajuda-nos, Divino Companheiro, a pisar os espinhos sem reclamação, vencendo
as dificuldades sem queixas, porque é vivendo nobremente que fazemos jus a uma
desencarnação honrada como pórtico de uma ressurreição gloriosa.
Senhor Jesus, ensina-nos a perdoar, ajudando-nos a esquecer todo o mal, para
sermos dignos de Ti!
*
Não nos animaram a presunção e a veleidade de examinar, nos estudos do
presente livro, as enfermidades psíquicas clássicas, tais como, as esquizofrenias e
as parafrenias, as psicoses e neuroses, as oligofrenias e a paranóia de multíplice
manifestação, tanto quanto não cuidaremos das personalidades psicopáticas, as
dos dementes senis e outras de que cuida a Psiquiatria, embora sem o
conhecimento das causas anteriores das mesmas e que dizem respeito,
invariàvelmente, às vidas pregressas de tais pacientes.
Cuidaremos de convidar os interessados nos problemas da obsessão e no
ministério da desobsessão ao estudo paciente do Espiritismo, apresentando
algumas experiências e conotações nossas ao valioso material já existente, embora
ainda não suficiente para a rápida equação de tão importante questão.
Não pretendemos elaborar um tratado para a análise e a prática da
desobsessão espiritual. Estes são apontamentos singelos e despretenciosos,
mediante os quais trazemos o nosso pouco de fermento na esperança de conseguir
levedar parte da massa», conforme a autorizada palavra de Nosso Senhor Jesus-
Cristo, a Quem rogamos abençoar-nos o esforço e nos socorrer pela rota da própria
iluminação.
25
1
A família Soares
Terminados a leitura evangélica e o competente comentário tecido em breves
considerações, o dirigente da reunião proferiu expressiva oração, através da qual,
sensivelmente emocionado, rogou o auxílio das Esferas Superiores para a tarefa da
desobsessão.
Aqueles trabalhos faziam parte do programa de socorro a que se afervorava,
havia duas décadas, o irmão José Petitinga.
No santuário em que se desenvolviam os labores fraternais, o odor da caridade
sempre impregnava os sofredores de ambos os lados da vida, que ali aportavam
angustiados e afligidos.
Incorporando, o Benfeitor Saturnino ofereceu as palavras de consoladora
confiança com que habitualmente traçava as ligeiras diretrizes no ato da abertura da
sessão, atestando o concurso eficiente dos Obreiros da Espiritualidade, e, dirigindose
à irmã Amália, arrancou-a das cogitações dolorosas que a constringiam.
Experimentando singular amargura, a jovem tinha o semblante sulcado de dor e
o espírito singularmente trucidado...
Através de expressões carinhosas e alentadoras, o Instrutor Espiritual
esclareceu que fora programada para aquela noite a visita de indigitado
perseguidor, vinculado pelo pretérito delituoso à família Soares, ali representada,
naquele momento, pela moçoila comovida.
— Desde às vésperas — explicou, solícito —, fora providenciado o socorro a
Mariana, mais intimamente afinada com o visitante, que logo se utilizaria da mediunidade
psicofônica, em incorporação atormentada, tendo em vista as
circunstâncias do drama em andamento, que poderia colimar numa tragédia
irremissível.
Para consubstanciar o labor da noite — prosseguiu, gentil —, levaram-se em
conta os títulos de amor granjeados por Amália e sua genitora entre os Dirigentes
Espirituais da Casa.
Em verdade, Dona Rosa desde há muito experimentava pesado fardo de
aflições sem nome, que a esmagava lentamente. Muito jovem consorciara-se com
atormentado moço que, invigilante e descuidado dos nobres deveres da família,
permanecia ligado psiquicamente a vigorosos sicários desencarnados que o
perseguiam sem trégua...
Cobradores impiedosos seduziram-no desde cedo, levando-o a desenfreada
jogatina, premeditando, soezes, um dia assassiná-lo, através de uma sortida policial
no antro em que se refugiava para o cultivo da viciação danosa com outros não
menos atormentados comparsas, programa esse em andamento...
Embora as dificuldades financeiras a que se via atado, na condição de genitor
de seis filhos necessitados de assistência e melhor orientação, deixava-se ficar,
descuidado, noites a fio entre a expectativa de um lucro imaginoso e ilícito e a
perspectiva de uma fortuna impossível e desonesta. Enquanto minguavam os
recursos provenientes de modesta aposentadoria, não se esforçava ele por
completar as poucas moedas com expedientes extras ou exercitando outra
profissão.
Tal desequilíbrio do Sr. Mateus se manifestara desde muito cedo, em plena
26
juventude. Todavia, com o renascimento de Mariana, na condição de sua filha, estranha
recordação como que desatrelara reminiscências semi-apagadas que o
venciam implacavelmente, fazendo irrespirável a atmosfera do lar, nos breves
períodos de tempo que ali passava, agravando-se, à medida que a menina crescia,
e que ora culminava em ódio surdo e recíproco, a explodir com frequência
crescente, em ameaças infelizes que chegavam a graves cometimentos de parte a
parte.
A mãe aflita desde algum tempo se iniciara nas lições consoladoras do
Espiritismo, conduzindo Amélia, a mais dócil dos filhos, às fontes generosas e
cristalinas do Evangelho Restaurado.
Nos ensinamentos confortadores em torno das leis de causa e efeito, as duas
encontravam respostas lenificadoras para as ulcerações morais que dilaceravam o
lar amargurado, sustentando-as nas lutas de todos os dias.
Afervoradas e humildes participavam dos serviços de socorro aos
desencarnados na União Espírita Baiana sob a carinhosa direção do irmão
Petitinga, que lhes minorava, também, as aflições, com mãos generosas e cristãs.
Naquela noite, todavia, Dona Rosa fora constrangida a ficar em casa,
crucificada por superlativa agonia, aguardando o retorno de Mariana, que após
lamentavel atrito com o pai obsidiado se evadira, rebelde, entre azedas ameaças e
injustificadas atitudes, abandonando o calor doméstico, desfigurada pelo ódio e pela
insensatez, embora os dezesseis anos de idade não completos.
Orando, e tendo entregue as dores ao Senhor, a mãe se deixara ficar no lar,
enquanto Amélia acorrera, sofrida e preocupada, ao serviço da caridade, sufocando
as próprias lágrimas, dominada por incoercíveis presságios. O Templo Espírita de
comunhão com o Alto era a sua esfera de luz, abençoado reduto de consolo, no
qual hauria energias para prosseguir através dos pélagos das provações rudes,
conquanto necessárias ao próprio burilamento.
Feito o preâmbulo elucidativo em ligeiras nótulas, o instrutor solicitou a
indispensável concentração, desligando-se do médium Morais, por cuja faculdade
psicofônica deveria comunicar-se o inditoso perseguidor familiar.
Morais era dedicado médium de psicofonia inconsciente, que se oferecia com
expressivo carinho para o socorro aos desencarnados. Aliara à mediunidade bem
disciplinada excelente disposição ao trabalho da caridade entre os atormentados da
Terra. Aprendera com os Benfeitores Espirituais que o mais eficiente caminho para
o aprimoramento das faculdades mediúnicas ainda é o exercício constante das
qualidades morais, através da prática do bem indiscriminado e incessante. Assim,
educara-se na discrição ante as dificuldades do próximo e transformara-se em
cireneu de muitos seres caídos na luta. Por essa razão, havia nele os requisitos
indispensáveis ao exercício salutar da mediunidade, especialmente quando
Saturnino trazia à doutrinação Entidades infelizes ou perversas.
De semblante transfigurado em máscara de esgares agônicos, o médium
incorporou atro ser que, entre blasfêmias e expressões vulgares, exprobrava o
cometimento de o trazerem ali contra a sua vontade...
— Farei justiça — exclamou, espumejante. — A justiça sairá das minhas
próprias mãos. Judeu Asavero, tenho jornadeado sem descanso, após traído, a
sorver essa imensa e intérmina taça de fel e fezes que me envenena sem aniquilarme...
Envolvido carinhosamente pelos fluídos de Saturnino, o doutrinador,
particularmente emocionado, dirigiu-se ao comunicante, falando-lhe da renúncia e
27
do perdão como bases para a edificação da felicidade.
— O ódio — asseverou, Petitinga, bondoso — termina por vencer os que o
cultivam. Tóxico letal tem sua fonte na rebeldia que o vitaliza até que o amor, nas
bases em que o vivia Jesus, lhe extinga a nascente.
— Nunca perdoarei! — explodiu em atroada constrangedora. — O perdão é
fraqueza inominavel! Para os que encontraram na vingança a única razão de existir,
a simples idéia do perdão é qual raio fulminante, que carboniza... Nunca perdoarei,
mesmo que destruindo seja destruído...
— Não, meu irmão — redargüiu, pausado, o inspirado doutrinador. — Nada se
acaba. A vida não cessa. Encerra-se um ciclo numa faixa de evolução para
reaparecer noutra e desenvolver-se mais além. Destruir é mudar a aparência de
uma forma para renascer noutra. Embora ignorando as suas razões, as quais, todavia,
não justificam o tornar-se infeliz, distribuindo rancor e trucidando com tenazes
de vindita aqueles que se situam sob o comando da sua mente desarvorada,
encorajamo-nos a lembrá-lo da compaixão. Recorde-se daqueles que serão vítimas
da sua loucura, quando desejando ferir o seu desafeto irá, também, por sua vez,
dilacerar os sentimentos dos que amam o seu antigo ofensor... Não lhe comovem as
lágrimas, as vigílias intérminas nem a vida trucidada de uma mãe por expectativas
dolorosas? Teria você colocado no peito uma fornalha ardente em substituição ao
coração que ama?
— O amor — refutou, congestionado — é poesia para os que se comprazem
nas ilusões do corpo...
— O ódio, porém — considerou o evangelizador —, é nuvem que tolda a visão
da paisagem, entenebrecendo-a. Fantasma truanesco entorpece as mais altas aspirações
do espírito humano, conduzindo-o aos sombrios e intérminos corredores da
loucura, sem paz nem lume... Só o amor derrama sol nas almas, penetrando de
esperanças os seres. Experimente amar e, de pronto, perceberá diminuir a própria
dor.
— Amar? — exclamou, alucinado — Amor? Como amar se não poderei perdoar
nunca, pois que jamais conseguirei esquecer todo o mal que me fizeram os traidores
desalmados, cuja memória abjuro! A dor que me crucia fez-me perder a
noção do tempo e a realidade da vida. Meu viver transformou-se apenas no
intérmino buscar daqueles que me fulminaram, impiedosos, sem me terem
destruído, o que teria sido bênção em relação ao que padeço. Certamente que eles
esqueceram, sim... Eu, porém, nunca esqueci, jamais esquecerei!... Desde que se
acumpliciaram os dois para aniquilar-me — o que não conseguiram, sem dúvida —,
que a minha vida foi destroçada para sempre. A morte, que eu esperava ser um
lenitivo, quando fugi com o espírito pisoteado de vergonha e dor, em nefando
suicídio, ao invés de fazer-me desintegrar a consciência, mais ativou-a... Tenho
chorado, e o pranto se transforma em aço derretido, escaldante, rasgando-me a
face. Quando gritava, minha voz era recebida com doestes e zombarias inomináveis
por mil seres que me perseguiam... E a dor que me despedaçava foi adicionada à
dor acerba do suplício que me impusera para fugir... Morri sem morrer... E enquanto
a vermina me penetrava o recesso do espírito fustigado por mil dores, eles, os meus
algozes, gozavam, fruíam a juventude... Como se eu estivesse dirigido por duendes
sem entranhas, era arrastado, em alucinada desesperação, para junto deles, de
modo a vê-los, acompanhá-los, ouvi-los, e se me lançava sobre ambos e lhes
gritava a minha infinita desdita, os seus ouvidos não me escutavam... Oh!, nunca
poderei esquecer, perdoar, amar, nunca, nunca!...
28
O irmão Saturnino, semi-incorporado no venerando doutrinador, ergueu-o, e,
dirigindo-se ao perturbador-perturbado, em oração, começou a aplicar-lhe passes,
de modo a diminuir-lhe as agudíssimas exulcerações e torturas.
Branda claridade envolveu o comunicante, enquanto as mãos de Saturnino,
justapostas às de Petitinga, como depósitos de radiosa energia, que também se
exteriorizava do plexo cardíaco do passista, lentamente penetrou os centros de
força do desencarnado, como a anestesiar-lhe a organização perispiritual em
desalinho.
Com voz compassiva, o diretor dos trabalhos começou a exortar:
Durma, durma, meu irmão... O sono far-lhe-á bem. Procure tudo esquecer para
somente lembrar-se de que hoje é novo dia... Durma, durma, durma...
Banhado pela energia balsamizante e dominado pelas vibrações hipnóticas que
fluíam de Saturnino através de Petitinga, o perseguidor foi vencido por estranho
torpor, sendo desligado do médium por devotados assessores desencarnados, que
cooperavam no serviço de iluminação.
Prosseguindo os trabalhos de orientação, tendo em vista outros sofredores
desencarnados e antes do término da reunião, o Mentor voltou a incorporar-se para
esclarecer que, graças às bênçãos do Senhor, a primeira etapa do programa de
assistência à família Soares, naquela noite, fora coroada de êxito. Exortava todos
àoração intercessória, em benefício dos implicados naquele processo, prometendo
voltar ao problema na próxima oportunidade.
Proferida a oração gratulatória, foi encerrada a reunião.
29
2
Socorro espiritual
Chegando ao lar, Amália conduzia o espírito balsamizado e toda ela era alegria
que se desdobrava em esperanças. A presença do antigo inimigo desencarnado
que se comprazia em afligir os seus familiares, presença essa através da
interferência carinhosa do Benfeitor Espiritual, prenunciava bonanças em relação ao
futuro do seu lar. Era como se uma aragem houvesse de repente passado, deixando
a agradavel recordação do seu ameno frescor. Pelo caminho, fitando o firmamento,
tivera a impressão de que na transparência da noite leve os astros, luzindo ao
longe, acenassem promessas de paz, em salmodias imateriais que pareciam
poemas de amor em tom de confiança nos divinos desígnios.
Dona Rosa, em vigília, marcada pelos atrozes sofrimentos daquelas últimas
horas, recebeu a filha transmitindo a notícia do retorno de Mariana, com os olhos
umedecidos. A moça atormentada voltara a casa, através das mãos generosas de
Dona Aurelina, a velha ex-servidora doméstica, que era afeiçoada da família.
Sem saber o que ocorrera no Centro Espírita, a genitora tinha a certeza, porém,
de que a interferência do Alto, em forma de socorro inesperado, era a responsável
pelo imprevisto acontecimento. Não se cansava de louvar o Altíssimo, enquanto a
filha aturdida, que chegara com expressão de demência a desfigurar-lhe o rosto,
parecia agora repousar no leito modesto e asseado.
Enquanto Amália fazia ligeiro repasto, fez breve resumo dos sucessos da noite,
e com luminoso brilho nos olhos reportou-se ao ministério do esclarecimento,
transcorrido minutos atrás entre o Diretor Espiritual e ó encarniçado perseguidor.
Em seguida, e antes de se recolherem ao necessário repouso, as duas
buscaram o benefício da oração, envolvendo o Sr. Mateus que se demorava fora de
casa, atado à viciação que o atormentava, roubando ao corpo combalido as horas
irrecuperáveis de refazimento das fadigas do dia, em vibrações de amor e paz...
Ocorrera, porém, que, antes mesmo de iniciada a reunião socorrista, Saturnino
expedira Ambrósio, eficiente cooperador dos trabalhos de desobsessão, para que
este encaminhasse Mariana de volta à família. Informado, no próprio recinto
doméstico, por entidades ali residentes, quanto ao paradeiro da jovem, não lhe foi
difícil encontrá-la em Praça ajardinada, no centro da cidade. Percebeu, no entanto,
de imediato, que a moça se encontrava visivelmente perturbada por Entidades levianas,
encarregadas de darem prosseguimento ao clima da obsessão, embora a
ausência do verdugo responsável pela enfermidade em curso.
Aturdida desde o momento do incidente com o genitor, Mariana procurou as
ruas da cidade, tendo em mente a idéia de encontrar em Adalberto, o rapaz com
que se afinava sentimentalmente, o braço amigo de amparo, de modo a fugir do lar
que a infelicitava. Surda ira a compelia a tomar qualquer atitude, conquanto pudesse
libertar-se do jugo paterno...
O namorado, que trabalhava no comércio, somente à noite, após o serviço,
poderia escutá-la com a necessária calma para tomar as providências que o
problema exigia. Assim, combinaram o encontro para as 20 horas, no local em que
agora ela estava.
Supunha amar o jovem, embora reconhecendo nele os desvios habituais
naqueles que são indiferentes ao dever e à dignidade. A mãe, ela o sabia,
30
desaprovava aquela afeição, por constatar que ele era corrompido e leviano, a
ponto de viver experiências comprometedoras... Dona Rosa sentia, quase por
instinto, que aquele homem, ao invés de amar a sua filha, ainda não preparada para
as investiduras de um lar, como sem o necessário equilíbrio para acautelar-se das
ciladas das emoções em desgoverno, desejava arrancá-la do carinho defensivo da
família para arrojá-la nos desfiladeiros da miséria moral...
Ela, porém, o amava ou pelo menos supunha amá-lo. Aguardava-o com
tormentosa expectativa.
Como primeira providência, o vigilante mensageiro procurou desviar Adalberto
de buscar a sua enamorada, propiciando-lhe mal-estar súbito, através da aplicação
de fluídos no centro cardíaco, acentuando repentina indigestão. Logo após
demandou o lar de Dona Aurelina que, pelos laços de afeição à menina e aos seus,
poderia ser-lhe fácil instrumento para os fins do projeto em andamento.
Envolvendo a velha servidora em seus fluídos, procurou falar-lhe com imensa
ternura e forte vibração. A respeitável senhora não o escutou através dos ouvidos
materiais. No entanto, em forma de intuição, sentiu imperiosa necessidade de
demandar a rua, qual estivesse teleguiada, até à moça que, a sós, esperava o companheiro.
Vendo-a desfigurada, a bondosa senhora acercou-Se, assustada, e cingindo-a num
abraço de espontânea afetividade, envolveu-a nos fluídos de Âmbrósio, inconcientemente,
estabelecendo sensível permuta de energias, de modo a arrancá-la
dos liames dos Espíritos ociosos que a vitimavam...
Percebendo-a quase anestesiada, de olhar vago, a senhora, humilde e nobre,
inquiriu-a:
— Que faz a menina por estas bandas? Parece-me doente. Que se passa,
menina Mariana?
E como não colhesse de imediato qualquer resposta, voltou à indagação:
— Que acontece, menina? Alguém em casa está mal? Desperte, minha filha!
E sacudindo-a com carinho, encostou a cabeça da jovem no seu ombro e
dispôs-se a escutá-la com tal naturalidade que a enferma, como que retornando
momentaneamente à realidade e vendo-se envolta no carinho de que necessitava,
relatou entre soluços os maus sucessos do dia, informando do seu desejo de nunca
mais retornar ao lar...
A delicada interlocutora escutou-a com serenidade e, seguramente inspirada
pelo Benfeitor, concitou-a a irem à sua própria casa, onde ela providenciaria uma
refeição refazente, incumbindo-se de informar a Adalberto sobre a mudança do local
de encontro.
Simultaneamente Ambrósio exprobrou com energia o comportamento dos
Espíritos viciosos ali presentes, libertando a atormentada jovem das suas forças
deletérias e deprimentes.
Sem quase opor resistência, Mariana aceitou o alvitre, e amparada
generosamente por Dona Aurelina demandou o domicílio daquela servidora.
Feita ligeira refeição, ainda conduzida pelo assistente de Saturnino, Dona
Aurelina falou a Mariana das preocupações maternas e suas aflições, do perigo que
uma jovem poderia experimentar nas mãos de um moço apaixonado e sem o devido
critério moral, das conseqüências que poderiam advir de um gesto impensado, e,
como se falasse à própria filha, com lágrimas, conseguiu convencê-la a retornar a
casa, enquanto meditava planos para o futuro, filtrando, assim, o pensamento da
Entidade Desencarnada.
31
Sentindo-se, imensamente cansada e dominada pela branda energia da
amiga idosa, a jovem aceitou a sugestão e, dessa forma, Dona Aurelina se
transformou no anjo da alegria para a agoniada genitora que aguardava a filha de
volta.
Concluída a tarefa, Anbrósio retornou ao trabalho espiritual a fim de apresentar
a Saturnino os resultados da investidura.
Os trabalhos se aproximavam do encerramento.
Compreensivelmente jubiloso, o Mentor Espiritual expressou sua gratidão ao
Assistente e informou que logo mais, quando todos se recolhessem ao leito, teria
continuação a tarefa da desobsessão, quando ele pretendia retomar as diretrizes do
trabalho, convocando diversos dos envolvidos no processo perturbador e os membros
da Casa para um encontro fora do corpo, quando as bênçãos do sono
conseguissem libertar parcialmente alguns dos implicados...
Ambrósio compreendeu a magnitude do serviço e postou-se aguardando
instruções.
A noite ia avançada quando Saturnino trouxe ao recinto das sessões, em parcial
desdobramento, os irmãos Petitinga, Dona Rosa, as filhas Amália e Mariana e nós.
O venerando trabalhador da Seara Espírita, habituado às incursões no Mundo
Espiritual, embora ainda vinculado à roupagem carnal, apresentava-se calmo e lúcido,
perfeitamente familiarizado com experiências de tal natureza. Dona Rosa e as
filhas, no entanto, pareciam atemorizadas na sua semilucidez, embora o amparo
vigoroso do Instrutor que delas cuidava com carinho paternal. (*)
O assistente Ambrósio e os demais cooperadores desencarnados se
encarregavam de localizar os recém-chegados na sala de trabalhos, enquanto o
Benfeitor Saturnino cuidava das providências finais. Concluídas as tarefas
preliminares, deu entrada no recinto, em sono hipnótico, carinhosamente trazida por
dois enfermeiros espirituais, a Entidade que se comunicara horas antes.
Embora o ressonar agitado, o visitante refletia a angústia em que se debatia,
deixando ver as marcas profundas em ulcerações na região da glote, que se apresentava
purulenta, assinalando os danos cruéis do autocídio injustificável.
Localizado em leito próximo, continuou assistido pelos que o trouxeram.
Logo, porém, que Mariana o viu, conquanto não o pudesse identificar de pronto,
começou a experimentar significativa inquietude que se foi transformando em
desespero
(*) “401. Durante o sono, a alma repousa como o corpo?
“Não, o Espírito jamais está inativo. Durante o sono, afrouxam-se os laços
que o prendem ao corpo e, não precisando este então da sua presença, ele se
lança pelo espaço e entra em relação mais direta com os outros Espíritos.”
“402. Como podemos Julgar da liberdade do Espírito durante o sono?
“Pelos sonhos. Quando o corpo repousa, acredita-o, tem o Espírito mais
faculdades do que no estado de vigília. Lembra-se do passado e algumas
vezes prevê o futuro. Adquire maior potencialidade e pode pôr-se em
comunicação com os demais Espírintos, quer deste mundo, quer do outro.
Dizes frequentemente:
Tive um sonho extravagante, um sonho horrível, mas absolutamente
inverossimil. Enganas-te. É amiude uma recordação dos lugares e das coisas
que viste ou que verás em outra existência ou em outra ocasião. Estando
entorpecido o corpo, o Espírito trata de quebrar seus grilhões e de investigar
32
no passado ou no futuro.”
(“O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec. 29ª Edição da FEB. Parte 2ª —
Capítulo 8. Recomendamos ao leitor o exame de todo o capítulo referido para
melhor compreensão da série de estudos aqui apresentados. — Nota do Autor
espiritual.
e pavor. O Instrutor, no entanto, solícito, acercou-se dela e aplicou-lhe energias
anestesiantes, de modo a deixá-la em tranquilidade suficiente para os bons resultados
da operação em pauta.
Nesse momento, a Irmã Angélica, mentora do médium Morais, trouxe-o ao
cenário abençoado, que lhe parecia familiar aos olhos espirituais. Tudo nele traduzia
a segurança e o equilíbrio de uma existência voltada para o bem e para o dever.
Percebi, então, a excelência do ministério mediúnico sob a carinhosa proteção
de Jesus, objetivando atender aos sofredores de ambos os planos da vida e reconheci,
mais uma vez, que somente uma existência realmente desatrelada das
paixões se constitui seguro roteiro para uma libertação felicitadora. O espírito é o
que pensa e faz; a veste carnal que o envolve tanto se pode converter em asas de
angelitude como em azorrague com grilhões que o martirizam. E a mediunidade,
indubitàvelmente, faz-se a senda luminosa por onde transitam aqueles que a
respeitam e enobrecem.
Não havia, porém, tempo para meditações mais amplas.
O Benfeitor Saturnino, em breve alocução, explicou a finalidade da reunião,
elucidando que se pretendia trazer à lucidez o perseguidor de Mariana para um
reencontro na esfera do espírito, de modo a tentar-se uma conciliação, esperandose
que a Misericórdia Divina amparasse os propósitos do grupo ora reunido.
Os circunstantes se recolheram a profunda meditação, conduzidos pela voz
pausada e grave do Mentor que se encarregou de orar ao Mestre, rogando-Lhe
socorro para o labor em vias de desenvolvimento. Em seguida, aproximou-se do
servo vingador e, aplicando-lhe passes de dispersão fluídica, despertou-o, presto.
A Entidade, vendo-se em uso da razão, circunvagou o olhar algo esgazeado e,
reconhecendo Mariana ali presente, como se fora tomado de estranho horror, intentou
precipitar-se sobre ela, brandindo os punhos cerrados, com os lábios em rito
macabro, dos quais escorria pegajosa substância escura, nauseante. Detido no impulso
incoercível pelos auxiliares e vigilantes, recorreu aos impropérios violentos,
como se desejasse, através das palavras candentes do ódio, conseguir o desforço
acalentado por muitos anos a fio.
— Tenho-te procurado — gritou, colérico —, como justiceiro cuja sede de
punição se converte em tormento sem nome. Azucrinado, somente há poucos anos
consegui localizar-te, no mesmo antro em que o infame destruidor da nossa paz
reside. Agora que os tenho a ambos nas mãos, não os deixarei fugir. O meu
desforço se fará com terríveis consequências. Eu os farei sofrer comigo as mesmas
dores que esta eternidade me tem infligido sem repouso...
Mariana, escutando aquela voz, desejou fugir, desorientada, no que foi obstada
por Saturnino, diligente.
— Aldegundes — vociferou o indigitado sofredor
porque me desgraçaste? Que te fiz eu para sofrer o abandono ignominioso e a
humilhação que me impuseste diante de todos os nossos amigos? Aldegundes,
Aldegundes, não te dei o amor honrado e puro de um homem trabalhador? Porque
me infelicitaste, destruindo minha vida?...
33
Acompanhando as palavras doridas, lágrimas grossas escorriam-lhe
abundantes dos olhos. Em choro convulsivo prosseguiu:
— Construíamos a nossa felicidade entre tantos sacrifícios e tu, apesar disso,
não te apiedaste de mim, arruinando-me sem compaixão! Porquê? Oh! desgraça,
não me conformo! Mesmo que escoem todas as eternidades, o teu crime me
corroerá dolorosamente. Minha alma dilacerada a cada instante e o meu coração
transformado em massa de chumbo em brasa perderam a razão de ser, quando
meu cérebro vencido por todas as desesperações não consegue senão pensar em
vingança... Eu que tanto te amava!... Porque fugiste, louca? Não sabias que a um
homem não se engana? Ignoravas que ninguém foge da consciência? Olha-me
bem! Vê ao que me reduziste? Olha, olha, infeliz!...
Nominalmente convocada, Mariana desferiu terrível grito e caiu dominada por
estranhas convulsões. Assistida de perto pelos assessores de Saturnino, que a esse
tempo amparavam o interlocutor desvairado, tomou o aspecto de louca e com facies
de singular horror, parecendo divagar, contestou:
— Sim, recordo-me de ti e te odeio, também... Sempre infeliz, que tenho sido e
que sou?! Onde estou, agora que desvairo? Porque esses fantasmas que me torturam
e não me deixam? Porque a morte não me consome? Oh!...
Gargalhada repulsiva estourou nos lábios da doente, como se a razão de todo
lhe fosse retirada, enquanto prosseguia:
— Abandonei-te, sim. Fui amaldiçoada por mim mesma, mil vezes, e te
amaldiçoei, também. Todos me amaldiçoaram. De todos nós não sei qual o mais
desventurado. Entretanto, odeio mais aquele que me fez consumir as esperanças
de mulher e os sonhos de louca, no triste hospício de Haarlen... Não sabes que
voltei a buscar-te? Agora é tarde demais... Não me recordo mais... Não sei...
somente sei que agora estou perto dele e hei de fazê-lo pagar. Oh! alucinação, que
digo? Onde estou ?...
Nesse momento, Saturnino acercou-se da jovem e lhe falou, bondoso:
— Estás diante da própria consciência, sem os crepes do olvido. Não és a
Mariana de hoje, frustrada e inquieta, mas a Aldegundes de ontem, desvairada,
sofredora. Aqui estamos todos para responder aos ditames da consciência
necessitada de reparação...
— E quem pretende julgar-me? — interrompeu, irada.
— Ninguém, minha filha — elucidou, confiante
pretende julgar-te ou examinar sequer os erros alheios, erros que todos temos.
Reunimo-nos, no entanto, com o fim de corrigir impressões e estabelecer nova linha
de conduta, antes que postergarmos as responsabilidades para os dias sombrios
que nos aguardam.
— Mas sou infeliz — apostrofou —, ninguém o vê? Sou acusada e ninguém me
escuta...
— Não nos encontramos num tribunal — acudiu, solícito, o Instrutor —, mas
num santuário de orações, templo e hospital, sob a orientação de Jesus-Cristo, o
Amigo Incondicional de todos nós...
Esbravejando, de inopino, o algoz voltou à carga:
— Acabemos com a farsa. Sou eu a vítima de todos esses cruéis verdugos da
minha vida. Quem se atreve a interferir em meus problemas? Não necessito de
ajudante nem de intermediário. Tenho carpido a dor infernal a sós e não será agora
que terei urgência de que alguém me ajude, no momento em que culmino o meu
plano com o êxito que logo mais terei. Façam silêncio para que eu possa relembrar,
34
a essa espoliadora da felicidade alheia, todo o mal que me fez.
Acercando-se dele, Petitinga envolveu-o em sua carinhosa vibração, enquanto o
médium Morais, convidado pelo Instrutor, aplicou passes em Mariana, cuja aflição
parecia desequilibrá-la. Envolta em fluídos negros, congestionada, praguejava
ensurdecedoramente.
Dona Rosa e Amália, devidamente amparadas, embora sem compreenderem
toda a extensão da ocorrência, oravam em pranto silencioso. Saturnino convidou a
genitora a tomar nos braços a filha aturdida, e, enquanto o fazia, a veneranda
mulher banhada de tênue luz cooperava com Morais, conseguindo acalmar a jovem,
que lentamente recobrou a serenidade.
— Vamos à verdade — estrondou o acossador de Mariana —, quero a verdade
dos fatos. Se aqui estou subjugado por demônios vingadores que ainda não saciaram
a sede na minha infinita desdita, apelo para as forças do Dr. Teofrastus para
que elas me amparem. Justiça, quero, nada mais! A minha vingança tem a força da
minha justiça. Não sou um desalmado: sou um justiceiro que retorna em nome da
verdade. Reitero o apelo, portanto, ao Dr. Teofrastus, o meu benfeitor. Onde se
encontra ele?
— Inutilmente — esclareceu Saturnino — você rogará auxílio a quem vive à
míngua de socorro. O irmão Teofrastus está interditado de penetrar neste recinto.
Aqui somente têm acesso aqueles que vêm em nome do amor e os que são
carecentes de amor, como você, meu irmão...
— Recuso seu amor e sua piedade — estrondou, rebelado. — O que desejo...
— O que você deseja — disse, sereno, o Amigo Espiritual — é paz e amor para
refazer o que destruiu; infelizmente você não sabe que também tem necessidade de
perdão, devendo, antes de tudo, porém, perdoar. Aldegundes fez-se seu algoz, sem
dúvida, mas sempre foi sua vítima. Você fala em deserção do lar, em honra
masculina... Onde, porém, estão sua honra e sua fidelidade ao lar? Constituiu-se a
mulher apenas instrumento para a paixão do homem ou somente o veículo do
prazer ilusório? E os sentimentos femininos? Que fez você para estancar as
lágrimas de soledade que ela experimentava ao seu lado? Quantas vezes parou a
escutá-la? Que cabedal de tempo lhe ofertou? Desejava dar-lhe uma fortuna, sim,
olvidando dar-lhe segurança íntima, assistência afetuosa... Não, meu amigo. Aqui
não se defrontam, como você deseja fazer crer, vítima e algoz; enfrentam-se duas
vítimas de si mesmas, iludidas nos seus loucos ideais terrenos. Os dias da Neerlândia
passaram; no entanto, encontram-se vivas, encravadas na terra das
lembranças, as raízes dos erros de todos vocês, erros que necessitam retificados.
Prepare-se para refazer o caminho, não para aplicar a justiça, justiça de que todos
temos necessidade...
— Então, você conhece — bramiu, provocando compaixão, o interlocutor, em
soluços — o meu drama? Porque se refere à Neerlândia? Como sabe que eu
procedo do Haarlen? Saberá você, que ~ssa mulher...
— Sim, meu irmão — retrucou, o Instrutor —, eu sei... Da mesma forma, porém,
que a lei de Deus está Inscrita na consciência de cada homem, os nossos atos
estão gravados em nossa mente que não morre. Conhecemos, sim, a sua história e
o drama de Aldegundes, que você agora deseja destruir, tarefa essa que não
conseguirá, positivamente porque o Senhor da Vida já pronunciou o: basta!
— Mas ela me traiu e me abandonou — baldoou.
— Sabemos disso — redarguiu. — Mas sabemos, também, que enquanto se
preparava o pôlder (1) na Amsterdão setentrional, fascinado pelas perspectivas de
35
adquirir largas faixas de terra para pastagens de gado, não obstante as imensas
plantações de tulipas que já
(1) Pôlder — região pantanosa e baixa, conquistada ao Mar do Norte e aos
lagos Interiores, na Holanda — Nota do Autor espiritual.
possuía, deixava-a quase abandonada, por longos meses, enquanto durou a
dessecagem do lago que existia entre Haarlen, Amsterdão e Leida, trabalho esse
que durou de 1837 a 1840... Sentindo-se só, inexperiente e sem forças para a luta
contra as paixões da própria natureza, não resistiu às constantes investidas de
Jacob, terminando por deixar-se arrastar ao rio de lama que a conduziu, mais tarde,
à loucura...
— Não me traga à memória — estrilou — o nome de Jacob Van der Coppel, o
infame ladrão da minha felicidade. Encontrei-o, também. A princípio tüdo me parecia
estranho. Por largos anos eu sentia a presença dele e me sentia ao seu lado,
embora as diferenças que apresentava. Estava metamorfoseado... Tudo me era, no
começo, irreal, até que fui conduzido ao Dr. Teofrastus, que me ofereceu excelentes
explicações, elucidando a volta do bandido ao esconderijo do corpo, ensinando-me,
porém, como eu poderia supliciá-lo e vingar-me, o que venho fazendo com
verdadeira infâmia...
— Realmente — acrescentou, Saturnino, sem se perturbar — Jacob retornou à
carne, revestido pela indumentária com que agora se identifica por Mateus. O
leviano de ontem é o atormentado de hoje, caminhando pela estreita rota da
autopurificação... Recebeu nos braços, pelo mesmo impositivo, aquela a quem
infelicitara, e a sua presença é-lhe desagradável suplício. Embora não consiga
recordar, experimenta as vibrações que lhe são afins, conquanto a aversão que lhe
apossa, fazendo-o desditoso. Ninguém engana a vida. O código da Justiça
acompanha o infrator, nele plasmando a necessidade de ressarcimento legal... Daí
a necessidade de aquele que se crê espoliado perdoar...
— Mas eu não conseguirei perdoar — vociferou o surpreso cobrador. — Tudo
aqui hoje são surpresas para mim. Atino com dificuldade o que ocorre e tenho
turbado o raciocínio. Quem são os senhores, que me molestam já por segunda vez?
Será isso um pesadelo cruel, daqueles que de mim se apossavam anteriormente,
quando me perdera e me desgraçava nos despenhadeiros da Alucinação...
Em se referindo à região punitiva em que se surpreendera, após o suicídio
nefando, o atônito interlocutor se transfigurou repentinamente, e, parecendo sofrer
indescritíveis padecimentos, se pôs a debater, chorando copiosamente. Vendo-o
alucinado, reduzido a condição de escravo de si mesmo, não havia como deixar de
crer que todo perseguidor é alguém perseguido em si mesmo e que o vingador é
somente um espírito macerado pelas evocações da própria delinquência...
O Assessor de Saturnino, solícito, acudiu presto o indigitado sofredor,
aplicando-lhe passes reconfortantes, de modo a desembaraçar-lhe a mente dos
fantasmas da evocação dolorosa. Depois de demorada operação magnética, em
que eram dispersadas as energias venenosas, elaboradas pelo baixo teor vibratório
do próprio Espírito, este se refez paulatinamente, recobrando alguma serenidade.
A viciação mental, resultante do pensamento vibrando na mesma onda, gera a
idéia delinquente na “psicosfera pessoal” do seu emitente, aglutinando forças da
mesma qualidade, por sua vez emanadas por Inteligências desajustadas, que se
transformam em energia destruidora. Tal energia é resultante do bloqueio mental
36
pela densidade da tensão no campo magnético da aura. Ali, então, se imprimem
por força da monoidéia devastadora as construções psíquicas que se convertem em
instrumento de flagício pessoal ou instrumento de suplício alheio, operando sempre
no mesmo campo de vibrações mentais idênticas. Quando essas energias são
dirigidas aos encarnados e sintonizam pela onda do pensamento, produzindo as
lamentáveis obsessões que atingem igualmente os centros da forma, degeneram as
células encarregadas do metabolismo psíquico ou físico, manifestando-se em
enfermidades perturbadoras, de longo curso...
Por essa razão, felicidade ou desdita, cada um conduz consigo mesmo, graças
à direção que oferece ao pensamento, no sentido da elevação ou do rebaixamento
do espírito, direção essa que é força a se transformar em alavanca de impulsão ou
cadeia retentiva nas regiões em que se imanta.
Refeito do distúrbio inesperado, o aflito espiritual inquiriu:
— Que se passa? Onde estou? Porque me vejo coagido a falar o que não
gostaria de informar e a ouvir o que não desejo escutar? Quem são os senhores?
Dando à voz a tônica da bondade que lhe era habitual, Saturnino obtemperou:
— Todos estamos, meu irmão, queiramos ou não, na Casa do Pai Celestial.
Filhos do Seu amor, deixamo-nos arrastar pelas correntes da liberdade espiritual ou
naufragamos nas ondas revoltas das paixões, dentro, sempre, porém, de algum
departamento do Seu domicílio, que elegemos pela própria vontade para nossa habitação.
Aqui nos encontramos em um Templo Espírita, de socorro aos que já
transpuseram o limiar da imortalidade e se acrisolam voluntàriamente à retaguarda
dolorosa, quando poderiam ensaiar os primeiros vôos para mais amplos tentames
na vida feliz...
E procurando dar ênfase ao encadeamento das idéias para melhor explicação,
esclareceu:
- Cultores das lições de Jesus-Cristo, buscamos palmilhar a rota por Ele
percorrida, abrindo braços e corações aos que sofrem e ignoram os meios de se libertarem
do jugo da desesperação, meios esses que se encontram neles mesmos,
jazendo sob os escombros do próprio flagelo que a si se impõem. Trouxemos Aldegundes,
cujo corpo repousa na forma orgânica de Mariana, e conduzimos, também,
sua genitora, sua irmã e outros companheiros da vida física, para examinarmos à
luz do amor de Nosso Pai para conosco o amargor que o torna infeliz, procurando
diminuir a intensidade das causas de tal mortificação.
Fez uma pausa - breve, espontânea, para considerar o efeito produzido pelas
palavras no perseguidor de Mariana.
A jovem, por sua vez, docemente envolvida pela genitora que parecia
transfigurada em madona esplendente de ternura, graças às supremas dores
suportadas com amor e resignação, escutava, raciocinando com dificuldade
compreensível, atenta, porém, à explanação.
— Pelo que depreendo — rugiu o neerlandês —isto é um complô para fazer-me
desistir da execução da justiça que tenho aguardado.
— A justiça — retrucou Saturnino — alcança o infrator sem a necessidade de
novo algoz. As divinas leis dispõem de recursos reparadores, ante as quais nada
fica sem a necessária quitação. Jesus...
— Jesus, Jesus — arrebatou — deixou-se martirizar...
— Sim — acrescentou Saturnino — e perdoou aos seus algozes.
— Mas era um Deus — admitiu, irado —, conforme ensina a Religião.
— Deus? — esclareceu o Mentor — somente um há. A Religião tradicional se
37
equivoca quando assim o diz. Jesus é o Filho de Deus, lição viva de amor que
todos podemos atingir, pelas oportunidades que nos ensejou descobrir,
oportunidades essas que agora lhe chegam, concitando-o a se tornar um deus,
manifestação de Deus que “está em tudo e em todos, esperando o desabrochar
através da nossa inclinação para a verdade.
— Mas eu vivo num inferno — reptou, amargado —, como poderia alcançar
Deus se tudo em mim são desejos de vingança para aplacar o ódio que me estiola a
própria razão?
— O inferno é resultante do seu estado de rebeldia. Na sua recusa ao amor,
você se condena ao desespero sem remissão, enquanto dure o combustível da revolta
que você coloca na fornalha do ódio.
— E os devedores?
— A vida se encarregará deles, agora ou depois.
Pesado silêncio caiu sobre a sala de socorro.
Algo asserenado, ele parecia mergulhar lentamente em acurada meditação.
Fluídos muito diáfanos penetraram o recinto, como se dirigidos por Agentes
Invisíveis, que suavizavam a tensão até há pouco reinante, a todos beneficiando
qual aragem bendita e necessária. Estranha e refazente calma a todos dominou.
38
3
Técnica de obsessão
Saturnino solicitou a Ambrósio que aplicasse recursos magnéticos nos centros
coronário e cerebral de Mariana, de modo a despertar-lhe o passado adormecido
nas telas da memória.
Ativados os chakras (*), através dos passes hàbilmente aplicados, a paciente
desdobrada parcialmente pelo sono físico pareceu sofrer um delíquio para logo
modificar a expressão semelhante a alguém que acorda após demorado sono, no
qual pesadelos cruéis houvessem tomado corpo destruidor... Do mal-estar
momentâneo passou a um aspecto de desvario, através do qual as palavras fluíam
ora no idioma de Mariana ora na língua de Aldegundes para firmar-se nos vocábulos
em que se exprimia esta última. Parecendo reconhecer Guilherme, o vigoroso
perseguidor, estremeceu, olhando-o, esgazeada, como se desejasse fugir.
Lentamente se lhe transfigurou o semblante que adquiria as características fisionômicas
de harleniense do passado. Eram visíveis os sinais da loucura que dela se
apossara nos últimos dias da existência física. Do descontrole inicial passou à
mortificação,
(*) Chakra é uma palavra sânscrita que significa roda... — Nota do Autor
espiritual.
libertando-se dos braços acolhedores de dona Rosa e arrojando-se aos pés do
antigo esposo, a rogar-lhe perdão, em lancinantes, agoniados apelos.
Ouvindo-a, lúcida, na forma antiga, Guilherme adquiriu expressão patibular e
rechaçou-a, com mordacidade.
— Eu estava desesperada — justificou-se em pranto — quando fugi do nosso
lar. Perdoa-me! Ignoras o que padeci e ainda padeço na masmorra em que agora
me movimento (referindo-se ao corpo de Mariana)... Há uma dor inidentificável em
minhalma e uma noite sombria de horror me segue, sem trégua. Não consigo chorar,
por ignorar a razão dos sofrimentos quando os punhais invisíveis da justiça me
alcançam. Só uma revolta pesada me agrilhoa a um desejo incoercível de morrer,
de sumir, de perder a consciência para sempre...
— Isto — retrucou o antigo companheiro — é apenas o início das penas que te
aguardam. Agora, sim, verterás o pranto da reparação que quando, saciado, eu me
possa considerar capaz de absolver-te a indignidade Sem limite.
Saturnino, Ambrósio e os demais Assessores Espirituais, embora em atitude de
alerta, mergulhados em pensamentos salutares, deixavam que as duas Entidades
por momentos se reencontrassem mediante o diálogo doloroso e azedo, que, no
entanto, abriria as portas a melhor atendimento...
— Fugi do lar e reconheço o meu crime. Mas ignoras o castigo que
experimentei, logo depois. Nunca fui amada: nem por ti, nem por ele. Em tuas mãos,
não passei de animal de carga e objeto de vãs emoções... Nas mãos dele não fui
além de um vaso de desejos violentos. É claro que a nuvem da ilusão só mais tarde
me deixou ver o abismo... E era tarde demais. Voltei, então...
— Tiveste a desgraça de voltar ao Haarlen? — vociferou o esposo desdenhado.
— Achaste, por acaso, insuficiente a punição indébita que me impuseste, a ponto de
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retornar aos sítios em que éramos conhecidos? Que pretendias desvairada?
— Rogar-te perdão, eu que ainda supunha que me amavas.
— Amar-te, quando arruinaste minha vida? Supunhas que a desonra pudesse
ser lavada com lágrimas?
— Nada eu supunha. Esperava piedade e comiseração, um pedaço das nossas
terras para sucumbir entre as tulipas que eu mesma plantara e em cujos campos
conseguíramos os inigualáveis exemplares das Gesnerianas, Clucianas, Turcisas...
Dilacerada pela saudade e pelos remorsos, acalentava como um náufrago uma
tênue possibilidade de salvação.
— Ignoravas, certamente, que envergonhado e ferido fugi... não conseguindo
morrer. Aumentando a minha desgraça, não poucas vezes forças demoníacas me
punham ao teu e ao lado do desalmado ladrão, para me supliciarem com a visão
alucinante sem limite. Como os odeio! Como os detesto!... É impossível, infame,
qualquer tentativa de...
— Negas-me, então, ainda hoje, a gota de misericórdia? E quem és tu, senão o
responsável maior pela minha infelicidade? Como te atreves a ferir-me com o teu
escárnio, o teu ódio? Sim, também te odeio, deixa-me dizê-lo, como te odiava antes
e não o sabia. Nunca me deste oportunidade de amar. Negociaste minha vida com
os meus pais, considerando a minha juventude e minha saúde, e ninguém, nem tu
nem eles, jamais procurou saber se eu possuía um coração ou acalentava um
sonho de menina...
E soluçando, comovedoramente, prosseguiu:
— Amante do dinheiro, a nada mais querias, senão qualquer coisa que se
constituísse meio de possuir mais. Fizeste de mim uma igual aos teus empregados,
nas leiras sem-fim dos bulbos, entre os canteiros de tulipas. Nelas, porém, encontrei
ligeira felicidade; nas suas pétalas descobria o milagre da vida, a beleza e a cor que
me roubavas... E depois? Mais velho do que eu quase 30 anos, eras verdugo cruel.
— Não te justifiques, infeliz — bradou, apoplético.
— Trar-te-ei a verdade, agora, dizendo-te o que nunca me atrevera mostrar-te
antes. Sim, dir-te-ei. Eras e continuas ambicioso e frio. Quando demandaste Leider
e depois Amsterdão para negociar com o governo terras e terras que viriam da
dessecagem do lago, deixando-me só, entre teus empregados e teus amigos, não
zelavas por mim. Tornavas-me o fiscal dos teus bens, a serva que inspecionava os
servos. Contrataste Jacob, que chegara fazia pouco dos primeiros Geest do golfo,
acostumado aos labores no Waal (1), e que, jovem como eu, me sensibilizara o
coração em constante soledade. Relutei muito, entre a fidelidade ao teu abandono e
a solidão da felicidade.
A Entidade sofrida não pôde continuar. As tormentosas evocações alanceavamna.
Depois de uma pausa, prosseguiu, ante a expectação de Guilherme, que
parecia atoleimado com as informações que lhe chegavam então.
— Fugimos para Amsterdão; nunca, porém, fugi de mim mesma. Nos primeiros
tempos, ainda dominada pela paixão que me enceguecera, consegui sobrepujar o
(1) O golfo referido é o de Zuiderzê, que neste século foi em grande parte
escoado e dessecado, transformando-se em terras cultiváveis (Geest). sendo
quase substituido nos últimos quarenta anos em quatro pôldres. O Waal é um
dos cursos dágua do Reno, onde há uma aldeia do mesmo nome. — Nota do
Autor espiritual.
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remorso. Depois... Despertei abandonada seis meses após na Cidade, em
miserável condição de desprezo entre mulheres infelizes do porto. Deixara-me
Jacob, que jamais me tivera qualquer afeição, fugindo para a Bélgica, após ter-me
iludido, sem retornar jamais. Compreendes o que me aconteceu? E isto não é tudo!
Depois de deambular na mais estúpida miséria, não suportando as humilhações que
eram superiores às minhas forças, lembrei-me dos campos floridos e da terra generosa...
Voltei e busquei-te. Só então eu soube... Haviam-se passado apenas 5
anos! Eu nem sequer fora reconhecida pelos antigos vizinhos, tal o meu estado.
Informada da tragédia que eu causara, enlouqueci, e desvairada pelas ruas do
Haarlen fui lançada ao hospício, como um animal numa jaula, onde sorvi por longos
anos a própria desdita até que a morte me libertou... para dores muito maiores. Na
minha loucura eu te via agoniado, a maldizer-me, a perseguir-me. Vês, agora!?
Tudo por culpa tua, do teu egoísmo.
— Sim, eu estava ligado a ti sem o saber... E nunca mais encontraste Jacob? —
indagou Guilherme.
— Nunca! Se eu o encontrasse, que não faria com esse meu outro algoz!...
— Pois eu te direi: vives novamente com ele. sua filha!
— Filha?! Deliras... Através de qual sortilégio o inimigo poderia tomar o corpo de
meu pai? Não zombes de mim.
— Ouve, Aldegundes: morreste e voltaste a viver, esta é a verdade.
Guilherme demonstrava na voz todo o seu desprezo. Logo depois, prosseguiu:
— Deus, que é justiceiro, dele fez o teu pai, unindo os dois para que eu agora
me possa vingar. Vês porque não me fugireis do guante da reparação? Mateus que
é o teu pai, pai de Mariana, em cujo corpo vives prisioneira, é o teu ex-amante e o
meu infelicitador, novamente reunidos. Agora poderei...
Nesse momento, Saturnino pousou a destra na fronte de Mariana, dominada
pelas recordações do passado, e utilizando recursos magnéticos fê-la adormecer,
pausadamente.
Guilherme, aturdido, pôs-se a deblaterar, enquanto Ambrósio o socorria,
diminuindo-lhe o campo de ação.
Convidando Dona Rosa, o Instrutor devolveu-lhe a filha anestesiada e em son
reparador. Ambrósio foi chamado a reconduzir o grupo ao lar da família Soares,
para onde foram levadas, pelo Assistente e um auxiliar, a matrona e as duas filhas.
O serviço espiritual, porém, continuou o seu curso normal.
Em seguida à altercação entre os dois antagonistas do pretérito, Saturnino
conseguiu sensibilizar Guilherme que, então, relatou as experiências que deveriam
culminar naquela noite de modo inverso ao que acontecia. Narrou, então, que há
mais de quinze anos se sentia ligado ao Sr. Mateus, o antigo verdugo por quem
nutria desconhecida aversão, dispondo-se a segui-lo. Transferiu-se, por fixa, para o
lar da família Soares, participando do grupo de Entidades irresponsáveis que ali
faziam morada. Particular e inconscientemente vinculado ao responsável pelo clã,
lentamente conseguiu infiltrar nele reminiscências amargas que o faziam fugir do lar
para render-se cada vez mais à jogatina, procurando fugir. Mariana nascera havia
pouco, quando o reencontrara, e, embora não soubesse ser ela Aldegundes, foi
dominado por incoercível antipatia.
O seu horror pelo Sr. Mateus era, também, inconsciente, pois ignorava o
processo do retorno ao corpo, em que este se ocultava. Vivendo em conúbio com
outros sicários do grupo familiar, cedo fez amizade com terrível obsessor ligado a
41
Marta, a filha mais velha da família, que se dedicava a incursões nos redutos
sombrios da Magia negra, e, informando-a dos seus propósitos, foi aclarado do
impositivo da Reencarnação, por cujo meio se assegurou de estar no rastro dos
inimigos. Veio-lhe, então, o desejo de os matar de imediato. Informado da Idéia, o
Inspirador de Marta sugeriu-lhe travar contacto com o Dr. Teofrastus para que este
examinasse o seu problema e, de acordo com os interesses que lhe despertassem,
tomá-lo ou não sob a sua responsabilidade.
Segundo o informante, o Dr. Teofrastus fora insigne mago grego, quando na
Terra, residente em França, queimado pela Inquisição por volta do ano de 1470, em
Ruão, após perseguição impiedosa e nefanda. Profundo conhecedor, mesmo
quando encarnado, de algumas das leis do Mundo Espiritual, deixou-se consumir
pelo ódio aos seus algozes; logo que desencarnou, estreitou laços com terríveis
vingadores do Além, a ele já vinculados pelas suas práticas necromânticas e
reuniões de sabat, todas elas feitas sob inspiração de Mentes vigorosas e infelizes
da Esfera Espiritual. Logo se identificou, após a morte do corpo físico na fogueira,
com aqueles através dos quais mantinha o comércio psíquico, fez-se notado pela
impiedade, na sede tormentosa de vingança. Paulatinamente, conseguiu imantar-se
a diversos dos que a ele e a muitos outros puniram indebitamente, em inqualificável
intercâmbio espiritual obsessivo, do qual passou a locupletar-se. Portador de mente
tenaz, lobrigou através dos tempos supremacia no grupo em que vivia, passando à
condição de Chefe...
Residindo, esclareceu, então, Guilherme, em estranho sítio, nas regiões
inferiores do Planeta, comanda com outros sicários, há mais de três séculos, hordas
de Entidades ferozes, responsáveis muitas delas por processoS obsessivos e
calamitosos de longo curso, entre as criaturas humanas que se deixaram vencer
pelas urdiduras das suas mentes atormentadoras.
Muitos dos que se rebelam periodicamente têm experimentado punições
severas sob suas tenazes mentais, produzindo neles transformações perispirituais
soezes, em apavorantes processos de zoantropia, por hipnose anestesiante nos
centros profundos da alma, tais como hipontropia, licantropia, etc.
Verdadeiro demônio se acredita senhor de vasta Região Trevosa, onde impera
como autocrata acerbo.
Depois de alguns dias de expectativa, nos quais aguardava a decisão da
Entidade, continuava o relato do ex-neerlandês, foi conduzido à presença do Chefe.
Ouvido atenciosamente pelo antigo Mago, este se propôs examinar o problema,
marcando data propícia para nova entrevista, o que ocorreu uma semana depois.
Nessa oportunidade, o insidioso e singular monarca falou-lhe da sua
desencarnação como suicida, aclarando-lhe hórridas inquietações, minuciando-lhe
os processos de desencarnação e reencarnação, de modo a inteirá-lo do que
ocorrera com os seus verdugos do passado, então revestidos de novo corpo...
Elucidado por Guilherme de que desejava um desforço imediato, que traduzisse
todo o seu amargor, explicou-lhe, então, que a melhor maneira de se vingar seria
realizada através do tempo, pelo processo lento da obsessão contínua em ambos
os cômpares da tragédia passada, induzindo-os ao suicídio para aumentar-lhes a
aflição, no momento próprio...
Vinculando-se, desde logo e espontaneamente, aos comandados pelo Dr.
Teofrastus, dele recebia orientação segura e constante, conseguindo fartar-se das
emanações vampirizadas provenientes da jovem obsessa que começara a subjugar,
enquanto e simultaneamente alucinava o amadurecido genitor, ora alquebrado.
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Compreendendo chegado o momento do golpe decisivo, o Dr. Teofrastus
orientara-o para provocar cenas de atritos constantes entre pai e filha, de modo a
que esta em momento de desespero se evadisse do lar, buscando no namorado
leviano e irresponsável o falso amparo de que se sentiria carecente. Nessa
circunstância, então, ele se reencarnaria através de Mariana, voltando ao lar dos
Soares na condição de neto do Sr. Mateus, a fim de matá-lo lentamente, em longo
recurso de impiedosa vindita, conforme instruído. Isto lhe seria fácil, evidentemente,
pela hipnose na moça que se encontrava capacitado de produzir, como intentara,
logrando êxito, no primeiro .......
Consecutivamente, como relembrasse todos os lances do programa infeliz que
acalentava havia tantos anos, Guilherme apresentava-se transtornado pelas dores
das evocações sombrias e pela imensa frustração dos planos elaborados com tanto
esmero.
Embora intervindo, de quando em quando, de modo a estimulá-lo na narrativa,
Saturnino animava-o com palavras generosas, a fim de que nos inteirássemos de
uma dentre as inúmeras técnicas da obsessão e dos recursos utilizáveis para a
vingança, pelos desencarnados, encetando, então, conversação mais amena com o
perseguidor de Mariana, que parecia alquebrado, vencido, sob o influxo magnético
do Instrutor e os passes aplicados com carinho por Ambrósio.
Conduzido ao sono, Guilherme foi afastado do recinto por zelosos cooperadores
desencarnados e a reunião foi dada por encerrada, após comovedora oração
proferida pelo Instrutor.
Petitinga, o médium Morais e nós, fomos conduzidos de volta ao lar, enquanto a
Alva desenhava sobre as sombras fugidias da noite os primeiros contornos da
natureza preparando-se para o festival do Dia.
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4
Estudando o hipnotismo
Fôramos informados pelo irmão Saturnino de que, no processo de desobsessão,
em que nos empenhávamos ao lado da família Soares, seria necessário colher melhores
lições em torno do problema da hipnose espiritual praticada por Entidades
Vingadoras da Erraticidade, antes de tomarmos conhecimento detalhado das tarefas
que se realizavam no Anfiteatro. Para tanto, receberíamos, ao primeiro ensejo, a
visita de sábio Mensageiro Espiritual que viria aos nossos trabalhos e, utilizando-se
da mediunidade do irmão Morais, dar-nos-ia elucidativa mensagem sobre a
Hipnologia.
Anunciada a noite dos trabalhos em que receberíamos o abençoado Instrutor,
preparamo-nos convenientemente e, chegado o momento, após a abertura dos trabalhos,
que foi procedida pelo irmão Petitinga, e as instruções normais, o médium,
em transe sonambúlico, começou a falar.
Feitas as saudações iniciais e costumeiras, a Entidade, que irradiava bondade e
simpatia, começou a expressar-se com inesquecível inflexão de voz:
— Irmãos na fé restaurada: «que Jesus, o Divino Benfeitor, nos abençoe e nos
guarde, dando-nos a Sua paz e inspiração!
«Desde tempos imemoriais que são conhecidas algumas das práticas do
Hipnotismo moderno, que ocupava nas religiões dos povos da antigüidade oriental
lugar de relevo, embora com nomenclatura diversa.
“O Egito faraônico, através dos seus sacerdotes, que pesquisavam os mais
variados fenômenos psíquicos com os recursos de que dispunham, dedicou
diversos templos ao sono, nos quais se realizavam as experiências hipnológicas de
expressivos resultados. Os taumaturgos caldeus praticavam-no com finalidades
terapêuticas, lobrigando respeitável soma de benefícios. E as diversas literaturas
referentes à hipnologia conservam ainda hoje fragmentos históricos da sua viagem
multissecular através de civilizações incontáveis que ficaram no passado...
«Deve-se, porém, a Frederico Antônio Mesmer o grande impulso que o trouxe
aos tempos modernos. Todavia, merece considerado que Paracelso, autor do conceito
e teoria do fluído, anteriormente já se interessara por experiências magnéticas,
que seriam posteriormente desdobradas por Mesmer. Considerava Mesmer o fluído
como sendo o meio de uma influência mútua entre os corpos celestes, a terra e os
astros», afirmando que esse fluído se encontra em toda a parte e enche todos os
espaços vazios, possuindo a propriedade de «receber, propagar e comunicar todas
as impressões do movimento». E elucidava: «O corpo animal experimenta os efeitos
desse agente: e é insinuando-se na substância dos nervos que ele os afeta
imediatamente».
«Formado pela Universidade de Viena, o ilustre médico defendeu a tese que
intitulou: «Influência dos astros na cura das doenças», através da qual expunha a
sua teoria do fluído, inspirada, sem dúvida, no tradicional conceito do fluidismo
universal.
«Fixado em tal opinião, concluía que as enfermidades decorrem da ausência
desse fluído no organismo, fluído que passa, então, a ser a alma da vida.
“Utilizando-se de 27 proposições ou aforismos, estabeleceu as bases do seu
pensamento e transferiu-se de Viena para Paris, nos fins do século 18, dando início,
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conquanto o forte preconceito acadêmico então reinante, às suas práticas, que
tinham de certo modo um caráter burlesco, tendo em vista a forma bizarra com que
se apresentava, sem a preocupação de atender à seriedade de um labor de ordem
científica.
“Compreensivelmente, o aparato algo teatral conseguia influenciar os pacientes
que lhe buscavam o auxílio ».
Fazendo uma pausa, como a coordenar históricamente os conceitos,
prosseguiu, com expressiva ênfase:
— “Avançando de surpresa a surpresa, nas experiências magnéticas ao lado de
portadores de distúrbios nervosos, criou Mesmer a (tina das convulsões» (*), em
redor da qual podiam ser atendidas simultâneamente até 130 pessoas.
“Ali se reuniam paralíticos, nevropatas de classificação complexa que, em
contacto com o fluído magnético, eram acometidos de convulsões violentas das
quais saíam com nervos relaxados, libertados das enfermidades que os consumiam
(*) A “Tina das convulsões” ou baquet (em francês) se constituia de ampla
caixa de madeira com dimensões gigantes, de forma circular e entulhada de
limalhas de ferro. Sobre as limalhas eram colocadas garrafas cheias de água
adredemente magnetizadas. Essas garrafas semelhavam-se a vasos
comunicantes, por estarem interligadas e o líquido passar através de todas.
Da tina, por aberturas assimétricas, saiam inúmeras barras delgadas e longas
de ferro, móveis, que os pacientes aplicavam sobre os órgãos enfermos. Os
pacientes formavam diversas fileiras em torno do baquet, de modo a poderem
a um só e mesmo tempo beneficiar-se dos resultados magnéticos. Além disso,
deixavam-se atar à cintura por uma corda, uns aos outros, e se davam as
mãos com a finalidade de formarem um anel de força, a fim de ampliarem a
ação do fluído.
“Acatado por uns, perseguido por outros, Mesmer terminou por abandonar Paris
e transferiu-se para Nursburg, no lago de Constança, algo combalido e desprestigiado.
«As suas experiências, porém, chamaram a atenção de homens ilustres e
interessados na busca de métodos capazes de diminuírem as aflições humanas.
Entre esses, o Marquês De Puységur, (1) em 1787; enquanto magnetizava um
camponês de nome Vítor Race, foi surpreendido por estranha ocorrência: o paciente
adormeceu e nesse estado apresentou admirável lucidez, sendo capaz de produzir
eficiente diagnóstico a respeito de males orgânicos que o afligiam e sugerir segura
terapêutica. O sono era ameno, sem convulsão nem tormento, ensejando o início do
período denominado então sonambulismo.
«O fato, digno de estudos, tornou-se de súbito instrumento de charlatanismo e
foi denominado como maravilhoso, dando margem a especulações naturalmente
ridículas e indignas. Todavia, estava-se no caminho certo, apesar das veredas
falsas.
A Academia, convocada a opinar através de inquéritos conduzidos com má fé,
chegou à conclusão de que tudo não passava de burla, e cerrou, desde então,
«olhos e ouvidos» aos aventureiros, relegando-os ao mais amplo desprezo.
(1) O Marquês De Puységur, dominado por sentimentos humanitários,
magnetizou uma árvore em sua propriedade de Busancy com o objetivo de
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auxiliar os pobres que, tocando no vetusto vegetal, se diziam melhorar
através dos seus recursos benéficos. Mesmer, por sua vez, interessado
igualmente na mais ampla difusão do magnetismo, bem como na coleta de
resultados espetaculosos, instruiu um seu empregado, tornando-o seu
cooperador para atender à clientela em crescimento espantoso. Além do
baquet que atendia a número coletivo, havia a aplicação do magnetIsmo
individualmente, feito de maneira bastante grosseira, mas, ainda assim, de
resultados surpreendentes...
“Pesquisadores conscientes, no entanto, não desanimaram e, dentre esses, o
Barão Du Potet e Carlos Lafontaine se fizeram os mais notórios pelos livros que escreveram
e os espetáculos públicos em que se apresentaram, exibindo os
resultados das suas investigações, embora não fossem realmente cientistas.
«No entanto, a descoberta de De Puyøégur veio influenciar poderosamente o
sacerdote português José Custódio de Faria, nascido em Concolim de Bardez, na
África Portuguesa e residente em Paris, que, graças ao seu notável trabalho,
passou a ser chamado em França l’abbé de Faria, que conseguiu, com inauditos
esforços, libertar-se de todas as práticas e formas até então vigentes,
estabelecendo que o fenômeno procedia da sugestão, dependendo, evidentemente,
do paciente. Desconsiderou as apresentações ridículas, sem conseguir, no entanto,
despertar a atenção dos sábios e acadêmicos...
“As experiências de De Puységur conduziram o fenômeno ao campo da
transposição dos sentidos, visão a distância e através de corpos opacos, etc...
“Todavia, ao cirurgião inglês James Braid se deve a introdução do termo
hipnotismo em lugar de magnetismo e novas conclusões surpreendentes no setor
das pesquisas, tendo-se em vista ser ele espiritualista.
Assistia ele a uma sessão de Lafontaine, para averiguar o que havia de real no
debatido problema da magnetização, quando se sentiu despertado para alguns dos
fenômenos mais modestos, o que o levou a realizar, ele mesmo, incontáveis
experiências, no decurso das quais, após conseguir o sono provocado em seus
«sujets», deparou com os estados de catalepsia e letargia, encontrando novo
campo para experimentações valiosas.
Estávamos fascinados. Era uma síntese histórica do Hipnotismo, então aplicado
em nossos trabalhos espirituais, e que hoje tem amplo curso entre médicos e
odontólogos, reflexologistas e psiquiatras, constituindo preciosa disciplina credora
de estudos profundos e complexos.
O Instrutor, após ligeira reflexão, deu curso à exposição fluente e clara:
— “No ano de 1878, porém, o Professor João Martinho Charcot proferiu uma
série de conferências no Hospital da Salpêtriére, modificando na Academia a reabilitação
do desdenhado Magnetismo, agora apresentado com nomenclatura
diferente: Hipnotismo, expressão compatível, sem dúvida, com as experiências em
curso. Todavia, o eminente professor Charcot, lidando exclusivamente com
histéricas internadas no Hospital da Salpêtriére, chegou à conclusão apressada de
que o hipnotismo é uma nevropatia de caráter automatista, que se manifesta no
enfermo através de três fases distintas: catalepcia, letargia e sonambulismo,
relegando o fenômeno hipnótico a um plano de descrédito e mesmo de abjeção.
“Enquanto o Professor Charcot pontificava na Universidade da Salpêtriére,
acusado pelo Professor Pedro Janet de apenas ter hipnotizado sensitivas já
condicionadas por estudantes que praticavam o sonambulismo na ausência do
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mestre, criando nas percipientes um estado de automatismo patológico
lamentável (2), destaca-se na Escola de Nancy o Dr. Liébault, que desde 1860
aplicava os recursos hipnológicos diariamente em sua clínica, com resultados
expressivos, discordando terminantemente da conceituàção histeropata dos mestres
da Salpêtriére...
A Escola de Nancy reuniu homens notáveis, dentre os quais o professor
Bernheim, que fora atraído ao
(2) Esse mesmo Professor Pierre Janet publicara, em 1889, um livro
Intitulado “Automatismo psicológico”, através do qual, entre diversas
conclusões, tenta desmoralizar os médiuns, situando-os entre os histéricos,
na condição de simples automatistas.
Hipnotismo, através de um seu cliente para o qual falharam todos os recursos, e se
curara com uma única sessão de hipnose na clínica do Dr. Liébault. (3)
A partir desse momento, ficaram definitivamente estabelecidas as duas
correntes preponderantes na Hipnologia: a de que o fenômeno hipnótico encontra
melhor campo e é específico nos histéricos, e aquela que afirma o oposto,
estabelecendo que as pessoas portadoras de cérebro normal, capazes de melhor
concentrarem nas idéias que se lhes sugiram, são as realmente hipnotizáveis.
Correntes de pensamentos diversos, padronizadas segundo os múltiplos
experimentadores, têm sido apresentadas, criando opiniões esdrúxulas e não
poucas vezes ridículas.
A verdade, porém, é que as duas Escolas francesas, a da Salpêtriére, na qual
pontificavam os conceitos da histeropatia, e a de Nancy, afirmando a legitimidade da
sugestão em todos os indivíduos, mereceram da posteridade estudos mais
acentuados e melhor consideração, embora a grande maioria dos pesquisadores
haja discordado de Charcot, Pedro Jauet, Babinski, seus mais ilustres
representantes.
(3) Allan Kardec, o eminente Codificador, acentuou que:
“São extremamente variados os efeitos da ação fluídica sobre os doentes,
de acordo com as circunstâncias. Algumas vezes é lenta e reclama tratamento
prolongado, como no magnetismo ordinário; doutras vezes é rápida como
uma corrente elétrica. Há pessoas dotadas de tal poder que operam curas
instantâneas nalguns doentes, por meio apenas da imposição das mãos, ou
até exclusivamente por ato de vontade. Entre os dois pólos extremos dessa
faculdade há infinitos matizes. Todas as curas desse gênero são variedades
do magnetismo e só diferem pela intensidade e pela rapidez da ação. O
princípio é sempre o mesmo: o fluído, a desempenhar o papel de agente
terapêutico e cujo efeito se acha subordinado à sua qualidade e a circunstâncias
especiais”.
A Gênese, de Allan Kardec, 14ª edição — Capitulo XIV —Item 32 — FEB. —
Nota, do Autor espiritual.
«O Professor Carlos Richet, a cujo trabalho tanto devem as ciências fisiológicas
e psicológicas, o eminente catedrático da Universidade de Paris, realizou estudos
sistematizados, expôs com lealdade os resultados obtidos e conseguiu interessar os
mais eminentes estudiosos do seu tempo, entre os quais o próprio Professor
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Charcot, que após as conclusões do mestre fisiologista resolveu estudar em
profundidade o Hipnotismo»...
E dando diversa inflexão à voz, o Benfeitor, no qual se alinhavam
conhecimentos valiosos e experiências de alto realce, aduziu:
— «O que nos importa, entretanto, considerar, é o mecanismo como se efetuam
as intervenções hipnológicas entre os indivíduos encarnados, e mais
particularmente entre desencarnados e encarnados, nos processos dolorosamente
obsessivos, tanto quanto na reciprocidade do intercâmbio entre os despidos da
indumentária carnal.
«As ondas mentais exteriorizadas pelo cérebro mantêm firme intercâmbio em
todos os quadrantes da Terra e fora dela. Pensamentos atuam sobre homens e
mulheres desprevenidos e a sugestão campeia vitoriosa aliciando forças positivas
ou negativas com as quais sintonizam, em lacerantes conúbios dos quais nascem
prisões e surgem alvarás de liberdade, por onde transitam opiniões, aspirações,
anseios...
«Merece relembrado o conceito do Nazareno: Onde estiver o tesouro aí o
homem terá o coração», o que equivale dizer que cada ser respira o clima da
província em que situa os valores que lhe servem de retentiva na retaguarda óu que
se constituem asas de libertação para o futuro.
«Pensamento e vontade — eis as duas alavancas de propulsão ao infinito e, ao
mesmo tempo, os dois elos de escravidão nos redutos infelizes e pestilenciais do
«inferno» das paixões.
«Pensar e agir, identificando-se com os fatores da atenção, constituem a
fórmula mágica do comportamento individual a princípio, e coletivo logo depois, em
que, ora por instinto gregário, ora por afinidade psíquica, se reúnem os comensais
desta, ou daquela idéia.
«Céu ou inferno, portanto, são dependências que construímos em nosso íntimo,
vitalizadas pelas aspirações e mantidas a longo esforço pelas atitudes que imprimimos
ao dia-a-dia da existência.
“Por tais processos, províncias de angústia e regiões de suplício, oásis de
ventura e ilhas de esperança nascem no recôndito de cada mente e se multiplicam
ao império de incontáveis vontades que se reúnem, em todos os departamentos do
planeta. Inicialmente, o homem se converte no anjo ou no demônio, que ele próprio
elabora por força da idéia superior ou viciada em que se compras, sintonizando, por
um processo natural de afinidades, com outras mentes encarnadas ou não, que
vibram nas mesmas faixas-pensamento, produzindo processos de hipnose profunda
que se despersonalizam e se nutrem, sustentados, reciprocamente, por forças vitais
de fácil manipulação inconsciente, que gravitam em toda a parte.
Nesse sentido, convém considerar as lições superiores do Espiritismo, que
oferece panorama de elevada estrutura mental e moral, facultando registos de
idéias superiores capazes de manterem uma higiene psíquica libertadora de toda
conexão com as Entidades infelizes do Mundo Espiritual Inferior ou com as
vibrações que pairam na Terra mesma, e que procedem de vigorosas mentes ainda
agrilhoadas, que se imantam umas às outras, realizando intercâmbio danoso, de
longo curso e de imprevisíveis consequências.
«Em todo processo hipnológico, pois, convém examinar a questão da sintonia e
da sugestão, com razões poderosas, senão imprescindíveis para a consecução dos
objetivos: a fixação da idéia invasora.
«O Professor José Grasset, por exemplo, o excelente mestre de Montpeliier,
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inspirado nas observações realizadas em torno do polígno cerebral que também
servira de base a Wundt e Charcot, afirmava ter descoberto ali o centro da
consciência, o núcleo da vontade, colocando, imediatamente abaixo, o centro de
Broca, responsável, pelos encargos da linguagem e os responsáveis pela visão,
audição, gustação, etc... Imaginava, então, um ponto de referência que passava a
ser o centro do psiquismo superior, encarregado dos fenômenos conscientes e no
polígono propriamente dito o campo do pensamento e da vontade, encarregado de
todas as tarefas do automatismo psicológico. Elucidava, em consequência, que toda
sugestibilidade que dimana do operador se transmite inconscientemente tomando
posse do campo cerebral, no polígono do hipnotizado. A vontade dominante se
encarrega de conduzir a vontade dominada, como se a alma de quem hipnotiza
substituísse momentaneamente a alma do que foi hipnotizado». Dessa forma, o
hipnotismo pode ser denominado, como querem alguns experimentadores, «O
anestésico da razão».
“Já o psicólogo inglês Guilherme Mac-Dougall, igualmente fascinado pelo
assunto, asseverava, examinando o problema da sugestão na hipnose, que esta é
um meio de transmissão do pensamento, tendo como resultado a convicta aceitação
de qualquer mensagem proposta independendo de análise pelo paciente com
exame lógico para a sua aquiescência. Isto é: o operador impõe-se ao sujeito, que o
recebe sem reação proveniente de exame prévio.
“Em bom vernáculo, sugestão é «o ato ou efeito de sugerir. Inspiração,
estímulo, instigação. Idéia provocada em uma pessoa em estado de hipnose ou por
simples telepatia”.
«A sugestão é, portanto, a inspiração incidente, constante, que atua sobre a
mente, provocando a aceitação e a automática obediência.
«Por essa razão, Forel informa que os cérebros sadios são mais fáceis de
aceitar a sugestão, e Emilio Coué, discípulo de Liébault, prefere considerar que os
pacientes capazes de auto-sugestionar-se são melhores para que com eles se
lobriguem resultados mais explícitos e imediatos.
«Outros autores, como é o caso do insigne Pavlov, o «pai» dos reflexos nos
animais e no homem, elucidam que o sono natural hipnótico e a inibição constituem
a mesma coisa, deixando transparecer que, no momento em que essa inibição se
generaliza, permanecendo a causa preponderante, tende a espalhar-se, facultando
ao hipnotizando aceitar a sugestão que prepondera.
«Ocorre, entretanto, que todos os seres têm uma tendência ancestral, natural,
para a obediência, o que se transforma num condicionamento inconsciente para
aceitar toda ordem exterior, quando não se tem uma lucidez equilibrada e firme
capaz de neutralizar as idéias externas que são sugeridas.
«No fenômeno hipnológico há outro fator de grande valia que é a perseverança,
a constância da idéia que se sugere naquele que a recebe. Lentamente a princípio
tem início a penetração da vontade que, se continuada, termina por dominar a que
se lhe submete.
«Os modernos psicanalistas e reflexologistas situam as suas observações, os
primeiros nos reflexos condicionados, que pretendem ser um «estado de inibição difusa
somática cortical» com a presença de um ponto de vigília, enquanto os
segundos se referem a um «processo regressivo particular que pode ser iniciado por
privação senso-motora ideativa ou por estimulação de uma relação arcaica com o
hipnotista».
Os conceitos emitidos com sabedoria e em síntese prodigiosa, considerando-Se
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a imensa variedade de opiniões em torno do Hipnotismo, nos deslumbravam. Que
mundo estranho e imenso, o da mente! Quantas paisagens desconhecidas para
nós! Os próprios estudiosos dos fenômenos psíquicos, na Terra e além da vida
física, encontravam-Se empenhados milenarmente na elucidação das questões
palpitantes da vida mental, encontrando, só agora, alguns pontos vígeis para
elucidações dos processos de intercâmbio entre homens e homens, espíritos
desencarnados e encarnados. Deixava-me arrastar em considerações, na pausa
que se fizera espontanea, quando a Entidade Abnegada prosseguiu:
— «Isto posto, meus irmãos, examinemos o problema das obsessões entre os
desencarnados e encarnados, na esfera física.
«Em todo processo de imantação mental, do qual decorrem os sucedâneos da
obsessão simples, da fascinação e da subjugação — conforme a classificação perfeita
de Allan Kardec —, há sempre fatores predisponentes e preponderantes que
se perdem no intrincado das reencarnações.
«Toda vítima de hoje é algoz de ontem, tomando o lugar que lhe cabe no
concerto cósmico.
«Assim considerando, em quase todos os processos de loucura — exceção
feita não somente aos casos orgânicos de ataque microbiano à massa encefálica ou
traumatismo por choques de objetos contundentes — defrontamos com rigorosas
obsessões em que o amor desequilibrado e o ódio devastador são agentes de poderosa
atuação.
«Quando há um processo de obsessão desta ou daquela natureza, o paciente
possui os condicionamentos psíquicos — lembranças inconscientes do débito
através das quais se vincula ao perseguidor —, que facultam a sintonia e a
aceitação das idéias sugeridas e constringentes que chegam do plano espiritual.
Se o paciente é experimentado nas disciplinas morais, embora os
compromissos negativos de que padece, consegue, pela conquista de outros
méritos, senão contrabalançar as antigas dívidas pelo menos granjear recursos para
resgatá-las por outros processos que não os da obsessão.
“As Leis Divinas são de justiça, indubitàvelmente; no entanto, são também de
amor e de misericórdia. O Senhor não deseja a punição do infrator, antes quer o seu
reajuste à ordem, ao dever, para a sua própria felicidade.
«Desse modo, quando a entidade perseguidora, consciente ou não, se vincula
ao ser perseguido, obedece a impulso automático de sintonia espiritual por meio da
qual estabelece os primeiros contactos psíquicos, no centro da idéia, na região
cortical inicialmente e depois nos recônditos do polígono cerebral, donde comanda
as diretrizes da vida psíquica e orgânica, produzindo ali lesões desta ou daquela
natureza, cujos reflexos aparecem na distrofia e desarticulação dos órgãos ligados à
sede atacada pela força-pensamento invasora.
«Desse centro de comando, em que o hóspede se sobrepõe ao hospedeiro, as
alienações mentais e os distúrbios orgânicos se generalizam em longo curso, que a
morte do obsidiado nem sempre interrompe.
«A consciência culpada é sempre porta aberta àinvasão da penalidade justa ou
arbitrária. E o remorso, que lhe constitui dura clave, faculta o surgimento de idéiasfantasmas
apavorantes que ensejam os processos obsessivos de resgate das
dívidas.
«Invariàvelmente, na obsessão, há sempre o aproveitamento da idéia
traumatizante — a presença do crime praticado —, que é utilizada pela mente que
se faz perseguidora revel, apressando o desdobramento das forças deprimentes em
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latência, no devedor, as quais, desgovernadas, gravitam em torno de quem as
elabora, sendo consumido por elas mesmas, paulatinamente.
Nas atividades da obsessão de espíritos a espíritos desencarnados, aqueles
verdugos, conhecedores das limitações e dos erros dos recém-chegados da jornada
carnal, após os terem acompanhado anos a fio, com sicários implacáveis, utilizamse
de ardis com que apavoram os desassisados, e por processos de sugestão, aplicados
com veemência nos centros perispirituais, conseguem produzir lamentáveis
condicionamentos de alteração na forma das vítimas que se lhes demoram nas garras,
dominando-as, por fim, em demorado curso de vingança ultriz e devastadora.
«As idéias plasmadas e aceitas pelo cérebro, durante a jornada física, criam
nos painéis delicados do perispírito as imagens mais vitalizadas, de que se utilizam
os hipinotizadores espirituais para recompor o quadro apavorante, em cujas malhas
o imprevidente se vê colhido, derrapando para o desequilíbrio psíquico total e
deixando-se revestir por formas animalescas grotescas — que já se encontram no
subconsciente da própria vítima — e que estrugem, infelizes, como o látego da
justiça no necessitado de corretivo.
«No sentido oposto, as idéias superiores, alimentadas pelo espírito em
excursão vitoriosa, condicionam-no à libertação, concedendo «peso específico» ao
seu perispírito, que pode, então, librar além e acima das vicissitudes grosseiras do
liame carnal.
«Com muita sabedoria, Allan Kardec enunciou que:
«Relativamente às sensações que vêm do mundo exterior, pode-se dizer que o
corpo recebe a impressão; o perispírito a transmite e o Espírito, que é o ser sensível
e inteligente, a recebe. Quando o ato é de iniciativa do Espírito, pode dizer-se que o
Espírito quer, o perispírito transmite e o corpo executa — elucidando, em admirável
síntese, o poder do pensamento na vida orgânica e das sensações no Espírito (4).
Amplo silêncio se espraiou pela sala. Todos mergulhamos em meditações,
enquanto o angélico Instrutor propiciou uma pausa para reflexão dos ouvintes. E
como fazendo as elucubrações para finalizar, arrematou:
— “Por essa razão, a vitalização de idéias edificantes constrói o céu generoso
da felicidade, tanto quanto a mentalização deprimente gera o inferno da aflição que
passa a governar o comportamento do espírito.
«É nesse particular que se avultam as lições soberanas do Mestre Galileu,
conclamando o homem ao ajustamento à vida, respeitando-lhe as diretrizes
abençoadas, através das medidas da mansuetude, da compaixão, da misericórdia,
do amor indistinto e do perdão incessante.
«Reverenciamos hoje na Terra, felizmente, o Espiritismo com Jesus, verdadeira
fonte de idéias superiores e enobrecidas que libertam õ espírito e o conduzem às
verdadeiras causas em que devem residir os seus legítimos interesses, fazendo que
a dúvida seja banida, no que diz respeito à vida verdadeira, e trabalhando contra o
egoísmo, fator infeliz de quase todos os males que afligem a Humanidade.
«Se alguém incide em erro, que se levante do equívoco e recomece o trabalho
da própria dignificação.
(4) “Obras Póstumas” — Allan Kardec — 11ª edição —“Manifestações dos
Espíritos” — Item 11 — FEB. — Nota do Autor espiritual.
O erro representa lição que não pode constituir látego, mas ensejo de
enobrecimento pela oportunidade que faculta para a reparação e o refazimento.
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«O intercâmbio permanente dos Espíritos de uma com outra esfera da vida
objetiva, seguramente, oferece ao homem a visão porvindoura do que, desde já, lhe
está reservado. No entanto, para dizer-se alguém espírita não basta que se tenha
adentrado nos conceitos espiritistas ou participado de algumas experiências práticas
da mediunidade... É imprescindível incorporar ao modo de vida os ensinamentos
dos Espíritos da Luz, tomando parte ativa na jornada de redenção do homem, por
todos os modos e por todos os meios ao alcance, para que triunfem os postulados
da paz, da justiça e do amor entre todas as criaturas.
«Nesse particular, o amor, conforme nos legou Jesus-Cristo, possui a força
sublime capaz de nos preservar de nós mesmos, ainda jornaleiros do instinto, ensinando-
nos que a felicidade tem as suas bases na renúncia e na abnegação,
ensejando-nos mais ampla visão de responsabilidade e dever na direção do futuro.
«Dia virá, não muito longe, em que a dor baterá em retirada, definitivamente, e o
intercâmbio do bem, pela força criadora do amor que se origina nos Dínamos
Mentais da Divina Providência, envolverá vigorosamente todos os seres e os
conduzirá à direção da tranquilidade plena, em cujo caminho já nos encontramos
desde agora...
«Confiemos, pois, na vitória final do bem e desde logo nos entreguemos ao
Sumo Bem que cuidará do nosso próprio bem».
Calou-se o Amigo Espiritual.
Suaves vibrações como que carreadas por mãos invisíveis invadiram a sala, e
ondas de imensa tranquilidade nos dominavam a todos.
Proferindo expressões de despedida carinhosa e deixando-nos com lágrimas
que fluíam abundantes dos olhos, o Venerando Mentor desligou-se do médium e a
sessão
foi encerrada
Um silêncio de emoções indescritíveis nos acompanhou a todos de retorno ao
lar, para o necessário repouso, enquanto a noite serena salmodiava canções em
fios estelares, estuando no Infinito.
52
5
Elucidações valiosas
Guilherme, adormecido, fora trasladado para local apropriado, na própria Terra,
de modo a aguardar em refazimento espiritual o novo encontro com os antigos
cômpares, para as bênçãos da paz e, consequentemente, desobsessão do Sr.
Mateus e de Mariana.
O lúcido mentor esclareceu que oportunamente seria realizada outra entrevista
com o perseguidor da fanília Soares, de modo a serem recolhidos esclarecimentos
que facultassem as operações socorristas com o êxito que todos desejávamos.
Sugeriu-nos igualmente justo repouso, e que, antes das tarefas em programação,
buscássemos a serenidade da oração a fim de podermos cooperar com mais
firmeza e melhor entendimento dos problemas que afetam a marcha da evolução
espiritual dos seres, embora, ao retornarmos ao corpo, não nos recordássemos,
com a nitidez que seria de desejar.
Antes do horário habitual, congregamo-nos na Sede da União Espírita Baiana,
no recinto destinado aos labores mediúnicos, e seguramente inspirado por Saturnino,
o irmão Petitinga tomou de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, iniciando a
leitura de comovedora página sobre a epígrafe: “Amar o próximo como a si mesmo”,
conforme se encontra no Capítulo 11.
As palavras, vibrando na tônica da compaixão, chegavam-nos à alma como
mensagem de amor que a todos nos irmanava em perfeita comunhão espiritual.
Logo depois, a reunião teve começo. Incorporando o médium Morais, Saturnino
elucidou que traria Guilherme à psicofonia para melhor mergulho nos fluídos do
sensitivo de modo a diminuir-lhe a carga psíquica e o envolvimento nas faixas do
ódio de que se via possuido desde há muitos anos.
Silenciada a voz do Instrutor Amigo, o médium foi dominado por estertores
angustiantes e, como se despertasse de pesado sono, em que as imagens
evocassem cenas muito dolorosas, o aflito perseguidor identificou o recinto em que
se encontrava e, acometido de repentina ira, pôs-se a deblaterar. Acalmado com
passes magnéticos aplicados pelo Doutrinador, lentamente recobrou o equilíbrio e
indagou a razão do constrangimento de que se via objeto, estando novamente ali.
Muito calmamente Petitinga explicou-lhe a necessidade do intercâmbio, a seu
benefício mesmo, esclarecendo a inadiável urgência de voltar-se para o exame mais
ponderado dos problemas que o infelicitavam e dos quais somente o amor possui a
tônica de poder conseguir a libertação.
Guilherme esclareceu quanto à necessidade que nutria de retornar ao corpo,
para dar prosseguimento à insidiosa cobrança, ressarcindo a injustiça de que se
acreditava objeto. Elucidou que, numa das últimas reuniões do Anfiteatro, o Dr.
Teofrastus apresentara o caso dele à multidão, que o aclamara delirantemente,
exaltando a ética da “justiça com as próprias mãos”, nele vendo a vitória dos
cometimentos que ali tinham curso. Como poderia, agora, recuar?
A Entidade apresentava os sinais do desespero e da frustração da criança
caprichosa que se vê colhida no engodo da leviandade pela observação ponderada
dos genitores.
— Ignoramos a que Anfiteatro se refere — iniciou, com habilidade e delicadeza,
o Evangelizador. — Que poderia ter ocorrido num Anfiteatro, que lhe trouxesse
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responsabilidades, especialmente em se tratando da prática inominável de crime
cobarde?
— Crime? — revidou, Guilherme, visívelmente transtornado. — O relho da
Justiça, que arde e fere nas mãos do regularizador de leis, passa, na sua cartilha, a
ser um crime? E o nefando suicídio a que fui levado, pela deserção do lar, o
adultério infame praticado por aqueles a quem você chama vítimas?... Esquece as
minhas dores e...
Interrompendo-o, com muita destreza mental, redarguiu Petitinga, a essa hora
semi-incorporado por Saturnino que lhe apoiava a destra no centro coronário,
irrigando a glândula pineal com altas doses de energia positiva:
— Não voltemos ao exame das razões do sofrimento que o macera — falou
com gentileza. — Não ignoramos que há Leis Soberanas que se encarregam de encontrar
o devedor onde se encontre. Para tanto, porém, não se faz necessário que
novos devedores ou infratores apareçam, criando, desse modo, um círculo de viciações
lamentáveis. A Lei, não desconhecemos, é de Justiça. Mas a Justiça Divina
nasce nas fontes sublimes do Amor e se manifesta por meios de misericórdia.
Ao amparo do nobre Instrutor todo o cérebro do encarnado se fazia radioso à
clarividência, dando a impressão de que o sangue conduzia poderosa substância
luminosa a impregnar-se de cores suaves que o inundavam de dentro para fora...
E prosseguindo, aduziu:
— A qual Anfiteatro se refere o irmão Guilherme?
— Ora, ao reduto em que nos reunimos para a aprendizagem de lições com o
Dr. Teofrastus.
E estimulada a mais amplos detalhes, a Entidade, exteriorizando uma satisfação
até então não revelada, elucidou:
— Surpreende-me a sua surpresa! Acredita você que nós estamos aqui
desarmados? Técnicos verdadeiramente poderosos estão organizados a serviço da
Disciplina, junto aos fugitivos que se escondem no corpo de carne, na Terra. É
interessante observar como são ignoradas as realidades do lado de cá, mesmo por
aqueles que se aventuram a excursionar além das muralhas do corpo.
— Já que somos tão ignorantes — aventou Petitinga — rogaríamos que você
nos esclarecesse melhor.
Envaidecido, retrucou o perseguidor da família Soares:
— Ora, como narrei antes, quando na minha amargura solicitei ao Dr.
Teofrastus a sua interferência segura, que me não foi negada. Paulatinamente,
tomei conhecimento das suas ricas possibilidades, inclusive do espetáculo do
Anfiteatro, que ele promove, semanalmente, para os que deambulam livre dos
corpos, porém algemados à ignorância, sem saberem como revidar o mal que
receberam dos seus inimigos que ainda não venceram as barreiras do túmulo.
Assim, convidado por amigos, numa quinta-feira, aos primeiros minutos após zero
hora, acorri ao local, que regorgitava de pessoas de ambos os lados para ouvirem e
aprenderem com o mestre suas preciosas lições. Mais tarde, tomado como
exemplo, foi o meu caso narrado püblicamente, e, após apresentadas as linhas
centrais da justiça que me compete realizar, fui aclamado e, na última semana,
apresentei despedidas. Do Chefe recebi elogios, a promessa do seu auxílio e
ajuda constante, durante os longos anos de afastamento do grupo, enquanto dure o
meu mergulho... Alimentou-me a satisfação de que, embora separado pelo corpo,
eu serei regularmente levado lá, mantendo os vínculos com a Organização, para
não permanecer ao desamparo...
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E depois de expressiva pausa, asseverou:
— Como vê, além do meu caso pessoal, conduzo agora a responsabilidade de
agir em nome dos nossos, que vêem em mim uma das representações dos vigilantes
e defensores da verdade.
Estávamos estarrecidos!
Como não poderia ser legítimo o depoimento de um membro ativo da
Organização? Não havia dúvidas, sim, eu pensava. No entanto, como entender um
Anfiteatro, nos moldes dos da Terra, a funcionar além do túmulo? Havia lógica,
porém. Não é o mundo físico o representante dos efeitos? Assim sendo, quanto
existe do lado de cá, ôbviamente há do lado de lá. Quantas lições, todavia, Deus
meu, aguardando por nós! O “orai e vigiai” sempre comandando os nossos
destinos...
Com a serenidade que lhe era habitual, Petitinga não se fez surpreso; antes,
referiu-se a Jesus, que preferira o apupo das massas à conivência com o crime e
com a discriminação do poder temporal. A Sua grandeza fora a Sua suprema
humildade e o Seu revide a todo mal foi a Sua doação total aos perseguidores e
afugentes, com os braços abertos na Cruz, como se transformados em asas de
amor esperassem por toda a Humanidade, para amparar os infelizes e trânsfugas
do dever, renovando-lhes as esperanças e sustentando-os na luta, amoroso e forte
até ao fim.
Os conceitos emitidos na mais pura emotividade pareciam sensibilizar o
comunicante que, repentinamente, pareceu aflito, desejando libertar-se dos liames
da incorporação, no que foi atendido por Petitinga e Saturnino que lhe aplicaram
passes balsâmicos, fazendo-o adormecer.
Os trabalhos prosseguiram normalmente até a hora do encerramento, quando o
Instrutor, retornando à incorporação, explicou que naquela noite mesmo o grupo
voltaria a reunir-se, em desdobramento parcial pelo sono, para prosseguimento das
tarefas.
As bênçãos da caridade e os tesouros decorrentes da comunhão fraternal,
somente os conhecem aqueles que exercitam a solidariedade!
Todos demandamos o lar com o espírito lenido por esperanças consoladoras.
Embora os membros da família Soares não houvessem participado do trabalho da
noite, grande parte da tarefa fora desenvolvida objetivando a saúde e a paz
daquelas pessoas.
Conforme planejado, reencontramo-nos na sala singela do socorro espiritual os
que participavam da assistência ao irmão Guilherme, conduzidos por Saturnino e os
seus auxiliares. Embora parte considerável dos presentes fosse constituída de
encarnados parcialmente desprendidos pelo sono, registrava-se em todos uma
lucidez espiritual bem expressiva, o que facilitava o labor dos Benfeitores.
Guilherme, anestesiado pelo sono hipnótico, fora trazido antes e, no mesmo
compartimento, assistido por dois enfermeiros da Esfera Maior, jazia inconsciente,
velado, todavia, pelo carinho que lhe era indispensável para apaziguar as forças
desconexas da ira e da decepção que lhe martelavam o espírito rebelde e infeliz.
Após aplicados recursos magnéticos de despertamento em todos os
desprendidos parcialmente pelo sono físico, para melhor lucidez (lucidez relativa de
que deveriam estar possuidos os encarnados para as tarefas em programa, como
explicou o Instrutor), e quando todos nos encontrávamos com melhores
possibilidades de registro nos centros perispirituais, elucidou Saturnino que, naquela
oportunidade, fora planejada uma incursão aos domínios do Dr. Teofrastus, para
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coleta de informes seguros, no que tangia ao processo de desobsessão dos
membros da família Soares, e, mais em particular, de Mariana. Expondo quanto ao
imperativo do equilíbrio e da manutenção do estado de oração, equivalente à vigilância
e à fé, informou que somente ele, Ambrósio, Guilherme, o irmão Glauco —
que já conhecíamos desde a ocasião da mensagem sobre Hipnotismo, que tanto
nos sensibilizara —, Petitinga e nós seguiríamos às observações no Anfiteatro
enquanto os demais assistentes espirituais e o médium Morais ali se demorariam
em leitura evangélica e oração, contribuindo, desse modo, para os resultados
almejados.
Despertado Guilherme e esclarecido quanto ao programa em pauta, este não se
pôde furtar a uma expressão de horror.
— Como se atreverão a adentrar-se no reduto do Chefe? Quais os objetivos que
levarão em mente? — inquiriu, assombrado. — Ignoram que o espetáculo terá a
direção pessoal do Dr. Teofrastus, que se faz acompanhar invariavelmente de mais
de uma vintena de cooperadores e guardas pessoais? Essa temeridade poderá
redundar em lamentável punição para todos, inclusive eu. Não, ninguém intente a
realização de idéia tão louca quanto essa. Recuso-me terminantemente à
aquiescência.
— Você, no entanto, meu amigo — retrucou Saturnino —, não se encontra em
posição de escolha. As forças hipnológicas ali aplicadas não são a nós outros
desconhecidas. Dispomos de larga experiência na questão e nos faremos
acompanhar de um técnico em recursos que tais, como eficiente cooperador para
qualquer circunstância menos feliz. Além disso, estamos a serviço de Jesus-Cristo,
o Supremo Chefe da Terra, e poder algum é superior às forças que Ele nos outorga
para a prática do bem e a libertação de consciências ainda mergulhadas nas
sombras do crime.
Após uma pausa necessária, em que Guilherme se debatia entre as lembranças
dos pensamentos que lhe eram habituais e a nobre austeridade de Saturnino, que
embora amoroso sabia conduzir a questão com a energia que não permitia
discussão, prosseguiu:
— Como já lhe informamos, o nosso desejo é ajudá-lo a encontrar a diretriz da
paz interior...
— Recuso-a — bradou colérico. — Sinto-me perfeitamente feliz e a realização
dos meus planos é o coroamento de todos os meus esforços e sofrimentos. Esta
imposição desagradável e coercitiva me surpreende e enfurece. Não conte comigo.
Como se aguardasse a explosão da revolta, Saturnino acercou-se do revel e,
orando em silêncio, se foi transfigurando diante de todos nós, enquanto uma aura
de safirina e profusa claridade o envolvia. Vibrações sublimes a todos nos
dominavam. Tínhamos a impressão de que o reduto modesto se transformava em
recinto de luz. Suave música chegava de longe e, surpreendentemente, começamos
a ver, além do que seriam as paredes materiais, diversas Entidades Espirituais que
participavam das tarefas, embora sem que nós, os encarnados, soubéssemos,
mergulhadas em profunda oração, ajudando Saturnino que se nos afigurava, agora,
veneranda figura ancestral ressurgida das páginas comovedoras da Boa Nova, nos
seus primeiros séculos na Terra, quando homens afervorados se deixavam vencer
pelas feras, em inolvidáveis testemunhos de amor a Jesus...
As lágrimas nos aljofravam abundantes e ignotas emoções nos venciam
docemente.
O Mensageiro da Vida envolveu Guilherme paternalmente, transmitindo-lhe os
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suaves recursos do reconforto e da esperança, e falou-lhe com inimitável tom de
voz:
— Meu filho, Jesus é Vida, e a vida é inevitável caminho de todos nós,
viandantes da evolução. Ninguém se furtará indefinidamente ao progresso, ao amor,
à felicidade que a todos nós estão reservados. Só existe, soberana, no Universo, a
Lei do Amor que rege os mundos e comanda todas as manifestações existentes,
porque o Nosso Pai é o Amor, O ódio a que muitos nos entregamos, quando
inermes caímos na rebeldia, ódio sempre transitório, resulta da ausência do amor
que entorpecemos e envenenamos com as emanações mefíticas do nosso
desequilíbrio. Não receie, portanto, amar. O amor oferece felicidade a quem ama,
produzindo no espírito emoções transcendentes que o enobrecem e vitalizam.
Enquanto o ódio desagrega, macera e enlouquece, o amor sublima e liberta... Os
que desrespeitam as Leis da Harmonia sofrem-lhes as consequências, sem que nos
convertamos nos seus justiçadores, tornando-nos, igualmente, celerados. E
ninguém fruirá de paz ou experimentará alegria, vitimado em si mesmo pelo ódio.
Há aqueles que na volúpia do desequilíbrio dizem não se importarem com o próprio
estado... Todavia, a realidade é outra. Lucigênitos, temos todos a destinação da Luz
Divina...
Silenciou, momentaneamente, para dar ensejo a que Guilherme se
impregnasse das sutis vibrações, deixando-se penetrar pelos argumentos e pelo
amor que dele se irradiava.
Prosseguindo, acrescentou:
— Esqueça, filho, todo o mal, para lembrar-se do infinito bem com que Nosso
Pai nos felicita as horas. O mal somente faz mal a quem o pratica, tornando-o mau.
O perdão que se doa é semente de misericórdia que lançamos na direção do futuro,
a benefício próprio... Não recalcitre. Não adie a oportunidade da renovação. A vida a
todos nos aguarda com a ação benigna ou severa com que nos conduzirmos em
relação ao nosso próximo. Verdadeiramente infeliz é aquele que não perdoa, não
olvida o mal, não oferece oportunidade de redenção. Todo perseguido resgata e se
liberta, enquanto o verdugo se amarra à dívida e se deixa arrastar aos vigorosos
potros do sofrimento, vencido, mais tarde, pelos vírus que alimentar nos escaninhos
da mente atormentada. Recorde, desse modo, Jesus, que não carregava nenhuma
culpa, e no entanto...
O ex-obsessor de Mariana, dominado por súbita emotividade, prorrompeu em
copioso pranto, no qual extravasava toda a angústia retida por longos decênios,
causando compaixão a todos nós, que acompanhávamos o labor socorrista,
valorizando o poder incomparável do amor.
Encolhido nos braços generosos de Saturnino, parecia uma criança muito
crescida, porém absolutamente vulnerável. Cessada a ira, que é verdugo cruel, o
espírito se deixara descontrair, retomando a condição dele mesmo.
— Chore, filho — acentuou, igualmente comovido, Saturnino. — As lágrimas de
justo arrependimento e de necessária dor são como chuva preciosa em terra
crestada, oferecendo a oportunidade para que medrem as sementes da esperança
e da paz, que padecem, até então, esmagadas na esterilidade do solo. Não permita,
no entanto, que o pranto refazente se transforme em tormenta ululante e
destruidora... Agora começa vida nova para você, para todos nós. Jesus é sempre a
porta, a nova oportunidade. Vadeemos os rios das paixões que nos retêm e
avancemos na direção do porvir promissor. Se o passado se nos afigura fantasma
que nos impossibilita a paz, o futuro, através da utilização do presente, em
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sabedoria e nobreza, nos enseja a bênção da alegria e a dádiva da paz. Todos
nos encontramos enleados em reminiscências dolorosas. O nosso «Ontem» é qual
sombra esperando o sol do «hoje» para a perene claridade do amanhã...
Silenciando, momentaneamente, o Benfeitor Espiritual parecia recordar
longínquas lembranças, e, tomado por sublime modulação que nos parecia ter
origem em distantes sítios, prosseguiu:
— Diante dos infelizes, o Mestre vez alguma teve palavras de aspereza: não os
reprochou, nem os acicatou. Envolveu-os, todos, na cariciosa esperança de melhores
horas, oferecendo-lhes a dádiva do trabalho, nas oportunidades de mil
recomeços para o burilamento íntimo. No entanto, diante dos que se compraziam na
miséria alheia, pseudodominadores do mundo efêmero, aplicou o corretivo da
palavra severa, advertindo-os com singular austeridade, não os poupando ao peso
das responsabilidades que preferiam .......
«Raros, porém, temos sabido valorizar o impositivo da informação cristã. A
diretriz evangélica, ainda hoje, parece a muitos «loucura», conforme informava o
apóstolo Paulo, em seu tempo.
«Tudo nos fala do amor, desde as paisagens felizes da Natureza às emoções
superiores da vida; das sensações primitivas nos seres inferiores às expressões de
felicidade nos homens... Todavia, o amor, para muitos de nós, não passa de
arrematado egoísmo, no qual asfixiamos as esperanças dos outros nas redes
estreitas e apertadas do nosso personalismo infeliz...»
Relanceou o olhar pela sala clareada fortemente pelas fulgurações que dele
irradiavam, enquanto Guilherme, que buscava assimilar as lições com expressão de
compreensível surpresa e ansiedade, se transformava em «homem novo»,
abandonando a carcaça sofrida do «homem velho» imanado ao ódio, agora
renovado pelas sucessivas vibrações do amor. E como se desejasse fixar em todos
nós os conceitos ali emitidos, continuou, lúcido:
— Nascemos, vivemos no corpo e perdemos a indumentária, retornando ao
palco das mesmas lutas, vezes inúmeras, sem conseguirmos melhorar as condições
espirituais, repetindo a «roda das paixões» escravizantes em que nos
comprazemos. Muitos, em incontável número, entramos na carne e dela saímos
sem nos apercebermos do fenômeno, aferrados às vibrações mais primárias da
vida. Todos sonhamos com os Céus, sim. Raros, todavia, estamos construindo as
asas da evolução com os materiais da iluminação íntima, nas linhas severas do
trabalho fraterno, da renúncia, da caridade e do perdão. Semeamos pouca luz e
colhemos aflições danosas; por essa razão, nossa arca de esperança permanece
vazia de alento.
«Sejamos prudentes, pois, utilizando os recursos da hora presente a benefício
próprio.
«Verdadeiramente felizes são aqueles que perdoam, que cedem, que doam,
doando-se, também.
«Jesus é ainda e sempre a nossa lição viva, o nosso exemplo perene.
Busquemo-Lo !»
Silenciou, invadido por emoções transcendentes. Tínhamos a impressão de
encontrar-nos em outro plano vibratório, que não a Terra, nossa genitora sofrida e
portadora de sofrimentos.
Recompondo-se com as características habituais, disse a Guilherme, que o
fitava, algo atoleimado:
— E agora, filho, está disposto a seguir conosco ao recinto das experiências do
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irmão Teofrastus?
— Sim. Tenho medo, porém. Em toda a minha desdita, sonhei, não poucas
vezes, com a paz longínqua...
As lágrimas impediram-no de prosseguir.
Pondo-lhe a destra sobre a cabeça banhada de úmido suor, Saturnino
estimulou-o:
— Este é o seu momento de libertação. Não o adie.
O Senhor nos ajudará. Sigamos!
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6
No anfiteatro
Ante a proximidade do momento de nos dirigirmos aos sítios em que o Dr.
Teofrastus labora, voltavam-nos à mente as lições fornecidas pelo Benfeitor
Glaucus, em torno da história e das realidades da hipnose.
Guilherme, amparado fraternalmente por Ambrósio, o delicado enfermeiro e
assistente de Saturnino, foi incorporado ao grupo, e assim nos acercamos da porta
do velho edifício da União, para nos transferirmos até o Anfiteatro.
Saturnino, prestimoso e severo, antevendo a gravidade da excursão, a todos
nos adestrou, quanto possível, nos recursos da concentração e da prece, de modo a
evitarmos qualquer desastre, no reduto inditoso para onde rumávamos.
A tarefa, de grande realce, tinha como objetivo essencial conhecer os métodos
de trabalho dos «adversários da Luz», de modo a elucidar os companheiros reencarnados
e aplicar, igualmente, os antídotos compatíveis quando estes
esclarecimentos viessem a lume.
Sem dúvida, desde as primeiras horas do Espiritismo, Mensageiros Eficientes
têm vindo à Terra oferecer esclarecimentos sobre as paisagens do Mais Além... e,
mesmo antes da chegada do Consolador, os informes incessantes chegavam aos
ouvidos dos homens, advertindo-os sobre as realidades insofismáveis da vida.
Aguardava-nos à porta singular veículo, semelhante às velhas seges, porém de
maiores proporções, à qual estavam atrelhados duas parelhas de corcéis brancos,
belos espécimes equinos, conduzidos por um cocheiro de meia-idade, que nos
saudou com discreta cortesia.
Adentramo-nos no coche, que partiu. As cortinas arreadas não nos permitiam a
visão do exterior.
O irmão Saturnino esclareceu que conhecia o local em que estava o anfiteatro,
próximo à região pantanosa da cidade, em uma área deserta e não muito distante,
que atingiríamos numa hora de viagem aproximadamente. Elucidou, ainda, que a
providência de utilizar o veículo se justificava, considerando a situação de alguns
dos membros presentes à excursão, pouco adestrados a voos mais expressivos fora
do corpo somático, como Guilherme e qual acontecia a nós outros, algemados,
ainda, às formas físicas.
Convidados à oração silenciosa, procuramos mergulhar no oceano sublime da
prece, de modo a contribuir com os recursos possíveis para o êxito da missão.
Transcorrido mais ou menos o tempo previsto, escutamos bulha e altercação à
nossa frente, quando, então, saltamos da condução, prosseguindo a pé. Havia uma
multidão de entidades viciosas, em atitudes repelentes, que dialogavam com
expressões vis e ultrajantes. Entre elas, podiam-se notar diversos encarnados —
perfeitamente diferençáveis, graças aos vínculos do perispírito ainda ligado ao corpo
físico — que pareciam algemados a alguns dos desencarnados libertinos, que os
conduziam como se fossem escravos das suas paixões e de quem não se podiam
libertar. Outros apareciam com carantonhas simiescas e o recinto tresandava
putrefação. Vibrações viscosas e sombrias carregavam os céus que tinham um tom
pardacento-escuro, sem estrelas, e o solo miasmático parecia um paul insano que,
todavia, não lhes chamava a atenção, acostumados como se encontravam à
paisagem triste e morta do local.
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A construção, de matéria viscosa e escura, tinha a forma semicircular e fazia
lembrar repentinamente os velhos circos, não fosse a substância de que se revestia.
Luzes roxas e vermelhas esparramavam sombras atormentadas que passavam
perdidas nos interesses em que se compraziam e, de quando em quando, massa
compacta e atroadora, empurrando violentamente os que se encontravam à frente,
chegava em galhofa infernal. Dificilmente se poderia ver na Terra espetáculo de tal
natureza... E, todavia, estávamos na Terra, um pouco fora das vibrações do mundo
material, dentro dele, porém.
Alguns guardas bufos e caricatos, tomavam conta da entrada ampla, onde se
encontravam assestados alguns aparelhos, que faziam lembrar os torniquetes utilizados
entre os homens, com a diferença de que sobre eles havia uma caixa
quadrangular, que Saturnino informou ter a finalidade de impedir a entrada de Espíritos
que não pertencessem à malta. Era o psicovibrômetro que tinha a capacidade
de registar as ondas vibratórias de todos os assistentes, denunciando, assim,
quaisquer intromissões dos Espíritos Superiores.
Ele, Ambrósio e Glauco, todavia, tomaram precauções especiais, de modo a
transporem a passagem sem provocar qualquer alarme denunciador, através de um
processo de imersão mental nas lembranças do passado, o que lhes diminuiria o
registro vibratório. Além disso, penetrariam no recinto, logo mais, quando o número
de frequentadores fosse muito expressivo, de forma a que o aparelho ficasse
impregnado de fluídos de baixo teor vibratório. Quanto a nós, os encarnados, e a
Guilherme, não haveria problema...
Afastando-nos um pouco do bulício, os Benfeitores e o Assistente, concentramonos
demoradamente e observamos um fenômeno singular. Lentamente o aspecto
exterior se foi adensando e a forma padeceu ligeira transformação que os
deformava e, como se estivessem respirando incômoda atmosfera, passaram a
apresentar leves estertores e, sensívelmente modificados, convidaram-nos a entrar.
Atravessamos as barreiras sem qualquer incidente e fomos surpreendidos por
um recinto amplo, de arquibancadas que ficavam fronteiras a um picadeiro pouco
iluminado, onde o espetáculo teria curso. A balbúrdia ensurdecedora fazia lembrar
um covil de feras. Expressões profundamente vulgares e tradutoras da qualidade
dos que ali se encontravam explodiam abundantes, constrangendo-nos.
Saturnino, com muita discrição, nos convocava àoração, de modo a que nos não
distraíssemos. Esclareceu que Benfeitores Espirituais nos acompanhavam de longe,
pelos fios invisíveis do pensamento, intercedendo por todos nós ao Senhor da Vida.
Guilherme, apavorado, estava a ponto de desequilibrar-se.
Acolitado, no entanto, por Ambrósio, que o sustentava, manteve-se em silêncio,
expectante.
Sübitamente apareceram, no recinto interno e semicircular, estranhos sequazes
que sopraram búzios esquisitos e anunciaram a chegada do Dr. Teofrastus.
Guilherme, ao nosso lado, entre a massa agitada que gritava, desenfreada,
começou a tremer descontroladamente. O momento, porém, era de algazarra, enquanto
a multidão esperava ansiosa o anfitrião.
Aqui e ali, no entanto, havia muitas expressões de pavor, não só entre
encarnados como entre desencarnados, que esperavam o início da função,
constrangidos e vencidos por medo atroz. Apresentando rostos patibulares, essas
Entidades confrangiam mesmo aqueles que fossem portadores de sentimentos
empedernidos, exceção aos que ali se encontravam, tresloucados...
O ambiente era irrespirável. Nuvens de fumo se elevavam, abundantes,
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misturadas a odores acre-fortes, como os derivados de plantas estupefacientes, e
podia-se ver uma multidão espiritual, de paixões insaciáveis, açuladas, que
habitualmente se atiravam atormentados sobre os seus cômpares enjaulados na
carne, em processos indescritíveis de vampirizações tormentosas. Esperavam,
desditosos, as lições infelizes em torno das técnicas da obsessão, para continuarem
o programa inferior de imantação psíquica nos seus antigos senhores que
passavam, automàticamente, à condição dolorosa de escravos...
Não havia tempo para maiores elucubrações, pois nesse momento deu entrada
no recinto singular cortejo formado por um grupo grotesco, estranhamente vestido,
sustentando um sólio sob colorido pálio, em cujo assento se encontrava hedionda
personagem. Trajando roupa de cor berraste, que variava do arroxeado ao negro,
ostentava grosseiro paludamento que lhe caia dos ombros e era sustido pelo braço
esquerdo. O semblante aberto num sorriso que mais parecia um esgar, não ocultava
a ferocidade brilhante nos dois olhos quase oblíquos, que se destacavam na face
gorda e macilenta, sob uma testa larga, de raros fios de cabelos empastados...
Bigodes abundantes se perdiam nas suíças extravagantes, completando a visão
terrificante e macabra.
O préstito bizarro voluteou por três vezes o picadeiro e se aquietou ao centro,
transferindo-se o temível doutor Teofrastus para um palanque adredemente armado,
com gestos vulgares e ridículos. Houve um súbito silêncio feito de expectativa e
receio.
Voltando-se para a multidão, começou a falar, através de um microfone que
levava a sua voz às galerias, por meio de vários projetores de som, de alta potência.
As palavras duras e impiedosas exprobravam os que se atemorizavam ante o
cumprimento do «dever da vingança», explodindo ameaças e exibindo toda a prepotência
de que se supunha possuir.
O silêncio era aterrador. Nenhum som, nenhuma galhofa, exceto, de quando em
quando, alguns gritos de terror que partiam das arquibancadas...
— Temos hoje um caso de Justiça... — reticenciou.
E para fazer-se mais temerário, apostrofou:
— Julgaremos uma criminosa que chegou da Terra para os nossos presídios, há
quase um ano...
Apareceram os que se poderiam chamar jurados, que tomaram lugar em
assentos reservados, um acusador, duas testemunhas — uma de lamentável
aspecto Iacerado, e a outra, apenas uma pasta informe, perispiritual, estiolada, que,
mantida numa cesta nauseante, foi colocada sobre uma mesa, em destaque, no
centro do proscênio.
Algemada e atada a uma corrente, jovem mulher de uns quase 35 anos foi
trazida, acolitada por dois guardas e conduzida ao palco da triste encenação.
O semblante desencarnado e a expressão de loucura deformavam-na em
grande parte. Andrajosa e imunda, quase rastejava, minada pela ausência de
forças.
O simulacro de julgamento era decerto confrangedor.
A infeliz relanceou os olhos baços várias vezes, traduzindo o quanto de
sofrimento lhe invadia o ser.
O acusador, empertigado e ferino, narrou:
— Esta mulher vem da Terra, após uma vida de abominação.
«Enganando-se, quanto pôde, entregou-se a toda espécie de prazeres, assistida
de perto por diversos cooperadores da nossa Organização, após os seus primeiros
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crimes.
«Tendo oportunidade de fazer-se mãe, seis vezes consecutivas, delinqüiu em
todas elas, evadindo-se, pelo infanticídio, a qualquer responsabilidade para com os
próprios atos.
«Na última vez, fez-se vítima da própria leviandade e desencarnou após terrível
e demorada hemorragia que lhe roubou toda possibilidade de sobrevivência.
«Dentre os a quem ela impediu voltassem à carne, aqui estão duas vítimas
suas, em diferentes estados: um conseguiu retomar a forma anterior, mas apresenta
os sinais das lâminas que lhe romperam o corpo em formação; o outro ainda dorme,
hibernado, na forma desfigurada, graças ao despedaçamento sofrido, no ato do
aborto.
«Logo despertou, porém, no túmulo, alguns dias após o desenlace, acreditandose
viva no corpo — ignorante das realidades espirituais —, um soldado nosso deulhe
«voz de prisão» pelos crimes cometidos e, algemando-a, trouxe-a ao cárcere,
em que tem estado até este momento.
«A sua primeira vítima, que pertencia aos nossos quadros, apresentou queixa,
há muito, o que nos levou a assisti-la por alguns anos e agora nos reunimos para
fazer justiça. »
O pobre espírito assistia a tudo, quase sem se aperceber. Parecia
semidesvairado, recolhendo a muito esforço mental algumas expressões esparsas,
que no entanto não conseguia coordenar...
Os insultos e doestos choviam, atirados em abundância.
A testemunha fez chocante narração, várias vezes interrompida pelo vozerio das
galerias, após o que, uma voz se destacou na bulha, anunciando o veredicto:
— Culpada!
Gargalhadas estridentes espoucaram de todos os lados.
O Dr. Teofrastus ergueu-se e, depois de receber mesuras dos comparsas,
sentenciou:
— Façamos com ela, o que no íntimo sempre foi:
uma loba!
Acercou-se da sofrida entidade e, fitando-a, escarnecedor, passou a ofendê-la,
vilmente.
A vítima não apresentou qualquer reação. Era como se a sua visão se
encontrasse longe, a fixar as evocações dos abortos delituosos a que se entregara
nos dias de insensatez, que ficaram para trás, mas que não se consumiram...
Obrigando-a a ajoelhar-se, enquanto lhe estrugia no dorso longo chicote
sibilante, ordenou, de voz estertorada:
— Víbora infeliz! Devoradora dos próprios filhos! Toma a tua forma... a que já
tens na mente atormentada.
“A tua justiça é a tua consciência... Obedece, serpente famélica!»
A voz, impregnada de pesadas vibrações deletérias e vigorosas, dobrava os
centros de parca resistência perispiritual da atormentada, e, diante dos nossos
olhos, ao comando do sicário cruel, que se utilizava de processos hipnóticos
deprimentes, atuava no subconsciente perispiritual abarrotado de remorso da
infanticida, imprimindo-lhe a tragédia da mutação da forma, num horrendo fenômeno
de licantropia, dos mais lacerantes...
Choros convulsivos e gritos irromperam simultâneos das arquibancadas. A
altercação foi geral. Repentinamente escutaram-se cirenes de alarme, e a perturbação
se fez total...
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Saturnino, a meia voz, buscou acalmar-nos, aduzindo explicações:
— A visão horrenda para todos nós produziu em algumas centenas de
reencarnados aqui presentes, constringidos pelas forças obsessivas nas quais se
encontram subjugados aos seus verdugos, choques muito profundos e violentos,
que os recambiaram inopinadamente ao corpo — abençoada cidadela de defesa
que a vida nos concede para aprender e recomeçar...
— Despertarão, extremunhados, esses espíritos, mesmo os que conservam a
demência nos registros da consciência retornando de estranhos e terríveis
pesadelos, banhados por álgidos suores, amedrontados, chorosos, desesperados...
E desejando esclarecer-nos com as sábias lições, continuou, enquanto os
distúrbios prosseguiam:
— Nesse sentido, é que o conhecimento do Espiritismo realiza a melhor
terapêutica para o espírito, higienizando-lhe a mente, animando-o para o trabalho
reto e atitudes corretas e sobretudo dulcificando-o pelo exercício do amor e da
caridade, como medidas providenciais de reajustamento e equilíbrio. Não há força
operante no mal que consiga penetrar numa mente assepsiada pelas energias
vitalizadoras do otimismo, que se adquire pela irrestrita confiança em Deus e pela
prática das ações da solidariedade e da fraternidade.
E dando mais ênfase ao ensino, arrematou:
— Aliando o esforço que cada um deve envidar a benefício próprio, a prece é a
fonte inexaurível que irriga o ser, renovando-o e aprimorando-o, ensejando também,
logo após depurar-se, a plainar além dos reveses e tropelias, arrastado pelas sutis
modulações das Esferas Superiores da Vida, onde haure vitalidade e força para
superar todos os empeços.
Paulatinamente a ordem foi restabelecida, conquanto a evasão dos encarnados
fosse muito expressiva, na busca desesperada de refúgio nos corpos.
A cena estranha Continuou por mais alguns momentos e o atormentado espírito
da mulher-lobo foi, por determinação do chefe, remetido ao interior para ser colocado
em defesa do anfiteatro.
Houve, ainda, algumas outras demonstrações de hipnose elementar e grosseira,
porém de efeito na multidão, atônita, quando o espetáculo foi encerrado, após a
saída do infame séquito e do seu famanaz.
Um tanto deprimidos, saímos, também, e voltando a respirar o hálito da
Natureza, quando chegamos àpraça em que se encontrava a União Espírita Baiana,
depois da Jornada pelo mesmo processo, adentramo-nos, para receber energias
revitalizantes e esclarecimentos finais do vigilante Benfeitor.
Recompondo o círculo e carinhosamente recebidos pelos que ficaram, fomos
concitados à oração, após o que Saturnino, empenhado em esclarecer-nos,
elucidou, pausado:
— Aparentemente, os infelizes companheiros que mourejam no Anfiteatro
constituem segura organização a serviço do mal. Adestrados na prática da
ignomínia, supõem-se preparados para investir contra os espíritos atormentados
que gravitam em ambos os lados da vida, imanados às paixões que os consomem,
paixões cujo comportamento facilmente sintonizam com eles e outros afins, caindolhes
nas malhas vigorosas que, em última análise, se transformam em instrumentos
de que se utiliza a Lei Divina para corrigir os que ainda preferem os tortuosos
caminhos... Muito tempo se passará até que as Leis de Amor, Leis da Vida,
portanto, se estabeleçam em definitivo entre nós... Convém considerar que só o
bem tem características de perfeição, por ser obra de Deus, que é Perfeito. O mal,
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engendrado pelo espírito atribulado, opera por métodos de violência e, dessa
forma, é falho, o que atesta a sua procedência. Não fosse isso e não nos
poderíamos ter adentrado no recinto das intervenções malignas, pois que o. psicovibrômetro
ter-nos-ia denunciado... À semelhança de um contacto Geiger que detecta
a radioatividade, o psicovibrômetro obedece ao mesmo princípio, tendo, porém, as
características magnéticas que registam a psicosfera dos que dele se acercam,
detectando as vibrações mais suaves que, então, disparam a agulha que incide
numa “relay” que, por sua vez, comanda um circuito de alarmes espalhados nas
dependências adjacentes...
Como procuramos sintonizar com o meio ambiente em que nos encontrávamos
e aspirando os mesmos resíduos espalhados no ar, mergulhamos, naturalmente,
em densas ondas de baixo teor vibratório que nos envolveram a todos, sendo que
nós, Ambrósio e Glauco, passamos a sofrer os mal-estares compreensíveis, a que
Guilherme por sintonia constante está habituado e os demais encarnados do Grupo,
graças à condição do corpo orgânico não experimentaram maior choque,
permanecendo, momentaneamente, no mesmo teor de energias deprimentes, que
impediram a oscilação da agulha de registro do aparelho... Fosse, porém, o inverso,
isto é: se o aparelho detectasse vibrações de baixo tom vibratório, nenhuma
Entidade das que ali se encontravam, desejando violar recintos Superiores, poderia
sutilizar o padrão da sua psicosfera para criar condição mais elevada. Sem dúvida
que toda ascensão é lenta e áspera... Agradeçamos, portanto, ao Senhor. Teremos
ensejo de retornar ao
Anfiteatro, oportunamente, para prosseguir observações e tarefas, quando,
então, o irmão Glauco desempenhará função específica junto ao nosso irmão Teofrastus...
Os trabalhos foram encerrados quando os primeiros raios da Alva venciam a
teimosia da noite.
Reconduzidos ao corpo, particularmente nossa pessoa conservou lembranças
dolorosas e angustiantes. O dia nos foi de inquietação e distonia emocional, como
se a noite nos houvesse ofertado cruéis pesadelos, de cuja visão confusa não nos
podíamos libertar.
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Apontamentos novos
Afastado do conúbio permanente com Mariana, graças à interferência dos
Benfeitores Espirituais, Guilherme esteve todo o tempo em tratamento
especializado, de modo a refazer o campo mental, secularmente abalado pelo ódio
infeliz e destruidor.
Mariana, por sua vez, que já vivia aclimatada psiquicamente às vibrações do seu
perseguidor, sentiu-lhe a ausência desde o momento em que Saturnino recolhera ao
aconchêgo da prece aquele que se lhe fizera verdugo inconsciente e pertinaz.
No dia imediato à primeira incorporação de Guilherme, a jovem, após retornar
ao lar, deixara-se abater por forte prostração. As emoções suportadas durante
aquele dia, a expectativa dolorosa e frustrada quanto ao desejado colóquio com o
namorado, a presença da Sra. Aurelina e o reencontro com a genitora gastaram-lhe
as resistências psíquicas e físicas, desde há muito vilmente vampirizadas pelo
comparsa desencarnado.
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A jovem amanheceu, portanto, indisposta e perturbada. Recordava-se de
cruéis pesadelos de que fora vítima, nos quais parecia estar sempre perseguida por
impiedoso assassino que lhe desejava tomar a vida, despertando transtornada e
sendo acometida de constantes delíquios.
Dona Rosa e Amália desdobravam-se em angustiante assistência à moça
atormentada, sem lograrem os resultados que desejavam. O Sr. Mateus, indiferente
ao drama que se desenrolava no próprio lar, mantinha-se apático, distante...
Ao entardecer, como Mariana continuasse em doloroso desconserto emocional,
por alvitre de Amália foi chamado um médico relacionado com a família, que, após
aplicar um sedativo, recomendou repouso e confidenciou à mãe aflita a sua opinião
de que a jovem estava com singular crise histérica, da qual poderia sair
mentalmente perturbada.
A nobre senhora, banhada em lágrimas, redobrou cuidados junto ao leito da filha
e de imediato solicitou a Amália fosse buscar a caridade nas mãos de José Petitinga,
convidando-o a vir ao seu lar, em tarefa de socorro e compaixão.
O servidor fiel do Evangelho, à hora aprazada, tendo-nos antes convidado,
compareceu, conosco, solícito, ao lar dos Soares, e fomos conduzidos ao quarto em
que a moça dormia, visivelmente agitada.
Depois de demorada concentração e de sincero recolhimento através da oração,
Petitinga, amparado carinhosamente pelo irmão Saturnino, fez demorada aplicação
de passes na jovem, que lentamente se foi acalmando até que o sono se lhe fez
reparador, tranquilizante.
Interessado em acalmar a família aflita, esclareceu, bondoso:
— Mariana, conforme verificamos nos trabalhos espirituais da noite passada,
vinha sendo vítima de uma obsessão em grave desenvolvimento. Vinculada pelo
passado culposo a atormentado companheiro que se lhe transformou em adversário
vingador, absorveu durante alguns anos as energias deletérias em que se via envolvida,
criando um condicionamento psíquico, que, embora desgastando o seu
organismo, lhe servia, também e simultâneamente, de sustentação. Libertada da
constrição perturbadora, conforme acompanhamos durante os trabalhos
desobseøsivos, ressente-se e padece as consequências da falta dos fluídos
pesados...
E desejando elucidar com mais segurança, acrescentou:
— É como alguém que, ambientado a uma região de ar viciado, repentinamente
fosse trasladado para um planalto de ar rarefeito e puro, o que produziria natural
sensação de mal-estar, asfixia e tortura.
Depois de uma pausa mais longa, como se rebuscasse os refolhos da memória,
e inspirado pelo seu Espírito guia, adiu:
Tenho a impressão de que os labores socorristas da noite se alongaram durante
as horas do sono... Estão-me impressas na mente desde esta manhã diversas
cenas que me recordam serviços espirituais junto a Mariana, seus familiares e o
Espírito perseguidor... Estou certo de que o processo em estudo se alongará ainda
por algum tempo e de que teremos que envidar muitos esforços no sentido de
eqüacionar os problemas que se misturam no drama dessa obsessão, muito característica,
aliás. No momento, vejo Saturnino que, assentindo com gesto peculiar da
cabeça, nos conclama àpaciência, à oração e à vigilância. Mariana não está
desamparada, mas se faz mister carinhosa assistência e muita dedicação, até que
se possa recobrar do doloroso embate, cujo pórtico de libertação somente agora vislumbra,
tendo muito caminho a percorrer. Viremos diàriamente aplicar-lhe passes e
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instruí-la espiritualmente como o caso requer, de modo a que ela aprenda a
sintonizar em outras faixas do pensamento espiritual e moral, a fim de contribuir
eficazmente para a própria regeneração íntima e recuperação da saúde.
Despedindo-se gentilmente dos familiares visitados, sob visível gratidão de
todos, ao chegar à rua Petitinga prosseguiu explicando-me, assumindo essa atitude
que lhe era habitual:
— Ocorre que despertados os centros da memória subconsciente, Mariana se
vê agredida pelas próprias imagens desequilibrantes que acalentou, e que se
podem transformar em infeliz processo de loucura. Loucos não são somente os que
são vítimas de infecções específicas, os que têm lesões cerebrais, os que sofreram
traumatismo craniano, os que padecem de tumores no cérebro, os esquizofrênicos e
outras tantas que se apresentam sob causas outras. Não apenas os obsidiados por
Entidades desencarnadas. O enfermo mental, classificado em qualquer
nomenclatura, é espírito perseguido em si mesmo, fugitivo das Leis Divinas,
refugiando-se numa organização psíquica que lhe não resiste aos caprichos e se
desborda em alucinações, até à alienação total. Muitas recordações infelizes de
existências passadas podem, repentinamente, assomar à consciência atual,
libertadas dos depósitos da subconsciência, criando estados patológicos muito
complexos. Essas evocações podem tomar dois aspectos distintos: remorso
inconsciente a se manifestar em forma de autopunição, como buscando reparar o
mal praticado, e recordação tormentosa, persistente, gerando a distonia da razão, o
desequilíbrio do discernimento. No caso de Mariana, a segunda é a hipótese que
melhor se lhe ajusta.
Fez silêncio. A noite convidava à meditação. As ruas calmas da cidade
ensejavam marcha lenta e agradável. Interessado em clarificar o problema, aduziu:
— Como observamos durante os trabalhos já referidos, que tiveram curso
demorado quando buscamos o leito, na noite passada — dos quais me lembro cada
vez com melhor nitidez —, Mariana se defrontou, parcialmente desdobrada pelo
sono, com o seu antagonista e recordou naturalmente da fuga ao dever, da
responsabilidade pelo sofrimento que acarreta ao atual desafeto, ficando desse
modo vivas, na mente, as cenas revisadas pela necessidade imperiosa que se fazia
do reencontro espiritual da vítima e do algoz, para o impositivo da pacificação. Nada
ocorre em nome de um protecionismo que seria injusto e indigno do Nosso Pai.
Verdugo e vítima são filhos do mesmo Amor, momentaneamente separados por
desconsideração ao dever ou por maneira inditosa de acatar os fatos e
acontecimentos da vida. Daí, a inevitabilidade de uma existência pautada nos
conceitos sempre atuais do Evangelho de Jesus.
— E terá ela probabilidade de se refazer? — indaguei, interessado.
Sempre muito sereno, o interlocutor fitou-me com os seus olhos muito claros e
brilhantes, e disse:
— Como você sabe, Miranda, a Lei é de Amor, sem dúvida; no entanto, também
é de Justiça e de Misericórdia. Muito dependerá da menina Mariana. Falou-nos
Dona Rosa que o esculápio diagnosticara tratar-se o seu problema de uma «crise
histérica», deixando maliciosamente a suspeição de ser o problema de ordem
sexual, que não tenho autoridade técnica do assunto para contestar. Acreditam os
discípulos de Freud, que no sexo se encontram as explicações para quase todos os
problemas que afligem o homem, na Terra. A comunhão afetiva, inegàvelmente,
vazada na excelência do amor, consegue sublime intercâmbio de forças e energias
de variada espécie que restauram, às vezes, as organizações físicas e psíquicas em
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desalinho, especialmente quando de tal intercâmbio resulta a bênção de filhos,
pois que os inimigos espirituais quase sempre tomam a roupagem filial e renascem
nos braços dos seus antigos adversários, libertando-os temporàriamente das
perturbações que antes experimentavam — o que dá aos materialistas a falsa
impressão de que o problema foi resolvido pela comunhão sexual calmante, por
ignorarem, os que assim pensam, as leis das reencarnações, que são santificadoras
portas de paz! — para surgirem outras implicações, mais tarde, que somente o
amor, a abnegação, o perdão puro e a humildade, amparados na oração, podem
eqüacionar. Confiemos que Mariana se liberte quanto antes da atual conjuntura e se
possa preparar para o amanhã vitorioso. Há também um argumento que contraria a
tese materialista que atribui ao sexo proezaz quase ilimitadas. Não poucas vezes
casais perfeitamente harmonizados e sexualmente tranquilos, descambam para
lamentáveis desequilíbrios, os quais não se enquadram na apressada solução do
uso do sexo, como moderador para o campo emocional.
Chegáramos ao local do transporte. Tomamos as conduções e rumamos em
direção diversa.
Desde então, diariamente visitávamos a paciente que, lenta, porém
seguramente, dava mostras de recomposição íntima. Dias houve mais graves,
consequência natural dos encontros mantidos espiritualmente nas tarefas em
desdobramento e de que ela não se dava conta ao retomar a lucidez orgânica.
Instruída cada dia nas lições ministradas por Petitinga, logo depois começou a
andar e pôde, então, frequentar as sessões de estudos e passes dirigidas pelo
amoroso seareiro de Jesus.
De quando em quando, acordava agitada, revendo-se em terras distantes,
experimentando tormentosas agonias compreensíveis...
Petitinga, inteirado do processo de obsessão, conforme prosseguiam os
serviços espirituais nas diversas reuniões especialmente convocadas por Saturnino
para tal mister, quanto estávamos nós próprio, auxiliava a enferma, esclarecia,
ministrava passes, orava, conclamava, otimista, aos serviços da esperança e do
amor. Concitou-a vezes várias à aproximação afetiva com o Sr. Mateus que, sempre
reservado, apresentava já alguns sintomas característicos da «psicose senil», ele
que também estava menos azorragado pelas tenazes de Guilherme, ora em
tratamento.
Graças às palestras edificantes do generoso expositor, o lar dos Soares se foi
transformando, não totalmente, produzindo uma atmosfera de entendimento relativo,
que resultava em bem geral.
O caminho a percorrer, no entanto, era ainda muito longo. Passaram-se apenas
quatro semanas desde o choque entre filha e pai, quando tivera começo o serviço
da desobsessão.
Na noite imediata ao encontro malogrado, Adalberto, refeito do problema
gastrintestinal de que fora vítima, procurou informações sobre Mariana, vindo a
saber por pessoa amiga de que esta se encontrava enferma. Solicitou, então, logo
depois, permissão a Dona Rosa para visitar-lhe a filha, no que foi atendido pela
generosa matrona, embora sem atinar com a razão que o levava a este impulso.
Sem compreender o que ocorrera, Adalberto não pôde ocultar a singular
surpresa que o acolheu quando visitou Mariana. Desfeita, sem vitalidade, a jovem
causou-lhe imediata compaixão. Fitando-a, em silêncio, repassou pela mente pouco
afeita a cogitações mais elevadas os planos que animara até quase às vésperas,
deixando-se arrastar por abençoado arrependimento. Vendo a sua quase vítima,
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indefesa, quase desfalecida, um sentimento novo de afeição começou a brotar no
seu espírito, compreendendo a necessidade de imprimir diferente rumo às suas
atitudes. A vida física, junto ao leito da namorada, lhe parecia tão rápida e
enganosa! Agradecia a Deus, sem palavras, a enfermidade que o impossibilitara de
ter ido ao encontro com a jovem, sem entender de como tudo fora estabelecido
pelos Emissários do Bem.
A partir daquela noite, passou a visitá-la com regularidade, sob a aquiescência
materna, e, depois, por curiosidade e para ser gentil acompanhou-a às dissertações
espíritas, revelando-se um admirador entusiasta do Espiritismo, e de Petitinga que
lhe conquistara imediatamente a amizade.
Quando se encerravam as exposições doutrinárias, invariàvelmente Adalberto
se acercava do venerando evangelizador e lhe apresentava, em forma de perguntas
inteligentes, problemas que o afligiam intimamente, ou relacionava os informes
espíritas com os fatos e angústias humanas, os dramas sociais, as enfermidades
irreversíveis, nas quais milhões de seres se debatem e se desesperam, e para os
quais a Ciência Médica na grande maioria dos casos se apresenta impotente.
As respostas serenas, lúcidas e lógicas, oferecidas por Petitinga, dealbavam
para o moço horizontes de esperança, dantes jamais sonhados.
Mariana, conquanto muitas vezes permanecesse de semblante turbado por
funda melancolia, invadida por macilenta palidez da face, registrava as lições novas
nos refolhos dalma, com viva emoção. Vezes outras, enquanto recebia o recurso do
passe, deixava-se dominar por choro convulsivo e desesperador, tomando um “facies”
de desespero como se visões pavorosas lhe assomassem à mente, após o
que caía em prostração.
Petitinga sempre interessado em ajudar-nos com esclarecimentos, diante da
jovem adormecida, explicava:
— Essas crises procedem de visões por parte de Mariana dos seus
perseguidores espirituais, pois que estes, amparados, não a inquietam no momento.
Ocorre que o próprio espírito, jugulado ao remorso por muitos anos antes de
reencarnar, fixou vigorosamente na sede da memória perispiritual, que mais tarde
se imprimiriam no cérebro, as cenas dolorosas que vivera no Hospício do Haarlen,
conforme narrara ela mesma quando desdobrada pelo sono, no reencontro com
Guilherme. O corpo é sempre para o espírito devedor — devedores que
reconhecemos ser todos nós — sublime refúgio, portador da bênção do olvido
momentâneo aos males que praticamos e cuja evocação, se nos viesse à Consciência
de inopino, nos aniquilaria a esperança da redenção. Quando viciado por
indisciplina da nossa vontade, ele envia aos recônditos do espírito os
condicionamentos que se transformam em flagício, passando de uma reencarnação
a outra, até que se depure, libertando os centros da vida das impressões vigorosas
que os sulcaram. Na mesma ordem, os erros e os gravames praticados pelo espírito
em processo evolutivo são transmitidos ao corpo que os integra na forma,
assinalando nas células os impositivos da própria reparação, a se apresentarem
como limitação, frustração, recalque, complexos da personalidade como outros
problemas e enfermidades que são as mãos da Lei Divina reajustando o infrator à
ordem. A semelhança de uma esponja, o corpo absorve as impressões que partem
do espírito ou as elimina, como também se carrega da psicosfera ambiente e a
envia ao íntimo, passando a viver-lhe as emanações. Abençoar, portanto, esse
«doce jumentinho», como o chamava meigamente Francisco, o Santo de Assis, com
disciplina e educação, é dever que a todos nos devemos impor a benefício próprio e
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que não podemos postergar.
Diante das ínformações doutrinárias oferecidas pelo preclaro Benfeitor Petitinga,
quedávamo-nos comovidos, buscando pesar, cada vez mais, as responsabilidades
que nos competem na condução da organização física, lamentàvelmente tão pouco
aproveitada pela imensa maioria das criaturas humanas.
Enquanto se desenvolviam os labores socorristas a Guilherme e
simultaneamente a Mariana, os implicados mais diretamente nas malhas do
sofrimento redentor, ela apresentava sinais de reequilíbrio, enquanto registrávamos
os benefícios que a todos nós alcançavam, graças à aplicação da caridade fraternal.
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Processos obsessivos
À medida que os serviços de socorro a Mariana prosseguiam, fazia-se
indispensável remover as raízes pro fundas da obsessão que, através das
vinculações de Gui lherme a Teofrastus, se tornaram mais complexas.
Estando o lar do Sr. Mateus sob o assédio de entidades viciosas outras,
pertencentes ao clã Teofrastus, que mantinham estreito comércio com Marta, a filha
mais velha, o movimento de desencarnados era muito expressivo, em atividade
contínua e de resultados nefastos.
Portadora de mediunidade com amplas possibilidades, Marta reencarnara ligada
a comensais do erro em que derrapara espontaneamente em existência pregressa.
Aquinhoada com os recursos psíquicos do intercâmbio espiritual, deveria aplicar as
forças de ordem paranormal ao serviço do bem e da caridade, de modo a autoiluminar-
se, iluminando por sua vez os que se lhe vinculavam pelos fortes liames
das dívidas. Conquanto houvesse conhecido o serviço da mediunidade sublimada
sob as bênçãos de Jesus, na União Espírita Baiana, preferira o círculo das baixas
vibrações em que se demorava, atendendo a vigorosa hipnose de entidades infelizes
e impiedosas que lhe dominavam o campo mental, amplamente afetado.
Dizendo-se ligada aos graves conúbios com antigos escravos do Brasil, ainda
dirigidos por ódios demorados, fascinava-a as incursões no terreno do
«candomblé», inexperiente e insensata, em cujos segredos procurava aprofundarse,
penetrando lamentavelmente em grosseiras burlas, que a conduziam a
dolorosos processos de possessão paulatina e segura.
Dirigida por mentes tenazes, irreversivelmente portadoras de alta dose de
rancor, fazia-se dócil instrumento para as consultas da irresponsabilidade, aliciando
outros cômpares para o vampirismo que grassa em larga escala nos diversos
departamentos da crosta terrestre, entre os seres invigilantes e pretensiosos.
Não poucas vezes, dirigida pelos famanazes espirituais da rebeldia, adentravase,
noite alta, pelas necrópoles da cidade em busca de despojos humanos para os
infelizes serviços a que se entregava, conduzindo de volta ao lar verdadeiras legiões
de sofredores revoltados que se lhe vinculavam em longo processo perturbador de
que no momento não se apercebia, fascinada como se encontrava pela própria
sandice.
As orações de Dona Rosa e Amália eram o único lume aceso no labirinto em
que se debatiam as forças desencontradas ali operando em guerra de longo curso.
O poder da oração e a vida de elevação santificante, no entanto, são capazes,
embora a aparente fraqueza de que se revestem, de anular toda a treva, blindando
de segurança qualquer circunstância. Embora ignorando que fosse o seu ninho de
sonhos doridos um reduto de espíritos desditosos, Dona Rosa sentia a exsudação
psíquica que empestava o ambiente, reservando-se maior dose de confiança no Pai,
que a amparava benigno, defendendo-a e aos outros membros da família dos
miasmas dominantes na atmosfera do lar. Entidades afeiçoadas igualmente,
serventuárias do amor, visitavam com freqüência a família Soares, dispensando a
todos socorro e assistência contínua, de modo a impedir que os sequazes da
criminalidade ali dominassem em toda a extensão.
Não eram apenas os Espíritos perturbados da esfera dos desencarnados.
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Muitos perdulários buscavam os serviços de Marta tentando, através de
conciliábulos com as mentes nefandas, resultados para mil aventuras a que se
afeiçoavam no jogo ilusório das paixões terrenas. Eram pessoas que perderam
objetos de estimação e esperavam encontrar, nos Espíritos, interessados caçadores
de precisão; mulheres amadurecidas que não lobrigaram consorciar-se e que
desejavam transformar os Espíritos em instrumentos dos seus desejos; esposas
infelizes que sofriam a falência do matrimônio, recorrendo ao concurso de entidades
mentirosas que lhes modificassem a paisagem doméstica; criaturas desempregadas
que contavam com solução para a aquisição de trabalho de remuneração
expressiva; escravos do ódio que se acreditavam vitimados por este ou aquele
adversário, solicitando revide e desforço imediato; mentes desvairadas, ancilosadas
pelo vício, rogando solução para problemas complexos... Atendidos no «consultório
» reservado de Marta, que mantinha pequeno casebre para o seu infeliz
comércio, muitas vezes, conquanto a severidade de Dona Rosa, eram recebidos
clientes no próprio lar, em cuja oportunidade apresentava receitas e exigia materiais
para os trabalhos por meio dos quais informava resolver qualquer situação penosa,
liberando de problemas os seus consulentes.
Portadora de psicofonia sonambúlica atormentada, vidência e audiência
dirigidas por cruéis verdugos desencarnados, a obsidiada vivia relacionada com
Espíritos ociosos que lhe prestavam informes seguros sobre os seus visitadores,
informações essas que surpreendiam agradàvelmente quantos a buscavam,
interesseiros e levianos.
Sempre ávidos de novidades, sem o interesse de conhecer a realidade da vida
espiritual após a sepultura, as pessoas ainda hoje preferem da realidade espírita
conhecer somente o que consideram fantástico e sobrenatural, teimando
voluntariamente em permanecer no erro.
Assim se quedavam fascinadas quando a sensitiva lhes explicava os diversos
problemas, pormenorizando detalhes e apresentando soluções fáceis quanto
mágicas para eles. É certo que os Espíritos, conquanto perturbados em si mesmos,
podem fazer incursões no terreno material e informar-se sobre muitas coisas do
plano físico em que se demoram os homens, pois que a morte não lhes arrebatou a
inteligência nem lhes anulou o raciocínio. São capazes, obviamente, de acompanhar
as criaturas, dar-lhes assistência e inteirar-se das ocorrências do caminho humano,
apresentando circunstanciados relatórios, como se houvessem podido, por
sortilégios estranhos, possuir o «dom» do conhecimento. Conseguindo êxito no
primeiro tentame, o da informação, produziam os demais planos verdadeira
consagração nos invigilantes que se comprazem na «lei do menor esforço» e que
ainda se reservam o direito de manter o cativeiro, que, embora desaparecido da
Terra, continua em outros círculos do mundo espiritual em lastimáveis processos.
Ainda hoje é muito comum escutarem-se aqueles que dizem ter «um espírito às
suas ordens», que os ajuda, atendendo-os com «fidelidade de cão».
Invariavelmente se ligam a antigos escravos que a desencarnação não libertou e
que prosseguem, na sua ignorância quanto às realidades da vida, no vicioso
intercâmbio com as consciências da Terra, dominados ou dominadores — o que
também ocorre, modificando-se então o tipo de escravidão que é o predomínio do
desencarnado sobre o encarnado —, quase sempre em profunda perturbação.
Vaidosos, os homens não atentam ao dever da solidariedade nem da caridade,
considerando-se credores de socorros e ajudas que estão muito distantes de
merecer. Asfixiados pelo «eu, dominador, supõem que a vida deve servi-los e que o
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barro orgânico é edifício para o seu supremo prazer... Nesses homens e mulheres
desprevenidos da realidade do além-túmulo, consciências livres e ironizantes
estabelecem jugos de dominação que degeneram em enfermidades de etiologia
difícil para a medicina humana, e que não acabam sequer com o advento da
desencarnação...
Aí estão, todavia, claras e puras as lições do Cristianismo, ora revividas na
Doutrina Espírita, clamando quanto às responsabilidades de cada um em relação a
si mesmo e ao próximo; vibram os pensamentos de Jesus, arrancados do silêncio
dos séculos, convidando ao amor, à santificação da vida; sublimes vozes da Imortalidade
proclamam a Era da Luz combatente contra a treva; venerandos
desencarnados retornam e revivem os conceitos imortalistas da verdade, cantando
a excelência dos Mandamentos; ilações excelentes quanto às causas e aos efeitos
dos sofrimentos e das ações são apresentadas por antigas cerebrações que
dignificariam a existência entre os homens; mortos queridos ressuscitam do
sepulcro vazio para consolarem e animarem, levantando o moral e estimulando ao
dever; guias e condutores da Humanidade reassumem a direção do pensamento da
Terra, pregando esperanças, dirimindo dúvidas, plasmando diretrizes de paz;
obreiros da compaixão retornam e tomam das mãos dos homens, com mãos
intangíveis, para os conduzirem a retas atitudes, e uma sinfonia de bênçãos em
forma de melodia de justiça, amor e caridade, envolve a Humanidade como se os
anjos da noite santa do Natal voltassem a repetir: «Glória a Deus nas alturas e paz
na Terra entre os homens de boa vontade»! Os ouvidos das criaturas, porém, ante
as atroadas dos desesperos, os olhos queimados pelo incêndio das paixões, os
sentimentos crestados pelo vazio da volúpia e os cérebros abrasados pela
sofreguidão do poder parecem não registrar tão sublime sementeira de luz, não
sentir tão grandiosa epopeia de vida!...
O triunfo do Consolador prometido por Jesus, ora entre nós, ainda não atingiu o
climax. Ele, porém, repetindo as «vozes dos Céus», prosseguirá no desiderato da
verdade, semeando bênçãos, embora as pequenas colheitas de amor, e ficará até o
«fim dos tempos».
A missão do Espiritismo é a mesma do Cristianismo das primeiras e refulgentes
horas do caminho e das arenas: levantar o homem do abismo do «eu» e alçá-lo às
culminâncias da fraternidade, após galgado o monte da sublimação evangélica
redentora.
Transitório o período das trevas, prepara ele as consciências para o
despertamento da verdade.
Saturado das vibrações ultrajantes, o espírito humano buscará, invadido por
incomparável sede de renovação, as fontes inefáveis do bem, mergulhando demoradamente
nas suas águas refrescantes...
Assim considerando e diante das esperanças e consolações que nos aguardam,
os nefandos labores da atormentada quimbandista nos inspiravam funda
compaixão, compaixão que também nos merecem aqueles que buscam os desvios
da leviandade para enganarem a consciência, tentando a fuga espetacular às linhas
do dever. Não poderão alegar desconhecimento da verdade, nem se justificarão
como ignorantes do auxílio dos recursos divinos; lamentarão sem poderem fruir o
consolo reservado aos que se esforçaram em perseverar na augusta direção do
bem; chorarão sem lenitivo, por desprezo àimpostergável mensagem do «fazer ao
próximo o que deseja lhe faça ele»; sofrerão demoradamente longe do recurso da
prece, de que se utilizaram mecanicamente, sem qualquer respeito, fazendo-a
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instrumento de capricho infantil antes que veículo de comunhão com o Senhor...
São os que se encarceram nos presídios sem paredes da mente desalinhada e
tormentosa, O tempo, porém, que de tudo se encarrega, cuidará dos sandeus com a
mesma mestria que liberta os humildes, os pacificadores, os simples de coração...
herdeiros da Terra!
Ora, com o andamento das operações de socorro ao lar da família Soares, o
irmão Teofrastus fora informado por comparsas seus, ali residentes, dos rumos que
tomavam os processos de dominação, que até então repousavam em suas ávidas e
duras mãos.
Em face disso, o irmão Saturnino programara novo encontro espiritual, através
do médium Morais, no qual se tentaria uma entrevista com o antigo mago de Ruão,
que teria atividades em pauta para a madrugada do dia imediato, no Anfiteatro já
nosso conhecido.
À hora aprazada, em desdobramento parcial pelo sono, encontramo-nos no
recinto das tarefas mediúnicas da nossa Casa de oração, conduzidos que fôramos
pelo irmão Ambrósio, lá defrontando os demais membros das tarefas em curso, com
exceção do irmão Guilherme, que fora recolhido, dias antes, a local próprio de
repouso e refazimento espiritual.
Após comovida oração proferida pelo irmão Saturnino, este explicou os objetivos
da reunião, que deveriam colimar num encontro pessoal com o irmão Teofrastus, e
cuja orientação seria ministrada pelo Benfeitor Glaucus, responsável pela empresa
que se nos afigurava de grande porte, em considerando a necessidade de nos
adentrarmos, novamente, no Anfiteatro para, após as exibições dolorosas,
mantermos entrevista com o gênio das sombras.
A caravana estava constituída pelo irmão Glaucus, Saturnino, Ambrósio —
mensageiros adestrados em tarefa de tal envergadura — e por nós outros,
desdobrados parcialmente pelo sono: Petitinga, o médium Morais e nós.
Tomando o veículo que nos conduziu à região em que se encontra localizado o
cenário das ocorrências infelizes, acercamo-nos de pequeno grupo agitado que discutia,
em altas vozes.
Indigitado obsessor informava:
— Hoje teremos um espetáculo formidando. Fui informado, desde as vésperas,
por diligente amigo inteirado das ocorrências daqui, e eu não podia faltar. Necessito
de aprender e utilizar os recursos da técnica moderna para fazer justiça...
Estrídula gargalhada ressoou, sarcástica.
Outro infeliz perseguidor, que assinalava no facies macilento e desfigurado a
condição íntima, grunhiu:
— O caso de hoje, como outros anteriores, pertence à força da justiça. Entre
nós, a lei tem função punitiva. Nada de correção, nem piedade. Quem fere será
ferido, e acabou-se.
Uma senhora que se caracterizava pelo desleixo da aparência, com fundas
olheiras, narinas arfantes e lábios finos, contraídos, de semblante patibular,
arengou:
— Eu conheço pessoalmente o infrator que hoje começará a experimentar o
rigor da justiça... Estou ansiosa. Não percamos tempo. Entremos!
Em ruidosa zombaria, rumaram na direção da porta principal e desapareceram
entre a multidão agitada.
O que merece registro é que todos se referem àJustiça. Esquecidos da própria
condição, tornaram-se juizes dos outros, esfaimados como se encontram de
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equilíbrio. Enlouquecidos nos desvarios da vindita, estribam-se no falso conceito
da (justiça com as próprias mãos», derrapando em crimes hediondos que os surpreenderão
mais adiante, recebendo-os nas malhas da inexorável lei da evolução. O
momento, no entanto, não comportava considerações de tal natureza. Gentilmente
advertidos por Saturnino, reunimo-nos em prece e, absorvendo as energias
deletérias com que modificaríamos a «psicosfera espiritual», algo arquejantes sob o
império das emanações de baixo teor vibratório, respirando a custo, com a
aparência algo desfigurada para não chamar a atenção, acercamo-nos em grupo,
da entrada, atravessando o torniquete em que se encontrava instalado o
«psicovibrômetro».
O ambiente interno, insuportável, estava carregado de fumo e vapores
nauseantes, asfixiantes. Luzes pesadas caíam em tons fortes projetadas na direção
do centro em que se dariam os espetáculos. A multidão de galhofeiros era
considerável. Doestos e expressões vulgares explodiam em atroada forte de todas
as direções. Alguns encarnados, amedrontados uns, voluptuosos outros,
participavam das galerias atulhadas.
O irmão Saturnino, sempre gentil, explicou-nos ser necessário considerar que ali
se encontravam muitos espíritos encarnados, espontaneamente presentes, participantes
habituais que se fizeram de espetáculos daquele vulto. Espíritos aclimatados
às regiões inferiores donde procediam, antes da reencarnação, no corpo carnal encontraram
elementos grosseiros para se refestelarem, mantendo a sintonia com os
que ficaram na retaguarda. Outros, menos avisados, se mancomunaram com as
mentes infelizes que pululam em toda parte, e nas horas de vigília se nutrem dos
pensamentos deprimentes e opressivos derivados dos prazeres animalizantes em
que se demoram, ali se reunindo nas breves horas de parcial desprendimento pelo
sono, para darem curso aos apetites mais brutais. Sexólatras inveterados,
perturbados das funções genésicas, alcoólatras, morfinômanos, cocainômanos,
opiômanos e outros que possuem os centros da razão anestesiados pela monoidéia
do gozo, em perfeita comunhão: assimilando e eliminando as vibrações viciadas das
construções mentais constantes de que se fazem objeto permanente (*)•
Com intervalos regulares, soaram os sinais prenunciadores do início da função
execranda.
Com estrépito quase ensurdecedor, as sirenes anunciaram a aparição do Dr.
Teofrastus.
Alguns clarins de sons agudos foram ouvidos e sinistro séquito, carregando o
palanquim em que se encontrava o arguto obsessor, deu entrada em cena. Gritos e
aplausos atordoantes encheram o amplo recinto. Impassível, como um poderoso rei
da impiedade que visitasse larga colônia de súditos infelizes ou escravos
repelentes, após o circuito em que a ovação parecia também apupos, a estranha
mole que o acompanhava, em que apareciam alabardeiros sinistramente vestidos,
parou, e o mago, tomando atitude estudada, abandonou a ridícula rede adornada e
com olhar brilhante de águia relanceou a visão por todos os recantos,
desafiadoramente, sentando-se em cadeira de alto espaldar, como se fora um trono,
em posição central, donde poderia dirigir o cerimonial.
Silêncio tumular se abateu sobre o anfiteatro.
Ridículo mestre de cerimônias, mais parecido aos antigos bufos das cortes, de
rosto duro e encovado, tomou de pequeno microfone e começou a falar.
A voz roufenha era um arremedo de discurso laudatório à figura do Dr.
Teofrastus.
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— Este é o nosso representante da Justiça — disse entre outras
considerações — nos círculos em que nos
(*) Hoje, com a facilidade do uso desenfreado de estupefacientes,
barbitúricos vários e outros alucinógenos, em que expressiva quantidade de
mentes se perturbam, nos estados característicos do “transe”, esses espíritos
adensam recintos como o a que nos referimos, tornando-se escravos de
outras mentes viciadas que se locupletam nas suas emanações morbíficas. —
Nota do Autor espiritual.
encontramos. É claro que ele não detém toda a justiça. É serventuário zeloso dos
bens da vida, que não podem ser dilapidados impunemente pelos defraudadores, da
verdade.
Fez pequena pausa de efeito. As palavras justiça e verdade soavam ali muito
estranhamente. Pareciam proferidas com o objetivo único de criarem pânico nas
mentes desavisadas, colhidas pela consciência íntima, que realmente ninguém
consegue anestesiar indefinidamente.
Não somos impiedosos como afirmam muitos —prosseguiu com entonação
de ira e maldade. Somos somente a consciência externa dos que escondem a consciência
pessoal e fraudam, esquivando-se, depois, ao acerto de contas de que
ninguém se eximirá. Não condenamos quem quer que seja. Despertamos cada
devedor para a autopunição. Não violentamos a liberdade de ninguém, nem
constrangemos Espírito algum a tomar parte em nossos atos. Todos os que aqui
nos encontramos usamos as duas alternativas normais: sintonia por afinidade de
gostos — que nos congregam numa poderosa confraria em que uns justiçam e
outros são justiçados, e sintonia pelo medo — que requisita o material necessário
para resgate dos crimes praticados, através dos processos compatíveis de que as
Leis utilizam nossas possibilidades de punidores que nos fizemos, também
espontaneamente.
«Isto posto, temos as mãos lavadas de qualquer culpa e segurança íntima de
que não somos benignos com uns e severos com outros. Cada um aqui recebe
conforme o seu merecimento. Dispomos de meios de tudo saber e temos uma
legião de informantes que fiscalizam os que se demoram no corpo, conquanto
ligados à nossa Colônia, para que, quando aqui trazidos, quer na roupagem física
ou não, possam ouvir de testemunhas devidamente adestradas o relato das Suas
desditas, como se a própria consciência neles resolvesse falar.
«Dr. Teofrastus é, pois, a chibata da lei. Preparai-vos!
«Consciências infelizes e corações empedernidos, esperai!
«Temos tempo. Dispomos do milagre da supervivência. A morte é isto: o que
cada um fez, como viveu, conforme preferiu agir. Suportai agora o resultado das
vossas atitudes. »
Silenciando a voz estranha, uma quietude cruel se abateu sobre o recinto.
Mesmo alguns dentre os Espíritos obsessores mais cínicos apresentavam no
semblante estarrecido o estupor e o receio. Afinal ali estavam somente consciências
ultrajadas, e as expressões vigorosas verdade e justiça, conquanto desvitalizadas
da sua grandiosa significação, para eles representavam o invariável ajuste de
contas de que ninguém se furtaria.
A um sinal adrede combinado, o Dr. Teofrastus ergueu pesado cetro e o bateu
violentamente no palanque que o sustinha.
76
O mestre de cerimônias bradou:
— Tragam o primeiro caso.
Rebuscando entre tiras de papel que mantinha nas mãos, destacou uma e leu:
— José Marcondes Effendi, 21 anos, domiciliado na Terra.
Dois ajudantes de enfermagem apareceram trazendo uma maca na qual, em
sono profundo, aparecia um espírito reencarnado, desdobrado em corpo espiritual,
que foi colocado na mesa cirúrgica situada no centro do proscênio.
Todos estávamos de olhos fixos no que ocorria.
O locutor novamente chamou:
— Apresente-se a testemunha.
Do grupo que cercava o Dr. Teofrastus, destacou-se horrenda figura, de
aspecto repelente, que se acercou do paciente em repouso agitado.
— Pode falar! — impôs o sinistro apresentador do espetáculo.
Tomando do microfone para se fazer ouvido e pigarreando asquerosamente, o
mísero sofredor narrou:
— Estive na Terra há aproximadamente 60 anos, donde fui expulso por
homicídio vergonhoso... Era radicado no Rio de Janeiro, nos últimos dias do
Segundo Império, fazendo parte da média burguesia. Acreditava-me feliz na vida
conjugal, quando, por insistência da esposa, buscara recreação, em férias de
dezembro, em Petrópolis, fugindo à canícula do Rio, hábito, aliás, que se repetia
cada ano. Não imaginava que a companheira, de quase 15 anos de vida em
comum, ligara-se a aventuras extraconjugais com um dos meus empregados, que
servia numa das lojas de tecidos de minha propriedade. Não tendo filhos, por minha
morte todos os meus bens recairiam nas mãos da viúva.
Embargado, senão pela emoção, porém pela ira repentina que o dominava, fez
uma pausa, que foi interrompida por estímulos coléricos das galerias:
— Prossegue! Narra! Nada de medo! Desejamos saber tudo...
— Instalado na serra petropolitana entre amigos folgazões, que se beneficiavam
do excelente clima, fui assassinado cruelmente, sem piedade, pela esposa e o
amante, que ela emboscara na intimidade da alcova, cinco dias após ali nos termos
alojado. Logo depois, oferecendo ensejo para que o criminoso se evadisse, ela
encenou um roubo de jóias e outros valores, do que resultara o hediondo crime...
Hábil na arte da dissimulação, fez-se acreditar; e o homicídio passou impune.
Embora aberto inquérito que se arrastou tristemente entre as autoridades
competentes, sem testemunhas nem novos fatos que viessem justificar suspeitas, o
caso foi encerrado e a sepultura silenciou sobre a tragédia passional.
Novo choque da turba desesperada:
— Que aconteceu? — gritavam, em coro, as vozes desenfreadas.
— Ao despertar do lado de cá, experimentando as cruezas da imortalidade,
dominado por incoercível ódio, ardendo de desejos de vingança, retornei ao lar —
não posso atinar com o tempo que houvera transcorrido —e, então, o meu horror
não teve limite. A traidora, passado um regular período de luto, consorciara-se com
o meu assassino, entrando ambos na posse dos meus bens, fruindo o resultado do
crime feroz...
Transfigurado de dor e revolta, esbravejando com expressões das mais
chocantes, o narrador, de olhar desvairado, prosseguiu:
— O desespero foi-me fulminante. Tive a impressão de morrer outra vez. Uma
angústia bestial feriu-me, e a dor que sentia no peito varado pelo estilete com que
me destruíram o corpo foi acrescentada à de um ftártico que me queimava e
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requeimava, até que, louco, perdi a noção de tempo, de lugar, de tudo...
Refossilei em regiões indescritíveis, por quantos anos não poderia dizê-lo com
segurança, sem refrigério, sem socorro... Há poucos anos senti uma força que me
arrancou do inferno em que me demorava e sübitamente recobrei alguma lucidez,
descobrindo-me diante de um jovem de 10 anos aproximadamente, por quem de
imediato nutri incomparável horror. Elos poderosos me atavam ao estranho corpo
juvenil, e, vinculado ao lar em que ele vivia, comecei a compreender que aquele
corpo, por sortilégio demoníaco que me escapava, ocultava a adúltera, agora
revestida de forma nova, como que mascarada para continuar a fugir à sanção que
merecia...
«Eu ignorava totalmente a lei de «vinda-ida-e-volta» (1) em que os criminosos
são obrigados a percorrer outra vez os sítios malsinados pela sua conduta
vergonhosa, mas sentia que, perseverando ali, mais cedo ou mais tarde
surpreenderia a verdade. Foi o que fiz. Comecei a acompanhar aquele ser, que me
inspirava a mais chocante revolta. Paulatinamente me fui afinando com ele e tão
constante me fiz na eficiente fiscalização que um dia, em que o sono o dominou,
percebi que ela, a horrenda assassina, abandonava o corpo dele. Vendo-me, reconheceu-
me, e voltou a refugiar-se nas carnes novas, que foram sacudidas por
vigoroso choque, produzindo nele o despertar apavorado. Não mais arredei pé. »
A recordação entrecortada de soluços e descontroles produziu violenta crise na
entidade, que continuou estimulada pelo auditório ávido do desfecho. Recompondose,
após olhar a figura impassível do Chefe, prosseguiu:
— No lar em que ele se ocultava travei conhecimento com um membro desta
Colônia, que ali também residia, e vim aqui trazido para uma entrevista com o Dr.
Teofrastus.
Ante a citação do nome do mago, os ouvintes em desatrelada balbúrdia
aplaudiram com palmas, assobios e gritos ensurdecedores. A sirene soou impondo
silêncio e a narração continuou:
— Ouvido atentamente pelo Chefe, ele recomendou-me uma vingança de longo
curso.
Foi visitar pessoalmente a minha inimiga e após demorado exame chegou à
conclusão de que poderíamos produzir muito em nome
(1) A entidade se refere à lei da reencarnação. — Nota do Autor espiritual.
da justiça a meu benefício, O corpo era moço, mas o espírito que o animava era o
da assassina, que merecia severa punição. Identificando nela (em corpo de homem,
embora) as tendências guardadas da vida anterior, em que as dissipações atingiram
o auge — o esposo depois de expropriar-lhe os bens, evadiu-se para a África,
deixando-a na mais chocante miséria, o que a levou a uma vida boêmia, aniquilando
o corpo em imundos catres de perversão moral, vitimada pela tuberculose que
contraíra ao peso de excessos de toda a natureza, fácil seria perturbar-lhe os
centros genésicos, através da perversão da mente inquieta, em processo de
hipnose profunda, praticada por técnicos do nosso lado.
Gargalhadas estentóricas estouraram de todos os lados.
— Viva a justiça! — Gritaram. — Muito bem! Adiante!
— Em pleno amadurecimento das faculdades sexuais, sob a rigorosa
assistência de um hipnotizador destacado pelo Dr. Teofrastus, foi fácil modificar-lhe
o interesse e inclinar-lhe alibido em sentido oposto ao da lei natural, já que o seu
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corpo era masculino, produzindo irreparável distonia nos centros da emoção. Daí
por diante associei-me à sua organização física e psíquica, experimentando as
sensações que lhe eram agradáveis e criamos um condicionamento em que os
nossos interesses agora passaram a ser comuns. Tão fortemente me liguei à sua
vida, que o ódio se converteu em estímulo de gozo, imanando-nos em processo de
vampirização em que me locupleto e através do qual a destruo, atirando-a cada vez
em charco mais vil, até que o suicídio seja sua única solução...
O auditório vibrava. Os espetáculos romanos do passado não poderiam ser
mais chocantes. Era difícil saber-se se aqueles eram espíritos que habitaram corpos
humanos ou primitivos seres que apenas experimentaram o trânsito do instinto para
os albores da inteligência, através de formas humanas...
Na pausa que se fez natural, Saturnino, visivelmente comovido, comentou:
— Justiça em nós mesmos! O erro acompanha sempre o desrespeitador da lei,
enquanto ele não se modifica para a verdade e não se submete espontaneamente à
reparação. Acreditam esses infelizes irmãos que o poder lhes está nas mãos,
teimando por ignorar que a lei que lhes concede ensejo para tais proezas não lhes
permite o uso desregrado da impiedade nem da suprema humilhação, olvidando
conscientemente a aproximação do momento deles próprios, em situação
possívelmente muito mais dolorosa...
Silenciou, pois que a narrativa entre ovações e achincalhes tinha curso.
— Depois de alguns anos de convivência entre ela e mim — continuou a
entidade —, percebi que curiosa tristeza a malsinava. Sentia-se dominada por mim
e começou a registrar-me a presença. Agora, após concluir o curso médio e iniciarse
na Universidade com maior compreensão dos problemas humanos, sabendo do
drama íntimo, resolveu procurar um psicanalista de renome. Submetida a diversos
testes e sessões especializadas, o facultativo, que é dócil à minha sugestão —
merece esclarecer que a este tempo já me enfronhara devidamente nas técnicas da
sugestão, nos diversos processos hipnológicos de que me utilizo com frequência
para colimar os meus desejos — e que ignora, totalmente, na sua soberbia
intelectual as realidades deste lado, utilizando-se de expressões muito em moda,
por mim inspiradas, sugeriu que o essencial na vida é a pessoa realizar-se como
achar conveniente, e que tudo o mais são tabus que devem ser quebrados, em prol
da felicidade de cada um...
Pressionando o especialista com hábil sugestão, consegui que ele a
estimulasse ao prosseguimento habitual dos seus atos, o que não me foi difícil.
Novas gargalhadas espocaram, acompanhadas dos mais chocantes verbetes
da infelicidade humana.
Muito estimulado pelo consenso geral, o Espírito infeliz culminou:
— Quando já me supunha dono absoluto da situação, alguém aconselhou-a a
procurar sessões espíritas, pois que isto bem poderia ser uma obsessão. Esse alguém
é um certo pregador do Espiritismo, nesta cidade, que se propôs ajudá-la com
passes e outros recursos que ignoro.
— O quê? — bradou o auditório. — Onde já se viu? E a justiça? O Espiritismo é
o maior inimigo da nossa Organização. Fora com o. Espiritismo; reajamos à
intrujice...
Novamente o silvo das cigarras impôs silêncio.
O narrador prosseguiu:
— Atônita começou a frequentar algumas sessões e eu me senti repentinamente
sem possibilidades de dominá-la como fazia até então. Sabendo-a sem resistência
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para o que já lhe constituía um hábito, comecei a sugestioná-la de longe. A infeliz,
no entanto, ao invés de receber as minhas impressões, fez-se beata, começou a
orar. Recorri então ao Dr. Teofrastus que, muito sábio, lhe deu assistência
especializada e conseguiu induzi-la a novos compromissos, obrigando-a a reincidir,
o que me ofereceu ensejo de trazê-la aqui hoje.
Saturnino, vigilante, elucidou:
— Em qualquer problema de desobsessão, a parte mais importante e difícil
pertence ao paciente, que afinal de contas é o endividado. A este compete o difícil
recurso da insistência no bem, perseverando no dever e fugindo a qualquer custo
aos velhos cultos do «eu» enfermo, aos hábitos infelizes, mediante os quais volta a
sintonizar com os seus perseguidores que, embora momentaneamente afastados,
não estão convencidos da necessidade de os libertar. Oração, portanto, mas vigilância,
também, conforme a recomendação de Jesus. A prece oferece o tônico da
resistência, e a vigilância o vigor da dignidade. Armas para quaisquer situações são
o escudo e a armadura do cristão...
— O meu desejo é continuar a dominá-la — continuou arengando — e, nesse
sentido, nosso Chefe se propôs submetê-la a uma intervenção cirúrgica, processo
eficiente contra o qual os espíritas nada poderão fazer, no sentido de libertá-la.
A um sinal do Dr. Teofrastus, o Espírito silenciou.
O antigo mago de Ruão levantou-se, acolitado por dois assessores, e examinou
a entidade, cujo desequilíbrio e invigilância, quanto ao culto das responsabilidades,
a levara àquela dolorosa situação.
Enquanto isso ocorria, Saturnino esclareceu:
— Não duvidemos do concurso do Alto. Jesus vela! A vítima de si mesma, que
os nossos olhos contemplam, não está à mercê de tão sinistros algozes,
abandonada. Entidades vigilantes socorrê-la-ão logo mais. O Espiritismo possui
antídotos para todas as surtidas das mentes radicadas no mal, desde que os que
buscam a linfa soberana e refrescante da fé restaurada, desejem assumir consigo
mesmos os compromissos de perseverarem nos deveres superiores, a benefício
pessoal. Oremos e confiemos!
Iremos fazer uma implantação — disse em tom de inesquecível indiferença o
Dr. Teofrastus — de pequena célula fotoelétrica gravada, de material especial, nos
centros da memória do paciente. Operando sutilmente o perispírito, faremos que a
nossa voz lhe repita insistentemente a mesma ordem: «Você vai enlouquecer!
Suicide-se! Somos obrigados a utilizar os mais avançados recursos, desde que
estes nos ajudem a colimar os nossos fins. Este é um dos muitos processos de que
nos podemos utilizar em nossas tarefas...
Estarrecidos, vimos o cruel verdugo movimentar-se na região cerebral do
perispírito do jovem adormecido, com diversos instrumentos cirúrgicos, e, embora
não pudéssemos lograr todos os detalhes, o silêncio no recinto denotava a
gravidade do momento.
Transcorridos uns dez minutos, a cirurgia foi dada por concluída e o paciente foi
removido.
Quantas indagações me fervilhavam na mente! A hora, porém, não comportava
quaisquer esclarecimentos. Era momento significativo na história de nossa vida espiritual
e o ambiente abafado, negativo, asfixiava-nos a todos. O Dr. Teofrastus
retornou ao palanque e desfilaram mais alguns casos. Logo depois, o espetáculo foi
encerrado.
A grande mole de entidades começou a debandar. Os alto-falantes declararam
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que a partir daquele instante o Chefe concederia entrevistas.
Era chegado o momento.
- Mantenhamos serenidade e sigamos nosso irmão Glaucus — falou, sintético,
Saturnino.
— O Benfeitor desceu das galerias, acompanhado pelo grupo, e aproximou-se
do palco central em que estava o Dr. Teofrastus.
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Reencontro com o passado
Cercado por acólitos paramentados estranhamente, que se faziam secretários e
selecionavam os casos para o Chefe, também se apresentava resguardado por entidades
ferozes, em cujos semblantes, sulcados por fundos sinais de perturbação
íntima, a hipnose produzira estados de alucinação e truculência. Incapazes de qualquer
raciocínio, tais seres exteriorizavam a acuidade do animal que resguarda o
sino e agride os menos vigilantes.
Dentre eles se destacavam os que foram vítimas de transformações nas sedes
do perispírito, ali presentes possivelmente com a finalidade de criarem condicionamentos
psicológicos de medo, nos consulentes menos avisados.
O irmão Glaucus, muito sereno, concitou-nos à prece muda e à preservação do
estado espiritual de equilíbrio, fossem quais fossem os acontecimentos que, porventura,
viessem a ocorrer, e nos manteve imediatamente atrás dos pequenos
magotes que eram interrogados pelos acólitos.
O nosso grupo, unido, aguardava, enquanto o Sacerdote, a pequena distância,
tomava atitudes e decisões, utilizando-se sempre do pavor de que se fazia fâmulo
avaro para dominar e influir consulentes.
Uma Entidade de aparência cruel se destacou dentre os fâmulos atuantes,
acercou-se do irmão Glaucus e indagou dos motivos da entrevista, e quem eram os
participantes do conjunto.
O venerando Benfeitor elucidou com simplicidade que se tratava de Espíritos
dos dois planos da vida, necessitados de ouvir o Dr. Teofrastus a respeito de grave
problema de obsessão em andamento e para o qual somente ele possuía os
recursos necessários. Aduziu que fora indicado por Guilherme, o moço holandês
que antes era membro daquela agremiação.
Repassando o olhar de quase alucinado, fiscalizando-nos, como tentando
descobrir além das palavras os motivos reais da entrevista, sacudido por espasmos
da face, sucessivos, colocou-nos de lado, e prosseguiu no mister a que se dedicava.
Só então me foi possível reparar o Dr. Teofrastus, considerando a pequena
distância que nos separava. O rosto cruel, adornado de barba rala, à oriental, em
torno de lábios grossos em rito de permanente ira, nos olhos avermelhados e
grandes, algo fora das órbitas, ameaçadores, zigomas salientes, testa larga e
cabeleira abundante, era a encarnação clássica do pavor.
Como se adivinhasse a minha observação discreta, ele desviou o olhar da
chusma que atendia e cravou nos meus os seus olhos, com interrogação forte e
dura, fazendo-me baixar a vista, perturbado. O irmão Glaucus, que observava o
acontecimento, advertiu-me, delicado:
— Estamos em tarefa do Senhor. Todo o cuidado é indispensável para o êxito
do empreendimento. Curiosidade agora é, também, desconsideração ao
compromisso. Tenhamos tento!
Com a oportuna observação, convocou-me, caridoso, ao recolhimento, à prece.
Atendidos os que se encontravam à frente, foi chegada a nossa vez. Ficamos
um pouco mais atrás, enquanto o irmão Glaucus, representando a equipe, humilde e
nobre, falou sem preâmbulos:
— Senhor, aqui estamos indicados por Guilherme, o neerlandês que há pouco
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tempo se despediu desta Organização, rumando em direção do corpo.
O mago ergueu o sobrolho carrancudo e penetrou com dura expressão os olhos
do Benfeitor, procurando devassar-lhe o íntimo do espírito.
Um dos asseclas aproximou-se e confidenciou alguma observação.
A pausa oportuna, proposital, era dirigida no sentido de criar melhor recepção
no ouvinte silencioso, de expressão ferina.
Prosseguindo, elucidou o nosso condutor:
— Ocorre que nos encontramos em perfeita identificação com Guilherme, que
vos tem servido com dedicação, buscando-vos nesta oportunidade para falar-vos
sobre Henriette, que sabemos vinculada ao vosso coração, desde há muito...
— Henriette Marie de Beauharnais? — Inquiriu, quase fulminado por forte raio
de ódio.
— Sim, Senhor — confirmou, imperturbável o Irmão Glaucos.
A entidade levantou-se do trono ridículo e avançou furioso, como se fosse
aniquilar o informante, que continuou sereno, confiante. Em chegando ao lado do
Instrutor, que revelava no semblante marmórea palidez, estancou o passo e,
erguendo o simulacro de cetro, golpeou o piso reiteradas vezes, ameaçando com
voz soturna, atitude essa que impôs alarmante silêncio no Anfiteatro, que ainda se
mantinha com alguma algaravia. Todas as atenções se concentraram em volta dos
dois parlamentadores e as Entidades mais infelizes da coorte aproximaram-se em
atitude ameaçadora, cercando o Chefe dolorosamente vitimado pela irascibilidade.
— E que deseja informar-me que porventura eu não saiba? Ignora quem sou?
— Esbravejou, compreensivelmente revoltado.
— Sabemos, sim, Senhor — prosseguiu o Mensageiro. — Ocorre, porém, que
considerando a magnitude do assunto, que viemos tratar, muito agradeceríamos se
pudéssemos ser ouvidos a sós, sem os circunstantes... Somos portadores de
notícias que somente à vossa autoridade devemos confiar...
Depois de expressivo silêncio, arrematou:
— Henriette necessita do vosso socorro...
O Espírito ferido pela inesperada surpresa, estrugiu cruas exclamações e
gritos, dando ordens diversas, simultâneas, e segurando o irmão Glaucus
violentamente, ordenou, rouquenho:
— Venha comigo!
O Benfeitor não opôs qualquer resistência e o seguimos.
Os demais membros do grupo foram cercados pelos sequazes do Chefe e
conduzidos à parte dos fundos do Anfiteatro, para onde ele rumara com o nosso
Mentor.
A sala de amplas proporções era decorada em tons fortes e sombrios em que
bruxuleavam luzes de tonalidades chocantes - Aquele era o gabinete do vigoroso
espírito das sombras, temido e detestado.
Sentando-se em cadeira colocada em posição de destaque, ordenou:
— Estou aguardando as informações.
Imprimindo à voz inflexão nobre, sem qualquer afetação, o Instrutor esclareceu:
— Dedicamo-nos ao serviço de socorro aos padecentes, em nome de Jesus,
e...
— Jesus? Esta é minha casa — estrugiu o truculento Espírito. — Aqui, esse
nome é maldito, detestado. Como se encoraja a dizer-me que se dedica a socorrer
os padecentes diante do Chefe da Casa da Justiça?
Avançou feroz, espumejante, como se desejasse destruir aquele que o
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enfrentava, sentindo-se, no entanto, impossibilitado de fazê-lo.
— Não desejamos desafiar a força do nobre doutor Teofrastus, que
conhecemos, e a quem aprendemos a respeitar como sendo instrumento da Vida e
da Verdade — evidenciou o Mensageiro humilde. — Ocorre, no entanto, que não
poderíamos trair os objetivos desta entrevista, se falamos ao Comandante destes
sítios, em nome da Verdade mesma, sim, mas sobretudo da Misericórdia e do Amor.
Erguendo o olhar lúcido, o Instrutor, concentrado em Jesus e utilizando todo o
potencial das suas forças magnéticas e hipnológicas, enfrentou a vibração em crispas
exteriorizadas pelo interlocutor, como se naquele entrechoque de forças a
corrente do amor vencesse as descontroladas energias do ódio e da animosidade,
dando continuidade à narração:
— Visitando perturbados espirituais, encarcerados no corpo, identificamos, há
pouco tempo, Henriette, em doloroso processo de vampirização, vitimada por
elementos desta Organização, e por isso...
— Desta Casa? Estarei ouvindo corretamente? —Indagou, interrompendo, abrupto
— Henriette, vítima de nossa Organização? E que o induz a pensar que me
interessa a vida de qualquer pessoa, da Terra, somente porque é supostamente
Henriette-Marie de Beauharnais? Quem o informou de que eu poderia ter algo a ver
com essa personagem?
— Ela mesma — redarguiu o Mentor, tranquilo. —Assistindo-a com recursos
magnéticos, conseguimos fazê-la recordar o passado, para fixar-lhe socorros, e, enquanto
narrava o próprio drama, evocou o imenso amor que dedicou à sua pessoa,
nos idos do século 15, antes de funesto acontecimento..
O Dr. Teofrastus, colhido intempestivamente pela informação segura e
indiscutível, ergueu-se outra vez, de um salto, e, apoplético, segurou com mãos de
aço o narrador, indagando, descontrolado:
— Onde se encontra ela? Que lhe aconteceu? Que foi feito da sua vida? Leveme
até à sua presença imediatamente. Desejo averiguar.
— Não posso, amigo. Não depende de mim e sim de vós. Esta a razão da
entrevista que estamos mantendo. Desejamos concertar o meio de conciliar os objetivos
elevados a que todos nos propomos, de modo a regularizar situações em
desalinho, de cujo labor resultem os benefícios de que temos necessidade.
— Mas eu sou um dos Gênios do Mal, e as minhas medidas diferem das suas —
estrondou, ofegante. — Represento a Justiça e odeio a Misericórdia. Desperto cada
consciência criminosa para o relho da punição. Nunca defrontei nem usei a piedade
ou a comiseração. Sou vítima do Cordeiro e O odeio... Não há, pois, termo de
conciliação entre nós. Sinto-me, portanto, obrigado a extirpar-lhe a confissão
através dos meus métodos, que certamente não lhe são desconhecidos.
— Sim, certamente os conhecemos — assentiu, o Benfeitor. — Convém,
todavia, considerar que, antes de tomarmos a atitude de procurar-vos o local de
dominação, examinamos as diversas possibilidades de vitória e fracasso, concluindo
pela primeira hipótese, tendo em vista que não vimos aqui solicitar, mas oferecer em
nome do Doador Supremo da Vida, de Quem não nos evadiremos indefinidamente.
Afirma o Dr. Teofrastus que foi vítima do Cordeiro, e sabe que a informação não
confere com o fato. As diretrizes do Cordeiro jamais foram compatíveis com os
processos da Inquisição Católica, como não são concordes com os métodos da
Justiça de Deus esses da justiça aplicados pelas vossas mãos. Quanto à ameaça
de arrancar-me as informações que deseja, por métodos incompatíveis com os
intuitos deste encontro, concluímos pela inexequibilidade, já que a nossa presença
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informa do interesse que temos de ofertar os esclarecimentos sem qualquer
pugna que gere uma situação infeliz entre nós ambos.
— Mas eu posso reter os participantes da sua embaixada nos meus domínios,
nos quais sou senhor absoluto — baldoou, soberbo.
— Não discuto a posição relativa do Chefe — clarificou o irmão Glaucus. —
Desejamos, porém, lembrar-vos de que o poder, de que falais, vem todo ele do Alto,
de Deus, desde que ninguém é o dono da vida, senão Ele. Quanto a ficarmos
retidos em vossas mãos, isto somente viria a acontecer se essa for a vontade dEle,
e, sendo, submetemo-nos humildemente, tendo em vista poder servi-Lo em
qualquer lugar e em toda situação, por mais embaraçosa nos pareça.
Lágrimas nos orvalharam os olhos. A linguagem desataviada e franca do
Benfeitor, a atitude firme e humilde testemunhavam as mil necessidades de porfiarmos
na verdade sempre, em nome do Senhor.
O Dr. Teofrastus, vencido pela lógica irrefutável do visitante, dissimulou a ira
que o empolgava e, embora continuasse arrogante, inquiriu:
— Que deseja, afinal, de mim?
— Que me ajudeis a libertar Henriette.
— Como eu poderia fazê-lo?
Se nos acompanhásseis ao recinto de provações e dor em que se encontra, vencida
e arquejante sob implacável revel, que a dilacera, vencedor...
— Sigamos, então, sem delongas.
— Recordamos ao nobre Dr. Teofrastus que seguiremos em missão de
misericórdia e que os métodos junto ao verdugo que a infelicita serão os vigentes
nas leis de amor, conforme ensinados por Jesus-Cristo...
— Não percamos tempo com discussão inútil. Adiante!
Convocando dois guardas que se encontravam postados fora do recinto,
confidenciou algumas instruções. As demais entrevistas foram suspensas, e,
abrindo caminho entre os sofredores que ainda se encontravam no recinto,
acompanhamos o antigo Mago na direção dos veículos que nos aguardavam à
porta.
Transcorridos 15 minutos, aproximadamente, chegamos a velho casarão, de
aspecto apavorante pelo abandono a que se encontrava relegado, e penetramos
pelo imenso portão de entrada. O trânsito de desencarnados de aparência
lastimável era muito grande. Encarnados em desprendimento parcial pelo sono
apresentavam-se agitados, semiloucos. Saturnino que nos assistia mais de perto, a
mim, a Petitinga e ao médium Morais, informou que nos encontrávamos num
Lazareto, que albergava mais de 200 portadores do mal de Hansen. Odor
nauseante e forte empestava o ar e densas nuvens originadas pelas vibrações
carregadas de revolta e desespero ofereciam o aspecto das regiões infelizes do
Mundo Espiritual Inferior, em que muitos se reeducam pelo sofrimento.
O irmão Saturnino, interessado em esclarecer-nos, explicou:
— O sofrimento, sob qualquer forma em que se apresente, é bênção. Para que,
no entanto, beneficie aquele que o experimenta, faz-se indispensável ser
acompanhado pela resignação, pela humildade, pela valorização da própria dor.
Não basta, portanto, sofrer, mas bem sofrer, libertando-se das causas matrizes da
aflição. É muito comum encontrar-se o homem experimentando o impositivo do
resgate, sob nuvens de ira e desesperação, com as quais aumenta, graças à
rebeldia e à queixa injustificáveis, o fardo das dívidas. Por essa razão, há redutos de
reeducação no Além da carne, como dentro das paredes carnais: regiões em que se
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aglutinam os comparsas. dos diversos departamentos do crime para resgatarem,
em clima de afinidade, os desastres cometidos contra a Lei e a Justiça Soberanas.
E para encerrar os esclarecimentos, concluiu:
— Nesta Casa, como em outras similares, desfilam os que afrontaram o corpo,
desrespeitando-lhe as fontes de vida; os que esmagaram outras vidas, enquanto
possuíam nas mãos as rédeas do poder; os que fecharam ouvidos e olhos ao
clamor das multidões esfaimadas e enlouquecidas de dor; mãos que ergueram o
relho e dilaceraram; corações que se empedraram na indiferença, enquanto fruía o
licor da fortuna, da nobreza mentirosa, da beleza em trânsito na forma; os fomentadores
do ódio, os soberbos, os orgulhosos, alguns suicidas calcetas inveterados,
em constante tentação para desertar do fardo outra vez... Em purgatório carnal,
podem transitar para as Regiões da Luz ou para os Abismos da Treva, dependendo
da livre escolha de que dispõem os que expungem com resignação ou com revolta...
Silenciando, aproximamo-nos de um quarto infecto, após vencer longo corredor
em que duas filas de celas imundas albergavam corpos desfigurados de mulheres
profundamente infelizes, carcomidas pela enfermidade destruidora.
O Dr. Teofrastus não ocultava a revolta, o desespero quase irrefreado.
O irmão Glaucus penetrou num dos últimos quartos ao fim da ala imensa, e,
seguindo-o, deparamos cena confrangedora. Três mulheres hansenianas encontravam-
se a dormir, assistidas por pequena malta de obsessores impiedosos que as
dominavam. Em vigília, mantinham-se em guarda, invectivando e atormentando os
espíritos das enfermas semidesligadas do invólucro físico e quase tresloucadas de
angústia, ante o acicate contínuo dos perseguidores.
Os acompanhantes da guarda do Dr. Teofrastus ficaram no corredor, à porta de
entrada da cela, em atitude de vigilância.
Uma jovem de menos de 20 anos, em cujo corpo a doença não produzira ainda
os sinais da sua presença, muito magra e desfalecida sobre infecto grabato, era a
razão da visita.
Muito calmo, o irmão Glaucus elucidou, dirigindo-se ao Mago de Ruão:
— Eis aí Henriette. Tende cuidado e piedade do seu algoz. Iremos atendê-lo.
Evitai, porém, o ódio.
O sicário, que se refestelava no martírio de verdadeiras multidões,
contemplando a jovem desmaiada, banhada por álgido suor e vencida por
vampirismo aniquilante, gritou, estertorado, blasfemando, e avançou na direção do
seu êmulo, ali em posição de adversário, no que foi retido, bondosamente, pelo
Instrutor.
Olhando Saturnino, o Mentor amigo transmitiu uma solicitação silenciosa e o
obreiro da caridade, levantando a voz, exorou a proteção divina em compungida
oração com que nos sensibilizou a todos.
O Dr. Teofrastus, insensível desde há muito às vibrações superiores,
permaneceu invadido pelos sentimentos habituais, o que não impediu Saturnino de
acercar-se da jovem e aplicar-lhe no corpo em delíquio passes longitudinais,
despertando-a, após o que, libertou-lhe o espírito da segura mentalização do
obsessor implacável.
A moça acordou no corpo inopinadamente com o olhar esgazeado, como se
retornando de um pesadelo, para novamente adormecer, após ligeiros minutos de
composição dos pensamentos.
Sensibilizado com a paisagem de sombra do pequeno recinto, Saturnino
atendeu às demais internas, exortando os seus adversários desencarnados, que
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abandonaram o recinto bulhentos, obscenos, insensíveis. O perseguidor da
jovem, no entanto, foi mantido ali em sono hipnótico, enquanto o irmão Glaucus
produzia o desdobramento da paciente e sua imediata lucidez.
A moça relanceou o olhar pelo recinto, e ao deparar com a figura do doutor
Teofrastus foi acometida de choque, desejando evadir-se. Assistindo-a carinhosamente,
o Instrutor vitalizou-a com fluídos calmantes e sugeriu que a Entidade se
aproximasse. A antiga vítima da Inquisição avançou, visivelmente emocionada, e
sem poder dominar a alma em febre, gritou:
— Henriette, Henriette, que te fizeram? Porque me abandonaste?
Choro convulsivo irrompeu, desatrelado, do verdugo de muitos.
Embora a jovem se chamasse Ana Maria, pareceu registrar aquela voz no
recôndito do ser e repentinamente desperta, graças às energias vigorosas que o
Instrutor lhe aplicava na sede da memória espiritual, respondeu, também, em
pranto:
— Quem me chama? Que desejam de mim?
A medida que Ana Maria despertava para o passado, sua forma espiritual
registrava os sinais das tragédias que lhe sucederam através do tempo, para apresentar-
se consideravelmente mudada, envelhecida, com as marcas da
desencarnação e as características da antiga personalidade...
— Isto é a minha Henriette-Marie? — esbravejou o Mago. Não pode ser ela, tão
linda e pura! Essa sombra é alguma megera para confundir-me.
A interrogação dolorosa ressoava no ar, quando a entidade infeliz retrucou:
— E tu, quem és? Porque me ofendes?
— Eu, se tu és Henriette-Marie, eu sou aquele que sempre te amou. Sou
Teofrastus, a quem a fogueira inquisitorial não consumiu, nem a morte pôde fazer
morrer o amor que sempre nutri por ti.
Evocando, através da ansiedade das palavras, o amor do passado e a
desencarnação imposta pela ignorância vigente no pretérito, o Chefe da
Organização maléfica foi sacudido por violento e convulsivo pranto, em que as
comportas da alma, longamente fechadas, pareceram romper-se de inopino, dando
passagem a caudal refreada, em volumoso bloco.
Despertando, mui vagarosamente, Ana Maria apresentava-se tristemente
desnudada pela realidade dos atos pretéritos, semelhando-se a fantasma de dor no
qual estrugissem todas as aflições de uma só vez. O perispírito cruamente
assinalado por exulcerações pustulentas que denotavam os atentados sofridos no
longo curso dos séculos, sem que as mãos do amor ou da redenção nela
houvessem conseguido trabalhar a reorganização das células, ou modificar a
estrutura do tom vibratório, que a infelicitava, causava compaixão.
O amante em desespero, esquecido de si mesmo, contemplava aquelas
transformações que ocorriam ante os nossos olhos — ele que estava acostumado a
cenas muito mais horripilantes, nas quais era hábil manipulador das forças que
jazem inconscientes nos departamentos mais íntimos do espírito humano —, sem
ocultar o assombro de que se fazia possuir.
A forma jovial, até há pouco na moça perseguida em espírito, assumiu
expressões angustiantes, e, como se fora despertada nos centros das mais íntimas
e doridas recordações, explodiu:
— Oh, Deus Misericordioso, tende piedade de mim! Porque tanto sofro, meu
Pai? Piedade, piedade!
Exteriorizou um olhar de inesquecível sofrimento, e, fitando-nos, inquiriu:
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— Quem sois, demônios que me perseguis implacáveis, ou anjos que vindes
salvar-me? Piedade, piedade! Não suporto mais sofrer. Teofrastus, meu amigo, porque
nos separou tão cruelmente a morte? Onde te encontras, que me olvidaste?
Apressei a volta ao mundo dos mortos, faz tanto tempo, para buscar-te, e porque
morri não te encontro nunca...
O tom de lamento e auto-recriminação feria-nos a sensibilidade.
O irmão Saturnino, sempre ativo, concitou-nos àprece intercessória, em muda
atitude de compaixão.
Lentamente as densas sombras do pequeno reduto começaram a diluir-se como
se vagarosa e suave madrugada tingisse de luz as trevas que as mentes desarvoradas
ali reuniram com o passar do tempo...
O Instrutor, utilizando-se da consternação geral e da súbita anestesia psíquica
de que foi possuído o doutor Teofrastus, envolveu a Entidade sofrida em fluídos
balsâmicos e abraçou-a, afetuoso, qual genitor compadecido, em atitude santa de
assistência.
Embora Henriette-Marie desejasse libertar-se do amplexo envolvente, para
correr desvairada, a força do amor terminou por vencer-lhe as resistências e,
aspirando as energias que agora saturavam o ambiente, aquietou-se, com o olhar
denotando ainda as desencontradas emoções interiores em torvelinho de paixões.
Foi a vez, então, do Dr. Teofrastus. Vencendo a custo o estupor que o
imobilizava, blasfemo e irado, pôs-se a ameaçar:
— Aquieta-te, amada! Vingar-nos-emos demorada-mente. Minha clava de ódio
cairá sobre aqueles que ainda são os responsáveis pela nossa desdita. Tenho ligações
com os vingadores ínfernais, e encontraremos meios de atingir todos
aqueles que nos desgraçaram irremissívelmente. Libertar-te-ei do fardo do corpo
odiado, para que venhas reinar nos meus domínios, ao meu lado. Os séculos de
soledade e ódio que me queimaram incessantemente serão, agora, saciados, no
ácido da vingança, e acompanharemos os nossos algozes se diluírem até a
destruição da forma, submetidos ao meu implacável “ajustar de contas”.
Iniciaremos já com esse infame que aqui te ultraja e consome. Levá-lo-ei para o
meu reduto e o punirei, seviciando-o até que ele retorne ao estado de besta
inconsciente...
O Instrutor, confiante, interditou a palavra do Mago em perturbação,
esclarecendo, calmo:
— Aqui vimos em missão de misericórdia e amor. Fostes convidado a ajudar. O
auxílio que necessita da impiedade é azorrague de loucura. A defesa que acusa fazse
crueldade. Só o perdão irrestrito e total consegue a suprema coroa da paz. Quem
somos nós para falar em desforço? Estamos todos sob Leis rigorosas das quais não
podemos fugir. O ódio ateia a centelha de destruição que somente cessa ante o
amor vitorioso e forte. Não acreditemos encontrar-nos nas mãos da desventura,
saindo de uma justa de horror para outro duelo de crime, nascendo e renascendo
em roda de vidas inferiores, sufocados pelos miasmas do desespero e da criminalidade.
Não há porque deixar que a loucura possua a razão e a esmague, e que
o sentimento seja dominado pelas sensações da fera que ainda jas em todos nós,
aguardando o momento de revelar-se implacável.
— Mas eu sou o Dr. Teofrastus — interrompeu, impetuoso e lúrido pela cólera,
esbravejando tonitroante.
— Sim, sois o irmão que agora experimenta a dor, a mesma que vos
comprazíeis em infligir — redargüiu o Mentor. — Este é um dos momentos em que o
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denominado “choque de retorno” realiza o seu mister. Não ignorais, através do
conhecimento das «leis de força», na Física, que a resistência está na razão direta
do movimento produzido pelo impulso dado ao objeto arremessado. Toda ação, por
isso mesmo, produz reações que se sucedem e avançam, chocando-se com os
ditames da Sabedoria Divina e logo retornando na direção de quem as imprime. A
violência, portanto, somente consegue destruição, e como nada se aniquila, a
colheita do ódio é sempre ácido e chuva de amargura.
— Não, eu não suporto vê-la nesse estado — interferiu, congestionado. — Não
terei direito a essa mulher que a vida me negou desde os primeiros momentos? Eu
que comando inúmeras mentes, a um simples gesto, meus servidores que se
encontram aí fora dispõem de meios de atrair verdadeira legião de quem me deseje
servir, e provocaremos um pandemônio, dominando-vos e a esses, arrebatando
essa a quem desejo, a fim de que permaneça comigo... Sei utilizar-me dos recursos
que produzem a rutura dos vínculos que atam o espírito ao corpo. Nesse sentido, os
meus conhecimentos ultrapassam os Seus.
— Não duvido — retrucou, sereno, o Benfeitor Espiritual. — Todavia, considero
a desnecessidade da violência, quando possuimos recursos outros de paz, que o
Senhor Jesus nos oferece e que agora podemos aplicar seguramente.
— Não me volte a falar nesse Crucificado — arremeteu com sarcasmo evidente.
— Nem sequer se salvou a si mesmo; no entanto, deixou um rastro de sangue e
padecimentos por onde passou a lembrança odienta da sua Cruz...
— Enganais-vos! — impugnou o Mensageiro. — O vosso sofrimento na fogueira
foi injusto só aparentemente. Bem sabeis que a vossa vida não se originou ali.
Caminhante da eternidade, quantas existências ficaram sepultas nas cinzas do
passado? É bem verdade que não justificamos a sanha criminosa, que durante a
Idade Média tomou conta da História. No entanto, ainda hoje, que fazeis? Como
estão as vossas mãos? Falais em justiça e clamais, desarvorado. Que direito tendes
de a executar? Não foi esse o erro dos inquisidores do passado, em cuja trama
caístes? Sofrestes, sim, nefanda atrocidade, mas não indébito justiciamento. Se
fosseis humilde e se acolhêsseis o amor, ter-vos-ia libertado e hoje seríeis livre. No
entanto, convertestes a oportunidade em fardo de horror e, enlouquecido, acreditastes
no poder da força, sempre transitória, porque somente perene é a força do
amor, que ainda desdenhais. O próprio Mestre, mesmo perseguido e condenado,
lecionou perdão ao invés de revide, compaixão diante do ofensor, misericórdia em
relação ao revel e caridade em toda circunstância... E ofereceu-se a si mesmo, Ele
que é o Excelso Rei Solar, diretor dos nossos destinos. Reconhecei a própria
fraqueza e parai a escutar, quanto ignorais. Ainda não ouvistes Henriette-Marie...
Os conceitos felizes e oportunos do irmão Glaucus e a hábil maneira com a qual
desviara o tema para os problemas da sofredora, produziram o efeito desejado
sobre o aturdido vingador.
— Conta-nos — apressou-se, quase súplice —, conta-nos o que te ocorreu.
Procurei-te tanto, quando as labaredas deixaram de crestar-me as carnes atadas ao
lenho na praça do Mercado Velho, em Ruão. O ódio que me consumia não me
permitiu, porém, a serenidade de localizar-te. Fui atraído por companheiros da
minha desgraça e ingressei nas hostes dos justiçadores.
Henriette-Marie que fazia compreensível esforço para acompanhar todos os
lances dos cometimentos que aconteciam naquele instante, rebuscando os refolhos
da mente, com voz entrecortada e ofegante, inquiriu:
— Oh, tu és, então, o amor que me roubaram, roubando-me depois a mim
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mesma? Vê o que foi feito de mim! Contempla-me! É infelizmente impossível
recomeçar. Perdi-me na voragem de suicídio que ainda me faz contorcer as
entranhas, sem oportunidade de reparar o gesto, jamais. Estou condenada ao
Inferno.
— Mas não há Inferno — retrucou o interlocutor.
— Os demônios somos nós e um dos muitos infernos existentes, governo-o eu.
Asserena-te e prossegue!
A infeliz entidade, emocionada e dorida, continuou:
— Tenho rogado a Deus, mesmo no corpo, que me conceda a dita da paz, e
ignorava, nos momentos em que me encontro reclusa nessas carnes, que a minha
paz adviria de encontrar-te e voltar a sentir-te ao meu lado. Ajuda-me, se me amas,
a sair do labirinto tormentoso em que tenho vivido. Só o teu amor me dará lenitivo:
socorre-me Teo! Ignoras quanto tenho chorado. Minhas lágrimas se transformaram
em aço derretido que me escorre dos olhos dilacerados, ferindo sem cessar a face...
Ouvindo-a, o Dr. Teofrastus achegou-se e, de joelhos, vencido por emoção
desesperadora, ferido como animal acuado, acudiu:
— Que não farei por ti, eu, que, desde que te perdi, me converti em chama
crepitante que não se consome na voragem da própria desesperação! Aqui estou.
Não sofras mais: tem paciência!
Henriette-Marie fitou-o, então, com olhar de suprema angústia, através do qual
grossas lágrimas rolavam incessantes. Atendida pelos fluídos benéficos do irmão
Glaucus, cujo tórax parecia uma estrela refulgente em claridades cambiantes e
diáfanas, que envolviam a sofredora, ofegante, como se desejasse aproveitar-se do
instante que se lhe apresentava único, para derramar o fel retido no coração,
explicoü:
— Passaram-se tantos séculos já e parece-me que tudo aconteceu ainda
ontem... Quando me informaram que havias sido condenado pela Inquisição ao pão
da dor e à água da agonia, compreendi que passarias àJustiça infame que
governava, arbitrária, caminhando para a fogueira. Tentei ver-te, sem o conseguir
nunca. Não te pude dizer do amor que me estrugia nalma e dos sonhos de ventura
que acalentara para fruir ao teu lado. Quando me anunciaram o teu suplício em
praça pública e a tua morte, refugiei-me nas sombras do Convento, buscando o
esquecimento e o abandono de tudo. A imaginação dos teus suplícios, amado,
atormentava-me, roubando-me demoradamente a paz, e conduzindo-me à loucura
em processo de longo curso. Mas não fugi ao cruel destino, que nos perseguiu
implacável.
Ignoras, talvez, que o infame que presidiu ao processo em que foste envolvido,
fê-lo por felonia... Só mais tarde eu o soube. Disse-me ele mesmo através da boca
do confessionário, quando me quis roubar a honra e apossar-se de mim, que lhe
parecera presa fácil aos caprichos de um homem devasso, fazendo-me serva das
suas paixões. Sabendo do nosso amor — pois que eu lho narrara através de
confissão auricular anterior — dominou temporàriamente a paixão, e sem que o
soubesse, eu mesma lhe forneci as bases processuais, quando lhe narrei as
incursões que fazias no reino dos mortos e as práticas a que te dedicavas. Pedia,
então, conselhos ao nefando traidor... E ele tudo fez para afastar-te do meu
caminho, acreditando, lobo que era, na possibilidade de devorar a ovelha...
Profundo suspiro se lhe escapou dos lábios, como se todos os sentidos, tensos
desde há muito, relaxando-se agora, se fossem despedaçando. Ansiosa por libertarse
das hórridas recordações, prosseguiu:
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— Acreditando na fé espúria que ele ensinava e dizia viver, ouvi-lhe todas as
justificações, deixando-me crer que, embora perdendo a vida, entrarias no Reino de
Deus, graças à intervenção dos atos litúrgicos “post—mortem”, que se prontificou a
celebrar em intenção da tua alma. Não se passara o triste outono da tragédia e
relatou-me a sua furiosa paixão por mim, dizendo-me ter sido eu o móvel de toda a
desgraça que o levara a assassinar-te em nome da fé e da religião... O ódio surdo
que se apossou de mim foi superior a tudo que possas imaginar. Investida nos
hábitos da Ordem a que me recolhera, fi-lo acreditar que me submeteria aos seus
caprichos e, quando visitada pela sua infame pessoa, servi-lhe vinho ao qual
adicionara violento veneno. Após ingerido, constatei os sintomas que começavam a
fulminar a víbora. Segura da sua destruição, contei-lhe, então, enquanto se retorcia
na dor, o meu desprezo e o meu horror. Vencida pela loucura, libei, ali mesmo, alta
dose do vinho envenenado e sucumbi, de imediato, sem nunca morrer...
«Desgraçada de mim. Reencontrei-o logo, esperando-me...
“O que me aconteceu, desde então, não posso relatar. São sucessões de noites
em que viajo ao inferno mil vezes e retorno, ora vencida por forças satânicas, dentre
as quais ele se destaca, vezes outras possuída pela vermina que me vence até o
olvido, para recomeçar tudo outra vez, incessantemente, doloridamente...
«Agora, amado, agora eu o sinto na sua ronda vingadora e o vejo devorando-me
por dentro — eu que o odeio sem remorso —, enquanto a doença me destrói por
fora. Encontrando-te, porém, tudo me parece tão diverso, que esqueceria o vil
criminoso que nos destruiu a ambos e até o perdoaria, se não te apartasses de mim.
Ouve-me, ......
— Ouço-te e providenciarei para que não sofras mais e para que venhas
imediatamente para onde me encontro. Não te deixarei e velarei à tua porta até o
momento que logo virá para a nossa ventura, vencidos os últimos óbices que nos
separam — esses frágeis laços de carne e sangue.
Embora semifulminado pela narração, espumejante de ódio e furibundo, o Dr.
Teofrastus já denotava os sinais do milagre do amor. A voz repassada de sofrimento
indefinível, com que Henriette-Marie relatou o complexo drama em que se vira
envolvida, deixava no verdugo de muitos o desejo imenso de minorar-lhe a longa e
intérmina dor, suportada por tantas décadas através do passar dos tempos.
— Henriette-Marie — informou o Mago de Ruão
—, embora ignorasse todo o teu sofrer, como lenitivo quero que saibas que aqueles
que nos desgraçaram experimentaram nas minhas mãos o látego da justiça. Fiz-me
rei de domínios em que o horror exerce predominância sobre a piedade e em que a
vingança é a lei de toda hora... Ferido, retornei aos sítios da nossa infelicidade e
busquei-te. Não te logrei achar. Ignorava que fugiste pelo mais cruel caminho: o do
suicídio, em cujo curso não tenho meios de interferir, já que o suicida se depara com
outras construções da justiça. A minha mão alcançou o Bispo de... e outros asseclas
seus, longe, porém, eu estava de supor que o causador de tudo fora o teu
confessor, o mórbido criminoso que se disfarçava com as sandálias da humildade
para ocultar o celerado que sempre foi. Buscá-lo-emos, porém. Dir-me-ás onde se
encontra, e nós dois faremos justiça.
Nesse momento, o irmão Glaucus, interferindo no diálogo dos dois Espíritos que
se reencontravam após tão longa separação, elucidou:
— Não esqueçais de que só o amor pode resolver o problema do ódio. Vindesvos
arrastando pela senda do tempo, descendo à animalidade inferior, consumidos
pelo desespero. Quando parareis? A queda não tem patamar inferior: sempre se
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pode baixar mais... Também o planalto da redenção: sempre se pode ascender
na direção da Vida até à glorificação imortal. Olvidai aqueles que vos maceraram e
considerai a oportunidade do amor, que ora defrontais. É certo que vos separam os
elos do corpo. Para quem ama, porém, não há verdadeiramnente separação.
Intervindo, o Dr. Teofrastus arremeteu:
— Não há como aceitar impositivos de amor. Para a nossa felicidade só a
destruição dos inimigos...
— Enganais-vos! — retrucou, o Instrutor. — Não há destruição nem
aniquilamento de vidas ou de Espíritos. Qualquer tentame nesse sentido somente
alongará indefinidamente o vosso martírio. O ensaio de desforço separar-vos-á e a
loucura da suposição, quanto à desencarnação de Ana Maria, não passa de
ingenuidade, que acalentais sem exame minudente e lógico. Não somos os
arquitetos da Vida. Assim, pois, não temos o direito nem podemos interferir no seu
curso, que obedece a planificação superior que vos escapa. Ouvi-me:
o algoz a quem odiais é, também, vossa vítima. Infeliz, espera oportunidade de
perdão, para igualmente perdoar. O fel sorvido incessantennente desespera-o e,
vencido pela própria insânia, desde há muito perdeu a faculdade de discernir.
Escravo do ódio é vítima dele mesmo, tendo-se feito catarina por vontade própria.
Feri-lo mais é arrematada loucura. Já não sofre; perdeu a faculdade de
experimentar a dor. Obedece a impulsos mecânicos do condicionamento demorado
a que se jungiu. Ajudá-lo é ajudar-vos; socorrê-lo com a piedade significa libertarvos.
Embora estivesse disposto ao duelo verbal, o doutor Teofrastus denotava
cansaço, e o reencontro, com Henriette-Marie, de certo modo conseguira feri-lo, ensejando-
lhe novas concepções sobre as Leis Divinas.
O irmão Glaucus, nesse momento, adornado de luzes como veneranda figura
ressurgida em madrugada de imortalidade, tomando os dois seres qual se fora o
genitor de ambos, disse:
— Reencontrar-nos-emos outras vezes. Desdobram-se-nos perspectivas para o
amanhã. Agora se nos impõe a momentânea separação. Ana Maria deve reassumir
os deveres do ressarcimento a que se encontra vinculada, e vós, amigo, necessitais
pensar. O tempo ser-vos-á conselheiro. Despeçamo-nos, e reconduzamos a nossa
querida amiga aos seus compromissos humanos, que não podemos interditar nem
modificar.
O Dr. Teofrastus tentou reagir, insistir. Diante, porém, do Benfeitor, cujo olhar
penetrava-o docemente, o atormentado juiz e vingador baixou os olhos e silenciou.
Foram ministrados passes no obsessor de Ana Maria que se encontrava ao lado
e providenciada sua remoção dali. O Dr. Teofrastus despediu-se, sendo antes
informado da possibilidade de novo encontro em dia previamente assinalado,
quando voltaríamos ao Lazareto. Reconduzidos ao veículo que nos esperava à
porta da casa, retornamos ao Templo de orações, e, após comovida prece, fomos
reconduzidos ao lar.
Um amanhecer em tons róseos e azuis vencia a Natureza em sombras,
anunciando o novo dia.
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10
Programação redentora
No desdobramento das tarefas habituais, através das quais eram mantidos os
contactos com os Benfeitores Desencarnados, nas sessões especiais, hebdomadárias,
recebíamos esclarecimentos e informações, através das quais os irmãos
Saturnino e Ambrósio nos davam elucidações minudentes dos acontecimentos
transcorridos na Esfera Espiritual, quando dos labores abençoados de que
participávamos, conquanto a nossa condição de encarnados no domicílio orgânico.
Dessa forma, inteiramo-nos dos detalhes da operação fraterna junto ao Dr.
Teofrastus e a Henriette-Marie, assim como dos fatos precedentes. Obviamente, ao
retornarmos ao corpo somático, as lembranças das realizações espirituais
desapareciam quase completamente, deixando-nos as evocações em impressões
de sonhos que se manifestavam, ora como pesadelos dolorosos, ora como estados
de comunhão elevada com as Esferas Superiores da Vida. Nesse particular, os
Instrutores se encarregavam de ativar ou frenar os centros encarregados das
lembranças, de modo a que a nossa jornada humana transcorresse com a
normalidade possível, sem problemas que nos perturbassem as atividades de
servidores da Comunidade dos homens.
A recordação detalhada situar-nos-ia entre os dois mundos, ensejando-nos um
desapercebimento das realidades do lado físico, propiciando-nos um desvio da
atenção, que se voltaria para as experiências e realidades da esfera espiritual.
Desde que fora iniciado o processo desobsessivo de Mariana, recebêramos
advertência no sentido de manter as ligações psíquicas com a Espiritualidade
Superior, de modo a nos acautelarmos das ciladas dos Espíritos menos felizes que,
surpreendidos pelas incursões que se fariam nos seus domínios, seriam concitados
à agressão por todos os meios possíveis, numa tentativa de obstar o labor
abençoado ora em execução.
Considerando as altas responsabilidades que nos diziam respeito, buscávamos
corresponder à expectativa dos Mentores, esforçando-nos por oferecer, pelo menos,
a quota da oração, do pensamento otimista e o espírito de abnegação, dedicandonos
ao mister espiritual com alta dose de entusiasmo e fé.
Ao primeiro ensejo, após a entrevista com o ex-Mago de Ruão, o Benfeitor
Saturnino elucidou, pela psicofonia do médium Morais, que voltaríamos a encontrarnos,
depois de concluídos os trabalhos da noite, quando o Irmão Glaucus conduziria
o terrível obsessor, ora em fase de meditação, a uma entrevista naquela Casa, num
encontro que estava destinado a definir os rumos futuros da sua vida. Concitava-nos
ao exercício e mentalização da piedade fraternal, manifestação essencial para a
caridade legítima, de que nos deveríamos revestir para cooperar ativamente.
Em retornando ao lar, a expectativa do reencontro me inquietava, dificultandome
o necessário repouso. Orando, no entanto, e sentindo a presença dos Irmãos
Maiores do Mundo Espiritual, recompusemos a paisagem mental e brando torpor
nos invadiu, facilitando às Entidades vigilantes o nosso desdobramento e
consequente condução à Sede da nossa Casa de Oração e Amor. Quando ali
chegamos, já se encontravam os demais membros participantes das tarefas
socorristas.
Saturnino, sempre calmo e gentil, traduziu em sentida oração os anseios de
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todos os presentes e rogou a Jesus fosse Ele o Sublime Visitante e o Condutor
dos trabalhos em desdobramento, com vistas à caridade da iluminação de
consciências obnubiladas pelo orgulho e pelo egoísmo — esses dois implacáveis
inimigos do espírito humano!
O ambiente, à medida que o Benfeitor orava, se foi saturando de perfume
discreto, qual lavanda muito leve carreada por suave aragem - Pétalas de luz
diáfana começaram a cair, abundantes, e desfaziam-se ao tocar nos circunstantes
ou nos diversos móveis e objetos. Vibrações muito penetrantes nos impregnavam a
todos - E sem que o percebêssemos, as emoções rompiam os diques da visão e
fluíam em copiosas lágrimas, no recolhimento em que nos encontrávamos.
Voltando-se para o irmão Petitinga, Saturnino solicitou:
— Leia, meu irmão, o «Livro da Vida».
O venerando amigo acercou-se da mesa mediúnica e tomou de pequeno livro,
irisado de filetes de luz, no qual vimos em tons azul-prateados as letras, em
destaque:
Novo Testamento.
Abrindo-o ao sabor do momento, embargado pela emotividade superior da hora,
José Petitinga leu as anotações do apóstolo Marcos, no Capítulo nº 9, versiculos 17
a 29:
«Mestre, eu te trouxe meu filho, que está possesso dum Espírito mudo, e este,
onde quer que o apanha, o lamça por terra: ele espuma, range os dentes e vai
definhando. Roguei a teus discípulos que o espelissem, e eles não puderam.
«Disse-lhes Jesus: «Oh, geração incrédula! até quando estarei convosco? até
quando vos sofrerei? Trazei-mo» Então, lho trouxeram. Ao ver a Jesus, logo o
espírito o convulsionou; ele caiu por terra e se estorceu, espumando. Perguntou
Jesus ao pai dele: — «Há quanto tempo acontece isto?» Respondeu-lhe: — «Desde
a infância; e muitas vezes o tem lançado tanto no fogo como na água, para o
destruir; mas se podes alguma coisa, compadece-te de nós e ajuda-nos. » Disse-lhe
Jesus: “Se podes! tudo é possível ao que crê.» Imediatamente o pai do menino
exclamou: «Creio! ajuda a minha incredulidade.» Jesus, vendo que uma multidão
afluia, repreendeu o Espírito imundo, dizendo-lhe: «Espírito mudo e surdo, eu te
ordeno, saí dele, e nunca mais nele entres.» Gritando e agitando-o muito, saiu; o
menino ficou como morto, de maneira que a maior parte do povo dizia: «Morreu. »
Jesus, porém, tomando-o pela mão, ergueu-o, e ele ficou em pé. Depois que entrou
em casa, perguntaram-lhe seus discípulos particularmente: — «Como é que nós
não pudemos expulsá-lo?» Respondeu-lhes: — “Esta espécie só pode sair à força
de oração.»
Fechando o delicado repositório dos (ditos do Senhor», e, inspirado e
comovido, José Petitinga, após ligeira pausa, teceu comentários vazados na mais
excelente conceituação espírita, revivendo os feitos do Mestre, naquele momento
em que deveríamos, aquinhoados pela mercê do Rabi, concitar à paz e ao
arrependimento, um Espírito que, somente «à força da oração», poderia modificarse.
Silenciava o apóstolo da mensagem espírita em terras baianas no passado,
quando deu entrada na sala o irmão Glaucus, que se fazia acompanhar do Dr. Teofrastus
e dos dois guardiães que, com permissão dos Instrutores, ficaram postados
à porta do recinto, pelo lado exterior.
A Entidade visitante trazia o semblante velado por singular melancolia, Os olhos
antes brilhantes, traduzindo estranha ferocidade, se apresentavam baços, e, como
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se suportasse invisível fardo, caminhava tardo, com características mui diversas
daquelas que ostentava até há poucos dias.
Tratado com carinho e respeito pelo venerável Benfeitor, foi convidado a sentarse
entre nós, na condição de convidado especial.
O irmão Glaucus, tomando a palavra, falou sussintamente:
— Tratamos aqui de dar prosseguimento ao exame dos problemas que dizem
respeito a Henriette-Marie e ao seu perseguidor, que agora se encontra recolhido
em recinto de Amor, sob guarda de devotados servidores do Bem. Não ignoramos
que o irmão Teofrastus foi defrontado por surpresa dolorosa com o resultado da má
aplicação do tempo, passando a experimentar desde então as consequências das
atitudes espontaneamente tomadas. Sabendo-o ligado por profundos laços de afeição
à sofredora, que lhe não pôde fruir a companhia nos últimos tempos,
consideramos de bom alvitre conduzi-lo até onde ela se encontrava, de modo a
concertar planos em relação ao futuro e sustar, em definitivo, as maquinações da
criminalidade até agora em desdobramento.
— Mas, no momento — repostou o vingador, visivelmente conturbado —, não
poderei aquiescer com quaisquer compromissos que objetivem afastar-me dos
muros do meu campo de ação. Estou vinculado a uma poderosa Organização, e
embora em posição de comando sou, por minha vez, comandado.
— Insistimos em elucidar — replicou, seguro e calmo, o Benfeitor — que Chefe
somente um há: Jesus, o Rei Sublime das nossas vidas, a Quem devemos as
dádivas oportunas da evolução e do progresso atual, em nossa nova condição de
viandantes da luz. Entregando-nos ao Seu comando afável, nenhuma força possuirá
meios de alcançar-nos, porque sombra alguma, por mais densa, conseguirá
suplantar a luz mais insignificante, submetendo-a...
— Somos, porém — revidou, algo indeciso —, doze Mentes Dominadoras, que
nos encontramos submetidos a uma equipe de dez Magistrados que habitam
Regiões Infernais, onde os mínimos desvios da Justiça recebem longas punições.
Constituímos o grupo dos Doze... Na aplicação do nosso código selecionamos
criminosos que alcançam, de nossas mãos, as primeiras correções, após o que são
conduzidos para os presídios próprios, nas furnas, onde levantam as construções
da Cidade da Flagelação... Ligamo-nos por processo mental especializado e
frequentemente somos convidados, por nossa vez, à prestação de contas, em
minudentes relatórios verbais que são fiscalizados por técnicos competentes e
aparelhos sensíveis. Além disso, as minhas próprias razões me impedem tudo
abandonar, para deixar-me arrastar por sentimentalismos mórbidos, renegando à
felicidade em que me comprazo, sem conhecer, evidentemente, o que se espera de
mim. Tudo me é muito fácil: bastar-me-á arrancar Henriette-Marie da masmorra
carnal e retê-la comigo...
— E olvida o amigo — explicou o irmão Glaucus — que desencarnando a nossa
irmã, por constrição obsessiva, ela escapará das vossas mãos, por ter sido apressada
a sua partida, sem que se possa responsabilizá-la por isso? Ignorais
exatamente as «leis de fluídos» e os processos de «sintonia»? Esqueceis-vos de
que toda vítima libra acima dos seus algozes? Além disso, consideremos que não
podemos desprezar a opção do Senhor: isolá-la da vossa interferência por
processos que nos escapam à sagacidade, mas que pertencem à sabedoria.
Sim, não ignoro — aquiesceu —, mas a conjuntura que se me apresenta é
grave... Amo-a, sempre a amei. Na impossibilidade de possuí-la, como privar-me do
seu amor?
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— Deixando-vos possuir — redargüiu, ameno, o Benfeitor. — O amor é
concessão que se manifesta com mil faces. Não podendo ser-lhe o esposo,
conseguireis ser o amado, no seio materno, na condição de filho da alma e do
coração. Fruir-lhe-eis a ternura das mãos e sugareis o leite vital do seu seio.
Estareis no calor da sua devoção e os vossos olhos se demorarão mergulhados na
luminosidade dos olhos que amam. Permutareis a grande noite da soledade pelo
demorado meio-dia da convivência. Transfundireis todo sentimento de amargura em
expressão de dependência e fé. Derramareis o vaso do ódio, que se converterá em
adubo de produção, no solo da compreensão e da afetividade. Por década de
distância, um tempo sem fim de presença, de imorredoura constância.
— E a lepra? — argúiu.
— A lepra de que parece revestida — elucidou o Amigo Espiritual — é
enfermidade simulacro, produzida pelas descargas constantes do seu perseguidor
desencarnado. Não desconheceis, amigo Teofrastus, o que conseguem as forças
fluídicas desencadeadas sob o impacto do ódio, e a absorção em longo processo
obsessivo das energias deletérias. De mente consumida pela perturbação que a si
mesma se vem impondo, através das constantes transgressões às Leis de Justiça,
nossa irmã sincronizou com o verdugo que a vítima e, amolentada pelas vibrações
hipnóticas do seu antagonista, começou a experimentar as falsas impressões do
Mal de Hansen — conforme desejo do seu inimigo —, sendo atirada ao presídiohospitalar
em que vive, em quase total abandono, para que a vindita se coroe da
resolução final, que o sicário aguardava: o suicídio. Estamos, aliás, informados de
que tal plano fora trabalhado pelo próprio amigo Teofrastus, que atenderá à.
consulta que lhe formulara o algoz de Henriette, em espetáculo, no Anfiteatro, após
ouvi-lo, em ocasião passada, anos atrás...
— Quê? — Gritou o infortunado. — Então, serei eu, o sabujo que ofereceu ao
caçador a pista da destruição da vítima?
— Sim, meu amigo — afirmou, o prestimoso Mentor. — Por isso só à Justiça
Divina compete os casos da justiça. Disse Jesus: «Vós julgais segundo a carne (ou
a aparência), eu a ninguém julgo», por conhecer Ele o nosso ontem e as
perspectivas do nosso amanhã. Todo agressor inconsciente cai hoje ou mais tarde
nas armadilhas da agressão.
E dando nova entonação à voz, que mantinha a serenidade habitual, mas que se
nos afigurava com expressões de energia, o irmão Glaucus aduziu:
— Sob carinhosa assistência de passistas especializados da nossa Esfera, e
afastado para tratamento o seu perseguidor, Ana Maria recobrará forças psíquicas e
orgânicas, logo mais, recuperando-se algo rapidamente. A enfermidade regridirá em
caráter miraculoso e ela conhecerá um pouco de lenitivo e esperança através do
braço amigo de alguém que, também, se lhe vincula, distendendo na sua direção a
aliança nupcial. Mergulhareis, logo após, o amigo Teofrastus e o vosso cômpar,
para, no longo caminho a percorrer através da experiência carnal, tudo recomeçar,
refazer, regularizar.
— E os meus débitos — interrogou — como me serão cobrados? Não posso
desconhecer a extensão dos meus atos e sei das consequências que eles devem
acarretar.
— Os nossos erros — referendou o irmão Glaucus — hoje ou mais tarde nos
voltam em caráter de necessária reparação. Adiar o reajustamento significa,
também, aumentar os gravames que o tempo lhes acrescentará, impondo-nos mais
elevada dose de sacrifício. Além disso, não nos cabe a presunção de antecipar o
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porvir. Entregues ao Senhor, o Senhor cuidará de nós, abrindo-nos os depósitos
do Seu amor e enriquecendo-nos com as Suas bênçãos múltiplas. Para Ele não há
perseguidor nem perseguido, mas Espíritos enfermos em estados diferentes,
caminhando por vias diversas na direção do Bem Infinito. Não ignoramos que o mal
é somente ausência do bem e que à chegada deste aquele esmaece, porqüanto só
uma força existe: a do Amor triunfante!
Aqueles conceitos penetravam-nos a todos, especialmente no Chefe do
Anfiteatro, que se mostrava cada vez mais triste, mais infeliz, não ocultando o
sofrimento que o libertava dele mesmo, escravo das paixões séculos a fio.
Levantando-se, sem a soberbia de antes, o Dr. Teofrastus arremeteu:
— Mas isto aqui é uma Casa Espírita! Sou uma das Mentes encarregadas de
combater a peçonha cristã, que teima em reaparecer com indumentária nova.
Detestemos esses aventureiros do corpo, que se atrevem invadir os domínios, que
somente pertencem aos mortos.
— Equivocam-vos, amigo — obtemperou amàvelmente o irmão Glaucus. — Não
há mortos, e sim vivos. Encarnados ou desencarnados somos todos Espíritos
imortais, transitando numa ou noutra vibração, marchando, porém, na direção da
imortalidade. O Cristianismo não teima em aparecer ou reaparecer: não
desapareceu nunca, conquanto as interpolações e desrespeitos de que foi vítima
através dos séculos. Refletindo o pensamento do Cristo é a esperança dos homens
e o pão das vidas. Combatê-lo é envenenar-se; persegui-lo significa dilatar-lhe os
horizontes que se perdem nas fronteiras do Sistema Solar. Vã loucura da ignorância
pelejar contra o conhecimento e da estultice investir contra a sabedoria... Jesus vive
e vence, meu amigo. É tudo inútil e vós sabeis.
— Não o sei — replicou, já combalido — mas o sinto. Ele me persegue
inexoràvelmente. Não me deixa repousar; tortura-me em cada um a quem torturo;
desespera-me em todos aqueles nos quais descarrego a minha sanha. Que tem Ele
contra mim?
— Ou que tendes contra Ele? — retrucou o Benfeitor. — Jesus é o amor
inexaurível: não persegue: ama; não tortura: renova; não desespera: apascenta! O
amigo Teofrastus, sim, arvorou-se em Seu adversário e sofre as contingências da
alucinação e da procrastinação do momento de entregar-se-lhe em total doação.
Não te-mais, pois. A verdadeira coragem se manifesta, também, quando o ser
reconhece o que é e o que possui, refazendo o caminho por onde deseja seguir,
reunindo forças para retemperar o ânimo, e, qual criança, aprender o amor desde as
suas primeiras lições.
— Temo, sou constrangido a confessar.
— O temor descende da consciência em culpa.
— Tenho sido a expressão da força e da violência e aprendi a não confiar.
— Jesus, porém, é a expressão do amor e sua não-violência oferece a
confiança que agiganta aqueles que O seguem em extensão de devotamento.
— Temo, porque creio... E crendo, sofro. Em todo o pelejar, mesmo odiando,
nunca O bani da minha mente.
— Nem poderíeis fazê-lo. O ódio é o amor que enlouqueceu...
— Nos primeiros dias do século atual fui convocado a abandonar o solo da
França para vir aqui operar, tendo em vista a transformação que se realizava neste
país, ante o reverdescér do pensamento cristão, amortecido em toda a parte e
revivente aqui pelo contacto com a - nossa Esfera de vida. Nosso grupo deveria
encarregar-se de sitiar a mediunidade e os novos cruzados do Cristianismo,
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instaurando tribunal de punição e trazendo-os a nossos recintos, quando
semidesligados pelo sono, para que as visões dos nossos cenários e das nossas
operações diversas pudessem infundir-lhes medo ou sedução, deixando nas suas
lembranças as sementes do desejo, no culto do sexo, da ambição, no culto do
dinheiro, da prepotência, no culto da vaidade. Em diversas sessões Espíritas, emissários
nossos têm procurado penetrar, com o objetivo de semear ali a discórdia,
multiplicar as suspeitas, irradiar o azedume e difundir a maledicência... E quando as
circunstâncias facultam, mantemos o comércio pela incorporação sutil ou violenta,
conforme o paladar da leviandade dos membros da Colmeia... Sem dúvida que
temos conseguido boa colheita, principalmente no campo das agressões morais de
vária ordem, em que os falsa-mente bons e os aparentemente honestos oferecem
seminário favorável para as nossas mudas, que logo medram exuberantes,
multiplicando-se facilmente. É evidente que o nosso acesso não se faz em todos os
recintos, porque, alertados, muitos se mantêm em atitude de vigilância, coibindo-nos
a interferência. Além disso, os seguidores do Cordeiro conseguem dispersar os
nossos agentes, utilizando-se de processos muito eficientes. Como me poderei
agasalhar numa Casa que tal? Como me liberarei dos compromissos com aqueles
aos quais me encontro vinculado?
— Ouvimos-vos com atenção — respondeu o Benfeitor, lúcido e claro. —
Embora não fossemos colhidos de surpresa ante o vosso informe, porque
conhecíamos as tarefas do irmão Teofrastus, elucidamos-vos que esta Casa dispõe
de defesas construídas em muitas décadas de santas realizações, merecendo do
Plano Divino carinhosa assistência. Resguardada das forças agressoras, é agasalho
e hospedagem abertos aos que sofrem, sob a direção do Cristo. Não há porque
considerar compromissos senão com a Verdade. Os outros não podem ser denominados
compromissos, mas conchavos da ignorância, destituídos de qualquer
valor, pelos propósitos infelizes de que se revestem. Nossa destinação, meu amigo,
é a Verdade. Como Jesus é o Caminho, não mais recalcitremos.
Todos nos encontrávamos mergulhados na mais comovente concentração. O
duelo verbal entre a impostura e a verdade convincente aclarava-nos o espírito,
alargando as percepções em torno da vitória dos altos propósitos e dos superiores
desígnios.
A um sinal quase imperceptível, o irmão Saturnino deixara antes o recinto,
atendendo à orientação do Benfeitor Espiritual.
Naquele momento em que o silêncio se fizera natural e quando a Entidade
meditava, dominada por compreensível inquietação do espírito em febre, retornou o
Guia Amigo, trazendo, adormecida, qual criança agasalhada no afeto paternal, Ana
Maria, que foi colocada carinhosamente sobre alvo leito, reservado e vazio no recinto,
desde o começo da entrevista.
Vendo-a, de inopino, o Dr. Teofrastus foi acometido de angustiante expectativa.
O Benfeitor vigilante acalmou-o com gesto delicado, após o que se aproximou da
jovem adormecida e, tocando-lhe as têmporas, despertou-a com voz amiga e
confortadora.
A leprosa circunvagou o olhar em torno, e, devida-mente acalmada pelo
Instrutor, reconheceu o Dr. Teofrastus. O olhar adquiriu brilho especial, alongou os
braços e, ante a aquiescência do Mentor, o antigo Mago estreitou-a, com imensa
ternura, envolvendo-a em ondas de afetividade e carinho.
— Quanto esperei por este momento! — aludiu o antigo vingador.
— Também eu, também eu! — retrucou a sofredora, em lágrimas.
98
— Perdoa-me, Henriette...
— Perdoar-te? Nosso dorido amor é maior do que tudo e por si só anula todas
as aflições antigas. Sou eu quem te roga, Teo: ajuda-me e não me abandones mais!
Eu sou a esperança quase morta e tu és o hálito do meu reviver. Não me negues a
migalha da tua presença, haja o que haja. Levantemo-nos do torpor que nos
aniquila a longo prazo e roguemos a Deus que nos resguarde de nós mesmos e nos
ajude, a partir de hoje. Não suportaria mais viver sem ti. Sonho, Teo, isto é um
sonho! Estamos numa esfera de sonho em que me apareces desfigurado e triste.
Porque demoraste tanto?
— Perdoa-me! Por mais te buscasse, jamais reencontrei-te. Não, não nos
separaremos mais, nunca mais. Juro! Renunciarei a tudo, para experimentar a
ternura das tuas mãos e a meiguice dos teus olhos. Ouve, Henriette-Marie, o que te
irei falar... Escuta com atenção...
Não pôde prosseguir. O choro convulsivo desatou-lhe nalma e ele recuou,
vencido, cambaleante, aos gritos, em atroada desesperadora.
O Mentor amoroso aproximou-se e exortou-o ao equilíbrio. Falou-lhe da
significação do momento e das poucas reservas que possuía Ana Maria, recémlibertada
da constrição psíquica do seu antagonista e necessitada de estímulo para
aceitar os novos encargos de esposa e não, logo se lhe refizessem os
departamentos fisiomentais, com vistas ao futuro. A palavra oportuna ajudou o atormentado
a recompor-se.
Achegando-se à jovem, em espírito, o irmão Glaucus relatou:
- Filha, hoje tem início etapa nova na jornada do teu espírito eterno. Embora o
passado não esteja morto, todo ele deve ser esquecido. A construção do amanhã
tem início agora. Sombras e receios, mágoas -e recriminações devem ser
superados e a eles se faz necessário antepor esperança e paz, fé e trabalho na
reconstrução da felicidade que tem demorado. Muitas vezes, ou quase sempre,
quanto nos ocorre é consequência do que realizamos. O nosso teto de albergue
deve possuir sem dúvida segurança e estabilidade para não ruir sobre as nossas
cabeças. Longo tem sido o teu peregrinar e demorado o teu prazo de aflição
corretiva. Jesus, porém, que não deseja a «morte do pecador», mas a sua
redenção, faculta-nos, a todos, ensejos de resgate luminoso.
Fez uma pausa oportuna. A entidade acompanhava as palavras felizes do
Benfeitor, buscando imprimi-las no imo dalma. Após breve silêncio, este prosseguiu:
— O teu sonho de amor, esperado por largo período de tempo, que agora já
passou, se concretizará... O nosso Teofrastus necessita, também, de recomeçar a
experiência, a benefício dele mesmo. Entre ambos, porém, medeia o impedimento
dos estados em que permanecem. Enquanto, filha, jornadeias no corpo carnal, o
nosso amigo se encontra libertado dos fluídos fisiológicos. Ante, pois, a
impossibilidade de uma comunhão matrimonial que a vida lhes não pode oferecer
de momento, solicitamos que lhe ofertes a intimidade orgânica para que ele
recomece o caminho, na condição de filho da tua devoção e do teu carinho...
Ana Maria, sacudida por impulso inesperado, ajoelhou-se e, abrindo os braços,
balbuciou:
— Que se faça a vontade de Deus!
O irmão Glaucus, utilizando-se da expressiva ocasião, prosseguiu:
— Tu, porém, filha, deverás oferecer ensejo a outro ser que ama e padece,
esperando compreensão e piedade. Trata-se de Jean Villemain, o infeliz sacerdote
que, no pretérito, desencadeou todas estas aflições...
99
— A ele, eu me recuso ajudar —, replicou a jovem. — Odeio-o com todas as
forças. Como lhe poderia ser mãe?
— O ódio, filha — considerou o Benfeitor —, somente desaparece na pira do
sacrifício do amor. É certo que ele te fez sofrer em demasia; no entanto, a tua felicidade
que agora tem início é, de certo modo, facultada porque ele te libera dos
vínculos da rebeldia com os quais se ata a ti. Afastado para tratamento, sentirás o
benefício da saúde e da paz em retorno. Negar-lhe-ás a sublime oferta do
recomeço, que a ti a Misericórdia Divina, por sua vez, está concedendo? O teu seio,
transformado em santuário maternal, receberá o amigo e o adversário e os terás
como filhos diletos na forja do lar, sofrendo e amando, ajudando-os recíprocamente
para que transformem os floretes do duelo em arados do amanho ao solo da
esperança, em cujos sulcos sejam depositadas as sementes da paz.
A voz do Instrutor traía a emoção que o visitava. Como se recordasse serem os
homens da Terra todos vítimas das paixões dissolventes, retomou a palavra e
acentuou:
— Jesus, embora nossa ingratidão, continua amando-nos. Quando na Cruz,
conquanto escarnecido, esteve amando, e agora, apesar de propositadamente
ignorado por milhões de seres, prossegue amando. Sigamos-Lhe, filha, o exemplo,
e transformemo-nos em célula de amor, a fim de que as nossas construções se
assentem em alicerces de segurança.
Ana Maria, em lágrimas, fitou o antigo afeto, que permanecia atoleimado, e,
inspirada pelas forças superiores que saturavam o recinto, concordou:
— Se o meu amor pode beneficiar o Teo e a minha recusa a Jean pode ser fator
de insucesso, em homenagem ao Amor de todos os Amores, aceito-o, também,
como filho, e que Deus tenha piedade de nós...
O irmão Glaucus enlaçou a jovem mulher em terno abraço, e, tomando o Dr.
Teofrastus no mesmo envolvente gesto, rogou ao Senhor que os abençoasse, felicitando-
os com a concessão da união espiritual.
A jovem foi reconduzida de volta ao corpo, no Lazareto.
Depois de mais alguns estudos sobre a nova condição do irmão Teofrastus, este
aproximou-se da porta e despediu os dois guardas, ficando combinado que ele se
demoraria naquela Casa sob os auspícios dos Instrütores, até o momento em que
seria encaminhado a uma Colônia preparatória para. a reencarnação futura, mesmo
porque outros trâmites no processo da desobsessão de Mariana requereriam sua
presença.
Ante os sucessos daquela madrugada, o irmão Glaucus, sensivelmente
comovido, orou a Jesus, em gratidão, e os trabalhos foram encerrados, depois do
que, fomos reconduzidos ao lar.
100
11
As agressões
Para o espírita decidido, a tranquilidade de consciência, ante o dever retamente
cumprido, é o melhor prêmio que ele pode oferecer a si mesmo. Esse era o estado
que nos dominava, enquanto estavam em curso as tarefas a que os problemas da
família Soares nos convocaram e que, por mercê de Deus, fôramos honrados pela
oportunidade de servir.
Não poucas vezes nos surpreendíamos empolgados pelas evocações, que,
conquanto não tivessem toda a clareza que gostaríamos de experimentar, se nos
apresentavam em painéis de recordação agradável. Mesmo quando a memória
registrava os fatos com as tintas sombrias de pesadelos, em que à receio assomava
incontrolável, lembrávamo-nos do Mestre Inconfundível, do que Lhe custara descer
aos homens e experimentar sem queixa a convivência com as paixões humanas,
suportando o fardo pesado das incompreensões dos que O cercavam, acostumados
conforme viviam com as questiúnculas do imediatismo. O estoicismo do amor de
Jesus dava-nos forças e coragem para prosseguir, sentindo a felicidade de viver
entre os dois mundos que se interpenetram e cujas fronteiras mais não são do que
uma fimbria divisória, um claro-escuro de tênues colorações difíceis de definir e
delimitar. Nesse sentido e sob outros vários aspectos o Espiritismo se nos
apresenta como o roteiro de segurança para o equilíbrio do espírito do homem.
Desfazendo as ilusões da matéria e vencendo as sombras transitórias que vedam
as visões do Mundo Espiritual, apresenta-nos as causas reais de cujos efeitos e
somente neles, até agora, se há detido o pensamento da pesquisa tecnológica; suas
asseverações rigorosamente filosóficas conseguiram avançar além da própria
Filosofia no seu conjunto classicista, porque, em saindo da interrogação pura e
simples, da indagação meramente vazia e das conjunturas das hipóteses, traz das
realidades metafísicas as soluções morais e vitais para o enigma-homem, que se
deixa de quedar perturbado pelas incógnitas diversas, para palmilhar a senda dos
fatos, de cujo contexto extrai a realidade ontológica legítima que o capacita a
avançar intimorato, embora as circunstâncias, condições e climas morais sob cuja
constrição evolute na direção do Infinito. Sim, porque não são os homens apenas
que realizam espontaneamente incursões no além-túmulo, mas, e principalmente,
os vitoriosos da sepultura vencida que retornam, cantando a ressurreição da vida
após a lama e a cinza do corpo, a repetirem incessantemente a lição imorredoura do
Cristo, na manhã gloriosa do domingo, logo após a sua morte, como Astro fulgurante,
atestando desse modo a indestrutibilidade do espírito e, consequentemente,
as sucessivas transformações da vida para atingir a sublimação. Religião do amor e
da esperança, pábulo eucarístico pelo qual o homem pode comungar com a
imortalidade, é o lenitivo para a saudade do desconforto ante a ausência dos seres
amados que o túmulo arrebatou, mas não lhes conseguiu silenciar a voz; esperança
dos padecentes que sofrem as ácidas angústias de hoje, compreendendo serem
elas o resultado da própria insânia do passado, porém, com os olhos fitos na
esplendorosa visão do amanhã, que lhes está nas mãos apressar e construir; praia
de paz, na qual repousam em dinâmica feliz os nautas aflitos e cansados do trânsito
difícil no mar das lutas carnais; santuário de refazimento através da prece edificante;
escola de almas, que aprendem no estudo das suas informações preciosas e das
101
suas lições insuperáveis a técnica de viver para fruirem a bênção de morrer
nobremente; hospital de refazimento para os trânsfugas do dever, que nele
encontram o bálsamo para a chaga física, mental ou moral; todavia, recebem a
diretriz para amar e perdoar, a fim de serem perdoados e amados pelos que feriram
e infelicitaram; “colo de mãe” generosa é o amparo da orfandade, preparando-a
para o porvir luminoso, já que ninguém é órfão do amor do Nosso Pai; abrigo da
velhice, portal que logo abrirá de par-em-par a aduana da Imortalidade; oficina de
reeducação onde a miséria desta ou daquela natureza encontra a experiência do
trabalho modelador de caracteres a serviço das fortunas do amor; traço de união
entre a criatura e o Criador, religando-os e reaproximando-os, até que a plenitude
da paz possa cantar em cada criatura, à semelhança do que o Apóstolo das Gentes
afirmava: «Já não sou eu o que vivo, mas é o Cristo que vive em mim...) (Gálatas,
capítulo 2, versículo 20.)
As altas responsabilidades consequentes do conhecimento do Espiritismo forjam
homens verazes, cristãos legítimos. Neles não há campo para a coexistência pacífica
do erro com a retidão, da mentira com a verdade, da dissimulação com a
honestidade, da lealdade com a hipocrisia, da maledicência com a piedade fraternal,
da ira com o amor... Compreendendo que ser espírita é traçar na própria conduta o
comportamento do Cristo, a exemplo de todos aqueles que O seguiram, e
consoante preceitua o eminente apóstolo Allan Kardec, o aprendiz da lição espírita é
alguém em combate permanente pela própria transformação moral, elevação
espiritual e renovação mental, com vistas à perfeição que a todos nos acena e
espera.
Sem dúvida, sentíamos a fragilidade das nossas fracas forças e buscávamos na
prece o refúgio, e na meditação o refazimento, haurindo energias e vitalidade para
atravessar bem os dias do trabalho superior no qual nos encontrávamos, e cujo
êxito, em grande parte, dependia da contribuição que pudéssemos oferecer. Com
muita propriedade se assevera que a insegurança de uma muralha está na pedra
que se encontre mal colocada; arrancada esta, mais fácil se faz conseguir-se
deslocar outra, e assim sucessivamente.
Pairando sempre sobre todos nós o Espírito do Senhor, convinha-nos e nos
convém não desfalecer na luta.
Com tais pensamentos irrigando-nos a mente, no encontro imediato à excelente
entrevista mantida com o irmão Teofrastus, pela psicofonia cristalina do médium
Morais, o Benfeitor Saturnino elucidou-nos de que as operações espirituais em
andamento, com o consequente deslocamento do diretor do Anfiteatro, em breve se
refletiriam entre os demais componentes dos diversos Grupos de Espíritos Infelizes
ligados ao mal, de maneira negativa, e que, logo se refizessem do choque,
arremeteriam violentos, tentando uma revanche injustificável, perniciosa e de
resultados para eles sempre mais danosos. Convinha que nos mantivéssemos nos
padrões do Cristo para, resguardados, por nossa vez resguardarmos os resultados
superiores da empresa da luz.
Devidamente esclarecidos e também fortificados, continuamos nas tarefas
habituais, da propaganda espírita, quando, uma semana depois, começamos a
experimentar, quase todos nós, os encarnados participantes do labor abençoado,
singular melancolia e alguns traços de irritabilidade no comportamento...
Não ignorávamos que algumas das técnicas de que se utilizam os
perseguidores de encarnados atormentados que buscam o concurso do Espiritismo
são, em diversos casos: o aumento da agressão às suas vítimas a fim de lhes
102
darem idéias falsas de que a frequência às sessões lhes acarretaram maior dose
de sofrimento, inspirando-as a debandarem, após o que, então, cessam de inopino
a constrição obsessiva, fazendo crer que a melhora decorreu do abandono àqueles
compromissos repentinos, para voltarem mais ferozes, mais cruéis, mais
implacáveis quando tais pacientes, invigilantes quase sempre, lhes favorecem o
campo fisiológico e psíquico com recursos adequados à continuação dolorosa da
perseguição insana. De outras vezes agem de maneira bem característica: logo que
seus clientes começam a honesta participação no estudo. e na tarefa espiritista da
própria libertação, seja porque a modificação no campo mental lhes impede o
intercâmbio com a mesma facilidade, seja por tática de estratégia belicosa, afastamse
temporàriamente os perseguidores, permanecendo, porém, em contínua vigília;
os incautos, logo experimentam a falsa liberação, reconhecem a desnecessidade do
conhecimento clarificador e se dizem comprometidos com programas sociais e de
outra ordem, transferindo para o futuro os deveres espirituais, e partem, lépidos, a
gozar... Afirmam-se reconhecidos ou consideram a coincidência da cura,
exatamente quando passaram a examinar o problema sob a luz do Espiritismo, mas
lamentam as circunstâncias que os obrigam a um temporário afastamento... Quando
a questão já lhes parece vencida, sem que as dívidas tenham sido necessariamente
resgatadas, desde que nada fizeram por corresponder à confiança da Vida, eis que
os verdugos perseverantes, que os seguem, retornam vigorosos e mais
constringentes se fazem, com altas doses de fereza, sem que os obsidiados contem
com quaisquer recursos a seu favor, considerando que nada providenciaram para a
hora da aflição e do desconforto...
Não desconhecíamos que em todo processo de desobsessão, se a vigilância, a
oração e o jejum moral são condições essenciais, o otimismo e o bom-humor não
podem ser relegados para trás. Tristeza é nuvem nos olhos da saúde e irritabilidade
é tóxico nos tecidos da paz...
Contudo, experimentávamos certas sombras psíquicas investindo insistentes,
constantes.
Convocados a uma reunião extraordinária, a palavra de Saturnino, sempre
pronta e luminosa, veio em nosso socorro. Como tudo são lições e a aprendizagem
tem maior valor quando o aluno é co-participante do ensinamento, nele atuando, o
venerável Benfeitor nos admoestou bondosamente, conclamando-nos à «resistência
contra o mal», do ensinamento evangélico, e corroborando a advertência anterior,
de que as investidas da Organização logo se fariam sentir, conforme era de esperar.
Levantássemos o espírito e marchássemos irmanados de maneira a nos
sustentarmos uns nos outros, repetindo, ainda, cristianíssimo: «Onde quer que se
encontrem duas ou três pessoas reunidas em meu Nome, eu com elas estarei», da
inesquecível lição de São Mateus, no Capítulo 18, versículo 20. A oração em
conjunto, a reunião de pensamentos, consegue a bênção da fraternidade e esta a
do socorro recíproco. É muito fácil arrebentar-se uma vara isolada, mas não se pode
fazer o mesmo a um feixe...
A família Soares, completou o amoroso Desencarnado, estava sendo convidada
a novas aflições necessárias à própria evolução e a melhor entendimento das
responsabilidades imortalistas. Sendo a dor a melhor forma de o homem entender
as realidades da vida por enquanto, era bem certo que o sofrimento faria o seu
mister.
Terminada a reunião, quando já nos recolhêramos ao lar, Petitinga chamou-nos
ao telefone, convidando-nos a demandar o lar dos Soares, onde infeliz
103
acontecimento transcorrera, e Dona Rosa, muito aflita, lhe solicitara urgente
visita.
Quando chegamos à residência do Sr. Mateus Soares, encontramos os
familiares tomados de superlativa amargura. Dona Rosa e a filha Amália haviam
retornado do Hospital do Pronto Socorro, onde se encontrava internado o chefe do
lar, que fora submetido a delicada cirurgia de emergência.
Dona Rosa, compreensivelmente aflita, esclareceu que recebera informação, de
pessoa amiga, de que o Sr. Mateus fora levado à pressa para aquele nosocômio,
nas primeiras horas da noite, como vítima de uma cena de sangue. Não possuía
detalhes que esclarecessem a situação. O agressor, que fazia parte do grupo de
amigos do descuidado genitor de Mariana, era frequentador habitual do local em
que o esposo se demora noites a dentro, na desenfreada jogatina. O delegado de
Polícia dali saíra havia poucos minutos e se fizera sucinto nos esclarecimentos.
Dissera haver prendido o antagonista, que se apresentava alcoolizado, e que ficaria
retido até à abertura do necessário inquérito, enquanto o estado do Sr. Mateus,
inspirando cuidados no Hospital, se definia.
Interrogado quanto às causas da agressão, o policial dissera que essas
surgiram numa discussão de pequena monta, travada pelos dois, O Sr. Mateus
acusara o adversário de estar jogando com cartas marcadas e utilizando de
processos desonestos, o que dera início à acalorada discussão, que redundou no
intempestivo e lamentável golpe de punhal, que o acusado aplicara certeiro, como
se conduzido por mão poderosa que lhe acionasse as forças, considerando ser,
também, um homem de quase 60 anos de idade. Isso dera razões ao delegado para
fechar a casa que funcionava com “jogos de azar” proibidos pela Polícia. A sua
visita ao lar dos Soares tinha o objetivo de colher dados que o pudessem ajudar
com alguns antecedentes que aclarassem diversos ângulos da questão, tais como
se era do conhecimento familiar alguma rixa antiga, de altercações anteriores...
Surpreendida dolorosamente pela quase tragédia que ainda poderia colimar
com a desencarnação do Sr. Mateus, a nobre senhora se encontrava vencida por
angustiante expectativa. Só no dia seguinte poderia visitar o esposo, agora em pósoperatório.
Fora acalmada no Pronto Socorro, por gentil estudante de Medicina,
interno, que acompanhara a cirurgia e lhe explicara das boas perspectivas do
operado, que, embora de organização fisiológica já cansada, estava até o momento
reagindo muito bem.
Recorria a Petitinga, rogando-lhe a inspiração e o auxílio, pois que, com a
notícia que lhe chegara ao lar abruptamente, Mariana fora acometida de um choque
nervoso cruel e, desde então, estava inquieta, olhar desvairado, com sintomas que
lhe pareciam alarmantes. Todos se encontravam assustados com o acontecimento
da agressão ao genitor e preocupados com o estado da jovem.
Conduzidos à peça em que se encontrava Mariana, bondosamente atendida por
Amália, não tivemos dúvidas em verificar a presença de agressores espirituais
interessados em criar pânico e perturbação na família aturdida.
O ambiente psíquico traduzia a intoxicação violenta por fluídos de baixo teor
vibratório, o que nos dava a impressão de um local asfixiante, abrasador e constringente.
Muito sereno, Petitinga aproximou-se do leito em que a jovem se encontrava
semidesfalecida, muito pálida, e, depois de alguns breves minutos de recolhimento
profundo, tocou as têmporas da moça, chamando-a, paternal:
— Mariana, filha, desperte... Procure reagir a esse estado, que lhe pode ser de
104
consequências maléficas...
Não pôde continuar. A jovem, como se fora acionada por invisível catapulta,
ergueu-se de um salto e, transfigurada pela irrupção do fenômeno mediúnico, ficou
de pé, em atitude desafiadora, desgrenhada, e avançou, ameaçadora, na direção do
venerando servidor do Cristo, com os punhos cerrados. Por um momento, tivemos a
antevisão de um desforço físico, inimaginável. Muito junto ao apóstolo espírita
estacou e, atirando a cabeça para trás, estrugiu ruidosa e chocante gargalhada, em
que revelava fúria e zombaria armazenadas, furiosamente libertadas.
Petitinga integérrimo, tranquilo, sem arredar-se do lugar, falou, bondoso:
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus-Cristo! Seja bem-vindo, meu irmão. Este,
como qualquer momento, é sempre precioso instante de buscar a paz. Eis-nos que
aqui estamos para tal, para ajudá-lo no que nos esteja ao alcance...
— Ajudar-me? — revidou, colérico. — Não me parece que seja eu aquele que
neste recinto necessita da ajuda, nestas circunstâncias. Os senhores, no entanto,
creio, precisam de urgente socorro, isto sim!
— Engana-se, meu amigo. Estamos socorridos pela Divina Providência, socorro
esse que constatamos graças à sua presença entre nós, presença esclarecedora,
convincente, que nos traz o elo para entender os acontecimentos transcorridos
nestas últimas horas, envolvendo a família que nos agasalha no seu Lar.
— Sim, sem dúvida — assentiu, furioso. — Aqui estamos obedecendo a ordens.
Trata-se de um desforço justo e esperado, não? Certamente que os senhores deveriam
estar aguardando a resposta dos nossos Chefes à intromissão nefanda que
realizaram em nossos programas. Ou acreditam que tudo continuaria a correr em
águas de rios tranquilos? Não é da lei, que toda ação produz uma reação
equivalente? Portanto, não há porque esperar outra coisa...
— Estamos perfeitamente esclarecidos — apostrofou Petitinga. — Ocorre,
todavia, que a direção do ataque errou o alvo. Não somos nada, nós, as criaturas
humanas. Espíritos em débito, caminhamos cansadamente pelos impositivos do
ressarcimento difícil. Companheiros da dor, todos nós, somos herdeiros do Amor de
Nosso Pai. Obedecendo às instruções que dimanam da Vida Abundante e que nos
foram lecionadas por Jesus-Cristo, Ele deveria ser-lhes a meta e não nós outros,
caminheiros sofridos como você próprio, marchando na busca dEle.
— Nada queremos com Ele — revidou, com estridente desafio, em que
expressões vulgares traduziam o estado primitivo de realizações morais do
contendor. — Nosso compromisso é com vocês e saberemos como revidar à altura
a ousadia de que se revestem.
Insistimos, no entanto — voltou a expor o doutrinador valoroso —, em explicar,
que nos encontramos sob o comando do Cristo e que, na impossibilidade de você
se dirigir a Ele, mas chegando-se até nós, indiretamente avança na Sua direção.
Conquanto as nossas limitações, problemas múltiplos e ausência de mérito, não
estamos à margem dos auxílios da Espiritualidade Superior. Neste momento mesmo
em que lhe falamos, já nos sentimos amparados suficientemente para interromper a
entrevista de violência, porqüanto nobre Mensageiro do Senhor prontificou-se a
assisti-lo e tranqüilizá-lo, encaminhando-o como do nosso desejo, a Jesus...
— Que petulância! — arremeteu, desassisado. —Assistir-me e tranquilizar-me.
Melhor do que me encontro é impossível... Quanto aos senhores, sim, fazem-se
necessários muitos auxílios para saírem da «enrascada» em que se envolveram.
Tenham em mente que, representando a luz como pretendem, estamos dispostos
àverificação...
105
— Mas a luz dimana do Alto — conviu, Petitinga porque tudo nos vem do
Alto.
— É o que veremos desde já — explodiu, arrogante. — Na impossibilidade de
no momento atingirmos esse Alto... ficaremos cá em baixo, e iremos derrubar os
postes que sustentam as falsas lâmpadas, arrebentando-as, destruindo os vasos
luminosos e fazendo que a escuridão retorne aos sítios em que ela imperava,
gloriosa...
Falava com sarcasmo cruel, e sem dissimular a ira chasquinava cinicamente.
Imperturbável, Petitinga, redargüiu:
— Lamento a sua situação: preferência da treva àluz, do erro à verdade, do
engano à lucidez... Cada um, porém, tem o direito de viver e respirar o clima, contemplando
a paisagem que melhor lhe apraz... Contudo, advertimo-lo quanto à
presença do generoso Benfeitor paternal que lhe poderá ajudar com segurança.
Confie nele e deixe-se conduzir tranqüilamente. Jesus fará o resto.
— Não esqueçam, senhores — ameaçou —, isto são apenas os começos. A
nossa vingança não terá limite. Estejam preparados para o revide pelas portas
largas da agressão.
Gargalhando, infeliz, desligou-se da médium que, inexperiente nos processos
sutis da psicofonia atormentada como aquela, por pouco não caiu, não fosse a vigilância
de José Petitinga, sempre atento e calmo. Conduzida ao leito e assistida
por passes calmantes, Mariana recobrou a razão e, sem compreender exatamente o
que acontecera, com as idéias turbilhonadas, prorrompeu em choro lenificador.
Dona Rosa, crucificada por amarguras contínuas, envolveu a filha num abraço
de ternura e acalmou-a com a emoção de que são possuidoras as mulheres cujas
vidas as transformam em sacrários através da maternidade enobrecida. A jovem
asserenou e dormiu nos braços envolventes da mãe devotada.
Perguntei a Petitinga se não seria necessária a aplicação de passes. Fitando a
moça adormecida no seio materno, o bondoso e preclaro amigo, informou:
— Miranda, a maior transfusão de forças que se conhece é aquela que se faz
através do amor. E a mais exuberante fonte de amor que vige na Terra se encontra
no coração fervoroso de uma mãe afetuosa e cumpridora dos seus deveres. A
menina Mariana dormirá tranqüilamente, mesmo porque a presença dos Mentores,
que nos assistiram nesta casa, afastou já os comensais da perturbação e
fomentadores da desordem. Estejamos confiantes.
Dona Rosa e Amália, sempre gentis, agradeceram comovidas e saímos.
Petitinga prometeu retornar no dia imediato.
A noite estava muito calma e escasseava o movimento nas ruas. Raros veículos
passavam ruidosamente e o céu se encontrava bordado de diamantes estelares.
Como sopravam ventos brandos que nos chegavam do mar a regular distância,
resolvemos caminhar até o local da condução que nos separaria.
— Confesso — iniciei a conversação — que receei você fosse atingido por um
golpe do nosso infeliz irmão. A ameaça acompanhada do gesto ousado e fratricida
assustou-me...
Sorriso espontâneo aflorou no amigo dileto. Após reflexionar um pouco,
esclareceu-me:
— Miranda, a serviço de Jesus nada devemos temer! É claro que nós não
devemos expor à temeridade, criando situações embaraçosas e perfeitamente
desnecessárias. Não ignoramos que nossos Irmãos Maiores nos esclareceram e
advertiram quanto às agressões de que seríamos vítimas. Ora, convém considerar
106
que tais arremetidas já estão em curso. Experimentamos, nós próprios, os sinais
constrangedores de influenciações negativas, nos últimos dias, até que. a palavra
sábia do nosso Instrutor nos alertasse para a questão. É natural, portanto, que esse
estado de coisas fosse tomar corpo onde as possibilidades de êxito poderiam
suceder melhor. Não que nos consideremos em condições superiores ao nosso
próximo. Ocorre, no entanto, que na família Soares os membros que não privam dos
ideais elevados da vida são muitos, a iniciar pelo genitor da casa, que, vinculado a
cerebrações infelizes desde há muito, prefere a situação insana em que se demora
à comunhão libertadora que lhe tem sido acenada inúmeras vezes. Não crê você
que o problema de Mariana deveria chamar-lhe a atenção? O drama de Marta, a
outra filha, inquieta, em conúbios de infelicidade mereciam exame? No entanto, o
nosso Mateus, conturbado em si mesmo, é espírito portador de enfermidade íntima
de longo curso, que caminhará demoradamente até encontrar o horizonte claro da
renovação...
Silenciou por alguns momentos, e prosseguiu:
— O campo, portanto, na família, é excelente para agressões de baixo teor
espiritual e vibratório. Vivendo o clima da jogatina, o nosso irmão foi vítima de Entidades
infelizes que armaram a mão do seu opositor para lhe roubarem a vida.
Assim, atingiriam a família em libertação da obsessão cruel de que padecem muitos
dos seus membros, provocariam escândalo e esmagariam de dor a senhora Rosa,
verdadeiro anjo de renúncia em clima de belicosidades... Depois nos atingiriam,
também, emocionalmente, prejudicando grandemente os labores dos nossos
Benfeitores Espirituais. Ante o choque provocado pela cena, a menina Mariana
entrou em sintonia com o sicário que a espreitava, esperando, e incorporou-a,
inconsequente...
Dando maior ênfase ao ensinamento, continuou:
— Como você não ignora, tudo está previsto. Merece considerar que o problema
da desobsessão tem longo curso, O simples afastamento da entidade perseguidora
não é fator de paz naquele que se lhe vinculava. Em processos obsessivos quais o
de Mariana, há sempre uma mediunidade latente que oferece recursos de sintonia
psíquica entre perseguidor e perseguido. Com o afastamento do primeiro, as
possibilidades medianímicas do segundo se dilatam, sendo necessário educar,
disciplinar, instruir o médium para que este adquira os recursos que o capacitem à
defesa própria, aos cuidados contra as ciladas bem urdidas de outros Espíritos
infelizes ou levianos, enfim, que preparem o seareiro em potencial para o labor na
gleba imensa do Cristo, na qual escasseiam, ainda agora, trabalhadores diligentes e
devotados...
«Quanto à agressão de que parecia que eu seria a vítima, não vi razões para
preocupar-me. Em tarefa do Cristo, conquanto as minhas imensas imperfeições,
confio nEle...
«Além disso, quando estamos a serviço da verdade, geramos e emitimos
vibrações que nos defendem de todo o mal.»
Chegáramos ao local de despedida. Apertamo-nos as mãos e separamo-nos.
No dia imediato, retornamos ao lar dos Soares, ànoite, e fomos informados de
que o chefe da família estava com excelentes possibilidades de recuperação, embora
Dona Rosa, acabrunhada, se referisse ao estado espiritual e moral do esposo
como dos mais lastimáveis.
Dissera-lhe, ele, que logo recuperasse a saúde saberia desforçar-se do
agressor. Pouco se lhe dava com o que ocorresse consigo mesmo, mas lavaria em
107
sangue o seu nome, a sua honra... Retornara, pois, do Nosocômio, inquieta,
aflita, confiando na Providência Divina que saberia encontrar solução justa para
caso tão complexo. A veneranda senhora definhava, e seu rosto sulcado pela dor
inspirava-nos profunda piedade fraternal. Carinhosamente estimulada por Petitinga,
de suas mãos recebeu a transfusão de abundante energia refazente, pelo recurso
do passe.
Não padeciam dúvidas de que, vendo fracassados os seus planos de desdita,
eliminando a vida física do senhor Mateus, os facínoras espirituais estavam a atormentá-
lo, gerando as raízes perigosas do ódio, em cujas malhas, imprevidente e
leviano, se emaranhava. Perturbado, seria presa mais fácil ainda para uma tragédia
imprevisível, após a recuperação da saúde.
No domingo imediato, quando da reunião pública de exposição doutrinária na
União Espírita Baiana, verificamos mais uma vez as artimanhas de que se fazem
objeto os Espíritos trevosos.
Petitinga assomara à tribuna doutrinária e pregava. A sua palavra harmoniosa
vibrava em tons de consolo, reportando-se ao estudo de «O Evangelho segundo o
Espiritismo», no Capítulo 10, Instruções dos Espíritos: PERDÃO DAS OFENSAS, a
excelente mensagem de Simeão, ditada em Bordéus, em 1862.
O recinto estava saturado de emoções superiores e algumas pessoas tinham os
olhos coroados de lágrimas. Num intervalo natural da explicação, conhecido senhor
de respeitável família local, obsesso contumaz, adentrou-se pela sala pública da
sessão e, com o semblante fortemente congesto, avançou na direção da tribuna,
ruidosamente, e bradou, referindo-se a Petitinga:
— Hipócrita! Quem és para pregar? Imperfeito como tu, como te atreves a falar
da verdade e ensinar pureza, possuindo largas faixas de desequilíbrio íntimo, que
ocultas dos que te escutam? Dize!
Todos fomos dominados por estranho constrangimento e um silêncio tumular se
abateu sobre o auditório.
Petitinga, empalidecendo, levantou os olhos claros e transparentes, fitou o
arrogante obsessor que tomara a boca do atormentado cavalheiro, e respondeu,
humilde:
— Tens toda a razão e eu o reconheço. O tema em pauta, hoje, que o caro
irmão não ouviu, se refere exatamente ao «Perdão das ofensas»...
— Não te evadas covardemente — descarregou o infeliz opositor. — Refiro-me
às condições morais de que se devem revestir os que ensinam o que chamas a
verdade, e que te faltam... Desafio-te a que abandones a tribuna religiosa ou
abandones a vida que levas...
O assombro colocava-nos em estupor. Indubitavelmente, a entidade loquaz e
enferma desejava criar condições de suspeição quanto à conduta ilibada, transparente
e nobre do Evangelizador, e o desafiava a um duelo verbal negativo e
pernicioso. De fé inquebrantável, no entanto, e sereno, o lecionador da Doutrina Espírita,
sem trair na voz as emoções que o visitavam, esclareceu, com tocante
sentimento da mais pura humildade:
— Irmãos: o amigo espiritual tem toda a razão e não me posso furtar ao dever
de necessários quão inadiáveis esclarecimentos. Ensinou o Mestre que nos confessássemos
uns aos outros, prática essa vigente entre os primeiros cristãos e que
o tempo esmaeceu e deturpou dolosamente. Nunca me atrevi, nunca experimentei
coragem para dizer aos companheiros sobre as minhas próprias dificuldades.
Agora, utilizando-me do auxílio do irmão que me faculta ensejo, digo da luta
108
intensa que travo nalma para servir melhor ao Senhor, tentando, cada dia,
aprimorar-me intimamente, lapidando grossas arestas e duras angulações negativas
da minha personalidade enferma. Depois de ter conhecido Jesus, minha alma luta
denodadamente contra o passado sombrio, nem sempre logrando êxito na ferrenha
batalha de superação dos velhos padrões de ociosidade e crime em que viveu, na
imensa noite dos tempos. Abandonar, todavia, o arado, porque tenho as mãos
impróprias, quando a erva má grassa e escasseiam obreiros, não o farei nunca!
«Elegi, desde há muito, a desencarnação no grabato da aflição superlativa e do
abandono total; fiel, no entanto, à luta redentora que me facultava a Doutrina de
Jesus, à partida para o Mundo da Consciência Livre, cercado de carinho e conforto,
ternura e compreensão, longe, porém, do serviço libertador... Prefiro a condição de
enfermo ajudando doentes, a ser ocioso buscando a saúde para poder ajudar com
eficiência, enquanto se desgastam corpos e almas ao relento da indiferença de
muitos, que as minhas mãos calejadas podem socorrer. Miserabilidade socorrendo
misérias maiores, à posição falsa daquele que recebeu o talento e o sepultou, conforme
nos fala a Parábola do Senhor. Embora imperfeito, deixo luzir minha alma
quando contemplo a Grande Luz; vasilhame imundo, aromatizo-me ao leve rocio do
perfume da fé; espírito infeliz, mas não infelicitador, banho-me na água lustral da
esperança cristã... Perdoa-me, Senhor, na imperfeição em que me demoro e ajudame
na redenção que persigo... »
O auditório, compungido e emocionado, atendido por vibrações superiores,
chorava comovido, e lágrimas transparentes adornavam a face do servidor do
Cristo, rutilando singularmente naquela manhã de sol.
Inesperadamente, o perturbador espiritual arrojou ao assoalho o seu
instrumento, e, dominado por crua emotividade, bradou:
— Perdoa-me, tu! A tua humildade vence-me a braveza, velhinho bom! Deus,
meu! Deus, meu! Blasfemo! O ódio gratuito cega-me. Perdoa-me, velhinho bom, e
ajuda-me com a tua humildade a encontrar-me a mim mesmo. Infeliz que sou. Tudo
mentira, mendacidade inditosa, a que me amarga os lábios. Ajuda-me, velhinho
bom, na minha infelicidade...
Petitinga desceu os degraus da tribuna, aproximou-se do sofredor e, falando-lhe
bondosamente, envolveu o médium com gesto de carinho, convidando-o a sentarse.
— Perdoe-nos o Senhor de nossas vidas! — Falou em discreto pranto.
E levantando a voz, rogou:
— Oremos todos a Jesus, pelo nosso irmão sofredor, por todos nós, os
sofredores.
Raras vezes na vida física presenciara cena mais comovedora. Era como se o
Mundo Excelso baixasse àTerra e os homens pudéssemos transitar no rumo
daquele mundo onde reside a felicidade...
Retornando à calma, o médium, ignorando o que se passara, teve um gesto de espanto por
encontrar-se ali. Esclarecido em poucas palavras pelo pregador, este retornou à tribuna, e como se
nada houvera ocorrido deu curso à preleção.
À hora regulamentar, os trabalhos foram encerrados, enquanto a cidade, lá fora, cheia de sons e
músicas do dia e da faina dos homens, se deixava inundar da luz do sol.
12
Desobsessão e responsabilidade
109
As lutas prosseguiram contínuas e intensas. Amparados, todavia, pela
Misericórdia Divina, empenhávamo-nos, igualmente, em corresponder à confiança
da Espiritualidade Superior. Certo é que o carvalho enrija fibras sob as agressões
da tempestade... Também, nós outros, fortificávamo-nos na fé e no entusiasmo à
medida que se multiplicavam os convites à árdua batalha da fidelidade ao dever
espontâneamente assumido. Aqui era o irromper das paixões demoradamente
subordinadas àvontade tentando desequilíbrio; ali eram as investidas da violência,
através de pessoas irresponsáveis que se faziam dóceis instrumentos dos Espíritos
infelizes: parentes invigilantes e perturbados atiçando rebeldia; almas afeiçoadas
pelos estreitos laços do matrimônio, inconseqüentes, ensejando redobrada aflição,
feridos pelas farpas do ciúme, da ira e da insensatez, transformando-se em algozes
brutais...
Resistindo quanto nos facultavam as forças, inspirados e socorridos como estávamos,
sentíamos, simultaneamente, a rara felicidade de nos encontrarmos nos
campos da fé redentora. Evocávamos os mártires dos primeiros tempos do
Cristianismo e exultávamos. Se agora a arena desaparecera dos sítios em que tinha
sua construção, estendera limites, porém, partindo do mundo interior de cada um
até às longes partes do pensamento... Ontem, o holocausto e o martírio público
eram estímulo ao prosseguimento, e o sangue derramado se convertia em adubo
nas raízes
da fé nascente. Agora, não. Os testemunhos deveriam ser silenciosos, na cruz da
abnegação e da renúncia, fora dos grandes espetáculos...
Transcorriam os dias sem outras alterações, quando, no trabalho habitual de
intercâmbio mediúnico, Saturnino elucidou que o irmão Glaucus viria à incorporação
pelo médium Morais, para instruções valiosas.
Saudando-nos em nome do Senhor, o nobre Instrutor, de imediato, considerou:
— Conforme estão informados os caros amigos, o nosso irmão Teofrastus tem
sido hóspede querido desta Casa. Desde as entrevistas que mantivemos, ora no
Anfiteatro, ora no Lazareto em que se encontra Henriette-Marie e aqui mesmo,
recolheu-se o antigo mago de Ruão a meditações muito profundas e a
arrependimento perfeitamente compreensível. Despertar para a verdade é, também,
nascer para a responsabilidade. Conhecer o bem significa renunciar ao erro. O cego
que se demora sem o contágio da visão por longos anos, ao despertar em manhã
de formoso dia, sente a ardência da luz e experimenta o sofrimento que a claridade
lhe produz; refaz o caminho pela noite tormentosa e padece, embora embriagado de
luminosidade. Identificar-se com a vida abundante pode parecer embate fácil;
perseverar, no entanto, na comunhão com a Vida Maior representa esforço
sacrificial e continuado contra a aclimatação em que se vivia. Nesse sentido, o
Mestre sempre fora incisivo e conciso: «Não voltes a pecar para que te não
aconteça algo pior» — enunciava Ele aos recém-curados.
Um intervalo natural na exposição do Amigo Espiritual se fez espontâneo. E
prosseguindo, clarificou:
— Marcado pela revolta que o consumia, lentamente, nesse largo período de
tempo, desde a arbitrária punição pela fogueira, de que foi vítima, nosso amigo
acalentou na mente a chama da vingança, buscando, implacável, aqueles que foram
os responsáveis pelo seu sofrimento. Como, porém, o ódio enceguece e oblitera as
fontes da razão, não conseguiu identificar exatamente aquele que tramou a infame
tragédia, vindo a encontrá-lo só agora, em situação ainda mais inditosa do que a
110
sua. Conservou, no entanto, do Cristianismo, a concepção infeliz que lhe deram
os seus atormentadores; dos que se locupletam à sombra da fé para usufruírem
benefícios pessoais; dos que têm nos lábios mel e no coração ácido terrível; dos
pastores que devoram as ovelhas, e das ovelhas que são, em última análise, “lobos
disfarçados de ovelhas”. A doçura do amor de Jesus foi-lhe apresentada entre
labaredas que lhe lamberam as carnes e em fumo que o asfixiou até a morte... Ante
a adulteração dos ensinos do Mestre, conforme lhe chegaram nos dias da
ignorância medieva, conserva até hoje aversão pelo nome do Cristo e pela Doutrina
que Ele nos legou. Invigilante, tornou-se calceta de si mesmo e, atormentado pela
ausência de lume no velador da paz, sem combustível de esperança, fez-se todo
suspeita, arrogância, inquietação, conquanto o cansaço do mal empreendido por
largo espaço e o receio de que já lhe esgotavam as forças para prosseguir...
«Colhido nas malhas dos atos reprocháveis, acredita-se novamente vítima das
circunstâncias. Ignorando que os nossos atos nos elegem vítimas ou algozes de nós
mesmos, e que, por mais cruel seja a nossa atuação, não fugimos ao nosso destino
de felicidade, mais hoje ou mais tarde. Soou para ele o momento da redenção
necessária e difícil, que já começa, porém. Imenso trajeto o espera, longo mergulho
na carne sofredora o aguarda a benefício dele mesmo.
Depois de breves instantes de expressivo silêncio, prosseguiu:
— Enquanto se dispõe em definitivo à renovação espiritual — já que nos não
cabe constrangê-lo sob qualquer pretexto ou circunstância, a fim de ser recambiado
para recinto próprio em nossa Esfera, onde se deverá preparar para as lutas da
sublimação futura, observa as tarefas que aqui se desdobram, a atuação dos cristãos
novos, a conduta real que se deriva da fé raciocinada, o nível de amor
inspirado no amor do Cristo... Acompanha as operações socorristas dirigidas aos
sofredores de ambos os planos da vida, que aqui vêm trazidos, e, sobretudo, com a
nossa assistência afetuosa, segue os lidadores da fé, servidores da semeação
evangélica e os médiuns trabalhadores para sentir se os ensinamentos nesta Casa
ministrados são aplicados na conduta diária pelos que os administram... Verifica a
forma pela qual se comportam os espíritas sob a constrição do testemunho e da
prova, da perturbação e da dor, confirmando pelos atos a sua identificação com o
Cristo. Temos-lhe ensejado o conhecimento do ministério da fraternidade
desenvolvido pelo nosso Templo, de modo a facultar-lhe o conhecimento do vero
Cristianismo, em face das idéias que cultivou e nutriu em torno da Religião de que
foi vítima no passado. Embora conhecedor dos objetivos do Espiritismo, habituado
como se encontrava às restrições que mantinha quanto à dignidade humana,
conhecedor das fraquezas do caráter das criaturas, deixou-se arrastar pelos
próprios conceitos, enveredando nos meandros das suspeitas e das desconsiderações
às mais nobres florações da fé sob qualquer designação. Apesar disso,
a débil chama da fé natural, da necessidade de uma sua religação com a Verdade,
realizava o seu mister, deixando-o, não poucas vezes, receoso quanto ao futuro,
ansioso sobre o porvir... Vivendo a esfera imortal, de cujas realidades não podia
duvidar nem fugir, acompanhando processos diários de reencarnação e
desencarnação, temia ser colhido pelas teias da Lei Superior, desarmado para a
consciência de si mesmo, emaranhado quanto se encontrava na trama do
desgoverno íntimo pelo ódio.
Novamente o Amigo Espiritual, desejoso de resumir um destino numa narração
breve, deixando traduzir àcomiseração de que se via possuido, ante o inditoso espírito,
aduziu:
111
— Teofrastus, nosso irmão, necessitado de nosso auxílio , auxílio que nos
vem do Alto é, também, lição viva para todos. Nenhum de nós está isento de ser
vítima de circunstâncias que tais, derrapando nos abismos do desespero e da
alucinação, através de cuja queda poderemos retardar em demasia o nosso
progresso, a nossa dita. Muito justo que vejamos nele o nosso passado ou o que
poderia ser o nosso presente, caso não tivéssemos, aquinhoados como fomos,
sabido receber e aceitar o convite de Jesus, nosso Amigo e Mestre. Desse modo, a
nossa, particularmente a vossa responsabilidade é muito grande, em face da
conduta que devemos viver, de forma a que a nossa mensagem lhe fale ao espírito
atormentado com a excelente linguagem do amor do Cristo aplicado aos nossos
atos. Testemunha da nossa vivência evangélica, incorporará as lições ouvidas e
vistas ao patrimônio íntimo, consoante lhas ofereçamos, adquirindo forças ou não
para doar-se Àquele que nos levanta e ampara, podendo, pelo amor, levantá-lo e
ampará-lo, também. Não é inútil que o Apóstolo dos Gentios nos adverte, através da
epístola aos Hebreus, no capítulo 12, versículos 1 e 2: «Portanto, também nós, visto
que temos ao redor de nós tão grande número de testemunhas, pondo de lado todo
o impedimento, e o pecado que se nos apega, corramos com perseverança a
carreira que nos está proposta, fitando os olhos em Jesus, autor e consumador da
fé, o qual pelo gozo que lhe foi proposto suportou a cruz, desprezando a
ignominia...». Indubitavelmente «temos testemunhas ao redor de nós» e são muitas,
em número superior ao que se pensa, estas, que são os homens, e aquelas que, do
Mundo Espiritual, acompanham o que pensamos, dizemos e fazemos...
E reflexionando, com maior ênfase acrescentou:
— Em todo problema de desobsessão há que considerar o espírito sofredor que
provoca sofrimento e levar em conta os recursos éticos do doutrinador, ao lado da
sua conduta espírita, isto é, sua responsabilidade moral. Conduta e
responsabilidade, essas que são essenciais na tarefa de doutrinar, porqüanto a
instrução que não se faz acompanhar do exemplo não possui a tônica da verdade.
Sem dúvida, o mérito do próprio obsidiado, as possibilidades que se lhe podem
oferecer com o retorno da saúde, no sentido de libertar-se da obsessão, constituem
também pontos favoráveis para desatar o enfermo das amarras com o delito
passado, de cuja cobrança o desencarnado se faz infeliz intermediário. Todavia, nas
atuais realizações dos Templos Espíritas que se transformam em Hospitais-Escolas
na Terra para encarnados e desencarnados, a densa população dos ali residentes,
do lado de cá, acompanha a lealdade do ensino quando incorporado ou não ao
«modus vivendi» ou «modus-operandi» dos médiuns, dos doutrinadores, dos diretores
das Casas. Palavras belas e sonantes, conceitos elevados são de fácil
aquisição em muitos lugares. A excelência, porém, de uma idéia, de uma convicção,
da Religião se constata pelo número daqueles que foram modificados, que se
transformaram e que se deram à sua realidade.
«Em todo processo de desobsessão não podemos desconsiderar o concurso do
tempo, que nos exige alta dosagem de paciência e perseverança. Aqueles que se
propõem a ajudar, compreendem a necessidade de criar condições para o
desiderato. Assim, portanto, assumem consciente ou inconscientemente significativa
responsabilidade espiritual com aqueles que se perturbam reciprocamente nos
compromissos infelizes a que se jugulam. Logo surjam os primeiros resultados
favoráveis da saúde, não podem nem devem os lidadores do socorro deixar à mercê
da insegurança e da distonia psíquica em reequilíbrio os que antes estavam
esmagados pelas forças dissolventes da perturbação. Despertando para a
112
compreensão dos deveres novos e amplos, impõe-se-nos ajudá-los com carinho
de pais ou mestres, ministrando-lhes demoradas lições de fé e instrução contínua,
para a manutenção dos requisitos básicos da saúde interior, a fim de que lhes não
ocorra uma reincidência mais danosa e mais grave, portanto, do que a anterior. Algumas
das entidades afastadas dos seus comensais nem sempre se esclarecem de
imediato, ou se conformam com a situação nova. Continuam acompanhando suas
antigas vítimas e aguardando oportunidade... Por outro lado, diversos
desencarnados responsáveis por obsessões soezes prosseguem requerendo
carinhosa assistência, até que se lhes firmem os propósitos superiores e sintonizem
com o auxílio dos seus Mentores. Qualquer tarefa de desobsessão, portanto,
representa nobre e elevada responsabilidade para todos os que nela se envolvem,
requerendo conhecimento doutrinário seguro e vivência cristalina evangélica. »
Compreendíamos, e confirmávamos que, sem dúvida, o Espiritismo é lição
imortalista e que as nossas responsabilidades são, verdadeiramente, muito grandes.
Longe, porém, nos encontrávamos de perceber as implicações transcendentais do
ensino espírita no dia-a-dia da nossa jornada à frente dos irmãos desencarnados.
Acompanhávamos, pois, as elucidações do Mentor, com vivo interesse e, porque
não dizer, com algum assombro. Muito lógicos, os conceitos penetravam-nos fundo
na alma.
Depois de breve intervalo, o irmão Glaucus continuou:
— Participando das reuniões caridosas de intercâmbio com os sofredores
desencarnados, o nosso amigo aprende a aquilatar o valor do amor, nas operações
de toda ordem. Percebe a «não-violência» poderosa do amor, o resultado dos
fluídos magnéticos manipulados pelos sentimentos dos que os orientam e, acima de
tudo, a magia sublime da presença do Cristo Inconsumpto, pelos laços do
intercâmbio através da oração. Tem constatado nos serviços entre as duas Esferas
da Vida o resultado da excelência da fraternidade e a eficiência dos métodos da
caridade cristã. De apurado senso de observação e profunda acuidade mental,
compreende que nos utilizamos das mesmas técnicas, algumas das quais lhe são
familiares, usando as mesmas expressões de energia, aplicadas, porém, com
finalidades amplas e diferentes das suas, abastecendo-nos nas Fontes Inexauríveis
do Amor Divino. Diante dessas descobertas novas realizadas pelo seu espírito,
ávido agora de paz íntima, modifica-se-lhe o panorama mental e altera-se-lhe a
visão da realidade. Já experimenta a sede da libertação, embora reconheça a
necessidade do tributo pesado do ressarcimento que os seus atos ora lhe impõem,
com a urgência de que carece para sair do labirinto das paixões em que tem estado,
em cujos sítios aspirava os miasmas do ódio, da alucinação, do desespero
inominável.
«A consciência da verdade oferece ao ser consciência lúcida, O erro já lhe não
empana o raciocínio e o Espírito não mais se conforma com engodos nem aceita
ilusões. Impõe-se a si mesmo o imposto do resgate como impositivo do próprio
êxito. Sente que não merece felicidade desonesta e estatuída à base da astúciá, o
que representaria impedimento à paz. »
Refletindo mais demoradamente, exteriorizando pela face do médium a nobreza
de linhas da sua face e a harmonia do seu espírito em sublimação, o Sábio Instrutor
concluiu:
— Quando abrimos pequeno orifício num obstáculo que nos impede a visão,
desdobra-se exuberante, além do impedimento, o campo largo dos acontecimentos.
Penetrando-o com observação cuidadosa, descortinamos um quase horizonte sem
113
fim, mais além... Assim são os nossos atos: produzem orifícios nas paredes das
dificuldades. Uma ação negativa, dirigida contra alguém, talvez não lhe produza
danos imediatamente; aquele, no entanto, que foi nossa vítima, pode tomar o
petardo e atirá-lo mais adiante, ferindo, desequilibrado, quantos se lhe encontrem
ao alcance. Era já um enfermo, sim, esperando alguém que lhe desse o impulso
para a prática de desmandos inesperados. Ai, de nós, porém! É semelhante à lição
do escândalo: «Ai de quem o pratique»; conquanto necessário, não nos devemos
tornar instrumento dele, conforme asseverou Jesus. Também assim atuam o gesto
nobre, o pensamento elevado, a palavra edificante. Socorrendo este alguém que
está à mercê da ignorância, ou sob a constrição do desespero, ou às portas da
loucura, quanto produza ele de futuro em paz e alegria, cheio de esperança e
ânimo, deve-o ao Senhor da Vida, certamente, e, também, àquele alguém que lhe
ofertou o socorro recebido. Estará viajando o impulso da nossa doação através
deste ou daquele. Uma agressão de qualquer natureza faz-se antecipar da vibração
selvagem do ódio, da ira, da perversão que envolve o que lhe cai nas malhas,
predispondo-o à reação compatível ao atentado que venha a experimentar. O plano
do socorro e da caridade também exterioriza energia envolvente que permeia o ser
a quem objetiva, e quando o ato o alcança eis que ele já está investido da reserva
favorável ao registro e aceitação da oferta de amor.
Mudando de acento, o Amigo Espiritual reportou-se à família Soares, elucidando
que os processos de desobsessão aos diversos membros do clã nos exigiriam ainda
por algum tempo larga faixa de labor, de forma a doarmos um auxílio mais eficiente.
— Ante a aflição de alguém — fez-se explícito —, costumamos interrogar à cata
de esclarecimentos. Parecem-nos injustos os sofrimentos de pessoas que se enobrecem
pelo trabalho e que alçam vôo às regiões do amor; apresentam-se-nos
como indébitos ou severamente fortes os tributos de dor a que muitos são
convocados, quando estão em renovação, na esfera de trabalhos edificantes;
Espíritos em santificação surgem-nos carregados de contínuas provas e elas nos
parecem demasiadas... Todos esses Espíritos, porém, rogaram a oportunidade do
resgate no passado, quando se acreditavam capazes. Nem sempre, todavia,
quando o solicitaram possuíam as necessárias resistências para produzi-los. Vindo
as aflições somente agora, quando amam e servem, produzem e ajudam, dispõem
do largo patrimônio do amor e da resignação, do conhecimento e da esperança para
diminuir-lhes o peso do fardo... A prova chega quando o aluno realizou o curso,
ôbviamente, como consequência natural para a verificação da aprendizagem na
seleção dos mais aptos e valorosos. Noutros casos, porém, a enfermidade e a dor
são medidas preventivas impeditivas de danos maiores na economia do progresso.
O próprio amor, após examinar os recursos e possibilidades de determinados
pacientes da alma, aprofundando neles a observação demorada e comprovandolhes
o pouco aproveitamento das lições da reencarnação com os agravantes dos
planos maléficos que acalentam, impossibilita-os de caírem em danos mais graves,
comprometimentos mais ásperos para eles mesmos, resolvendo que, por enquanto,
para a melhora das suas aquisições, só a doença, o agravamento do seu estado,
ensejando, desse modo, enquanto presos ao leito, tempo de meditar e transformar
idéias, de buscar o pensamento divino e renovar-se... Diante, pois, dos sofredores
deste ou daquele jaez, não nos apressemos em revelações aventureiras quanto às
suas causas, para não corrermos o perigo de errar. Em toda e qualquer situação
valorizemos a bênção do resgate, a lição viva para aprendizagem valiosa, e
submetamo-nos, tranquilos, aos impositivos da Lei. Pacientes há, rebeldes de tal
114
monta, que o melhor medicamento para a saúde deles é a continuação do
sofrimento em que se encontram...
«Cientificados e esclarecidos, seguros de que tudo obedece a Planificação
Superior, sejamos o irmão da caridade, do amor, da compaixão, e envolvamos os
sofredores que nos buscam nos tecidos da nossa prece e dos nossos sentimentos
bons, ajudando e passando. A Lei a todos nos alcançará... Predisponhamo-nos pelo
bem para o momento do nosso exame, na abençoada escola do progresso. »
Despedindo-se, o Amorável Benfeitor deixou-nos em esfera de paz e raciocínios
preciosos, que nos capacitariam a entender com segurança e em profundidade os
acontecimentos futuros, bem como a logicar com valor em torno de ocorrências
passadas, tranquilizando-nos com as revelações sobre a Divina Justiça e o Sublime
Amor.
115
13
Solução inesperada
Após quinze dias de internamento no Hospital do Pronto Socorro, o Sr. Mateus
foi trasladado para o lar com expressivos sinais de breve recuperação orgânica.
Visitando-o na primeira oportunidade com Petitinga, ouvimos a narrativa dos
antecedentes do grave delito de que se fizera vítima, impressionando-nos observar
a carga de ódio acumulada na mente que destilava, prestes a explodir com revolta e
desassossego.
O Sr. Mateus era um homem de quase sessenta anos, sanguíneo, voluntarioso.
Perturbado em si mesmo, atravessava a existência carnal saltando de leviandade
em leviandade, muitas vezes esquecido dos deveres de esposo e pai, fascinado
pelo pano verde, em que se aventurava, atirando fora os parcos recursos que, se
aplicados no lar, seriam de alta valia para o bem da família constituída de seis filhas.
Em compensação, Dona Rosa se desdobrava nos deveres domésticos e na costura,
até altas horas da noite, para suprir, com o esforço de algumas das filhas, as
necessidades domésticas.
Irreligioso por temperamento rebelde, sempre descurara dos deveres espirituais
para consigo mesmo. Em tempos idos fora excelente artista, recebendo agora uma
parca pensão do Montepio a que se vinculara antes, por ter sido considerado inapto
a prosseguir na profissão.
À medida que a decrepitude das forças se avizinhava e temeroso da
desencarnação, fazia-se mais azedo, quase insuportável...
Por ocasião do retorno de Mariana ao lar e impressionado com as informações
e esclarecimentos de Petitinga sobre a obsessão e os cuidados que todos nos devemos
impor para evitar-lhe as tramas infelizes, pareceu modificar o
comportamento, por alguns dias... Depois, como se ficasse alucinado, entregou-se a
desmandos, e não poucas vezes, açulado pelos desencarnados afins, ameaçava
expulsar do lar, quando necessitava de dinheiro para as aventuras, a esposa
abnegada e as filhas. O ambiente doméstico, com a sua presença, se fazia
pestilencial pelas emanações fluídicas abundantes, que ali campeavam
desordenadas.
Petitinga, ameno e cortês, após escutar as promessas de desforço do
infortunado agredido, relatou-lhe a experiência de Jesus-Cristo e as Suas lições,
sem lograr, de imediato, qualquer resultado. De mente viciada por longos anos de
desequilíbrios contínuos, o esposo de Dona Rosa sintonizava na faixa do
despautério moral e se permitia o conúbio com os seus antigos comparsas, apresentando-
se irredutível nos pontos de vista, na conduta, nas atitudes.
Dizia aceitar o concurso do Espiritismo, conquanto fosse apenas para libertá-lo
mais facilmente do leito, de modo a facultar-lhe de pronto o retorno aos sítios da sua
humilhação, retomando a pureza da sua honra...
Solícito, utilizando-se do ensejo, o zeloso amigo convidou-nos a orar e, em
sentida peroração, exorou os recursos divinos para aquela família, mas
principalmente para o genitor enfermo, rogando a interferência do Médico Divino
que nunca falta, de modo a que o lar dos Soares não fosse arrastado a drama mais
grave e a consequências imprevisíveis. As palavras ungidas de emoção vibravam
doces no quarto singelo qual música delicada, envolvendo-nos em consoladora
116
esperança. A sintonia natural, espontânea, com as Altas Esferas se fez imediata,
e Saturnino, o abnegado Mentor, tomando o comando mental da Verdade, proferiu
expressiva quão valiosa dissertação sobre os deveres do perdão, como normativa
de comportamento para a própria felicidade.
— “Felizes são os que perdoam — enunciou, consciente —, porqüanto
conferem paz a si mesmos e por sua vez liberam da dívida os que os ofenderam,
entregando-os, desse modo, às Soberanas Leis encarregadas da evolução dos
homens. Os que perdoam e ajudam conseguem ainda maior galardão, porque
amparam os maus e os vencem com a luz da misericórdia. No entanto, aqueles que
conservam as mágoas intoxicam-se, envenenam-se, dando causa a graves
enfermidades que se desatrelam rigorosas, transformando-se em suplícios demorados,
cujos responsáveis, no entanto, são os que cultivam os pensamentos
inditosos e se comprazem na semeação da ira e do ódio, absorvendo as próprias
emanaçoes tóxicas da mente desalinhada. E os que revidam mal por mal, agressão
por agressão, estes já se encontram descambando na direção do abismo, em posição
quase irreversível..
«O amor é pólen que fecunda a vida, enquanto o ódio é gás que a interrompe...»
A advertência vazada em termos suaves fazia-se severa, não dando margem a
controvérsias ou mal-entendimentos de natureza alguma.
Conclamou-nos, ainda, o Sábio Instrutor ao cultivo das boas idéias, à vivência
da paz íntima, mediante a elaboração de pensamentos enobrecedores,
estimulando-nos à correção mental, de cuja fonte — o pensamento — procedem os
elos da escravidão ou as asas da liberdade que fixamos às nossas vidas.
Antes de afastar-se aplicou, generoso, demorado passe longitudinal no paciente,
exortando-o:
— Mude a idéia do mal em você, meu amigo, antes que a raiva o vença; e
esqueça a vingança antes que a vingança o esqueça em situação dolorosa e
lamentável... Jesus nos ensinou que: «quando estivéssemos orando e
mantivéssemos alguma coisa contra alguém, perdoássemos» (*). Ore e perdoe para
ter saúde e paz.
Dona Rosa, Mariana e Amália, de pé ao nosso lado, orando muito comovidas,
deixavam-se arrastar pelas ondas da Espiritualidade momentânea no ambiente,
banhadas por discreto pranto, qual ocorria com nós mesmos.
Terminado o intercâmbio inesperado e benéfico, Petitinga sem delongas
encerrou o trabalho de socorro e, após as despedidas, saímos na direção dos
nossos lares.
— Pressinto que — informou-me o amigo — o nosso Mateus experimentará, em
benefício dele mesmo, inestimável lição que o convidará a demorada reflexão sobre
o destino e a vida que lhe tem transcorrido sem maiores consequências. Todos
esses que se dizem «indiferentes» com referência ao problema da fé, acobardam-se
dolorosamente ante as realidades da desencarnação. Acomodados à
irresponsabilidade como vivem, quando neles irrompem os clarões prenunciadores
do novo dia, ou chegam as primeiras sombras da travessia pelo vale da morte,
debatem-se aflitos, esbravejam, fazem promessas, negociam...
— Como suporta Dona Rosa — indaguei — tão pesada carga em ombros
frágeis quais os seus?
— Pelo que estou informado — explicou prestimoso — pelos nossos Benfeitores
Espirituais, ela foi-lhe mãe
117
(*) Marcos, capítulo 9, versículo 25. — Nota do Autor espiritual.
descuidada em vida próxima, no pretérito. Acompanhando-o da Espiritualidade, de
queda em queda, acumpliciado com os pesados débitos da última existência, após a
fuga para a Bélgica, que redundou em homicídio nefando, do qual deve ter sido
vítima aquele que ora lhe ergueu a mão fratricida e em cuja reencarnação escapou
à justiça por se ter evadido do país, ela, apiedada, rogou a oportunidade de ser-lhe
esposa, recebendo nos braços como filhos os inimigos de ambos, para, então, pelo
exemplo da paciência, da humildade e da submissão, ressarcir o crime da
irresponsabilidade junto a ele, e chamá-lo à observância dos deveres de que se
descura acintosamente. Como podemos observar, o caráter exaltado de que dá
mostras, o mau-humor contínuo de que se reveste, atestam o fogoso espírito
encarcerado, sem possibilidades de revelar-se em toda a pujança do seu
primitivismo. Ela, no entanto, avança vitoriosa, e creio mesmo que o seu sacrifício e
a sua fidelidade aos postulados que abraça no Espiritismo terminarão por vencer
galhardamente o opositor, conduzindo-o à retidão de princípios. Vale considerar que
a sua folha de méritos é igualmente apreciável. O martírio maternal que tem
experimentado na atual conjuntura consagra-a nesta vida, reabilitando-a da
negligência de equivalente compromisso no pretérito.
«Carinhosamente amparada pelos seus afeiçoados no Plano Espiritual, ela
adquire forças para compensar os desgastes na luta ferrenha do lar atormentado,
invadido por infelizes visitadores espirituais, que ali teimam por fazer morada,
graças aos demais familiares residentes. De certo modo isolada, tanto quanto as
meninas Mariana e Amália, dos miasmas fluídicos do ninho doméstico, criaram já
sua própria «psicosfera pessoal», que as isenta das agressões dos desencarnados
menos afortunados. Como você observa, Mariana tem-se revelado dedicada
cooperadora da nossa Casa e, logo mais, estará devotada ao exercício da
mediunidade socorrista, conforme esperamos, adquirindo valiosos recursos para a
manutenção da saúde e da paz. Amália, cumpridora dos seus deveres de filha e
irmã, é excelente servidora, ganhando fora do lar em trabalho modesto e honrado o
pão, mediante cuja cooperação ajuda a manutenção das demais irmãs. A
Contabilidade Divina dispõe, também, dos métodos de correção benéfica dos
depósitos a favor dos titulados nos seus Livros. »
Reflexionando, verifiquei a legitimidade e o acerto dos conceitos emitidos, ao
nos despedirmos.
Os dias transcorriam absorvendo-nos nas atividades múltiplas a que nos
filiáramos, quando Petitinga voltou a convidar-nos a retomar ao lar da família Soares,
atendendo à aflita apelação de Dona Rosa.
Quando lá chegamos, a veneranda Senhora recebeu-nos macerada de
sofrimento. O esposo encontrava-se quase agonizante. O médico saíra havia pouco
do lar, informando que o prognóstico era desalentador. Ficara hemiplégico,
apresentando o doloroso aspecto do desastre orgânico. Todo um lado estava
paralisado e os estertores agônicos de que dava mostras, semidesfalecido,
confrangiam a alma. O próprio médico se dizia sem esperanças. Muito mais
entristecedor era o quadro aflitivo do lar... A sofrida matrona, com a imensa carga
das noites indormidas e os esforços sobre-humanos para manter a família,
definhava sob a aspereza das rudes provações...
Petitinga ouviu-a demoradamente, com paciência, enquanto, na sala de
refeição, a esposa e mãe narrava a quase tragédia que resultara no não menos
118
danoso problema que agora defrontávamos.
Conquanto a sua humildade e carinho, fora constrangida a admoestar a filha
Marta, que continuava nas arriscadas aventuras de feticismo.
Às vésperas, quando chegara, noite avançada, a genitora lhe reprochara o
comportamento, advertindo-a quanto à cooperação que deveria oferecer para a paz
do lar e a recuperação do pai enfermo, que vencia o primeiro mês da agressão com
ótimos resultados, quase recuperado. Rogou-lhe a ajuda espiritual, através da prece
e da mudança de atitude em relação à fé, a fim de que os Mensageiros Invisíveis
pudessem renovar a atmosfera da vida familiar, modificando o carreiro das
provações que todos experimentavam como consequência funesta dos erros
passados. Suplicava-lhe não se adentrasse mais no emaranhado labirinto de trevas
por onde seguia...
Fora o bastante. A filha, possessa, desrespeitosa, agrediu-a moralmente com
palavras fortes e azedas, transformando em altercação violenta o que não passava
de sereno convite materno à reflexão, à dignidade, ao equilíbrio. Furiosa, tentou
agredir físicamente a mãe que lhe estava em frente, não conseguindo o intento,
graças à interferência providencial de Amália e Mariana, que lhe correram em
auxílio .
As forças negativas de que se fazia habitualmente instrumento irromperam
intempestivas e o Sr. Mateus, acordado sübitamente, ouvindo o clamor e a
balbúrdia, levantou-se do leito precipitadamente, marchando revoltado, colérico,
armado com uma acha ameaçadora. A poucos passos, cambaleou e tombou ao
solo...
Fora indescritível a cena. A ferida cirúrgica, ainda não cicatrizada de todo, voltou
a sangrar e, tomadas providências de imediato, retornou ao Pronto Socorro. Lá,
foram aplicados os recursos compatíveis ao caso e, no momento, se encontrava na
«tenda de oxigênio», lutando pela sobrevivência do corpo, com diagnóstico de
embolia cerebral.
Receava a nobre senhora não suportar as últimas dores. Encontrava-se
enferma, e embora não desfalecesse na fé, em circunstância alguma, acusava-se
cansada, receosa, desalentada...
Vencida por choro convulsivo, apoiou-se no intimorato espírita e, sob a sua aura
fortificante, dele recebeu a energia revigorante de que necessitava. Paulatina-mente
foi-se acalmando, recompondo-se.
Além do esposo nesse estado de desespero, Marta recolhera-se ao quarto,
possessa pelo ódio surdo, recusando-se a sair. Mesmo sabendo do que acontecera
ao pai, reagia contra ele, continuando na tônica da revolta.
Depois de alguns instantes de reflexão, Petitinga convidou-nos a acompanhá-lo
à peça em que Marta se demorava, e, com a autoridade moral que o aureolava,
saudou-a. Conquanto não fosse correspondido, o seu verbo correto advertiu-a:
— Marta, minha filha, o dever da solidariedade induz-me a procurá-la, em nome
de sua aflita mãe e do seu pai agonizante... Não nos animam quaisquer propósitos
de invectivá-la, tecendo considerações injuriosas ou censuráveis aos últimos
acontecimentos que abalaram este lar. Nutrimos o são desejo de lutar para que não
se acumulem danos sobre novos danos numa avalanche de gravames mais
desesperadores, cada vez piores... Você sabe por experiência pessoal que a morte
é entrada na vida, reexame de atos, reencontro com a consciência, mesmo quando
esta jaz entorpecida pela ignorância ou anestesiada pelo crime... Todos sabemos
que a vida nos dá o de que temos necessidade para o nosso progresso espiritual e,
119
consequentemente, pai, mãe, familiares e amigos são peças importantes,
indispensáveis para a nossa evolução. Como nos comportamos em relação a eles,
oneramo-nos ou não de responsabilidades negativas novas, que atiramos na
direção do futuro... Por isso e por muitas outras razões, você não se pode manter na
posição em que se refugia agora, na qual se vem sustentando até aqui...
A filha mais velha dos Soares continuava silenciosa, emitindo raios de surda
dólera refreada a custo.
Perfeitamente senhor da situação, Petitinga propôs:
- Se você nos permite, filha, aplicar-lhe-emos passes magnéticos para ajudá-la
na difícil decisão e sustentá-la nas provas que lhe advirão como resultado da sua
teimosia. Oraremos juntos, encontraremos Jesus que nos oferecerá braço amigo
para prosseguir e venceremos o caminho da reforma íntima sob o divino amparo.
Vencendo o mórbido silêncio, Marta rugiu:
— Agradeço o seu interesse. Encontro-me muito bem e estaria melhor se não
fosse perturbado o meu sossego com a sua presença...
Demonstrando a perícia em lidar com obsessos e obsessores, o então
Presidente da União Espírita Baiana, muito calmo, respondeu:
— Deixá-la-íamos no sossego a que você se refere, caso as suas atitudes não
fossem fatores de perturbação e desordem neste lar. Aqui estamos em nome de sua
genitora, que arca com o ônus de pesados sofrimentos, exercendo a função de mãe
e pai para que o lar não padeça miséria econômica nem moral. Onde o seu dever
de filha, de irmã, que tudo recebeu e nada retribui? Já que você não ajuda, não tem
qualquer direito de criar dificuldades. Você é adulta e tem responsabilidades perante
a Vida. Não deslustre mais a sua consciência, teimando em perseverar no erro
espontâneamente aceito. Ajude-nos, filha, a ajudá-la.
— Não necessito do senhor. Eu tenho os meus Guias... Poderosos, eles são as
forças atuantes da Natureza; indestrutíveis, governam o mundo; rigorosos, sabem
fazer e desfazer...
— E porque não lhes roga auxílio para ser útil e nobre, socorrer e amparar quem
lhe ofereceu a roupa carnal? Porque não a seguraram ontem, impedindo o desfecho
deplorável que a sua atitude violenta gerou?
— Porque eles são violentos, vingadores e conseguem imediatamente o que a
tolerância e o amor não lobrigam. Estivesse a mim entregue a solução dos problemas
daqui e já os teria resolvido desde há muito... Crê o senhor que eu não me
sinto magoada, verificando que as forças de que sou possuidora, na minha casa,
não merecem consideração? Tenho clientes que lograram resultados muito bons
com os meus recursos e os meus Guias me prometem: ou o meu povo se lhes submete
ou eles os acabam...
— Tais Espíritos, minha filha, não são Guias: são cegos arrastando cegos ao
abismo em que todos se precipitarão. Abastardados pela ignorância demoram-se na
animalidade, exigindo retribuições materiais por se comprazerem nos fluídos densos
e grosseiros de que se não podem libertar. Odiando-se a si mesmos, estabelecem o
clima do ódio e, revoltados nos recônditos do ser, espalham rebeldia, ameaçadores,
para governarem sob as nuvens sombrias do medo... Fracos, procuram dividir para
imperar... Dizendo-se temíveis, vivem temerosos, fugindo à consciência e descendo
cada vez a vexames maiores nos quais se enredem, infelizes. Não, filha, não são
poderosos, nem indestrutíveis, nem rigorosos; são primitivos que a vampirizam e se
nutrem do plasma mental dos que, como você, caem presas fáceis dos seus ardis e
mancomunações.
120
— Pois saiba que eles podem fazer o que os senhores jamais conseguiriam.
Libertam as vítimas da obsessão pela força, arrancando os seus perseguidores com
os poderes que possuem. E os senhores, que fazem?
— A violência não liberta e a força não convence. A vitória do poder da força é
ilusório, porque ela mesma gera a força da reação que a destrói. O que você diz ser
libertação em caso de obsessão, invariàvelmente são ardis de que se utilizam os
benfeitores com os agressores: vivendo o mesmo tônus vibratório, combinam uma
libertação falsa, dando a sensação de liberdade àqueles que lhes estão nas
tenazes, para voltarem depois mais violentos, perturbados e perturbadores... Outras
vezes investem com recursos próprios de que se utilizam, e, odientos, apavoram os
outros perseguidores, transferindo o pagamento do enredado na obsessão para
clima mais danoso e mais difícil, portanto... Não se iluda:
a sombra sobre a sombra não produz claridade. Uma gota de luz vence a treva;
todavia, a abundância da segunda nada consegue em relação à primeira... A impiedade
nada produz. A única força eficiente é a que se deriva das reservas morais,
a do espírito superior, a que produz a emissão vibratória de alta frequência, que
atua como força realmente poderosa, capaz de influir decisivamente na esfera das
causas e, pois, consequentemente, no campo dos efeitos.
«Recorde-se de Jesus ante o endemoninhado Gadareno; o moço que sofria de
ataques; as febres da sogra de Pedro; o cego de Jericó; o paralítico de
Cafarnaum.... seria necessário ir adiante? Lembre-se da Sua força diante dos maus,
dos falsos poderosos da Terra. O amor é o pão da vida e, como escasseia, a
esperança da Humanidade cambaleia nas sombras da violência temporária, pois
que o Reino do Amor logo advirá.
«Unamo-nos desde já, minha filha, no mesmo ideal de serviço, e liberte suas forças
psíquicas das constrições que a infelicitam, oferecendo-as a Jesus, enquanto urge o
tempo, iniciando vida nova a seu próprio benefício. Não olvide, neste momento, que
o seu genitor agonizante entre a vida e a morte, ou como também poderíamos dizer
entre a morte e a vida nova, em partindo, poderá deixar em você pesados crepes de
remorso, de arrependimento tardio, improdutivo, inquietador. Agora é o momento: é
tempo de reabilitar-se... Saia da noite e rume na busca do dia. Ore e inunde-se de
reconforto. Não transfira o seu instante de felicidade... Iremos convidar sua mãe a
acompanhar-nos na oração e dê começo, já agora, à sua ressurreição, a um renascimento
espiritual... »
O poder dos argumentos e a força moral do velho doutrinador acalmaram a
atormentada e, a um sinal, dispusemo-nos a buscar Dona Rosa, que esperava do
lado de fora, sendo introduzida no recinto em que estávamos.
Solicitado à oração, procurei erguer-me ao Senhor e suplicar-Lhe o concurso.
Enquanto isso, o Apóstolo da caridade espiritual ministrava recursos fluídicos e
magnéticos na sensitiva comprometida. Depois da cuidadosa operação espiritual,
levantou-se e, visívelmente emocionada, agradeceu, comprometendo-se a visitar o
genitor e meditar nas novas diretrizes que se lhe deparavam naquelas dolorosas
circunstâncias.
O poder da oração! Quando os homens compreenderem e se utilizarem
realmente dos recursos da prece, em muito se modificarão os cenários da vida
moral na Terra!...
Cumpridos os deveres no lar dos Soares, demandamos o Hospital do Pronto
Socorro para uma visita ao Sr. Mateus, considerando ser aquele o dia permitido.
Conquanto se encontrasse em repouso absoluto, em câmara separada, Petitinga
121
conseguiu do médico de plantão, com quem mantinha relações de amizade,
permissão para orar em silêncio junto ao leito do paciente, no que foi atendido.
Conforme descrevera o médico amigo da família, o estado do pai de Mariana
era deplorável. A respiração entrecortada por esgares dolorosos, as marcas da
paralisia de todo um lado do corpo, denotavam a gravidade do problema.
Embora compungido, Petitinga, tranquilo, recolheu-se em oração, no que o
acompanhamos silenciosamente. Transcorridos alguns minutos, retiramo-nos, fiéis
ao compromisso de evitar perturbar o enfermo.
Já na rua o admirável sensitivo esclareceu-nos que notara a presença de
Saturnino e a do Irmão Glaucus que ali estavam amparando o paciente e o
assistindo, tendo registrado a intuição de que ele se recuperaria paulatinamente,
através do tempo. Aquele era um sublime recurso de que se utilizava a Lei para
ajudar o ancião temperamental na construção da própria felicidade eterna...
Não havia como duvidar da Divina Providência!
122
14
O Cristo consolador
Ante a impossibilidade de o Sr. Mateus continuar no Hospital do Pronto Socorro
e a família não o poder manter num Nosocômio particular, após transcorridos vinte
dias do acidente que o prostrara, foi recambiado ao lar. Embora o quadro se
apresentasse pouco animador, ele conseguia falar com muita dificuldade, denotando
perfeita lucidez.
Dona Rosa, fatigada pelas tarefas costumeiras, agora adicionaria ao labor
normal o encargo de enfermagem difícil, junto ao companheiro prostrado pela
embolia cerebral, que exigia imenso repouso, ambiente de calma e refazimento,
assistência contínua e devotada.
Simultaneamente, porém, o socorro divino não tardou.
O refazimento psíquico de Mariana fê-la reconsiderar as atitudes íntimas de
animosidade mantidas contra o genitor, e, à medida que o conhecimento espírita lhe
penetrava a mente e o coração, renovava-se-lhe a paisagem interior; o contacto
com as lições sublimes do Cristo fazia-a modificar-se inteiramente. Desde as primeiras
horas da chegada do Sr. Mateus ao lar, tornou-se voluntariamente a
companhia generosa, ajudando-o na higiene, mantendo os horários dos
medicamentos, substituindo a mãe ao lado dele, enquanto esta cuidava do
ministério do lar. Adalberto, por sua vez, que já frequentava a casa, desde os dias
mais difíceis da enfermidade da namorada, interessado cada vez mais pela Doutrina
dos Espíritos, foi-se transformando em filho do hemiplégico que, ante o carinho
perseverante dos que lhe cercavam o leito, começou a apresentar sinais comovedores
de renovação espiritual. Amália, fiel aos deveres do lar e dentro deste,
era as mãos que traziam as moedas para as aquisições imediatas, enquanto Marta,
que passara a uma atitude de maior reflexão, depois da entrevista com Petitinga se
pôs a ajudar a genitora nas costuras, no lar e na arte do bordado, aumentando a
receita doméstica de forma expressiva.
Na próxima visita que fizemos à família Soares, o ambiente se encontrava
significativamente modificado. Dona Rosa nos confessou a sua alegria, embora a
soma de preocupações que a martirizavam ante a enfermidade do esposo e os
problemas naturais, disso decorrentes.
Desde os primeiros momentos mais aflitivos, porém, as mãos da caridade,
através de Petitinga, começaram a doar o socorro material, em nome do círculo dos
irmãos da fé, de forma a diminuir a crueza das provações naquela casa.
Na oportunidade da nossa visita, o amoroso amigo dos sofredores interrogou
Marta, quanto à reaproximação com o genitor. Esta, muito constrangida, respondeu:
— Sinto-me nervosa, agitada interiormente... —falou, encabulada. — Receio um
novo atrito, no momento de fazer as pazes, caso papai não me receba como de
direito... Encontro-me conflitada em relação à prática infeliz a que me vinculei por
largos anos. Tudo me parece, agora, um despertar de cruel pesadelo, no qual eu
jornadeasse atada a cordas grossas que me conduziam, inexoravelmente cega,
trôpega, de mente açulada por alucinações indescritíveis... (*)
A ex-quimbandista começou a chorar, O corpo foi tomado por contrações
constrangedoras, e, mesmo refreando a aflição, sentia-se-lhe a dor selvagem que a
despedaçava interiormente.
123
Petitinga envolveu-a em ondas de carinho e ternura, acercando-se dela e
buscando acalmá-la com palavras de esperança.
— Marta, minha filha, o Evangelho — afirmou convicto — é porta de luz para os
que gemem na escuridão. Caminho redentor que se abre em oportunidades
múltiplas para todos nós, os trânsfugas dos deveres sublimes,
(*) O desconhecimento do Espiritismo por parte de alguns adeptos, na
atualidade, que lhe não penetraram as lições preciosas, ou que se ligaram às
lides espiritistas para atendimento de Interesses imediatos, materiais —
confirmando desse modo a ausência do estudo e da meditação das bases da
Doutrina —vem gerando inomináveis confusões. Expõem, por exemplo, alguns
desses adeptos, que diante de Entidades muito infelizes, perseguidores
violentos, obsessores vigorosos, são necessárias providências fora dos
arraiais da Doutrina, em cujos sítios são submetidos tais Espíritos a
processos de terror, de força, e a práticas estranhas, que os atemorizam, e por
meio das quais os prendem longe das suas vítimas... Arrematada loucura! A
severidade das Leis de Causa e Efeito são elucidação imediata a essa
informação descabida. Em toda obsessão há cobrador, porque há devedor.
Libertar este e prejudicar aquele seria puni-lo outra vez, a ele que foi vítima
anteriormente; seria investir contra o Estatuto da Divina Justiça: punir o
ignorante ao invés de instrui-lo, libertar um mediante o aprisionamento de
Outro, defender alguém prejudicando outrem. A soberana Lei de Amor é a
força capaz de modificar a estrutura da vida e penetrar na furna odienta do
“eu” atormentado para felicitá-lo. Em qualquer obsessão, portanto, em que o
amor e o esclarecimento não realizem os seus misteres, as medidas humanas
da temeridade e da violência somente poderão agravar o mal, adiando-o para
ocasião em que as reservas do paciente sejam menores e, pois,
consequentemente, menos favoráveis à cura, à libertação.
O preclaro Codificador Allan Kardec elucida que se “chama obsessão à
ação persistente que um Espírito mau exerce sobre um Individuo.” E adverte:
“Assim como as enfermidades resultam das imperfeições físicas que tornam o
corpo acessível às perniciosas influências exteriores, a obsessão decorre
sempre de uma Imperfeição moral, que dá ascendência a um Espírito mau. A
uma causa física, opõe-se uma força física; a uma causa moral preciso é se
contraponha uma força moral.” Considera, todavia, veemente: “Nos casos de
obsessão grave, o obsidiado fica como que envolto e impregnado de um
fluído pernicioso, que neutraliza a ação dos fluídos salutares e os repele. É
daquele fluído que importa desembaraçá-lo. Ora, um fluído mau não pode ser
eliminado por outro igualmente mau. Por meio de ação idêntica à do médium
curador, nos casos de enfermidade, PRECISO SE FAZ EXPELIR UM FLUÍDO
MAU COM O AUXÍLIO DE UM FLUÍDO MELHOR.
“Nem sempre, porém, basta esta ação mecânica. Cumpre, sobretudo, atuar
sobre o ser inteligente, ao qual é preciso se possua o direito de falar com
autoridade, que, entretanto, falece a quem não tenha superioridade moral.
Quanto maior esta for, tanto maior também será aquela.”
E, por fim, observa: “Em todos os casos de obsessão, a prece é o mais
poderoso meio de que se dispõe para demover de seus propósitos maléficos
o obsessor.
Tais são as anotações constantes de “A Gênese”, de Allan Kardec, Capítulo
124
14, “Obsessões e possessões”, 14ª edição da FEB, dos quais extraimos
estes tópicos que merecem, como os demais do oportuno estudo, acuradas
meditações.
Outros, militantes apressados, também Informam que, para um bom
processo de desenvolvimento ou educação mediúnica, se faz concorde a
aplicação de determinadas e esquisitas práticas, a fim de que a faculdade
irrompa de uma vez, com resultados benéficos, como se a mediunidade fõsse
algo elástico que atendesse à travão da força, dilatando-se de imediato. Como
qualquer outra faculdade psicológica ou função fisiológica, a mediunidade
requer cuidados especiais, atendimento a requisitos próprios e condições
específicas que lhe facultem a educação e o desdobramento de recursos, para
atender às finalidades a que se destina. Nesse sentido “O Livro dos Médiuns”,
de Allan Kardec, é, ainda, o melhor roteiro para médiuns e pessoas que
desejem conhecer as faculdades medianímicas do homem, como conduzi-las
e com elas operar, os perigos da má prática mediúnica, etc...
O que ocorre normalmente nesses chamados desenvolvimentos
instantâneos, em grupos, mecãnicos, pertence aos capítulos da Sugestão, do
Animismo, dos Condicionamentos psicológicos e até mesmo aos estados de
nevrose.
Resguardem-se, no cuidadoso estudo e na carinhosa observação vigilante,
os que desejam reais e proveitosos resultados da mediunidade e da sua
prática, sem precipitação, sem exigências, melhorando-se moral e
espiritualmente, os médiuns e os experimentadores honestos, a fim de se
credenciarem à assistência dos Bons Espíritos. — Nota do Autor espiritual.
oferecendo-nos recomeço em qualquer situação e em todo tempo. Para quem
realmente deseja elevação, não há tempo perdido, nem oportunidade malbaratada
que não traga preciosos ensinos, que podemos aproveitar de futuro. Reanime-se,
minha filha! O momento de renovação ocorre como instante de dor: o ar que penetra
no pulmão do recém-nascido, ensejando-lhe a vida extra-uterina, provoca-lhe,
também, a sensação da dor... Assim também, o ar balsâmico do Cristo, em lhe
penetrando a alma, rompe a couraça de sombra que a envolvia e a claridade
rutilante da vida nova lhe produz, compreensivelmente, angústia passageira e
passageira apreensão.
— Tenho medo — conseguiu extravasar. — Receio o revide daqueles com os
quais me demorava comprometida. Eles são terríveis!... Há muito tempo desejava
fugir-lhes ao cerco implacável; mas não tinha forças; não sabia como fazer. Tenholhes
sido escrava obediente... Vejo-os, dizendo-se meus amigos, porém, cruéis para
com muitos. Por Deus, eu os temo! Não sei se suportarei manter esta decisão e se
conseguirei a liberdade. Como anseio por ser livre para tentar vida nova, novas
aspirações que acalento e não tenho podido fruir!...
— «Deus é Nosso Pai» — referiu-se, Petitinga, de face ruborizada, iluminada
por transcendente fulguração —, disse Jesus. Assim, Ele é o Pai de todos. Examine
essa confortadora informação: Nosso Pai! Ele cuida, portanto, dos filhos mais fracos
que Lhe entregam a vida, como dos mais rebeldes que tramam dificultar a vida dos
seus irmãos. Diga como Jesus em agonia, e tranquilize-se: «Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito!», e deixe-se arrastar pelas correntes invisíveis e poderosas
do Seu amor.
Depois de uma pausa muito expressiva, concluiu:
125
— Inicie desde hoje a fase nova, aproximando-se do seu pai, rogando-lhe
perdão. Uma atitude honesta faz-se acompanhar de fluídos convincentes, que
envolvem, poderosos, aqueles a quem nos dirigimos. Humilhe-se ante aquele que
lhe concedeu, em nome do Pai de todos, a indumentária física, e faça-o sentir-se
honrado na condição de chefe da prole. Ajude-o no transe abençoado que ele vive e
a força dos seus sentimentos falará mais alto do que as palavras mais brilhantes
que lhe escapem dos lábios. Passe, logo depois, a frequentar nossa Casa; estude
as Obras do insigne mestre Kardec, bebendo nas fontes augustas da informação
espírita a água lustral, lenificadora e nutriente do conhecimento que liberta, e, de
alma tocada pela suave brisa do Evangelho, distribua esperança... Quem sabe? Em
breve as suas possibilidades medianímicas, colocadas a serviço do Cristo, depois
de necessàriamente disciplinadas, poderão amparar e socorrer esses mesmos
irmãos que a jugularam na ignorância por tantos anos, transformando-os em amigos
e companheiros de jornada... Não há força que tenha mais força do que a força do
amor...
Com permissão de Dona Rosa rumamos, ato contínuo, na direção da alcova
onde se encontrava o enfermo.
Mariana, sentada a uma cadeira ao lado do leito, assistia-o para qualquer
necessidade. Carinhosa, saudou-nos iluminada por amplo e generoso sorriso.
Entregando-lhe o «Livro da Vida», Petitinga solicitou-lhe que o abrisse e lesse o
texto sobre o qual os seus olhos incidissem. A menina cerrou as pálpebras e abriu o
exemplar de «O Evangelho segundo o Espiritismo» que tinha nas mãos, e leu, do
Capítulo 6 — O Cristo Consolador —, item 7:
«Sou o grande médico das almas e venho trazer-vos o remédio que vos há
de curar. Os fracos, os sofredores e os enfermos são os meus filhos
prediletos. Venho salvá-los. Vinde, pois, a mim, vós que sofreis e vos achais
oprimidos, e sereis aliviados e consolados. Não busqueis alhures a força e a
consolação, pois que o mundo é impotente para dá-las. Deus dirige um
supremo apelo aos vossos corações, por meio do Espiritismo. Escutai-o.
Extirpados sejam de vossas almas doloridas a impiedade, a mentira, o erro, a
incredulidade. São monstros que sugam o vosso mais puro sangue e que vos
abrem chagas quase sempre mortais. Que, no futuro, humildes e submissos
ao Criador, pratiqueis a sua lei divina. Amai e orai; sede dóceis aos Espíritos
do Senhor; invocai-o do fundo de vossos corações. Ele, então, vos enviará o
seu Filho bem-amado, para vos instruir e dizer estas boas palavras: Eis-me
aqui, venho até vós porque me chamastes. O Espírito de Verdade. (Bordéus,
1861.)»
Mariana concluiu a leitura emocionada, O Alto, inspirando-nos e conduzindonos,
respondia, às inquietações de todos nós, com o Cristo Consolador. Conquanto
a expressão alterada na face do Sr. Mateus, notámos-lhe lágrimas nos olhos. Marta,
visívelmente sensibilizada, tomou a mão direita do genitor, que não fora afetada
pela embolia, ajoelhou-se ao lado do corpo semimorto no leito, e, osculando-a,
pediu-lhe perdão... A voz, debilitada na garganta intumescida pelo pranto, saía a
custo. Pensávamos em Jesus naquele momento supremo de redenção, rogando-
Lhe forças e socorros para nós todos, especialmente para o pai sofredor que nunca
126
supusera experimentar tão significativo atestado de amor filial.
O Sr. Mateus com muito esforço tornou-se digno do gesto da filha. Cingiu nos
seus os dedos de Marta, abençoando-a em silêncio e emotividade com o
esquecimento do mal e a esperança do bem. Era, aquela, uma cena evangélica,
evocativa, em todo o seu impacto, dos primeiros dias da Boa Nova nascente...
Inspirado por Saturnino, Petitinga ergueu a voz e, numa eloquente oração,
traduziu os sentimentos de todos, ao Cristo de Deus, o Excelso Benfeitor e Guia da
Humanidade.
Com a alma túmida de emoções, retiramo-nos da alcova, para poupar o
paciente de novos choques emocionais, e retornamos à sala de refeições.
Mariana, que tinha sede de luz, perguntou sem preâmbulos a Petitinga:
— Ante essa prova do socorro dos nossos Guias Espirituais, eu não poderia,
sempre que possível, estando ao lado do papai, ler-lhe «O Evangelho segundo o
Espiritismo», de modo a nos ir instruindo lentamente nas lições da fé? É claro que
procurarei não cansá-lo. Uma boa leitura, além de edificar, também distrai, não é
mesmo?
Petitinga fitou-a, admirado, e concordou prontamente:
— De pleno acordo. É evidente que a messe de luz muito favorece a riqueza da
arca que a recebe. Muito bom esse alvitre, essa lembrança. A palavra evangelizante
dirigida a ele atenderá, também, aos sofredores espirituais que porventura se lhe
vinculem por esta ou aquela razão. Numa casa onde se acende a claridade do
Evangelho, erguem-se defesas poderosas, impedindo a invasão das forças
desagregadoras da erraticidade inferior. Quando um grupo ora, unido nos liames da
comunhão pela prece, estabelecem-se resistências capazes de suportar as
descargas da agressão da maldade originada num ou noutro plano da vida. A prece
e a lição edificante transformam-se em potentes ondas de energia vivificadora que
beneficia todos os que delas participam.
E para deixar muito bem esclarecido o valor do nobre tentame, argumentou:
— Ainda não conhecemos, devidamente, na Terra, o poder do pensamento. A
mente atua dentro e fora do cérebro pelo qual se manifesta, atraindo ou repelindo
forças compatíveis ou antagônicas. Todos sofremos os reflexos uns dos outros, na
carne, como também daqueles que estagiam fora do invólucro material, com os
nossos recursos possíveis de assimilação ou desassimilação. Nenhum homem
consegue estacionar, livre das ondas de intercâmbio dessa ou de outra ordem, que
nos envolvem incessantemente. Absorvemos como eliminamos as imagens que nos
são peculiares, é caminhando com elas e atando-nos às suas amarras ou delas nos
libertando, na direção da felicidade. Isto quer dizer que somos o que produzimos
mentalmente, vivendo imanados aos nossos como aos pensamentos que
recebemos dos outros...
O Universo todo são permutas. A idéia que o homem plasma e cultiva, exterioriza
e difunde, traduz o seu estado, a sua altura moral e espiritual. Ora, sintonizados
com a idéia da Vida Excelsa, plasmaremos imagens superiores e viveremos
emoções vitalizantes que nos esboçarão os pródromos da paz interior que, por fim,
nos dominará.
Marta, animada pela excelente explicação, indagou:
— E no meu caso, meu amigo? Como o senhor não ignora, há mais de dez
anos me encontro anestesiada pelo ópio das forças brutalizantes do Mundo
Espiritual Inferior. No círculo de ação em que tenho labutado, agimos com as “forças
da Natureza” e, ao recebermos o aliciamento de muitas Entidades, assumimos
127
também compromissos para com elas. Poderei desfazer tudo isso, pura e
simplesmente, sem sofrer danos e sem as desequilibrar?
Após ligeira e necessária meditação, Petitinga elucidou:
— Todo compromisso que assumimos espontaneamente merece consideração.
No entanto, só um compromisso nos parece verdadeiro, irreversível: o que temos
para nós próprio, para com a nossa evolução. Esse é intransferível, inderrogável. As
Entidades que se nos vinculam ou com as quais nos imanamos tornam-se comensais
das nossas emanações psíquicas, nutrindo-se das nossas forças, como
ocorre nas obsessões. Aliás, em todo processo em que há uma vinculação
constringente de um desencarnado sobre um encarnado, ou vice-versa, deparamonos
com uma obsessão em curso ou, quando menos, com uma fascinação a
caminho do desastre obsessivo. A expressão «desfazer os vínculos» deve ser substituída
por «modificar as vinculações», porque em verdade você não deseja
abandoná-los, mas libertar-se do erro em que eles se demoram, para jornadear na
busca da harmonia que lhe faz falta.
E após reflexão mais demorada, arrematou:
— As «forças da Natureza» são os Espíritos, que podem ser definidos segundo
Allan Kardec como: «Os seres inteligentes da Criação. Povoam o universo, além do
mundo material.» Ora, assim sendo, estagiam em diversos graus de evolução,
desde os mais primitivos até aqueles mais elevados.. Naturalmente que uma
organização fisiopsíquica aclimatada às emanações fluídicas mais grosseiras se
ressentirá, em se afastando do conúbio habitual de que se nutria. Jesus, porém, é o
pão da vida e resolverá o problema. Não há porque recear. Ele a nutrirá com
superior alimento. Acreditamos, também, que tomada a resolução de avançar noutra
direção, não há como nem porque olhar para trás, demorando-se em receios,
mantendo a sintonia com intuições deprimentes e superstições vulgares, que não
merecem consideração, senão quando se deseja esclarecê-las. Sem dúvida, muitas
vezes você experimentará dificuldades... Confie, porém, e avance!
— Face ao exposto — afirmou Marta, convicta, sem titubeios —, pretendo, ainda
hoje, libertar-me de talismãs e amuletos, objetos e indumentárias, cerrando, em
definitivo, as portas do meu antigo «consultório» e abrindo a alma à luz do Senhor.
E porque ainda estivesse compreensivelmente aclimatada aos hábitos dos
cultos externos, extravagantes, ajoelhou-se, e, em tom patético, rogou a proteção
dos Céus.
Muito gentil, Petitinga ergueu-a e falou com bom-humor:
— O servo fiel e vigilante está sempre de pé, esperando o serviço que lhe
destina o Senhor...
Todos sorrimos com a feliz interferência.
Dona Rosa, que estava exultante, abraçou a filha demoradamente.
Paulatinamente a paz vencia no lar da família Soares, O panorama, conquanto
conservasse ainda algumas leves sombras, se apresentava alvissareiro. O hoje respondia
já às aflições do passado e o amanhã se desenhava benéfico, respondendo
às inquietações de agora.
Esse, sem dúvida, é o ministério do Espiritismo: trazer de volta Jesus-Cristo aos
corações sofridos da Terra; repetir as experiências memoráveis de quando Ele
esteve entre nós; consolar os infelizes do Além-Túmulo, libertando-os da suprema
ignorância das realidades espirituais; desatar os laços constritores que ligam desencarnados
em perturbação a encarnados que se perturbam; cuidar dos obsessos
e iluminar a consciência de obsidiados e obsessores; semear o amor em todas as
128
modalidades, através das mãos da caridade, em todas as dimensões.... por ser o
Espiritismo o CONSOLADOR prometido por Jesus.
129
15
Enfermidade salvadora
Havia um mês que o Sr. Mateus retornara ao lar, após a crise que o conduzira
inconsciente ao Pronto Socorro, vítima de embolia cerebral. O ambiente espiritual
na residência dos Soares era sensivelmente melhor. Havia mesmo uma atmosfera
de paz inabitual naquele domicílio longamente sacudido por tempestades de vária
ordem. O genitor de Mariana, carinhosamente assistido pela esposa e filhas, dava
mostras de confortadora recuperação orgânica. Já conseguia falar com menor dose
de esforço e as lições consoladoras do Espiritismo, a que se acostumara
paulatinamente, mediante a leitura de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”
realizada pela ex-obsidiada, penetravam-no fundo, fazendo-o reformular conceitos e
modificar disposições íntimas...
O Delegado de Polícia, que continuava à espera de poder ouvir o depoimento da
vítima contra o Sr. Marcondes Pereira, o agressor, visitou o enfermo para tomar por
termos a queixa-crime contra o desafeto, e, para surpresa geral, o Sr. Mateus
esteve à altura da situação. Pediu que tudo fosse esquecido, em considerando a
própria leviandade, causadora do acontecimento, pois que ele não pretendia
apresentar qualquer acusação. Germinava já naquele terreno, antes sáfaro, a semente
do Evangelho Redentor.
O responsável pela ordem saiu agradecido e igualmente feliz com a decisão do
Sr. Mateus, em considerando, afinal, os danos não terem sido de grande monta e
que o tempo tudo regularizaria.
Dias depois, acompanhado do mesmo Policial, o cidadão Marcondes veio visitar
a sua vítima e lhe solicitou escusas, considerando a circunstância de se conhecerem
de há muito, conquanto a pouca afinidade espiritual existente entre
ambos. Que fossem esquecidos os incidentes lutuosos que poderiam ter culminado
na desgraça de dois chefes de família e na consequente desdita dos seus
descendentes. Aquilo lhes serviria a ambos de lição preciosa.
Foi com essas noticias alvissareiras que nos reunimos para os trabalhos
ordinários de desobsessão, após ouvi-las dos lábios de Dona Rosa e Amália que,
serenadas as dificuldades no lar, retomavam os deveres do culto espiritual e da
caridade aos desencarnados.
As operações socorristas estavam no término, quando Saturnino, incorporando
o médium Morais, teceu algumas considerações em torno dos labores desobsessivos
junto aos Soares.
— As nossas palavras de hoje — falou com inflexão de muita ternura e
bondade, como lhe era habitual — são dirigidas à irmã Rosa, cujo exemplo de resignação
nos comove e nos felicita. Convidada ao resgate em caudaloso rio de
sofrimentos, a irmã querida tem sabido honrar a confiança do Senhor. Desde cedo
requisitou a bênção da renúncia pessoal, reunindo no lar velhos compromissos que
se complicavam e aceitou a incumbência de labutar infatigável até o fim da tarefa,
sem desânimo nem rebeldia. É justo que lhe seja conferido o salário pela fidelidade
no posto do dever retamente atendido. E o salário do servo devotado é a esperança
de melhores horas, com a paz de todos os instantes, para a continuação do
empreendimento de luz interior, ao qual se encontra nobremente vinculada.
E desejando, talvez, demonstrar a elevação dos méritos da mãe de Amália,
130
acrescentou:
— Tínhamos em mãos o dilema de como conduzir o Sr. Mateus, em face das
dores que pesavam sobre o seu lar e a sua irreverente deslealdade para com os deveres
espontâneamente assumidos junto ao altar da família. Logo após o
lamentável incidente de que se fez merecedor, reunimo-nos, aqueles que
assumimos a responsabilidade do socorro a Mariana e posteriormente à família,
para examinar o transcurso das tarefas futuras no seu lar, chegando à conclusão de
que o remédio mais eficaz e mais bem aplicado para o nosso irmão seria o de
demorada permanência no leito, a fim de que a limitação das forças e o
constrangimento da enfermidade lhe pudessem despertar o espírito atormentado
para as questões vitais da reencarnação, da imortalidade... Sabemos, por
experiência e observação, que os mais calcetas e inveterados adversários da razão,
do siso, dos sentimentos espirituais, modificam os conceitos logo se deparam com
as perspectivas próximas da desencarnação e, embora não acreditando na
continuação da vida, como fazem crer, rogam, desesperados, tempo para refazer o
caminho e preparar-se... Assim, concluímos pela hipótese de retê-lo, no leito,
dependendo das mãos da família, à queda espetacular e irreversível no despenhadeiro
da delinquência para onde marchava sob poderoso comando de insensíveis
inimigos com os quais se imantava desde há muito. Dessa forma, após o delíquio no
atrito com Marta, igualmente perturbada, recorremos a providencial socorro,
aplicando-lhe recursos magnéticos que libertaram a bolha de ar que se alojou em
circuito especial do cérebro, gerando a embolia de que foi acometido... Como o
Divino Benfeitor dispõe de recursos e terapêutica especializada para todos os
problemas e enfermidades, a dor, que agora lhe é mestra e mãe gentil, abre-lhe,
também, as portas da compreensão da família e da paz no lar, ajudando-o a
descobrir o mundo novo do espírito para a própria felicidade.
Silenciou por breves momentos e, logo depois, prosseguiu:
— Certamente que há muito ainda por fazer. Ele mesmo deverá desatar
inúmeros liames a que se deixou prender, na retaguarda. Inclinado, no entanto, a
observações mais prudentes e valiosas, poderá refazer muito dos danos antes
gerados, iniciando novos cometimentos em prol de si mesmo. Seus verdugos se
aquietam na encruzilhada das tramas soezes e aguardam ensejo. Alguns sitiam-no
durante os momentos da libertação pelo sono, pois que de mente fortemente
fascinada pelas dissipações, por cujos caminhos enveredou, sintoniza livremente
com os antigos comparsas e deles recebe sugestões negativas, abundantes, e altas
doses de energia deletéria, retornando à organização física acabrunhado, saudoso,
rebelde... A providencial e inspirada interferência de Mariana, quando se prontificou
à leitura do Evangelho junto ao seu leito, lentamente lhe modifica os painéis
mentais, permitindo-lhe deslocar o centro de interesse, antes monoideado pelo jogo,
para a elevação dos deveres, fazendo-o considerar a perda de tempo até então e a
desvalia das suas aspirações, ante a vida carnal que se extingue com a
enfermidade, a idade, o acidente... Impossibilitado de falar com a clareza desejável,
não pode reagir nem discutir a temática espírita, e, semi-imobilizado, sente-se
constrangido à reflexão dos conceitos ouvidos. Vagarosamente se lhe acalmam os
centros desordenados dos raciocínios, impondo-se-lhe necessários novos
comentários íntimos sobre as belezas da reencarnação, até então despercebidos...
Concomitantemente, a união da família em torno dos estudos elevados e das
meditações salutares granjeia simpatias enobrecidas do Mundo Espiritual e o reduto
doméstico se transforma num pouso de refrigério para os lidadores desencarnados
131
afeitos ao bem e, porque não dizer, uma escola viva para aprendizagem, na qual
as lições são vidas que se rearmonizam em torno da Excelsa Vida de Jesus.
Frutificam já, nos ramos do arvoredo da fé, as doações do amor e da caridade,
transformadas em seiva sadia e produtora.
Quando o Benfeitor silenciou, havia uma saturação de paz e alegria geral, que
parecia carreada por mãos invisíveis e poderosas ali presentes.
Dirigiu-se, ainda, generoso e calmo, a alguns outros companheiros, quando,
então, os trabalhos da noite foram encerrados.
Por alvitre do próprio Saturnino diretamente a Petitinga, feito anteriormente, e
vencendo inúmeras dificuldades, procedemos a uma visita ao Lazareto, no bairro
das Quintas, para tentar alguma assistência a Ana Maria, a antiga noiva
atormentada e inditosa do irmão Teofrastus.
Solicitamente atendidos por um enfermeiro de plantão, e com o documento de
autorização do serviço de Saúde Pública, percorremos várias dependências da
Casa, até localizarmos a jovem, cuja presença nos fez evocar, como em sonho bom
e agradável, a recordação da visita anterior que fizéramos àquele reduto de
sofrimento, em espírito, sob a segura condução do Irmão Glaucus. A moça,
singularmente desfeita, com alguns sinais de arroxeamento na face e nos hélices e
lóbulos das orelhas, comoveu-nos pela tristeza que refletia nos olhos angustiados e
no rosto melancólico.
Petitinga, portador de nobre persuasão, conseguiu manter ligeira palestra com
ela, emoldurando-a no halo da sua cordial simpatia envolvente. Poeta sensível, falou-
lhe ligeiramente do Cristo Jesus e das Suas curas... Motivou-a à saúde, à
esperança, bem assim às duas companheiras que lhe dividiam a acanhada cela,
quase uma masmorra nauseante e infecta, prometendo retornar sempre que se nos
permitissem os compromissos.
Naquele tempo, as medidas sanitárias impeditivas de contacto com os
portadores do «mal» de Hansen eram muito rigorosas, conquanto aqueles pacientes
vivessem entregues ao quase total abandono, cuidados com medicamentos tais
Alofam (um preparado de caroteno), o Chaulmoosan (feito com os ésteres etílicos
do óleo de chalmugra), a termoterapia, as sulfas... As experiências em todo o
mundo em que havia Leprosários ainda não ultrapassaram essa terapêutica, com
algumas ligeiras variações sem grande significado. As tentativas para a cura se
sucediam inócuas e de resultados desesperadores. Os pacientes, porém, eram
muitas vezes caçados como animais e, em alguns países, conduziam-nos aos
Lazaretos, acorrentados, com armas coladas à nuca... Em lugares mais atrasados,
viviam como nos tempos bíblicos, mendigando, com a face semicoberta, considerados
selvagens e malditos, esfarrapados, dormindo nas matas ou nas rochas
próximas dos caminhos onde esmolavam...
Assim, era muito difícil conseguir-se permissão para visitas regulares a
pacientes internados. O fantasma da enfermidade era tão poderosamente inculcado
em todas as mentes e o «perigo» do contágio tão fortemente difundido, que nós
mesmos sentíamos o constrangimento decorrente da ignorância.
Petitinga, no entanto, conseguiu, utilizando-se de amizades múltiplas, atingir o
desiderato e passou a visitar Ana Maria uma que outra vez, oferecendo-lhe, ao
primeiro ensejo, um exemplar de «O Evangelho segundo o EspIritismo», dizendolhe
que ali, naquela fonte de luz e água Viva», ela encontraria paz e reconforto.
Ocorria, também, um admirável fenômeno: quando das nossas visitas e
enquanto conversávamos, Saturnino, em espírito, utilizando-se das nossas forças
132
ectoplásmicas, aplicava recursos salutares na paciente e nas suas
companheiras, continuando a assistência, espiritualmente, nos dias subsequentes.
Seu antigo obsessor fora deslocado desde a primeira visita que fizemos com o
irmão Teofrastus, recolhido logo após pelos irmãos Glaucus e Ambrósio a Hospital
especializado da Esfera Espiritual, para posterior tratamento. Dessa forma, a
tristeza e a melancolia foram desaparecendo paulatinamente da enferma e as
manchas da intoxicação fluídica igualmente foram esmaecendo até o total
desaparecimento.
Por insistência, ainda, de Petitinga, seis meses depois da nossa primeira visita,
a enferma foi submetida a rigoroso exame e considerada curada. Ora, sabíamos
que a sua doença era uma enfermidade simulacro, provocada pelos fluídos
maléficos do seu obsessor, que conseguira levá-la àquele Lazareto para culminar
com a sugestão de suicídio nefando, que a enrodilharia em teias fortes de desgraça,
caindo-lhe nas garras odientas para o longo processo de vampirização espiritual, de
demorado curso, nas regiões dolorosas das esferas infelizes...
Graças, também, à interferência de Petitinga, este conseguiu localizar a
afilhhada em casa de família espírita que, conquanto soubesse do local donde a
mesma procedia, não recusou a mão caridosa dirigida à sua recuperação total. A
família informada do drama da obsessão de que padecera a jovem, o que motivara
o seu ingresso naquele expurgadouro material, e cientificada do não perigo de
contágio por inexistência da enfermidade, recebeu a moça que passou a
experimentar vida nova, comprometida, no entanto, a apresentar-se regularmente
cada seis meses, no Lazareto, para exames de verificação médica necessária.
Enquanto isto ocorria, Marta, recém-libertada dos velhos conceitos vazados na
mais chã superstição, buscava manter a resolução firme de perseverar nas gãs
idéias do Espiritismo.
Graças, porém, ao longo convívio psíquico com Entidades muito grosseiras, o
que originara uma certa interdependência entre a sensitiva incauta e os seus
comensais, começou a experimentar desequilíbrios perfeitamente compreensíveis.
Vidente com boas possibilidades de registro e percepção, que, conquanto
ultrajada pelo uso, captava as mensagens dos desencarnados, passou a sofrer-lhes
o cerco nefando, a que fazia jus, pela própria leviandade.
A simples mudança de clima impõe ao organismo adaptação necessária. Assim,
a alteração da “psicosfera” se faz, também, acompanhar de esforço muito grande,
para elaboração de outras condições íntimas e conveniente sintonia.
Embora o esforço para vincular-se aos ideais renovadores, via as entidades
antigas, ameaçadoras, escarnecendo dos seus propósitos e provocando injustificáveis
temores, o que gera, normalmente, a crença de que as pessoas que
abandonam tais compromissos sofrem até à desencarnação o assédio dos antigos
comparsas. Perfeitamente compreensível que tais vínculos, muito profundos, não
podem ser desfeitos pura e simplesmente com uma atitude. Há que edificar, novos
laços e organizar resistências convenientes.
Possuidora, no entanto, de muita força de vontade, passou a estudar o
Espiritismo com interesse, instruindo-se nas suas lições preciosas, através do que
armazenava argumentação para uso próprio, Confiança ilimitada no auxílio divino.
Submeteu-se a carinhoso tratamento de passes magnéticos, aplicados por
médiuns adestrados e educados, fazendo-se membro atuante dos trabalhos
doutrinários, nos quais as lições confortadoras da fé renovada lhe penetravam,
sendo, por fim, convidada a atuar nas experiências mediúnicas, e se tornando,
133
vagarosamente, um instrumento disciplinado, por cuja mediunidade diversos dos
membros das suas anteriores crenças receberam a luz esclarecedora da razão,
desertando dos propósitos acalentados e iniciando nova trajetória, como que renascendo
para a verdadeira vida (*).
(*) Chamamos a atenção do leitor para o que esclarece Allan Kardec, em
“O Livro dos Espíritos”, Parte 2ª, Capítulo 9 (29ª edição da FEB):
“551. Pode um homem mau, com o auxílio de um mau Espírito que seja
dedicado, fazer mal ao seu próximo?
“Não; DEUS NÃO o permitiria.”
552. Que se deve pensar da crença no poder, que certas pessoas teriam, de
enfeitiçar?
“Algumas pessoas dispõem de grande força magnética, de que podem
fazer mau uso, se maus forem seus próprios Espíritos, caso em que possível
se torna serem secundados por outros Espíritos maus. Não creias, porém,
num pretenso poder mágico, que só existe na imaginação de criaturas
superticiosas, Ignorantes das verdadeiras leis da Natureza. Os fatos que citam,
com prova da existência desse poder, são fatos naturais, mal observados
e sobretudo mal compreendidos.”
555. Que sentido se deve dar ao qualificativo de feiticeiro?
“Aqueles a quem chamais feiticeiros são pessoas que, quando de boa-fé,
gozam de certas faculdades, como sejam a força magnética ou a dupla vista.
Então, como fazem coisas geralmente incompreensíveis, são tidas por
dotadas de um poder sobrenatural. Os vossos sábIos não têm passado muitas
vezes por feiticeiros aos olhos dos. “ignorantes?”
O Espiritismo e o magnetismo nos dão a chave de uma imensidade de
fenômenos sobre os quais a Ignorância teceu um sem número de fábulas, em
que os fatos se apresentam exagerados pela imaginação. O conhecimento
lúcido dessas duas ciências que, a bem dizer, formam uma única, mostrando a
realidade das coisas e suas verdadeiras causas, constitui o melhor preservativo
contra as idéias superticiosas, porque revela o que é possível e o
que é Impossível, o que está nas leis da Natureza e o que não passa de
ridícula crendice.” — Nota do Autor espiritual.
As demais filhas da família Soares, sem problemas de relevo, ante exemplos
comoventes que tais, passaram a cooperar efetivamente no lar, que se transformava
em escola de fé viva sob as luzes exuberantes do Espiritismo consolador.
134
16
Compromissos redentores
As atividades absorviam-nos e o tempo transcorria generoso, ensejando-nos o
aproveitamento das suas lições, gemas que incorporávamos ao patrimônio
imorredouro do espírito.
A família Soares organizara singela recepção para a tarde de domingo, quando
Adalberto, jubiloso com o aniversário de Mariana, assumiria o compromisso do
noivado, pedindo à sua mão ao Sr. Mateus:
Era natural, portanto, que nos reuníssemos naquele lar, participando das justas
alegrias que chegavam como resposta divina às dores terrenas.
O genitor da família, após cinco meses de repouso e assistência médica no lar,
recuperava-se maravilhosamente. Já se conseguia pôr de pé, auxiliado pelas filhas
e apoiado a uma bengala, com perspectivas de refazimento próximo. O reequilíbrio
orgânico, no entanto, era de pouca significação, em se considerando as
modificações reais, operadas no seu íntimo.
Se o seu passado era assinalado por descaso e desconsideração aos deveres,
justo é se lhe reconheça o esforço para demonstrar o arrependimento que o afligia.
Tornara-se meigo e tratava os familiares com o necessário afeto. Lamentava a
perda de tempo e a idade já avançada, que lhe não permitiria refazer os caminhos
percorridos para a reabilitação. O Evangelho, em lhe penetrando o espírito, rasgara
visões esplendorosas de luz e vida. Emocionava-se, quando em palestras íntimas
se reportava às consolações que tão tardiamente conseguira aceitar. Embora
desconhecesse outros informes mais elucidativos dos dramas que abalaram os
alicerces do seu lar, encontrara na reencarnação resposta às angústias e rebeldias
íntimas, que tanto o atormentaram a vida inteira. Dizia-se dominado durante quase
todos os anos de vida, por ódio surdo, que, semelhante a instrumento de percussão,
reboava interiormente, despedaçando-o inexorável... Todavia, o tempo lhe ensejava
recomposição íntima, melhor visão das coisas e dos acontecimentos, sentindo-se
em preparativos para a partida. Já não receava a desencarnação. O conhecimento
do Espiritismo lhe matara o temor da morte.
Por sua vez Adalberto, que procedia do interior do Estado e residia em Casa de
Pensão, sem o arrimo de uma fé segura e nobre, deixava-se conduzir por uma vida
de frivolidades comuns aos da sua idade, passou também a se transformar
interiormente, fascinado imensamente pelo conhecimento da Doutrina dos Espíritos.
O moço, que já armazenara suficiente depósito de prazeres nas experiências da
leviandade, era ardente e apaixonado. Embora não fosse portador de cultura, era
esclarecido e possuidor de lúcido tirocínio intelectual. Passou a estudar a
Codificação Kardequiana, e, depois, os romances mediúnicos lhe tomaram os
sentimentos. A lógica da reencarnação e a programação dos destinos, obedecendo
a um roteiro adrede traçado, com as naturais concessões ao livre arbítrio de cada
um, era para ele especial tema de conversações. Compreendendo as responsabilidades
da vida, apressou-se em abandonar os velhos hábitos, e, ante os
infortúnios, que se transformaram em bênçãos no lar dos Soares, aproximou-se da
família desde a enfermidade de Mariana, e fez-se quase o filho do sexo masculino
que faltava naquele domicílio. Suas mãos e braços vigorosos se tornaram inúmeras
vezes no socorro eficiente ao velho doente, e sua presteza e generosidade foram
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alavancas de salvação por ocasião dos diversos acontecimentos...
Acreditando-se necessitado de construir o próprio lar, resolvera consorciar-se
com Mariana, a quem se encontrava fortemente vinculado pelo amor. O décimo sétimo
natalício da moça era ocasião oportuna para o compromisso oficial do noivado,
que deveria culminar com o matrimônio, logo estivessem em condições de fazê-lo.
Assim, a modesta e honrada família convidou os poucos amigos para o ato
oficial, que estava sendo a razão da alegria de todos, desde os dias anteriores.
Fomos Petitinga, Morais e nós, encontrando a família Soares com alguns
poucos convidados, e mais Adalberto e o seu genitor que viera para a ocasião.
Após o pedido feito pelo seu ao pai de Mariana, foram apresentadas as alianças
representativas do compromisso e servido singelo e bem cuidado lanche.
Os sorrisos falavam das emoções daquele entardecer. Marta e Mariana, Dona
Rosa e as demais filhas pareciam crianças gárrulas, esfuziantes. O Sr. Mateus,
bastante feliz, tinha, porém, o semblante velado por discreta tristeza. Era por se
recordar do passado e se sentir impossibilitado de reconstruí-lo.
Por nossa vez, lembrava-me dos acontecimentos que ali tiveram palco e
considerava a misericórdia de Deus, nas suas sutilezas e sabedoria infinita, que nos
escapa e que não podemos de pronto compreender. O milagre da dor produzira a
bênção da misericórdia da união de todos.
Adalberto, que se encontrava muito emocionado, traçando planos para o futuro,
considerou a sua posição de espírita e perguntou a Petitinga qual a solenidade religiosa
que deveria haver por ocasião do seu consórcio com Mariana. Compreendia
que não seria lícito submeter-se a um ato sacramental da Igreja Romana, tendo em
vista o comportamento dos profitentes daquela fé, que se situava muito distante dos
ensinos e práticas do vero Cristianismo. Não seria justo, porém, que houvesse no
Espiritismo uma cerimônia qualquer, lavrada nas lições evangélicas, para
comemorar os grandes acontecimentos da vida? — inquiriu, interessado.
Petitinga, prudente e lúcido, sorriu e esclareceu:
— Foi por adotar as práticas do Paganismo em crepúsculo que o Cristianismo
nascente sofreu as adulterações que redundaram na sua paulatina extinção. Nas
práticas externas e no culto luxuoso da atualidade, que encontramos das lições
vivas e puras do Cristo? Onde e quando vimos Jesus praticando atos que tais?
Muitos se referem à cena do batismo do Senhor, por João, como sendo aceitação
tácita e concorde de um culto. Não foi isso, todavia, o que ocorreu. Deixando-se
identificar pelos sinais das profecias e pelos ditos» antigos que caracterizariam o
Messias, o Enviado, Ele se permitiu receber de João, diante de todos, aquele ato,
para que se soubesse ser Elle o Esperado, fenômeno confirmado pelo que todos
ouviram, naquele momento em que clamava uma voz: “Este é o meu Filho dileto,
em quem me agrado”, conforme anotaram os Evangelistas e que João acrescenta:
“Ele é o Filho de Deus”, definindo-O como o Messias... Nunca, porém, batizou. Em
toda a Sua vida não O vemos em conivência com os que se nutrem da ignorância e
se permitem o abuso da fé a benefício próprio.
Delicado e sóbrio, fez breve silêncio, no qual os seus olhos claros se
iluminaram, e logo prosseguiu:
— O Espiritismo é a Doutrina de Jesus, em Espírito e verdade, sem fórmulas
nem ritos, sem aparências nem representantes, sem ministros. É a religião do amor
e da verdade, na qual cada um é responsável pelos próprios atos, respondendo por
eles, conforme o conhecimento que tenha da Imortalidade, dos deveres. «É a religião
da Filosofia, a Filosofia da Ciência e a Ciência da Religião, conforme predicou
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Vianna de Carvalho em nossa Casa, com justas razões. Não se firma em
enunciados estranhos à Boa Nova e tudo quanto os Espíritos informaram ao
Missionário Allan Kardec se encontra fundamentado nos Evangelhos. Alguns
adversários gratuitos dizem que os Espíritos nada trouxeram de novo. E me permito
indagar, repetindo o filósofo antigo: (Que há de novo sob o Sol? Novidade é também
sinal de leviandade. O que nos parece novo é atualização do que acontecia e
ignorávamos.
«Os Espíritos sempre se comunicaram e falaram dos renascimentos, das Leis
de Causa e Efeito, conhecidas desde remotíssimas civilizações, sob a designação
sânscrita de Carma. Em todos os tempos encontramos os chamados “mortos”
falando aos chamados “vivos”... O que os sábios conseguiram nestes tempos foi
constatar a legitimidade da existência post-mortem e comprovarem a preexistência
do Espírito, antes do corpo, com a consequente sobrevivência após a morte do
corpo. Allan Kardec, o Enviado para os tempos modernos, teve o incomparável
mérito de codificar os ensinos esparsos, dando-lhes uma ordem filosófica, extraindo
o significado moral e eterno das lições contínuas dos Imortais. Dotado de raras
faculdades de inteligência e razão, acolitado por Legião de Benfeitores e por eles
fortemente inspirado, propõe questões do conhecimento, indagou sobre assuntos
não devidamente esclarecidos até então. Não há, porém, em toda a Codificação um
só item que se não alicerce nos ensinos do Cristo, ora confirmados universalmente
pelos Espíritos. O próprio Mestre, na sua assertiva da promessa do Consolador,
informou claro e conciso que o Paracleto diria muito mais do que Ele dissera.
E dando melhor ênfase aos ensinos, concluiu:
— Não, não há qualquer culto externo no Espiritismo e se houvera teríamos a
sua morte anunciada já para breve. Sendo Doutrina dos Espíritos, revive o Cristianismo,
repitamos: em espírito e verdade!
— E não poderíamos — retornou interessado, Adalberto — formular uma oração
de ação de graças em momentos que tais?
— Sim, orar, podemos fazê-lo, porém, na intimidade dos corações, no silêncio
do quarto. Uma oração pública requer sempre alguém mais bem adestrado, de verbo
fácil e inspirado. Assim, iremos transferindo para outrem o que nos cabe fazer. E
como orar é banhar-se de luz e penetrar-se de paz, pela decorrente comunhão com
o Alto, devemos fazê-lo, nós mesmos, cada um, em particular. Que os
compromissados o façam, está muito bem; que os nubentes o realizem, na
intimidade da alcova, é de necessidade; que os aniversariantes o produzam, no altar
da alma, é muito justo. Mas evitemos hoje que a nossa emoção e a nossa
festividade sejam transformadas amanhã num culto exterior, que tenhamos
começado... Cada um de nós, aqui presente, deve estar em oração silenciosa de
bons pensamentos, em atitude de prece pela sobriedade dos atos, mediante o respeito
moral e fraternal que nos devemos todos uns aos outros... O Espiritismo é a
religião que religa, permitam-nos a redundância, a criatura ao Criador,
interiormente... Que tenhamos mais atitudes do que palavras!...
A frase final enunciada com um toque de bom-humor a todos nos fez sorrir,
terminando, assim, a maravilhosa aula que o noivo conseguira motivar.
Todos nos despedimos jubilosos, e meditativos, quanto às nossas
responsabilidades espiríticas em relação a nós mesmos, ao próximo e ao porvir. Os
nossos atos fazem escola e a nossa escola pode transformar-se, por incúria nossa,
num mau Educandário.
Naquela noite, viemos a saber pelo Mentor Saturnino, durante o repouso físico,
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em desdobramento, que fomos reunidos na sede da União Espírita Baiana para
um encontro provocado pelos Instrutores.
Ali nos encontramos Petitinga, nós, o médium Morais, os Soares: Dona Rosa,
Sr. Mateus, Marta, e Mariana, Adalberto, Ana Maria, e os Benfeitores Espirituais.
Alguns dos encarnados se apresentavam mais lúcidos; outros, menos acostumados
às incursões no Mundo Espiritual para tal finalidade, pareciam sonâmbulos em
inquietação. Após a recepção de passes, todos se mostravam tranquilos.
A reunião foi presidida pelo Irmão Glaucus, o nobre Mentor que comandara os
socorros e estudos desde o Anfiteatro, incorporado aos labores de desobsessão da
família Soares por determinação superior. Depois de formosa oração e de alocução
muito elevada, explicou as finalidades e objetivos do encontro.
Terminava o seu prazo de estada entre nós, para aquele mister. Os serviços
transcorriam com o êxito esperado. Fazia-se necessário, porém, definir roteiros para
o futuro. Ultimavam-se os preparativos socorristas para os diversos desencarnados
envolvidos nos dramas das personagens ali presentes. Alguns já haviam recebido o
conveniente tratamento e encontravam-se amparados em círculos fraternos do
Mundo Espiritual, onde conseguiam o auxílio e o esclarecimento de que se
ressentiam. Havia, no entanto, algo mais a fazer.
Terminada a explicação, foram trazidos de outro recinto da Casa o irmão
Teofrastus e Guilherme, por enfermeiros gentis, que os acomodaram em assentos
reservados para ambos.
Adalberto, ao lado de Mariana, automàticamente lhe deu a mão, como a evitar
qualquer sofrimento desnecessário à noiva. Ana Maria, reconhecendo o antigo
amor, fez-se lívida. O Sr. Mateus, ante a inesperada presença de Guilherme,
contanto não estivesse no uso da plena lucidez, pareceu inquieto...
O Irmão Glaucus retomou a palavra, esclarecendo:
— Aqui estamos vários desafetos de há pouco, amores do passado, irmãos do
futuro e de sempre, no caminho da evolução. Ódios e paixões, anseios e ternuras
são etapas a vencer na rota do grande amor que um dia nos unirá a todos como
irmãos verdadeiros. Não nos importem as sombras, considerando a luz soberana
que brilha sobre nós, concitando-nos ao avanço. Esqueçamos as mágoas que são
nuvens perturbadoras, abramos o coração e a mente à esperança que é semente
de vida germinando no solo dos nossos espíritos a benefício nosso, O verdadeiro
amor não se enclausura em determinadas expressões do sentimento, que
desenvolvem o egoísmo e a posse anestesiante; antes se dilata em múltiplas
manifestações encarregadas de ampliar os recursos entesourados da afeição,
jornadeando nas manifestações do sangue, através da família, em posições diversas:
filhos, pais, irmãos, parentes, ou, fora dela, na condição de amores que se
abraçam em novas comunhões e efusões, experimentando, aprendendo,
valorizando oportunidades. As circunstâncias e os locais são bancos e lições da
Grande Escola da Evolução. Todos nascemos e renascemos para sublimar até à
libertação. Não nos aflijamos, pois. Valorizemos o ensejo e aceitemos o impositivo
evolutivo como diretriz abençoada para nós mesmos. Jesus é a nossa porta:
atravessemo-la, seguindo-Lhe as pegadas...
Todos nos mantínhamos expectantes, comovidos. A vida ata e desata,
escrevendo nas páginas do livro de cada um de nós os próprios atos que nos esperam
depois, inapelavelmente.
Convidando Mariana e Adalberto, que se levantaram seguidos por Ambrósio, o
Assistente amoroso, o Irmão Glaucus apresentou Guilherme ao moço, solicitando138
lhe a receptividade fraterna, pois que aquele deveria renascer no seu lar, por
necessidade imperiosa da sua evolução. Vítima que fora da leviandade de si mesmo
e de Mariana, algoz que se fizera da moça e de si próprio, renasceria nos seus
braços na condição de filho sofredor, necessitado de imenso carinho e proteção
afetuosa...
Visivelmente atormentado, Guilherme baixou os olhos e, trémulo, não conseguiu
dominar as lágrimas abundantes.
Mariana avançou e o envolveu em abraço de pura ternura.
Sübitamente adornada de tênue luz que se lhe originava do plexo solar, com
coloração opalina, emoldurou o antigo esposo suicida e falou, igualmente comovida:
— Aproveitemos a lição, meu amigo. Unamos nossas dores numa só dor e
reorganizemos nosso passado num futuro promissor. Brilha-me hoje diferente luz no
espírito; conduz-me nova ética de vida; animam-me outros propósitos no coração;
aquece-me a esperança um sol diverso... Se o nosso hoje foi marcado por abundantes
lágrimas, o nosso futuro nos espera com sorrisos... Incapaz de ser-te esposa
vigilante, tentarei ser-te mãe cuidadosa. Ajuda-me com o teu perdão e favorece-me
com esta oportunidade. O nosso Adalberto, conforme pressinto, não aparece em
nosso destino como um estranho, um aventureiro que nos roube as melhores ensanchas
da vida. É velho amigo que tem com o nosso o seu destino entrelaçado.
Desejavas nascer nas minhas carnes, recordo-me, como resultado da ilicitude para
atormentar, vingar, e atormentar-te... Jesus nos permite a realização do teu desejo,
não como gostarias, mas como de dever. Serás nosso filho num matrimônio
honrado e voltarás aos braços de papai, como o neto que o amará e dele receberá
muito amor. Também ele mudou. Tu também mudaste. Todos nós mudamos. Agora
tudo é diferente, muito diferente...
Guilherme deixou-se conduzir por aquela voz de terna bondade e se rendeu
ante a força do amor verdadeiro.
Ambrósio foi tomar Dona Rosa e o Sr. Mateus e os trouxe ao grupo em
confabulação.
A veneranda senhora fitou o Irmão Glaucus, que lhe compreendeu o desejo
íntimo, assentindo, com um leve sorriso.
A matrona tocou o futuro neto com mãos delicadas e disse:
— Serás, meu filho, a alegria da nossa velhice, como foste a preocupação dos
nossos dias já passados. Eu terei em ti o sorriso do meu coração fatigado e Mateus
encontrará na tua irrequietude juvenil os motivos de júbilos que por muitos anos o
seu coração dorido não experimentou. Também ele tem sofrido muito e espera que
as tuas mãos, quando pequeninas no corpo, lhe enxuguem os suores e as muitas
lágrimas que verterá. Ver-te-á como alguém que irrompe de um passado longínquo,
sedento de amor e amoroso também...
O Sr. Mateus, sem palavras, meio acanhado, canhestramente tocou o antigo
adversário e permaneceu mudo.
O Irmão Glaucus interveio:
— Todos se reencontrarão mais tarde, como chegados de um sonho impreciso,
de contornos confusos; no entanto, com lembranças queridas desta madrugada ainda
imersa em trevas, em que confabulamos e delineamos nosso porvir redentor.
Guilherme será conduzido a necessário tratamento em Organização especializada,
do lado de cá, e receberá preparação para o tentame próximo.
Foram separados, retornando aos seus lugares.
O Irmão Glaucus tomou o antigo Mago de Ruão, que se apresentava desfeito,
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contraído, com indizível sofrimento estampado na face, e o aproximou de Ana
Maria. Tocando a jovem, falou-lhe:
— Devolvo-te o amor não fruido. Tê-lo-ás no seio materno e nos braços da
ternura. Amamentá-lo-ás e lhe fornecerás a forma orgânica. Ele, porém, terá
incontáveis limitações de muita natureza, exigindo-te sacrifícios e vigílias. Talvez
não consiga firmar-se na primeira tentativa de renascimento. Os seus fluídos
possivelmente intoxicarão venenosamente a forma débil do feto... Mas voltará, sim,
aos teus anelos, às tuas ansiedades. Antes dormirá demorado sono em nossa
Esfera de ação, para esquecer e recomeçar sem o peso das lembranças
causticantes... Teu amor ajudá-lo-á a carregar o fardo das próprias dores. Não
seguirás a sós: teus Amigos Espirituais te ajudarão, todos oraremos por ti e por ele.
Ana Maria tocou a face do inditoso afeto. Misturou as suas nas lágrimas dele,
que fluiam silenciosas e doloridas.
— Ajuda-me, amado Teo — disse lenta, lacônicamente. — Ajuda-me com o teu
vigor, o teu entusiasmo e a tua sabedoria, tu que sempre foste mais eloquente do
que eu. Socorre-me com a tua presença e não me deixes mais sozinha... pois eu
não suportaria, agora que te reencontrei.
— Pede-o a Deus — respondeu, lamentoso e débil —, não a mim. Eu sou um
infeliz, já que tu não caíste tanto, não te comprometeste tanto quanto eu... Sou
agora muito fraco, vencido por mim mesmo. Roga-Lhe, tu, que serás mãe e a mãe é
sempre abençoada. Roga, por nós dois.
Ana Maria recebia o influxo mental do Irmão Glaucus, que a inspirava
poderosamente. Comovida, a ex-leprosa retrucou:
— Se somos fracos em forças, nosso amor é forte em esperança. Nossa
fraqueza será nossa resistência, porque nos dependeremos e, assim, nos
ajudaremos.
Seu rosto se descontraiu e ela quase sorriu. Afagou a fronte suada do seu amor
e concluiu:
— Tudo quanto não tivemos, até agora, o amanhã nos ajudará a possuir.
Estaremos mais entrelaçados do que em qualquer ocasião. Por ti, receberei
também, nos braços, a Jean...
— Jean? — interrogou, surpreso, o Espírito.
— Sim, Jean Villemain, recordas? Comprometi-me a ajudá-lo, também, e assim
nossa felicidade não terá manchas. Ajudando-o, ajudar-nos-emos. Ele foi mau porque
deixou que o seu amor por mim o enlouquecesse. Guardadas as proporções
não foi, também, de loucura, o nosso amor? Desse modo nos refaremos e
marcharemos juntos.
Fortemente impressionada pela inspiração do Emissário da Luz, arrematou:
— Aprendi, quando estudava o Evangelho, em criança, em Ruão, este conceito
que nunca esqueci: «Quando eu buscava Deus fora de mim, não O achava; quando
o procurava dentro de mim, tinha-O perdido; resolvi amar e ajudar o meu próximo e
deparei-me comigo, com Deus e com o meu irmão. Buscando Jean e o ajudando,
achar-nos-emos os três na felicidade...
O irmão Teofrastus assentiu, cansado, com a cabeça caída sobre o ombro da
noiva antes infortunada.
O Benfeitor Glaucus, carinhoso, elucidou:
— Jean não poderia participar desta reunião, pois que se encontra em
tratamento... Os nossos compromissos redentores nos desenham, também, aflições
e resgates. Não serão incursões românticas ao jardim das delícias ou aos oásis do
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repouso. Serão tarefas e responsabilidades que assumimos perante nós
mesmos. Poderemos lograr êxito, poderemos falhar, dependendo exclusivamente
de como refaçamos a senda. O amor nos ajudará, sem dúvida. Convém recordar,
também, que não temos sabido valorizar devidamente as concessões do amor
verdadeiro e, assim, o nosso sonho de amor será, também, ministério de sacrifício e
renunciação, pesados tributos de dor redentora. Tenhamos em mente a
necessidade da oração e do trabalho como meios de sustentação da fé, nos
momentos ásperos que surgirão indubitàvelmente. Repontarão à nossa frente
outros amores e outros desafetos. O nosso pretérito não está aqui todo
representado, definido... Fortaleçamo-nos no bem, pois que só o bem nos
fortalecerá devidamente para os embates porvindouros.
«Roguemos ao Pai que abençoe os nossos propósitos de luz e respeitemos no
porvir a glória da nossa felicidade.
Concentrando-se, demoradamente, o Benfeitor começou a refletir luz prateada
que lhe fluía do cérebro, vestindo-o totalmente. A sala humilde fez-se brilhante e
tínhamos a impressão de que sutil aroma perfumava o ar.
Transfigurado, o Mensageiro orou:
Senhor Jesus, Amigo Excelente:
Chegamos cansados dos caminhos percorridos,
Trazendo poeira transformada em lama nos pés da alma,
Sedentos e feridos, de mãos vazias e dilaceradas;
Tombada, a nossa fronte não se levamta para olhar o amanhã;
Os ombros arriados não suportam o fardo das próprias dissipações.
Socorre-nos, Celeste Benfeitor!
Não é a primeira vez que te esquecemos, envolvendo-nos no crime.
Não é a primeira tentativa que fazemos com insucesso.
Não é a primeira oportunidade que perdemos, acoimados pela loucura do
«eu».
Apiada-te ainda mais de nós!
Fitamos o céu e nossos olhos não vêem as estrelas, olhamos o dia e o sol
nos enceguece, seguimos a rota e tropeçamos sem a visão do solo...
Pensamos em ti e brilha em nosso espírito a Tua luz.
Ampara-nos, Construtor da Vida! Amanhece o dia do novo ensejo e logo
mais mergulharemos no caudaloso rio da reencarnação.
Reencontraremos as dívidas chamando por nós e as dores reclamandonos;
Defrontaremos o ódio ultrajando nossas aquisições de amor e o
sofrimento dificultando nosso avanço.
Dá-nos a Tua mão protetora!
Somos o que fomos, ajuda-nos a ser o que devemos!
A Ti entregamos nossas vidas:
Salva-nos, Jesus, através do trabalho redentor!
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Quando o Mensageiro silenciou, nossos olhos estavam deslumbrados.
Recebêramos a visita dos Céus para termos força de prosseguir nos deveres da
Terra.
Chegou o momento das despedidas.
De coração túmido abraçamos o nobre Irmão Glaucus.
Ele sorria gentil e confiante para todos nós.
O grupo foi sendo reconduzido aos seus lares.
Os irmãos que se reencarnariam foram atendidos por Assistentes Espirituais
diversos que participaram das inúmeras tarefas e transferidos para o Mundo Maior.
Saturnino e Ambrósio conduziram-nos ao lar, assim como os demais membros
do labor desobsessivo.
O manto da noite estava sendo erguido pelo ouro do sol e as nuvens brincavam
de sombra e claridade na festa do Dia.
O perene amanhã com Jesus esperava por nós.
Fim