Translate

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Urânia-Camille Flammarion

 

ÍNDICE DO BLOG

WWW.AUTORESESPIRITASCLASSICOS.COM

LIVRO

CAMILLE FLAMMARION

URÂNIA

PRIMEIRA PARTE

A Musa do Céu

I - Sonho da adolescência

II - Viagem entre os universos e os mundos.

- As Humanidades desconhecidas

III - Variedade infinita de seres, - As meta­morfoses.

IV - O Infinito e a Eternidade. - O Tempo,o Espaço e a Vida. - Os horizontes ce­lestes

V - A luz do passado.- As revelações da Musa

SEGUNDA PARTE

JORGE SPERO

I - A vida. - A investigação - O estudo

II - A aparição. - Viagem à Noruega. - O antélio. - Um encontro no céu

III - To be or not to be. - Que é o ente hu­mano? - A Natureza. - O Universo .

IV - Amor. - Icleia. - A atração.

V - A Aurora Boreal. - Ascensão aerostática.

- Em pleno céu. - Catástrofe

VI – O Progresso eterno - Ciência Magnética

TERCEIRA PARTE

CÉU E TERRA

I - Telepatia. - O desconhecido de ontem. - O científico. - As aparições. - Fe­nômenos inexplicados. - As faculdades psíquicas. - A alma e o cérebro

II - Iter extaticum coeleste

III - O planeta Marte. A aparição de Spero.

- As comunicações psíquicas. - Os ha­bitantes de Marte.

IV - O ponto fixo no Universo. - A Natureza. é um dinamismo

V - Alma vestida de ar

VI - Ad veritatem per scientiam. - A testa­mento científico de Spero

clip_image002

NAF - OBSERVATÓRIO ASTRONÔMICO DI PALERMO GIUSEPPE S. VAIANA

Giuseppe Piazzi con Urânia

SONHO DA ADOLESCÊNCIA

Eu contava dezessete primaveras de idade. Ela se chamava Urânia.

Urânia era acaso alguma jovem loura de olhos azuis, um sonho de primavera, inocente, mas curio­sa filha de Eva? Não, era simplesmente, tal qual outrora, uma das nove Musas, a que presidia à Astronomia, e cujo olhar celeste animava e dirigia o coro das esferas; era a idéia Angélica que paira por sobre os erros terrestres; não possuía nem a carne perturbadora, nem o coração cujas palpita­ções se transmitem à distância, nem o tépido calor da vida humana; mas existia, entretanto, em uma espécie de mundo ideal, superior e sempre puro, e todavia era bastante humana, pelo nome, e pela forma, para produzir na alma de uma adolescente impressão viva e profunda, para fazer nascer nessa alma um sentimento indefinido, indefinível, de admiração e quase de amor.

O jovem cuja mão não tocou ainda o fruto divino da árvore do Paraíso e cujos lábios se con­servaram ignorantes, cujo coração ainda não falou, cujos sentidos despertam em meio do vago de novas aspirações, esse pressente, nas horas de solidão, e mesmo através dos trabalhos intelectuais com que a educação contemporânea lhe sobrecarrega o cérebro, o culto a que deverá bem depressa render sacrifícios, e personifica de antemão sob várias formas o ente sedutor que flutua na atmosfera dos seus sonhos. Quer, deseja alcançar esse ente desco­nhecido, mas não o ousa ainda, e talvez não o ousasse jamais, na candura de sua admiração, se algum avanço caridoso não lhe viesse em auxílio. Se Cloé não é instruída, cumpre que a indiscreta e curiosa Licênia se incumba de instruir Dafnis.

Tudo quanto nos fala da atração ainda desco­nhecida pode encantar-nos, impressionar-nos, sedu­zir-nos. Uma fria gravura, mostrando o oval de um puro semblante, uma pintura, mesmo antiga, uma escultura - principalmente uma escultura - des­perta um movimento novo nos corações, o sangue se precipita ou detém, a idéia nos atravessa qual relâmpago a fronte enrubescida, e permanece flu­tuante em nosso espírito sonhador. E' o começo dos desejos, é o prelúdio da vida, é a aurora de um belo dia de estio anunciando o nascer do Sol.

Pelo que me toca, o meu primeiro amor, a mi­nha adolescente paixão tinha, não por objeto segu­ramente, mas por causa determinante... uma Pên­dula!... E demasiado extravagante, mas é assim. Cálculos muito insípidos ocupavam minhas tardes todas, das duas às quatro horas: tratava-se de corrigir as observações de estrelas ou de planetas feitas na noite antecedente, aplicando-lhes as re­duções provenientes da refração atmosférica, a qual depende também da altura do barômetro e da temperatura. Esses cálculos são tão simples quanto fastidiosos; são feitos maquinalmente, com o auxilio de tabelas preparadas, e pensando inteiramente em outra coisa.

O ilustre Le Verrier era então Diretor do Observatório de Paris. Nada artista, possuía, en­tretanto, no seu gabinete de trabalho, uma pêndula de bronze dourado, de muito belo estilo, datando do fim do primeiro Império e devida ao cinzel de Pradier. O soco dessa pêndula representava, em baixo-relevo, o. nascimento da Astronomia nas pla­nuras do Egito. Uma esfera celeste maciça, cingida do círculo zodiacal, sustentada por esfinges, domi­nava o mostrador. Deuses egípcios ornavam os lados. Mas a beleza dessa obra artística consistia, principalmente, em uma sedutora estatueta de Urâ­nia, nobre, elegante, diria quase majestosa.

A Musa celeste estava de pé. Com a mão di­reita media, por meio de um compasso, os graus da esfera estrelada; à esquerda, caindo, empunhava pequena luneta astronômica. Soberbamente plane­jada, dominava na atitude da majestade e da gran­deza. Eu não tinha visto ainda semblante mais belo do que o seu. Iluminado de frente, esse puro sem­blante se mostrava austero e grave. Se a luz descia oblíqua, tornava-se ele meditativo. Se, porém, a luz vinha do alto e de lado, esse rosto encantado se iluminava de misterioso sorriso, o olhar se lhe tornava quase carinhoso, e essa esquisita sereni­dade se transformava subitamente em uma expres­são de alegria, de amenidade e de ventura, que se tinha prazer em contemplar. Era como que um cântico interior; uma poética melodia. Essas mu­danças de expressão faziam verdadeiramente a estátua viver. Musa ou deusa, era bela, era sedutora, era admirável. Cada vez que me, chamavam para junto do eminente matemático, não era a sua glória universal que me impressionava mais. Eu esquecia as fórmulas de logaritmos, e mesmo a imortal des­coberta da obra de Pradier. Aquele belo corpo, tão admiravelmente modelado sob a sua antiga ves­timenta, o gracioso ligamento do pescoço, aquela figura expressiva, atraíam meus olhares e cativavam meu pensamento. Muitas vezes, quando às quatro horas deixávamos o gabinete para reentrar em Paris, eu espreitava pela entre abertura da porta a ausência do diretor. As segundas e as quartas­-feiras eram os melhores dias; aquelas, por motivo das sessões do Instituto, a que ele quase nunca faltava, ainda que a elas assistisse sempre com ar desdenhoso; as outras, por causa das do Gabinete das longitudes, a que ele fugia com o mais pro­fundo menosprezo, e que o faziam deixar o Obser­vatório expressamente para melhor acentuar o seu desprezo. Então, eu me colocava bem defronte da minha querida Urânia, contemplava-a a minha von­tade, extasiava-me com a beleza de suas formas, e retirava-me mais satisfeito, porém não mais feliz. Ela me encantava, mas me deixava saudades.

Certa noite, à noite em que lhe descobri as mudanças de fisionomia conforme a luz, tinha acha­do ó gabinete inteiramente aberto, uma lâmpada posta sobre a chaminé e iluminando a Musa sob um dos aspectos mais sedutores. A luz oblíqua acari­ciava docemente a fronte, as faces, os lábios e o colo. A expressão era maravilhosa. Aproximei-me e a contemplei, a princípio imóvel. Acudiu-me de­pois a idéia de tirar a lâmpada do local onde estava e de projetar a luz sobre as espáduas, sobre o braço, sobre o pescoço, sobre os cabelos. A estátua parecia viver, pensar, despertar e até sorrir. Sensação es­quisita, sentimento estranho, eu estava verdadeira­mente cativo; de admirador, eu me tornara enamorado. Muito me haveriam surpreendido então se houvessem afirmado que não era esse o verdadeiro amor, e que o meu platonismo era um sonho in­fantil.

O Diretor chegou, e não pareceu tão admirado da minha presença quanto eu pudera temê-lo (passava-se algumas vezes por aquele gabinete para ir às salas de observação). No momento, porém, em que eu depunha a lâmpada em cima da chaminé: - O senhor está demorando para a observação de Júpiter -, disse-me. E quando eu ia transpondo a porta: - Dar-se-á o caso que seja poeta? - acrescentou em tom de profundo desdém, demoran­do longamente na penúltima sílaba.

Teria podido replicar-lhe com o exemplo de Kepler, de Galileu, de d'Alembert, dos dois Herschel, e de outros ilustres sábios,. que foram poetas ao mesmo tempo em que astrônomos; teria podido avivar­-lhe mesmo a lembrança do primeiro Diretor do Observatório, João Domingos Cassíni, que cantou Urânia em versos latinos, italianos e franceses; mas os alunos do Observatório não tinham o costume de replicar o que quer que fosse ao Senador-Diretor: Os senadores eram então personagens, e o Diretor do Observatório, cargo inamovível. E depois, seguramente, o nosso grande geômetra teria encarado o mais maravilhoso poema de Dante, de Ariosto, ou de Hugo, com o mesmo ar de profundo tédio com que um bonito cão da Terra-Nova olha um copo de vinho que se lhe aproxima ao focinho. Além disso, eu estava incontestavelmente em falta.

Aquela fascinante imagem de Urânia como me perseguia, com todas as suas deliciosas expressões de fisionomia! O seu sorriso era tão gracioso! E depois, seus olhos de bronze tinham às vezes um verdadeiro olhar. Não lhe faltava senão a palavra. Ora, na noite seguinte, apenas adormecido eu revi, diante de mim, a sublime deusa, e desta vez ela me falou.

Oh! estava bem viva. E que linda boca! Eu lhe teria beijado cada palavra... Vem, disse-me, vem ao céu lá em cima, longe da Terra; tu dominarás este baixo mundo; contemplarás o imenso Universo em toda a grandeza. Olha, vê!

II

VIAGEM ENTRE OS UNIVERSOS E OS MUNDOS - AS HUMANIDADES DESCONHECIDAS

Vi então a Terra que tombava nas profundezas da imensidade; as cúpulas do Observatório, Paris iluminada, desciam rapidamente ; não obstante sentir-me imóvel, tive a impressão análoga às que se experimenta em balão, quando, elevando-se nos ares, se vê a Terra descer. Subi, subi durante muito tempo, arrebatado em mágica ascensão para o Zênite inacessível. Urânia estava junto de mim, um pouco mais elevada, fitando-me com doçura e mostrando-me os reinos terrestres. O dia voltara. Reconheci a França, o Reno, à Alemanha, à Áustria, à Itália, o Mediterrâneo, a Espanha, o oceano Atlân­tico, a Mancha, a Inglaterra. Mas toda essa lilipu­tiana geografia diminuía rapidamente. Em breve o globo terráqueo reduzido às aparentes dimensões do plenilúnio, depois às de uma luazinha cheia.

- Eis aí, disse-me ela, o famoso globo ter­restre sobre o qual se agitam tantas paixões, e que encerra em seu círculo estreito o pensamento de tantos milhões de seres cuja vista não se estende ao Além. Vê quanto a sua aparente grandeza di­minui à proporção que o nosso horizonte se dilata. Já não distinguimos mais a Europa da Ásia. Eis ali o Canadá, e a América do Norte. Quanto é minús­culo tudo aquilo'.

Passando vizinho da Lua, eu havia notado as paisagens montanhosas do nosso satélite, os cimos radiante de luz, os profundos vales cheios de sombras, e teria desejado deter-me para estudar de mais perto essa morada vizinha; mas, sem mesmo dignar-se lançar para ela um simples olhar, Urânia me arrastava em rápido vôo para as regiões siderais.

Subimos sempre. A Terra, diminuindo de mais em mais, à proporção que nos distanciamos, che­gou a ficar reduzida ao aspecto de simples estrela, brilhando com a luz solar no seio da imensidade vazia e negra. Tínhamo-nos voltado para o Sol, que resplendia no Espaço sem iluminá-lo, e víamos, ao mesmo tempo que a ele, as estrelas e os plane­tas, que a sua luz não apagava, por isso que não ilumina o éter invisível. A deusa Angélica mostrou-me Mercúrio, na vizinhança do Sol; Vênus, que brilhava do lado oposto; a Terra, igual à Vênus comparada em aspecto e em brilho; Marte, cujos mediterrâneos e canais reconheci; Júpiter, com as suas quatro luas enormes; Saturno, Urano...

- Todos esses mundos, disse-me ela, são sus­tentados no vácuo pela atração do Sol, em torno do qual giram com velocidade. E' um todo harmo­nioso, gravitando em redor do centro. A Terra não é mais do que uma ilha flutuante, uma aldeia dessa grande pátria solar, e esse império solar não é, ele próprio, mais do que uma província no seio da imensidade sideral.

Subíamos sempre. O Sol e seu sistema distan­ciavam-se rapidamente; a Terra não era mais que um ponto; Júpiter mesmo, esse mundo tão colossal, mostrou-se diminuído, e assim Marte e Vênus; a um pontinho minúsculo, apenas superior ao da Terra. Passamos à vista de Saturno, cingido dos seus anéis gigantescos, e cujo só testemunho bastaria para provar a imensa e inimaginável variedade que reina no Universo; Saturno, verdadeiro sistema por si, com os seus anéis formados de corpúsculos conduzidos em uma rotação vertiginosa, e com os seus oito satélites acompanhando-o qual um celeste cor­tejo!

À medida que subíamos, o nosso Sol ia dimi­nuindo de grandeza. Bem depressa desceu a catego­ria de estrela, depois perdeu toda a majestade, toda a hegemonia sobre a população sideral, e não foi mais do que uma estrela, apenas mais brilhante do que as outras.

Eu contemplava toda aquela imensidade estre­lada, no meio da qual nos elevávamos sempre, e procurava reconhecer as constelações; estas, porém, começavam a mudar sensivelmente de formas, por motivo da diferença de perspectiva causada pela minha viagem; a Via-Láctea estava submergida sob o nosso vôo, qual catarata de sóis em fusão, tom­bando ao fundo do Infinito; as estrelas das quais nos aproximávamos emanavam rutilâncias fantás­ticas, derramando uma espécie de rios de luzes, irra­diações de ouro e prata, cegando-nos de fulgurantes claridades. Acreditei ver o nosso Sol, transformado insensivelmente em uma estrelinha, reunir-se à constelação do Centauro, enquanto uma nova luz, pálida, azulada, bastante estranha, chegava da re­gião para a qual Urânia me conduzia. Essa clari­dade nada tinha de terrestre, e não me recordava nenhum dos efeitos que eu havia. admirado nas pai­sagens da Terra, nem entre os tons tão cambiantes dos crepúsculos depois da tempestade, nem nas bru­mas indecisas da manhã, nem durante as horas cal­mas e silenciosas do clarão da Lua no espelho do mar. Este último efeito era talvez aquele de que esse aspecto mais se aproximava, mas a estranha luz era, e cada vez se tornava mais verdadeiramente azul, não de um reflexo de azul celeste ou de um contraste análogo ao que produz a luz elétrica com­parada à do gás, mas azulada igual a se o pró­prio Sol fosse azul!

Qual não foi a minha estupefação, quando me apercebi de que nos aproximávamos, com efeito, de um sol absolutamente azul, igual a um disco bri­lhante que houvesse sido recortado nos nossos mais belos céus terrestres, e destacando-se luminosamen­te em um fundo todo negro, todo constelado de estrelas! Esse sol safira era o centro de um sistema de planetas iluminados pela sua luz passar pertinho de um desses planetas. O sol azul crescia a olhos vistos; mas, novidade tão singular quanto a primeira, a luz com que ele iluminava o dito planeta se complicava de um certo lado com uma coloração verde. Olhei de novo para o céu e avistei um segundo sol e esse de um belo verde-esmeralda! Não acreditava em meus olhos.

- Estamos atravessando, disse Urânia, o sis­tema solar de Gama de Andrômeda, do qual ainda não vês mais do que uma parte, pois ele se compõe, na realidade, não desses dois sóis, mas de três, um azul, um verde, e um amarelo-laranja. O sol azul, que é o menor, gira em torno do sol verde, e este gravita com seu companheiro em redor do grande sol alaranjado que vais avistar dentro em pouco.

Com efeito, vi logo aparecer um terceiro sol, colorido dessa ardente irradiação, cujo contraste com seus dois companheiros produzia a mais estra­nha das claridades. Conhecia bem tão curioso sis­tema sideral, por tê-lo mais de uma vez observado com o telescópio; mas, não suspeitava sequer o seu verdadeiro esplendor. Que fornalhas, que deslumbramentos. Que vivacidade de cores nessa estranha fonte de luz azul, nessa iluminação verde do se­gundo sol, e nessa irradiação de ouro fulvo do ter­ceiro!

Mas, havíamo-nos aproximado, conforme disse, de um dos mundos pertencentes ao sistema do sol safira. Tudo era azul: paisagens, águas, plantas, rochedos, levemente esverdeados do lado que re­cebia luz do segundo sol, e apenas tocadas dos raios do sol alaranjado que se erguia no horizonte longínquo. À medida que penetrávamos na atmos­fera desse mundo, uma suave música, deliciosa, erguia-se nos ares à semelhança de um perfume, de um sonho. Jamais eu ouvira coisa igual. A doce melodia, profunda, distante, parecia vir de um con­junto de harpas e violinos sustentado por um acom­panhamento de órgão. Era um canto delicado, que inebriava desde o primeiro momento; que não ca­recia de análise para ser compreendido, e que en­chia a alma de volúpia. Parecia-me que teria ficado uma eternidade a ouvi-lo; não ousei dirigir a pala­vra ao meu guia, tanto receava perder-lhe uma nota. Urânia apercebeu-se. Estendeu a mão para um lago e com o dedo indicou um grupo de seres alados que pairavam por cima das águas azuis.

Não tinham a forma humana terrestre. Eram criaturas evidentemente organizadas para viver no ar. Pareciam tecidas de luz. De longe, tomei-as, a princípio, por libélulas: tinham-lhes a forma es­belta e elegante, as vastas asas, a vivacidade, a ligeireza. Mas, examinando-as de mais perto, notei seu porte, que não era inferior ao nosso, e reco­nheci, pela expressão dos olhares, que não eram animais.

As suas cabeças pareciam-se igualmente com as das libélulas, e, à semelhança dessas criaturas aéreas, não tinham pernas. A música deliciosa que eu ouvia não era senão o ruído de seu vôo.

Eram numerosíssimas, vários milhares talvez. Viam-se, nos cimos das montanha, plantas que não eram nem árvores, nem flores. Erguiam débeis hastes a enormes alturas, e esses talos rami­ficados sustentavam, parecendo braços estendidos, amplas taças em forma: de tulipas. Essas plantas eram animadas, pelo menos no grau das nossas sensitivas, e mais ainda; e, igual ao desmódio (planta que tem forma de borboleta) de folhas móveis, manifestavam por movimentos as suas im­pressões interiores. Esses pequenos bosques formavam verdadeiras cidades vegetais. Os habitantes daquele mundo não tinham outras moradas além de tais plantas, e era no meio dessas perfumadas sensitivas que repousavam, quando não flutuavam. nos ares.

- Este mundo parece fantástico, disse Urânia, e a ti próprio perguntas que idéias podem ter tais seres, que costumes, que história, que espécie de artes, de literatura e de ciências. Longo seria responder a todas as perguntas que poderias fazer. Fica sabendo unicamente que seus olhos são supe­riores aos melhores telescópios; que seu sistema nervoso vibra à passagem de um cometa e descobre eletricamente fatos que na Terra jamais se conhe­cerão. Os órgãos que estás vendo abaixo das asas lhes servem de mãos, mais hábeis que as vossas. Por imprensa têm eles a fotografia direta dos acon­tecimentos e a fixação fônica das próprias palavras. Não se ocupam, de resto, senão de pesquisas cien­tíficas, isto é, do estudo da Natureza. As três paixões que absorvem a maior parte da vida ter­restre, o ávido desejo da riqueza, a ambição polí­tica e o amor lhes são desconhecidas, porque de nada carecem para viver, nem há divisões interna­cionais, nem outro governo além de um conselho de administração, e porque são andróginos (ambis­séxuos).

- Andróginos! repliquei. E ousei acrescen­tar: Será melhor?

- Coisa diversa. São grandes perturbações a menos em uma Humanidade. E preciso, continuou ela, desprender-se inteiramente das sensações e das idéias terrenas, para estar em situação de compreender a diversidade infinita manifestada pelas diferentes formas da Criação. De igual modo que sobre o vosso planeta as espécies têm mudado de idade em idade, desde os seres tão esquisitos das primeiras épocas geológicas até o aparecimento da Humanidade; de igual maneira que ainda agora a população animal e vegetal da Terra é composta das mais diversas formas, desde o homem ao coral, desde a ave ao peixe, desde o elefante à borboleta; assim também, e em uma extensão incomparavel­mente mais vasta., entre as inumeráveis terras do Céu, as forças da Natureza têm dado origem a uma infinita diversidade de seres e de coisas. A forma das criaturas é, em cada mundo, o resultado dos elementos especiais a cada globo, substância, calor, luz, eletricidade, densidade, peso. As formas, os órgãos, o número dos sentidos - vós outros tendes apenas cinco, e esses mesmos bastante po­bres - dependem das condições vitais de cada esfera. A vida é terrestre na Terra; marciana em Marte; saturniana em Saturno; netuniana em Ne­tuno -, isto é, apropriada a cada mansão, ou, para melhor dizer, mais rigorosamente ainda, produzida e desenvolvida por esse mundo em particular, con­forme o seu estado orgânico, e segundo uma lei primordial a que obedece a Natureza inteira: a lei do Progresso.

Enquanto ela me falava, tinha eu acompanha­do com o olhar o vôo dos seres aéreos para a cidade florida, e vira com espanto as plantas a se moverem, erguendo-se ou abaixando-se para recebê-los; o sol verde descera abaixo do horizonte, e o sol alaran­jado levantara-se no céu; a paisagem estava ador­nada de coloração esférica sobre a, qual pairava uma lua enorme, metade alaranjada, metade verde. En­tão, a imensa melodia que musicava a atmosfera parou, e, em meio de profundo silêncio, ouvi um cântico, erguendo-se em voz tão pura que nenhuma voz humana lhe pudera ser comparada.

- Maravilhoso sistema, exclamei eu, de tal mundo iluminado por semelhantes clarões! São es­trelas duplas, tríplices, múltiplas, vistas de perto ?

- São esplêndidos sóis essas estrelas - respon­deu-me a deusa. Graciosamente associadas nos la­ços de mútua atração, vós outros as vedes, da Terra, embaladas duas a duas no seio dos céus, sempre belas, sempre luminosas, puras sempre. Suspensas no Infinito, apóiam-se uma na outra sem jamais se tocarem, tal qual se a sua união, mais moral que material, fosse regida por um princípio invisível, e, seguindo harmoniosas curvas, gravitam em cadencia em torno uma da outra, celestes casais desabro­chados na primavera da Criação, nas campinas cons­teladas da imensidade. Enquanto os sóis simples qual o vosso brilham solitários, fixos, tranquilos, nos desertos do Espaço, os sóis duplos e múltiplos parecem animar, com os seus movimentos, a sua coloração e vida, as silenciosas regiões do eterno vácuo. Esses relógios siderais marcam para vós outros os séculos e as eras dos outros universos. Mas, acrescentou, continuemos a nossa viagem. Es­tamos apenas a alguns trilhões de léguas da Terra.

- Alguns trilhões?

- Sim. Se pudéssemos ouvir daqui os ruídos do vosso planeta, os seus vulcões, a sua artilharia, os seus trovões, os alaridos das grandes turbas nos dias de revolta, ou os cânticos piedosos das igrejas que se elevam para o Céu, a distância é tal que, admitindo pudessem esses ruídos transpô-la com a velocidade do som no ar, eles não empregariam menos de cento cinqüenta mil séculos para chegar até aqui. Ouviríamos hoje unicamente o que se passara na Terra há quinze milhões de anos.

Entretanto achamo-nos ainda, em relação à imensidade do Universo, mui próximo da tua Pátria. Continuas a reconhecer o teu Sol, lá em baixo, pequenina estrela. Não saímos do universo, a que ele pertence com o seu sistema de planetas.

Esse universo se compõe de muitos milhares de sóis, separados uns dos outros por trilhões de léguas.

É tão considerável a sua extensão, que um relâmpago, com a velocidade de trezentos mil qui­lômetros por segundo, empregaria quinze milênios em transpô-la.

E por toda à parte, por toda à parte sóis, para qualquer lado que volvamos o olhar; por toda a par­te fontes de luz, de calor e de vida, fontes de inexaurível variedade, sóis de todos os esplendores, de to­das as grandezas, de todas as idades, sustentados no eterno vácuo, no éter luminífero, pela atração mutua de todos e pelo movimento de cada um. Cada estrela, sol enorme, gira sobre si mesma, qual esfera de fogo, e voga rumo de um fim. Vosso Sol caminha e vos leva para a constelação de Hércules; este, cujo sistema acabamos de atravessar, caminha para o sul das Plêiades; Sirius se precipita para a Pom­ba; Pólux se dirige para a Via-láctea; todos esses milhões, todos esses bilhões de sóis correm através da imensidão .com velocidades que atingem duzen­tos, trezentos e quatrocentos mil metros por segundo! E' o Movimento que sustenta o equilíbrio do Universo, que lhe constitui a organização, a energia e a vida.

III

VARIEDADE INFINITA DOS SERES. - AS METAMORFOSES

Desde muito tempo já, o sistema tricolor tinha fugido sob o nosso vôo. Passamos pela vizinhança de grande número de mundos bem diferentes da pátria terrestre. Uns pareceram-me inteiramente cobertos de água e povoados de seres aquáticos; outros unicamente habitados por plantas. Alguns se acham absolutamente desprovidos de água: são os que pertencem a sistemas idênticos ao da estrela Alfa de Hércules - privados de hidrogênio. Outros parecem em labaredas. Paramos perto de muitos. Que inimaginável variedade!

Sobre um de entre eles, as rochas, as plantas e as paisagens reenviam, durante as horas da noite, a luz que receberam e acumularam no decurso do dia. Talvez o fósforo constitua importante contin­gente na composição desses corpos. E um mundo muito estranho, onde a noite é desconhecida, em­bora seja desprovido de satélites. Parece que seus habitantes desfrutam de uma propriedade orgânica muito preciosa: são conformados de tal sorte que percebem todas as funções da manutenção vital do organismo. De cada molécula do corpo, por assim dizer, parte um nervo que transmite ao cére­bro as impressões variadas que recebe, de maneira que o homem se vê interiormente, e conhece, de início, todas as causas das doenças, os menores sofrimentos, os quais são detidos desde os seus germens.

Em outro globo, que atravessamos também du­rante à noite, isto é, do lado do seu hemisfério noturno, os olhos humanos estão organizados de tal sorte que são luminosos, alumiam, qual se alguma emanação fosforescente irradiasse do seu estranho. foco. Uma reunião noturna, composta de grande número de pessoas, oferece aspecto verdadeiramente fantástico, por isso que a claridade, e assim a cor dos olhos, muda conforme as diversas paixões que as animam. Além disso, o poder desses olhares é tal que exercem influência elétrica e magnética de intensidade variável,. e, em certos casos, podem fulminar, fazer cair morta à vítima na qual se fixe toda a energia da sua vontade.

Um pouco mais longe, o meu guia celeste assi­nala um mundo onde os organismos gozam de pre­ciosa faculdade: a Alma pode mudar de corpo, sem passar pela circunstância da morte, muitas vezes desagradável, e sempre triste. Um sábio, que tra­balhou a vida inteira pela instrução da Humanidade, e vê chegar o fim de seus dias, sem haver terminado os nobres empreendimentos, - pode mudar de corpo com um adolescente e recomeçar uma vida nova, mais útil ainda do que a primeira. Para essa transmigração basta o consentimento do adolescente e a operação magnética de um médico competente. Vêem-se também, às vezes, dois entes, unidos pelos tão suaves e fortes laços do amor, operar igual mu­dança de corpo, após vários lustros de união: a Alma do esposo vem habitar o corpo da esposa, e vice-versa, pelo resto da existência. O conhecimento íntimo da vida se torna incomparavelmente mais completo para cada um deles. Vêem-se também sábios, historiadores, desejosos de viver dois séculos em vez de um, mergulhar em sonos fictícios de hibernação artificial, que lhes suspendem a vida durante metade de cada ano e mesmo mais. Alguns conseguem até viver três vezes mais tempo do que a vida normal dos centenários.

Momentos depois, atravessando outro sistema, encontramos um gênero de organizações inteira­mente diverso e, com segurança, superior ao nosso. Nos habitantes do planeta que tínhamos então sob os olhos, mundo iluminado por brilhante sol hidro­genado, o pensamento não é obrigado a passar pela palavra para manifestar-se. Quantas vezes não tem acontecido, quando uma idéia luminosa ou enge­nhosa nos vem ocupar o cérebro, querer exprimi-la ou escrevê-la, e, durante o tempo em que começa­mos a falar ou escrever, sentir já a idéia dis­sipada, esvaída, obscurecida ou metamorfoseada? Os habitantes desse planeta possuem um sexto sentido, a que se poderia chamar autotelegráfico, em virtude do qual, se o que pensa a isso não se opõe, 0 pensamento se comunica ao exterior e pode ser lido em um órgão situado pouco mais ou menos no mesmo lugar da fronte humana. Essas conversações silenciosas são muitas vezes as mais profundas e as mais preciosas; são sempre as mais sinceras.

Somos ingenuamente dispostos a crer que a organização humana nada deixa a desejar na Terra. Entretanto, não temos muitas vezes lamentado ser a criatura obrigada a ouvir, mal grado seu, pala­vras desagradáveis, um discurso absurdo, um ser­mão orgulhoso em vácuo, música péssima, maledi­cências ou calúnias? As nossas gramáticas têm pretendido que podemos fechar os ouvidos a esses discursos, assim não é, infelizmente. Não podemos fechar os ouvidos, tal qual fechamos os olhos. Há aí uma lacuna. Fiquei surpreendidíssimo de assinalar um planeta onde a Natureza não esqueceu essa particularidade. Porque nos houvéssemos detido nele um momento, mostrou-me Urânia esses ouvidos que se fechavam à maneira de pálpebras, e intercepta­vam radicalmente a transmissão do som. Há aqui, disse-me ela, muito menos cóleras surdas do que entre vós outros; mas as dissidências entre os par­tidos políticos são muito mais acentuadas, não querendo os adversários ouvir coisa alguma, e triun­fando efetivamente, apesar dos mais loquazes advo­gados e dos tribunos dotados de melhores pulmões.

Em outro mundo, cuja atmosfera está cons­tantemente eletrizada, cuja temperatura é muito alta, e onde os habitantes têm tido quase ou nenhu­ma razão suficiente para inventar vestimentas, cer­tas paixões se traduzem pela iluminação de uma parte do corpo. E' em ponto grande o que se passa em ponto pequeno em nossas campinas terrestres, onde se vêem, durante as serenas noites de estio, os pirilampos consumindo-se, silenciosamente, em amorosa flama. O aspecto dos casais luminosos é curioso de observar, à noite, nas grandes cidades. A cor da fosforescência difere segundo os sexos, e a intensidade varia segundo as idades e os tempe­ramentos. O sexo forte acende uma flama verme­lha, mais ou menos ardente, e o sexo gracioso uma flama azulada, às vezes pálida e discreta. Só os nossos pirilampos poderiam formar uma idéia, muito rudimentar, da natureza das impressões sentidas por -esses entes especiais. Não queria eu dar crédito a meus olhos quando atravessávamos a atmosfera de tal planeta; porém, ainda muito mais surpreen­dido fiquei, chegando ao satélite desse mundo sin­gular.

Era uma lua solitária, iluminada por uma es­pécie de sol crepuscular. Sombrio vale ofereceu-se aos nossos olhares. Das árvores disseminadas nos dois lados, pendiam criaturas humanas envoltas em sudários. Tinham-se elas mesmas atadas aos ramos, pela cabeleira, e dormiam ali no mais profundo silêncio. O que eu tomara por sudários era um tecido formado pelo alongamento dos cabelos ema­ranhados e encanecidos. E porque me admirasse de semelhante posição, disse Urânia que era aquele o seu modo habitual de sepultamento e de ressur­reição. Sim, naquele mundo os entes humanos go­zam da faculdade orgânica dos insetos, que têm o dom de dormir no estado de crisálida para se meta­morfosearem em aladas borboletas. Há nisso uma espécie de dupla raça humana, e os estagiários da primeira fase, os seres mais grosseiros e materiais, não aspiram senão a morrer, para ressuscitar na mais esplêndida das metamorfoses. Cada ano desse mundo representa cerca de dois séculos terrestres. Vivem-se ali dois terços de ano em estado inferior, um terço (o inverno) em estado de crisálida, e, na primavera seguinte, sentem, os suspensos, gradual­mente a vida voltar à carne transformada; agitam­-se, despertam, deixam a carcaça na árvore, e, des­prendendo-se, maravilhosos entes alados voam nas regiões aéreas, para viver aí um novo ano fenixiano, isto é, duzentos dos de nosso rápido planeta.

Atravessamos assim grande número de siste­mas, e parecia-me que a eternidade inteira não teria sido bastante longa para permitir-me gozar de todas essas criações desconhecidas a Terra; mas meu guia me deixava apenas o tempo para respirar, e novos sóis, e novos mundos continuavam apare­cendo. Em nosso trajeto, tínhamos quase abalroa­do una cometas transparentes que erravam, quais sopros, de um a outro sistema, cujas Humanidades teriam sido novos assuntos de estudo. Os cinco po­bres sentidos incompletos, que constituem a nossa bagagem orgânica, são verdadeiramente insignifi­cantes à riqueza de percepções dos seres munidos de quinze, dezoito e mesmo vinte e seis sentidos diferentes, conforme constatamos em muitas terras do céu. No entanto, a Musa celeste continuava a levar-me sem parar, sempre cada vez mais alto, cada vez mais longe, até que enfim chegamos ao que me pareceu o subúrbio do Universo. Os sóis tor­navam-se mais raros, menos luminosos, mais páli­dos; a noite se fez mais completa entre os astros, e em breve nos achamos no meio de verdadeiro deserto; os milhares de estrelas, que constituem o Universo visível da Terra, estavam afastados e reduzidos a uma pequena via-láctea, isolada no vácuo infinito.

- Eis-nos finalmente, exclamei, nos limites da Criação!

- Olha! respondeu-me ela, mostrando-me o zênite.

IV

O INFINITO E A ETERNIDADE. - O TEMPO, O ESPAÇO E A VIDA. - OS HORIZONTES CELESTES

Quê! Era verdade? Outro universo descia em nosso rumo! Milhões e milhões de sóis grupados planavam, novo arquipélago celeste, e se iam desen­volvendo qual vasta nuvem de estrelas, à proporção que subíamos. Tentei sondar com a vista, em torno de mim, em todas as profundezas, o Espaço infinito, e por toda a parte avistei clarões análogos, montões de estrelas disseminados em todas as distâncias.

O novo universo em que penetrávamos era prin­cipalmente composto de sóis vermelhos, rubis e granadas. Muitos tinham absolutamente a cor do sangue.

Sua travessia foi uma verdadeira fulguração. Corríamos rapidamente de sol em sol, mas inces­santes comoções elétricas nos atingiam, a seme­lhança dos clarões de uma aurora boreal. Que es­tranhos estádios, esses mundos iluminados unicamente de sóis rubros! Depois, em um distrito desse universo, notamos um grupo secundário, composto de grande número de estrelas cor de rosa e outras azuis. De súbito, precipitou-se em nosso rumo, e nos envolveu, um enorme cometa, cuja extremidade dianteira semelhava uma goela colossal. Aconche­guei-me com terror à ilharga da deusa, que durante um momento desapareceu da minha vista em lumi­nosa névoa. Mas nos tornamos a encontrar em es­curo deserto, pois que esse segundo universo se afastara igual ao primeiro.

- A Criação, disse-me ela, se compõe de um número infinito de universos distintos, . separados uns dos outros por abismos de nada.

- Um número infinito?

- Objeção matemática, replicou. Sem dúvida, um número, por muito grande que seja, não pode ser presentemente infinito, pois que, pelo pensa­mento, se pode aumentá-lo sempre de uma unidade, ou mesmo duplicá-lo, triplicá-lo, centuplicá-lo. Lem­bra-te, porém, de que o momento atual não é mais do que uma porta por onde o futuro se precipita para o passado. A eternidade não tem fim, e o número dos universos será, ele também, sem fim. Além disso, as estrelas, os sóis e os universos não formam um - número. Eles são, por melhor dizer, sem número. Olha! Vês ainda, sempre e por toda parte, novos arquipélagos de ilhas celestes, novos universos.

- Parece-me, ó Urânia! que há muito tempo já, e com grande velocidade, estamos subindo no céu sem limites!

- Poderíamos sempre subir assim, respondeu ela, sem jamais atingir um limite definitivo. Pode­ríamos vogar para a esquerda, para a direita, para a frente, para trás, para baixo, para não importa qual direção, e jamais, em parte nenhuma, depa­raríamos uma fronteira... Nunca, nunca um fim. Sabes onde estamos? Sabes que caminho temos percorrido? Estamos... no vestíbulo do Infinito, tal qual o estávamos na Terra. Não temos avançado um único passo!

Grande comoção se apoderara do meu Espírito. As últimas palavras de Urânia tinham-me penetra­do até à medula, qual calafrio glacial. Nunca um , nunca, nunca! repetia eu. E não podia dizer, nem pensar outra coisa. Entretanto, a magnificên­cia do espetáculo reapareceu a meus olhos e o ani­quilamento cedeu lugar ao entusiasmo.

- A Astronomia! exclamei. E tudo! Saber estas coisas. viver no infinito. Urânia! Que é o resto das idéias humanas perante a Ciência! Som­bras, fantasmas!

- Oh! disse ela, tu vais despertar na Terra, tu admirarás ainda, e legitimamente, a ciência de teus mestres; mas, fica sabendo: a Astronomia atual das suas Escolas e dos Observatórios, a Astro­nomia matemática, a bela ciência dos Newton, dos Laplace, dos Le Verrier, não é ainda a ciência defi­nitiva.

Não está lá, meu filho, o fim que busco desde os dias de Hiparco e de Ptolomeu. Vê esses milhões de sóis análogos àquele que dá vida a Terra e, tal qual ele, fontes de movimento, de atividade e de esplendor; pois bem, é esse o objeto da ciência futura: o estudo da vida universal e eterna. Até hoje, não se há penetrado no templo. Os algarismos não são um fim, mas um meio; não representam o edifício da Natureza, mas os métodos, os andaimes. Vais assistir à aurora de um novo dia. A Astrono­mia matemática vai ceder o lugar à Astronomia física, ao verdadeiro estudo da Natureza.

Sim, acrescentou, os astrônomos, que calculam os movimentos aparentes dos astros na sua passa­gem de cada dia pelo meridiano; os que anunciam a chegada dos eclipses, dos fenômenos celestes, dos cometas periódicos; os que observam com tanta atenção as posições exatas das estrelas, dos plane­tas de vários graus da esfera celeste; os que descobrem os cometas, os planetas das estrelas variáveis; os que buscam e determinam as perturbações pro­duzidas nos movimentos da Terra, pela atração da Lua e dos planetas; os que consagram suas vigílias à descoberta dos elementos fundamentais do siste­ma do mundo; todos, observadores ou calculistas, são os preparadores de materiais, precursores da nova Astronomia. São imensos trabalhos, labores dignos de admiração, transcendentes obras que põem em evidência as mais elevadas faculdades do espírito humano. Mas é o exército do passado. Matemáticos e geômetras. Doravante o coração dos sábios vai pulsar por uma conquista mais nobre ainda. Todos esses grandes Espíritos, estudando o céu, não têm na realidade saído da Terra. O fim da Astronomia não é mostrar a situação aparente de pontos brilhantes, nem pesar pedras em movi­mentos no Espaço, nem nos fazer conhecer com antecedência os eclipses, as fases da Lua ou as marés. Tudo isso é belo, mas insuficiente.

Se a vida não existisse na Terra, este planeta seria absolutamente destituído de interesse para qualquer espírito que fosse, e a mesma reflexão se pode aplicar a todos os mundos, que gravitam em torno de milhares de sóis, nas profundezas da imen­sidade. A vida é o fim da Criação inteira. Se não houvesse vida, nem pensamento, tudo isto seria como que nulo e não acontecido. A Criação é um poema, do qual cada letra é um sol. Estás destinado a assistir a uma completa. transformação da Ciência. A Matéria vai ceder lugar ao Espírito.

- A vida universal! disse eu. Os planetas do nosso sistema solar serão todos habitados? ... São habitados os milhares de mundos que povoam o infinito? . . . Essas Humanidades assemelham-se à nossa?... Conhecê-las-emos algum dia? ...

- A época em que vives na Terra, a própria duração da Humanidade terrestre não é mais do que um momento na eternidade.

Não compreendi essa resposta às minhas per­guntas.

- Nenhuma razão há, acrescentou Urânia, para que todos os mundos sejam habitados agora. A época presente não tem mais importância do que as precedentes ou as que se hão de seguir.

A duração da existência da Terra será muito mais longa - talvez dez vezes - mais longa - do que a do seu período vital humano. Em uma dezena de mundos, tomados ao acaso na imensidade, poderíamos, por exemplo, conforme os casos, achar apenas um atualmente habitado por uma raça inte­ligente. Uns o foram outrora; outros sê-lo-ão no futuro; estes se acham em via de preparação, aque­les têm percorrido todas as suas fases; aqui, berços; além, túmulos; e depois, uma variedade infinita se revela nas manifestações das forças da Natureza, não sendo a vida terrestre de modo algum o tipo da vida extraterrestre. Seres podem viver, em organizações inteiramente diversas das conhecidas no vosso planeta. Os habitantes dos outros não têm a vossa forma, nem os vossos sentidos. São outros.

Dia virá, e mui proximamente, pois que estás chamado a vê-lo, em que o estudo das condições da vida nas diversas províncias do Universo será o objeto essencial - e o grande encanto - da As­tronomia. Bem depressa, em vez de se ocuparem simplesmente com a distância, com o movimento e com a massa material dos vossos planetas vizi­nhos, os astrônomos descobrir-lhe-ão a constituição física, os aspectos geográficos, a climatologia, a meteorologia; penetrarão o mistério da sua organi­zação vital e discutirão a respeito dos respectivos habitantes. Afirmarão que Marte e Vênus se acham atualmente povoados de seres pensantes; que Júpi­ter está ainda no seu período primário de prepara­ção orgânica; que Saturno plana em condições in­teiramente diferentes das que presidiram ao esta­belecimento da vida terrena, e, sem jamais passar por estado análogo ao da Terra, será habitado por seres incompatíveis com os organismos terrestres. Novos métodos farão conhecer a constituição física e química dos astros, a natureza das atmosferas. Instrumentos aperfeiçoados permitirão mesmo des­cobrir os testemunhos diretos da existência dessas Humanidades planetárias, e pensar em estabelecer comunicação com elas. Eis a transformação cientí­fica que há de assinalar o fim do décimo-nono século e que há de inaugurar o vigésimo.

Eu escutava, enlevado, as palavras da Musa Celeste, que iluminavam para mim, com luz intei­ramente nova, os destinos da Astronomia, e me inundavam de ardor mais vivo ainda. Tinha sob os olhos o panorama dos mundos inumeráveis que rolam no Espaço, e compreendi que o fim da Ciência devia ser tornar conhecidos esses longínquos universos, fazer-nos viver nesses horizontes imen­sos. A formosa deusa continuou

- A missão da Astronomia será mais elevada ainda. Depois de vos haver feito sentir e dado a conhecer que a Terra não é mais do que uma cidade na pátria celeste, e que o homem é cidadão do céu, irá mais longe. Descobrindo o plano sobre o qual o universo físico está construido, mostrará que o universo moral se acha alicerçado sobre esse mesmo plano; que os dois mundos não formam senão um mesmo mundo, e que o Espírito governa a Matéria. O que ela houver feito quanto ao Espaço, realizará quanto ao Tempo. Depois de haver apreciado a imensidade do Espaço, e reconhecido que as mesmas leis reinam simultaneamente em todos os lugares, e fazem do imensurável Universo uma exclusiva unidade, sabereis que os séculos do passado e do futuro estão associados ao tempo presente, e que as mônadas pensantes viverão eternamente, por transformações sucessivas e progressivas; aprende­reis que há Espíritos incomparavelmente superiores aos maiores Espíritos da Humanidade terrestre, e que tudo progride para a perfeição suprema; fica­reis sabendo também que o mundo material não é mais do que uma aparência e que o ser real - con­siste em uma força imponderável, invisível e intangivel.

A Astronomia será, pois, eminentemente e antes de tudo, a diretriz da Filosofia. Os que racio­cinarem fora dos conhecimentos astronômicos, fica­rão à margem da Verdade. Os que, fiéis, seguirem o seu fanal, irão subindo gradualmente na solução dos grandes problemas.

A filosofia astronômica será a religião dos espíritos superiores.

Deves assistir, acrescentou ela, a essa dupla transformação da Ciência. Quando deixares o mun­do terrestre, a ciência astronômica, que tão legi­timamente já admiras, estará de todo renovada, tanto na forma quanto na essência.

Isso, porém, não é tudo. A renovação de uma ciência antiga pouco serviria ao progresso geral da Humanidade, e se esses sublimes conhecimentos, que desenvolvem o Espírito, iluminam a Alma e a liber­tam das mediocridades sociais, ficassem encerrados no acanhado círculo dos astrônomos de profissão. Esse tempo vai passar também. O alqueire deve ser entornado. Cumpre empunhar o facho, aumen­tar-lhe o fulgor, levá-lo às praças públicas, às ruas populosas, até às mais escusas vielas. Todo o mundo é chamado a receber a luz; estão todos sequiosos dela, principalmente os humildes, principalmente os deserdados da fortuna, pois esses pensam mais, es­tão ávidos de ciência, enquanto que os satisfeitos do século nem suspeitam da sua própria ignorância, e têm quase orgulho em permanecer assim. Sim, a luz da Astronomia deve ser espalhada pelo mundo; deve penetrar até as massas populares, iluminar as consciências, elevar os corações. E será essa a sua mais bela missão; será esse o seu beneficio.

V

A LUZ DO PASSADO. - AS REVELAÇÕES DA MUSA

Assim falou o meu celeste guia. O seu sem­blante era formoso quanto o dia, os olhos brilhavam com luminoso fulgor, a sua voz parecia música di­vina. Eu via os mundos circulando em torno, no Espaço, e sentia que imensa harmonia rege a Natureza.

- Agora, disse-me Urânia, designando com o dedo o lugar onde o nosso Sol terrestre havia desa­parecido, regressemos a Terra. Mas, olha ainda. Compreendeste que o Espaço é infinito. Vais com­preender que o Tempo é eterno.

Atravessamos várias constelações e tornamos rumo do sistema solar. Vi, com efeito, aparecer. novamente o Sol, sob o aspecto de pequena estrela.

- Vou dar-te por momento, prosseguiu ela, senão a visão divina, ao menos a visão Angélica. A tua Alma vai sentir as vibrações etéreas que cons­tituem a luz, e saber de que modo a história de cada mundo é eterna em Deus. Ver é saber. Olha!

De igual maneira que o microscópio nos mostra a formiga do tamanho do elefante; que, penetrando até os infinitamente pequenos, nos torna o invisível visível; assim também, à ordem da Musa, a minha vista adquiriu, de súbito, um inesperado poder de percepção e distinguiu no Espaço, ao lado do Sol, que se eclipsou, a Terra, que, de invisível, se tornou visível. Eu a reconheci, e, à medida que a olhava, o seu disco ia aumentando, oferecendo semelhança com a Lua - alguns dias antes da fase do plenilúnio. Cheguei em breve a distinguir, nesse disco crescente, os principais aspectos geográficos, a man­cha nebulosa do Pólo Norte, os contornos da Eu­ropa e da Ásia, o mar do Norte, o Atlântico, o Mediterrâneo. Quanto mais fixava a atenção, me­lhor via. As minudências se tornavam cada vez mais perceptíveis, como se eu houvesse mudado gradualmente de oculares microtelescópicas. Reco­nheci a forma geográfica da França, mas a nossa bela Pátria parecia inteiramente verde, do Reno ao Oceano e da Mancha ao Mediterrâneo, como se a cobrisse uma só e imensa floresta. Conseguia, en­tretanto, distinguir, cada vez melhor, as menores particularidades, pois os Alpes, os Pirineus, o Reno, o Ródano e o Loire eram fáceis de reconhecer.

- Fixa bem a tua atenção, disse minha com­panheira.

Pronunciando essas palavras, punha-me ao mes­mo tempo na fronte a extremidade de seus alonga­dos dedos, como se tivesse querido magnetizar-me o cérebro e dar às minhas faculdades de percepção um poder maior ainda. Então sondei, penetrei mais atentamente ainda os detalhes da visão, e tive diante dos olhos a Gália da época de Júlio César. Era no tempo da guerra da independência, animada pelo patriotismo de Vercingetorix.

Via esses aspectos do alto, tal qual vemos as paisagens lunares com o telescópio, ou da barqui­nha do aeróstato avistamos uma região; mas reconheci a Gália, o Auvergne, Gergovia, Puy de Dome, os vulcões extintos, e meu pensamento viu, reproduziu a cena gaulesa, da qual resumida ima­gem me chegava.

- Achamo-nos a tal distância da Terra, disse Urânia, que a luz consome para chegar de lá até aqui todo o tempo que nos separa da época de Júlio César. Aqui, recebemos, somente agora, os raios luminosos partidos da Terra naquele período. En­tretanto, a luz viaja no Espaço etéreo com a velo­cidade de trezentos mil quilômetros por segundo. E' rápido, muito rápido, mas não é instantâneo. Os astronômos da Terra, que estão agora observando as estrelas situadas à distância em que nos acha­mos, não ás avistam tal qual elas são atualmente, mas tal qual eram no momento em que partiram os raios luminosos que lhes chegam somente hoje, isto é, com o aspecto de mais de dezoito séculos. Da Terra, acrescentou, nem de nenhum ponto do Espaço, jamais se avistam os astros no aspecto do que eles são, mas do que foram. Tanto mais atrasado se está sobre a sua história, quanto mais afastado deles se acha.

Vós outros observais com o maior cuidado, ao telescópio, estrelas que não existem mais. Algu­mas mesmo dessas estrelas, que se avistam a olho nu, já não existem. Várias nebulosas, cuja distância é analisada com o espectroscópio, já se tornaram sóis. Muitas das vossas belas estrelas rubras estão presentemente apagadas e mortas: aproximando­-vos delas, não as veríeis mais!

A luz emanada de todos os sóis que pululam na imensidade, a luz refletida no Espaço por todos os mundos iluminados por esses sóis, leva através do céu infinito as fotografias de, todos os séculos, de todos os dias, de todos os instantes. Olhando para um astro, só se vê o que era no momento em que partiu a fotografia que dele se recebe, tal qual, ouvindo um sino, só se recebe o som depois que partiu, e tanto mais tempo depois quanto mais afastado dele se está.

Daí resulta que a história de todos os mundos viaja atualmente no Espaço sem jamais desaparecer absolutamente, e todos os acontecimentos passados estão presentes no seio do Infinito e indestrutíveis.

A duração do Universo não terá fim. A Terra há de acabar, e um dia não será mais do que um tumulo. Mas haverá novos sóis e novas terras, novas primaveras e novos sorrisos, e a vida florira sempre no Universo sem limites e sem fim.

Quis mostrar-te, continuou depois de uma pau­sa, quis mostrar-te de que modo o Tempo é eterno. Tinhas sentido o infinito do Espaço. Tinhas compreendido a grandeza do Universo. Agora, está feita a tua viagem celeste. Aproximemo-nos da Terra, e volta à tua Pátria.

Quanto a ti, ajuntou ainda, fica sabendo que o estudo é a única fonte de todo o valor intelectual, e que o conhecimento do coração humano conduz à indulgência e à bondade; jamais sejas nem pobre, nem rico; livra-te de toda a ambição, e assim de toda a servidão; sê independente: a independência é o mais raro dos bens e a primeira condição de felicidade.

Urânia falava com a sua voz suave. Mas, a comoção produzida por todos aqueles extraordiná­rios quadros, de tal modo me abalara o cérebro, que fiquei subitamente possuído de grande temor. Um calafrio percorreu-me da cabeça aos pés, e foi sem dúvida o que ocasionou o meu súbito despertar, em meio de viva agitação... Ai! a deliciosa viagem celeste estava terminada.

Procurei Urânia e não a encontrei mais. Um límpido raio de Lua, penetrando pela janela do meu aposento, vinha afagar a orla de uma sanefa, e parecia desenhar vagamente a forma aérea do meu celeste guia; mas era apenas um raio de lua. Quando, no dia seguinte, tornei ao Observa­tório, o meu primeiro impulso foi correr, sob qual­quer pretexto, para o gabinete do Diretor e tornar a ver a Musa sedutora que me favorecera com tal sonho...

A pêndula havia desaparecido!

Em seu lugar, ostentava-se o busto, em mármore branco, do ilustre Astrônomo.

Procurei em outros compartimentos, e, a propósito de mil pretextos, até nos aposentos particu­lares; ela, porém, havia desaparecido.

Durante dias, durante semanas procurei, sem conseguir tornar a vê-Ia, nem mesmo saber o que era feito dela.

Tinha eu um amigo, um confidente, pouco mais ou menos da minha idade, embora parecesse um tanto menos moço por causa de sua barba nascente, mas do mesmo modo grandemente apaixonado do ideal, e mais sonhador ainda, talvez o único, além disso, de todo o pessoal do Observatório, com quem eu me havia intimamente ligado. Compartilhava das minhas alegrias e dos meus pesares. Tínhamos os mesmos gostos, as mesmas idéias, os mesmos sentimentos. Compreendera não só a minha adoles­cente admiração por uma estátua, mas também a personalidade com que a minha imaginação a ani­mara, e, portanto, a minha melancolia por haver assim subitamente perdido a minha querida Urânia, no momento justamente em que mais preso a ela estava. Por mais de uma vez a admirava, comigo, e, sorrindo de meus êxtases, qual irmão mais velho, zombando mesmo, um tanto vivamente, às vezes, da minha paixão por um ídolo, ia a ponto de chamar­-me Camilo Pigmalido. No fundo, porém, eu via perfeitamente que ele a amava também.

Esse amigo, que ai! devia ser arrebatado al­gum tempo mais tarde, em plena flor da mocidade, o bom Jorge Spero, Espírito eminente e grande alma, cuja lembrança me há-de ficar eternamente querida, era então secretário particular do Diretor, e a sua afeição tão sincera me foi testemunhada nessa circunstância, por uma atenção tão amável quanto imprevista..

Um dia, recolhendo-me a casa, vi, com espanto quase incrédulo, a formosa pêndula colocada em cima da minha chaminé, justamente defronte de mim!...

Era ela mesma! De que maneira, porém, se achava ali? Que caminho tomara? Donde viera? Soube que o ilustre autor do descobrimento de Netuno a enviara, a fim de ser consertada, à casa de um dos principais relojoeiros de Paris, e que este, tendo recebido da China uma antiga pêndula astronômica do mais alto interesse, propusera a troca, que fora aceita; e que Jorge Spero, incum­bido da transação, comprara a escultura de Pradier para oferecer-me, em lembrança das lições de mate­máticas que eu lhe havia dado.

Com que alegria tornei a ver a minha Urânia! Com que felicidade saciei nela o meu olhar! Essa sedutora personificação da- Musa do Céu nunca mais rime deixou depois. Nas minhas horas de es­tudo, a bela estátua se conservava defronte de mim, parecendo recordar o discurso da deusa, a anunciar-me os destinos da Astronomia, dirigir-me nas minhas adolescentes aspirações científicas. De­pois, emoções mais apaixonadas puderam seduzir­-me, cativar-me, perturbar-me os sentidos; jamais, porém, esquecerei o sentimento ideal que a Musa das estrelas me inspirara, nem a viagem celeste em que ela me levou, nem os inesperados panoramas que desdobrou sobre a extensão e constituição do Universo, nem a felicidade que me deu, assinalando definitivamente para carreira, ao meu Espírito, as calmas contemplações da Natureza e da Ciência.

SEGUNDA PARTE

JORGE SPERO

A VIDA

A ardente luz da tarde flutuava na atmosfera qual prodigioso irradiamento de ouro. Das altu­ras de Passy, a vista alongava-se por sobre a imen­sa cidade, que, então mais do que nunca, era, não uma cidade, mas um mundo. A Exposição Universal de 1867 reunira em Paris imperial todas as atrações e todas as seduções do século. As flores da civili­zação ali brilhavam com as suas mais vivas cores, e se consumiam no próprio ardor de seus perfumes, morrendo em plena febre de adolescência. Os sobe­ranos da Europa acabavam de ouvir ali uma retum­bante fanfarra, que foi a última da monarquia; as ciências, as artes e a indústria semeavam as suas novas criações com prodigalidade inexaurivel. Era uma espécie de embriaguez geral dos seres e das coisas. Marchavam batalhões, de música à frente; rápidos carros entrecruzavam-se de toda a parte; milhões de homens se agitavam na poeira das ave­nidas, dos cais, dos bulevares; mas, essa mesma poeira, dourada pelos raios do sol poente, parecia uma auréola coroando a cidade esplêndida. Os altos edifícios, as cúpulas, as torres e os campanários iluminavam-se com os reflexos do astro incendido; ouviam-se ao longe sons de orquestra misturados a confuso murmúrio de vozes e ruídos diversos, e essa luminosa tarde, completando deslumbrante dia de verão, deixava na alma um sentimento de plenitude, de satisfação, de ventura. Havia em tudo uma espécie de simbólico resumo das manifestações da vitalidade de um grande povo, chegado ao apogeu da sua vida e da sua riqueza.

Das alturas de Passy onde nos achamos, do terraço de um jardim suspenso, símile dos dias de Babilônia, sobre o indolente curso do rio, dois entes, apoiados à balaustrada de pedra, contemplam o ruidoso espetáculo. Dominando a superfície agi­tada do mar humano, mais ditosos em sua doce solidão do que todos os átomos daquele torvelinho, não pertencem ao mundo vulgar e pairam por sobre aquela agitação na límpida atmosfera da sua felici­dade. Seus espíritos pensam, seus corações amam, ou para mais completamente exprimir o mesmo fato, suas almas vivem.

Na juvenil beleza de sua décima-oitava prima­vera, deixa a moça correr o olhar sonhador sobre a apoteose do sol poente, ditosa por viver, mais feliz ainda por amar. Não pensa naqueles milhões de seres humanos que se agitam aos seus pés; con­templa, sem vê-lo, o ardente disco do Sol que desce por detrás, das nuvens purpureadas do Ocidente; respira o ar perfumado dos pendões de rosas do jardim, e sente em todo o seu ser a quietação de intima felicidade, que lhe entoa no coração inefável cântico de amor. A loura cabeleira aureola sua fronte em vaporoso nimbo e cai em opulentos tufos até à cintura delgada e airosa; seus olhos azuis, franjados de longos cílios negros, parecem um re­flexo do anil do céu; os braços e o colo de brancura láctea deixam adivinhar a carne diáfana feita de transparência e luz rosada; as faces e as orelhas são vivamente coloridas; o conjunto da sua pessoa lem­bra um tanto as marquesinhas dos pintores do décimo-oitavo século, nascidas para uma vida des­conhecida de que não deviam gozar por longo tempo. Está de pé. Seu companheiro, que há pouco lhe cingia o talhe com o braço, contemplando com ela o quadro de Paris, ouvindo com ela as ondas de harmonia espalhadas nos ares pela música da guarda-imperial, está sentado ao seu lado. Seus olhos esqueceram Paris e o ocaso do Sol, para ver a graciosa amiguinha ; e, sem se aper­ceber, a contempla com estranha e meiga fixidez, admirando-a, tal se pela primeira vez a visse, não podendo desprender-se daquele delicioso perfil, en­volvendo-o no seu olhar qual em magnética carícia.

O moço estudante conservava-se absorto nessa contemplação. Estudante, então o era ainda aos vinte e cinco de idade? E não se é sempre? E o nosso mestre de então, o Sr. Chevreuil, não se apelidava, ontem ainda, no seu centésimo-terceiro ano de idade, o mais antigo dos estudantes de França? Jorge Spero em muito boa-hora termi­nara esses estudos de liceu que nada ensinam, salvo o método do trabalho, e continuava a apro­fundar, com infatigável ardor, os grandes proble­mas das ciências naturais. A Astronomia, acima de tudo, havia a princípio apaixonado seu espírito, e eu o conhecera precisamente (disso o leitor talvez se recorde, pela precedente narrativa) no Obser­vatório de Paris, onde ingressara aos dezesseis de idade, e onde se fizera notar por uma singularidade, assaz estranha: a de não ter a menor ambição, nem desejar acesso algum. Na idade de dezesseis, e assim na de vinte e cinco, julgava-se quiçá em vésperas da morte; acreditava talvez que, de fato, a vida passa veloz, e supérfluo é desejar alguma coisa além da Ciência, ambicionar o quer que seja além da felicidade de estudar e saber. Era pouco comunicativo, embora, no fundo, o seu caráter fosse o de uma criança jovial. De extrema delicadeza de sentimentos, suas relações com os homens eram, em geral, mui escassas, pois a menor desilusão lhe causava verdadeiro sofrimento.

Sua boca, muito pequena e graciosamente de­senhada, parecia estar sorrindo, se lhe exami­nava com atenção a comissura dos lábios; senão, parecia antes sisuda e feita para o silêncio. Seus olhos, cuja cor indecisa, recordando o verde-azul do horizonte do mar, mudava conforme a luz e con­forme as emoções íntimas, eram ordinariamente de grande suavidade; em certas circunstâncias, porém, acreditar-se-ia que os inflamava o fogo do raio, ou que eram frios qual o aço. O olhar era profundo, as vezes insondável e mesmo estranho, enigmático. A orelha era pequena, graciosamente orlada, com o lóbulo bem destacado e de leve erguido, o que para os analistas é indício de finura de espírito. A fronte era vasta, embora a cabeça fosse pequena, aumentada por bonita cabeleira de sedosos anéis. A barba era fina, castanha igual aos cabelos, leve­mente frisada. De- porte mediano, o conjunto pessoal era elegante, de uma elegância nata, cuidada sem pretensão, sem afetação.

Não tínhamos tido camaradagem com ele, nem meus amigos, nem eu, em qualquer época. Nos dias de saída, nas horas de recreio, nunca estava pre­sente. Perpetuamente mergulhado em seus estudos, ter-se-ia podido crer que se entregara sem trégua à busca da pedra filosofal, da quadratura do círculo ou do moto-contínuo. Nunca lhe conheci amigo, se­não eu, e ainda não estou bem certo de haver rece­bido todas as suas confidências. Talvez, em suma, não houvesse ocorrido outro acontecimento íntimo da sua vida além daquele de que me faço, hoje, historiador, e que eu pudesse exatamente conhecer por testemunho, e não no papel de confidente.

O problema da Alma era a obsessão continua de seu pensamento. Às vezes, abismava-se na in­dagação do - Desconhecido - com tal intensidade de ação cerebral, que sentia sob o crânio um for­migamento em que todas as faculdades pensantes pareciam aniquilar-se. Isto acontecia principal­mente quando, depois de haver longamente anali­sado as condições da imortalidade, via desaparecer de súbito diante dele a efêmera vida presente, e perante o seu ser mental abrir-se à eternidade sem fim. Em face desse espetáculo da alma em plena eternidade, queria saber. A visão do seu corpo pálido e gélido, amortalhado em sudário, estendido em um féretro, abandonado no fundo de estreita cova, derradeira e lúgubre morada, debaixo da relva onde o grilo murmura, não lhe consternava tanto o pensamento quanto a incerteza do futuro.

Que serei eu? Que será feito de nós outros? re­petia qual um choque de idéia fixa no cérebro. Se morremos inteiramente, que inepta comédia a da vida, com suas lutas e suas esperanças! Se somos imortais, que fazemos durante a interminável eter­nidade? De hoje há um século, onde estarei eu, onde estarão todos os habitantes atuais da Terra? e os habitantes de todos os mundos? Morrer para sem­pre, para todo o sempre, não ter existido senão um momento: que irrisão! não fora melhor cem vezes não ter nascido e não ter sofrido? Mas, se o destino é viver eternamente, sem jamais poder mudar coisa alguma à fatalidade que nos arrasta, tendo sempre em face à eternidade sem fim, como suportar o peso de semelhante destino ? E é essa a sorte que nos espera! Se algum dia nos fatigássemos da existência, ser-nos-ia vedado fugir-lhe, ser-nos-ia impossível pôr-lhe fim! crueldade mais implacável ain­da do que a de uma vida efêmera, esvaindo-se igual ao vôo de um inseto na frescura da noite. Porque, pois, nascemos? Para sofrer com a incerteza? Para não ver uma só de nossas esperanças manter-se em pés após o exame? Para viver, se não pensamos, igual a idiotas, e, se pensamos, igual a loucos? Nem fim, nem lógica em nada!... E nos falam de um Deus bondoso! E há religiões, padres, pastores, rabinos, bonzos! Mas a Humanidade não é mais do que uma raça de burlões e de burlados. A reli­gião vale à pátria, e o sacerdote vale ao soldado. Os homens de todas as nações estão armados até aos dentes, para entre assassinarem-se entre si, fei­tos imbecis. E é o que eles podem fazer de mais sábio: é esse o melhor agradecimento que podem dirigir à Natureza pelo inepto presente com que os mimoseou - dando-lhes a vida.

Eu tentava acalmar-lhe os tormentos, as in­quietações, tendo preparado para meu uso uma cer­ta filosofia que me havia relativamente satisfeito: O temor da morte, dizia-lhe, parece-me absoluta­mente quimérico. Não há senão duas hipóteses a formular. Quando adormecemos todas as noites, podemos deixar de acordar na manhã seguinte, e essa idéia, quando nela pensamos, não nos impede de dormir. Portanto, 1.°,: ou, acabando tudo com a vida, não despertamos mais em parte alguma, e nesse caso é um sono que não foi terminado, que durará eternamente, - jamais saberemos coisa al­guma a esse respeito; ou, V: sobrevivendo a alma ao corpo, despertamos algures para continuar a nossa atividade. Neste caso, o despertar não pode ser terrível, deve antes ser sedutor, tendo toda a existência a sua razão de ser, e achando toda criatura, a mais ínfima e também a mais nobre, a felicidade no exercício de suas faculdades.

Este raciocínio parecia acalmá-lo, mas as in­quietações da dúvida não tardavam a reaparecer, agudas quais espinhos. Às vezes, vagava solitário nos vastos cemitérios de Paris, buscando entre os túmulos as alamedas mais desertas, escutando o zunido do vento nas árvores, o frêmito das folhas secas nos caminhos, o olhar perdido entre as sepul­turas retangulares apertadas umas contra as outras, monumentos talhados para os mortos e medidos estritamente sobre o - nada - da. criatura hu­mana. Outras vezes, afastava-se pelos arredores da grande cidade, através dos bosques, onde inefáveis melancolias suspiram, e, durante horas inteiras, ca­minhava falando consigo mesmo, demorando-se até à noite, à saída do luar, aos pálidos raios d esse Sol noturno que parece ter sido feito para os mortos. Algumas vezes também permanecia um longo dia inteiro no seu aposento da praça do Panteão, apo­sento que lhe servia ao mesmo tempo de gabinete de trabalho, de quarto de dormir e de sala de re­cepção, e até alta, hora da noite dissecava um cére­bro trazido da Clínica, estudando ao microscópio as delgadas laminazinhas da substância parda.

A incerteza das ciências chamadas positivas e a brusca parada do seu espírito na solução dos problemas lançavam-no então em violento deseSpero, e, por mais de uma vez, o encontrei em inerte abatimento, com os olhos luzentes e fixos, as mãos ardendo em febre, o pulso agitado e intermitente . Em uma dessas crises mesmo, tendo sido obrigado a deixá-lo por algumas horas, acreditei não tornaria a encontrá-lo vivo, quando voltei pelas cinco horas da manhã. Tinha ele junto de si um vidro com cianeto de potássio, que procurou esconder à minha chegada. Logo, porém, recuperando a calma, com grande serenidade de espírito sorriu-me levemente Para quê! disse ele; se somos imortais, isto de nada serviria. Mas era para sabê-lo, mais depressa. Confessou-me nesse dia ter acreditado que era dolorosamente erguido pelos cabelos até à altura do teto, para cair depois, com todo o peso, no assoalho.

A indiferença pública a respeito desse grande problema do destino humano, questão que a seus olhos primava sobre todas as outras, pois que se trata da nossa existência ou do nosso - nada, tinha o dom de exasperá-lo no mais alto grau. Não via em toda a parte senão gente ocupada em inte­resses materiais, unicamente absorta pela bizarra idéia de ganhar dinheiro, consagrando todos o curso da vida, todos os seus dias, todas as suas horas, os seus minutos todos, a esses interesses disfarçados sob as mais diversas formas, e não achava nenhuma inteligência livre, independente, vivendo da vida do Espírito. Parecia-lhe que os seres pensantes podiam, deviam, ao mesmo tempo em que viviam as vidas do corpo, pois que de outro modo não é possível, ao menos, não ficar escravos de uma organização tão grosseira, e dedicar os melhores momentos à vida intelectual.

A época em que começa esta narrativa, Jorge Spero já era célebre, e mesmo ilustre, pelos tra­balhos científicos originais que publicara, e por várias obras de alta literatura que haviam levado o seu nome às aclamações do mundo inteiro. Em­bora não tivesse ainda completado o seu vigésimo­-quinto aniversário, mais de um milhão de leitores tinham lido os seus livros, obras que ele não havia escrito para o grosso público, mas que tinham alcançado o êxito de ser apreciado, tanto pela maioria desejosa de instruir-se, quanto pela minoria esclarecida. Haviam-no proclamado Mestre de uma escola nova, e eminentes críticos, não lhe conhe­cendo a individualidade física, nem a idade, fala­vam de suas doutrinas.

Porque se achava esse singular filósofo, esse estudante austero, aos pés de uma mocinha à hora do pôr-do-sol, sozinho com ela, no terraço onde acabamos de encontrá-los? Vai dizê-lo o seguimento desta narração.

II

A APARIÇÃO

Verdadeiramente estranho tinha sido o seu pri­meiro encontro. Contemplador apaixonado dos es­plendores da Natureza, sempre à cata de grandes espetáculos, o jovem naturalista empreendera, no verão precedente, a viagem à Noruega, com o fim de visitar os solitários fiordes, onde se engolfa o mar, e as montanhas de nevosos cimos que er­guem acima das nuvens as frontes imaculadas, e, principalmente, com o vivo desejo de ali fazer um estudo especial das auroras boreais, essa grandiosa manifestação da vida do nosso planeta. Eu o acom­panhara nessa viagem. Os ocasos do sol, além dos fiordes calmos e profundos, os nascimentos do es­plêndido astro sobre as montanhas, encantavam­-lhe, em indizível emoção, a alma de artista e de poeta. Estivemos ali mais de um mês, percorrendo a pitoresca região que se estende de Cristiânia aos Alpes escandinavos. Ora, a Noruega era a pátria dessa filha do Norte, que devia exercer tão rápida influência naquele coração não despertado. Estava a mocinha ali, a alguns passos dele, e no entanto foi no momento no dia da nossa partida que o acaso; esse deus dos antigos, resolveu pô-los em presença um do outro.

A luz da manhã dourava os cimos longínquos. A moça norueguesa fora levada por seu pai ao alto de uma dessas montanhas, aonde se dirigem tantos excursionistas, qual acontece com a Suíça, para as­sistir ao nascer do Sol, que, naquele dia, tinha sido esplêndido. Icleia se afastara sozinha alguns me­tros, sobre um montículo isolado, para melhor dis­tinguir certos pormenores da paisagem, quando, voltando ó rosto para o lado oposto ao Sol, a fim de abarcar o conjunto do horizonte, avistou, não mais na montanha nem na terra, mas no próprio céu, a sua imagem, a sua pessoa inteira, perfeita­mente reconhecível. Uma auréola luminosa emol­durava-lhe a cabeça e as espáduas com uma bri­lhante coroa de glória, e um grande círculo aéreo, tênuamente tingido com as cambiantes cores do arco-íris, envolvia a misteriosa aparição.

Estupefata, abalada pela singularidade do es­petáculo, ainda sob a impressão do esplendor do nascer do Sol, não reparou logo que outra figura, um perfil de cabeça de homem, acompanhava a sua, vulto de viajante imóvel, em contemplação ante ela, lembrando essas estátuas de santos em pé sobre as pilastras das igrejas. A figura masculina e a sua estavam emolduradas pelo mesmo círculo aéreo. De repente, percebeu esse estranho perfil hu­mano nos ares, julgou ser ludíbrio de uma visão fantástica e, maravilhada, fez um gesto de surpresa e quase de susto. A imagem aérea reproduziu o mesmo gesto, e ela viu o espectro do viajante levar a mão ao chapéu e descobrir-se, semelhando uma saudação celeste, depois perder a nitidez dos con­tornos e esvaecer-se ao mesmo tempo que a sua própria imagem.

A transfiguração do Monte Tabor, onde os dis­cípulos de Jesus avistaram súbitamente no céu a imagem do Mestre, acompanhada das de Moisés e de Elias, não mergulhou as suas testemunhas em mais profundo pasmo do que a inocente virgem da Noruega em presença daquele antélio, cuja teoria é conhecida de todos os meteorologistas.

Essa aparição fixou-se na profundeza do seu pensamento qual um sonho maravilhoso. Tinha chamado o pai, que ficara a pequena distância por detrás do montículo; porém, quando este chegou, tudo havia desaparecido. Pediu ela a explicação, sem outra coisa obter, em resposta, senão uma dúvida, e quase a negativa da realidade do fenô­meno. O excelente homem, antigo oficial superior, pertencia a essa categoria de cépticos esquivos, que negam pura e simplesmente quanto ignoram ou não compreendem. Em vão lhe afirmou a formosa me­nina que acabava de ver a sua imagem no céu - e mesmo a de um homem, que ela julgava moço e de gentil aspecto -, em vão contou os detalhes da aparição, e acrescentou que as figuras lhe haviam parecido acima do natural e se assemelhavam a vultos colossais; declarou ele, com autoridade, e não sem ênfase, que o caso era dos de ilusões de óptica produzidas pela imaginação quando se tem dormido mal, principalmente na idade da adolescência.

Na tarde do mesmo dia, porém, quando subía­mos para bordo do vapor, reparei em uma jovem, de cabeleira um tanto original, que olhava para o meu amigo com ar francamente admirado. Es­tava ela no cais, de braço com o genitor, e perma­necia imóvel qual a mulher de Ló transformada em estátua de sal. Mostrei-a a Jorge logo que chegamos ao navio; apenas, porém, volveu a cabeça para o lado dela, vi as faces da mocinha cobrirem-se de súbito rubor, e imediatamente desviou ela o olhar a fim de dirigi-lo para a roda da embarcação que começava a pôr-se em movimento. Não sei se Spero prestou atenção a isso. Pela manhã, não tínhamos visto, nem eu nem ele, o fenômeno aéreo, pelo me­nos no momento em que a mocinha estivera em nossa vizinhança, e nos ficara, ela própria, oculta por pequena moita de arbustos; tinha sido princi­palmente o lado do Oriente, a magnificência do erguer do Sol, que nos atraíra. Contudo saudou ele a Noruega, que deixava pesaroso, com o mesmo gesto com que festejara o sol nascente; e a des­conhecida julgou ser para ela própria a saudação.

Dois meses depois, em Paris, o conde de K... recebia uma sociedade numerosa, a propósito de recente triunfo alcançado pela sua compatriota Cristina Nilson. A jovem norueguesa e seu pai, vindos a Paris passar uma parte do inverno, eram do número dos convidados; conheciam-se de longa data, compatriotas, sendo irmãs a Suécia e a No­ruega. Quanto a mim e ao meu amigo ali fomos pela primeira vez, e o convite era mesmo devido ao aparecimento do último livro de Spero, já assi­nalado por brilhante êxito. Sonhadora, pensativa, instruída pela sólida educação dos países do Norte, ávida de conhecimentos, Icleia tinha lido já e re­lido com curiosidade esse livro um tanto místico, no qual o novo metafísico expusera as ansiedades da sua alma não satisfeita com os Pensamentos de Pascal. Acrescentemos que ela própria havia, meses antes, feito com êxito os seus exames de preparatórios, e tendo renunciado ao estudo da Medicina, que a princípio a tentara, começava a ini­ciar-se com certa curiosidade nas novíssimas pes­quisas da fisiologia psicológica.

Quando anunciaram o Sr. Jorge Spero, pare­cera-lhe que acabava de entrar um amigo desco­nhecido, quase um confidente de seu Espírito. Es­tremeceu, como que ferida de uma comoção elétrica. Ele, pouco mundano, tímido, constrangido nas reu­niões de pessoas estranhas; não gostando de dançar, nem de jogar, nem de conversar, ficara no mesmo canto da sala, ao lado de alguns amigos, indiferen­tes às valsas e às quadrilhas, mais atento a duas ou três obras-primas da música moderna interpre­tadas com sentimento; e a noite inteira se escoara sem que ele se houvesse aproximado dela, embora a tivesse notado e, em toda aquela deslumbrante noite, não tivesse visto senão a ela. Por mais de uma vez, os seus olhares se haviam cruzado. Afinal, próximo das duas horas da manhã, quando a reu­nião se ia tornando mais íntima, ousou aproximar­-se dela, sem contudo dirigir-lhe a palavra. Foi ela quem primeiro lhe falou, para exprimir-lhe uma dúvida sobre a conclusão do seu livro.

Lisonjeado, porém mais surpreendido ainda de saber que aquelas páginas de metafísica tinham uma leitora - e uma leitora daquela idade - o autor respondeu, muito desastradamente, serem tais pesquisas um tanto sérias para o sexo feminino. A jovem respondeu que as -mulheres, as moças, não viviam exclusivamente absorvidas pelo exercício da faceirice, e conhecia algumas que às vezes pen­savam, pesquisavam, trabalhavam, estudavam. Fa­lou com alguma vivacidade, para defender as mu­lheres contra o desdém científico de certos homens, e sustentar a sua aptidão intelectual, e não lhe foi difícil ganhar uma causa da qual, aliás, o seu interlocutor não era de modo algum adversário. Esse novo livro, cujo êxito tinha sido imediato e estrondoso, apesar da gravidade do assunto, cercara o nome de Jorge Spero de uma verdadeira auréola de celebridade, e nas salas o brilhante escritor era, por toda a parte, acolhido com grande simpatia. Tinham os dois, trocado apenas algumas palavras, e ele se tornou logo o ponto de mira dos amigos da casa, e obrigado a responder a diversas perguntas que vieram interromper a conversação de ambos. Um dos mais eminentes críticos da época, Sainte­-Beuve, havia precisamente consagrado um longo artigo à nova obra, e o próprio assunto do livro se tornou logo objeto da conversação geral. Icleia se conservou de parte. Sentia, e nisso as mulheres raro se enganam, que fora notada pelo herói; que o pensamento dele já estava ligado ao seu por invisível fio; que, respondendo às perguntas mais ou menos triviais que lhe dirigiam, o seu espírito não estava inteiramente preso à conversação. Esse primeiro triunfo íntimo lhe bastava. Ela não dese­java outros. E depois, reconhecera nesse perfil de homem o vulto da misteriosa aparição aérea e o moço viajante do vapor de Cristiânia.

Nessa primeira entrevista não tardou ele em testemunhar-lhe entusiasmo pelos maravilhosos sítios da Noruega, e em contar-lhe a sua viagem. Intenso era nela o desejo de ouvir uma palavra, uma alusão qualquer ao fenômeno aéreo que tanto a impressionara; e não compreendia o silêncio do jovem, a sua discrição a respeito. Ele, não tendo observado o antélio no momento em que ela neste projetara a própria figura, não se surpreendera particularmente com um fenômeno que já observara diversas vezes, e em muito melhores condições es­tudara do alto da barquinha de um aeróstato, e, nada tendo de especial observado, no caso da jovem, também nada tinha que dizer. Não lhe acudiu tão-pouco à memória o momento do embarque, e, embora a loura mocinha não lhe parecesse inteiramente estranha, não se lembrava, entretanto, de tê-la visto antes. Quanto a mim, eu a havia reco­nhecido logo. Conversou dos lagos, dos rios, dos fiordes, das montanhas; contou-lhe ela que a geni­tora morrera muito moça, enferma do coração; que o pai preferia a vida de Paris à de qualquer outra cidade; e que sem dúvida não voltaria mais, senão raramente, à sua pátria.

Notável afinidade de gostos e de idéias,, viva simpatia mútua, uma estima recíproca estabelecera logo intimidade entre ambos. Educada segundo os costumes ingleses, gozava da independência de es­pírito e da liberdade de ação que as mulheres da França não conhecem senão depois do casamento, e não se sentia detida por nenhuma das convenções sociais que, em nosso país, parecem destinadas a proteger a inocência e a virtude. Duas amigas de sua idade tinham vindo sozinhas a Paris, para ter­minar a educação musical, e viviam juntas em plena Babilônia parisiense, aliás em toda a segu­rança, sem jamais terem desconfiado dos perigos de que se pretende que Paris está repleta. A moça recebeu as visitas de Jorge Spero tal qual seu pai tê-las-ia recebido, e, em poucas semanas, a afini­dade de seus caracteres e de seus gostos os havia associado nos mesmos estudos, nas mesmas pesqui­sas, muitas vezes nos mesmos pensamentos. Quase todos os dias, à tarde, arrastado. por secreta atra­ção, dirigia-se ele do bairro Latino` às margens do Sena, que seguia até ao Trocadero, e passava várias horas com Icleia, na biblioteca, ou no terraço do jardim, ou passeando no bosque.

A primeira impressão, nascida da aparição ce­leste, ficara na alma de Icleia. Considerava ela o jovem sábio, senão um deus ou um herói, ao menos no nível de homem superior aos seus contemporâ­neos. A leitura de suas obras robusteceu essa im­pressão e a aumentou ainda: sentiu por ele mais do que admiração, verdadeira veneração. Quando o conheceu pessoalmente, o grande homem não des­ceu de seu pedestal. Ela o achou tão eminente, tão transcendental em seus estudos, em seus trabalhos, em suas pesquisas, mas ao mesmo tempo tão sim­ples, tão sincero, tão bom e tão indulgente para com todos e apanhando qualquer pretexto para ou­vir pronunciar-lhe o nome - que teve de sofrer por vezes com algumas criticas de rivais, tão in­justas para com ele, e começou a amá-lo com um sentimento quase maternal. E esse sentimento de afeição protetora já existirá no coração das don­zelas? Talvez, mas com certeza ela o amou assim, a princípio. Creio ter dito antes que o fundo do caráter daquele pensador era um tanto melancólico, dessa melancolia da alma de que fala Pascal, e parece ser a nostalgia do céu. Procurava, com efei­to, perpetuamente, a solução do eterno problema o To be or not to be (o ser ou não ser), do Ham­leto. Por vezes, ter-se-ia podido vê-lo triste, ater­rorizado ao ponto de morte. Mas, por singular con­traste, quando os seus negros pensamentos se ha­viam, por assim dizer, consumido na elucubração, e o cérebro, exausto, perdia a faculdade de,vibrar ainda, dava-se nele uma espécie de repouso, um serenamento; a circulação do sangue vermelho rea­nimava-lhe a vida orgânica: desaparecia o filósofo para ceder o lugar a uma criança quase ingênua, de alegria fácil, divertindo-se de tudo e de nada, tendo quase gostos feminis, amando as flores, os perfumes, a música, o sonho, passando horas a examinar a estrutura e a vida de modesta planta, subindo a muros, ou aparentando, às vezes, pas­mosa negligência.

III

TO BE OR NOT TO BE

Era precisamente esta fase de vida intelectual que tão intimamente tinha associado as duas cria­turas. Ditosa de existir, na flor da sua primavera, abrindo-se à luz da vida, harpa vibrante de todas as harmonias da Natureza; a formosa filha do Norte sonhava ainda por vezes com os elfos e com as fadas do seu clima, com os anjos e com os mis­térios da religião cristã, que lhe haviam acalen­tado a infância; mas, a sua devoção, a sua credu­lidade dos primeiros dias não lhe haviam obscu­recido a razão, pois pensava livremente, procurava, de ânimo sincero, a verdade, e, lamentando talvez acreditar mais no paraíso dos pregadores, sentia-se contudo animada do imperioso desejo de viver sem­pre. A morte parecia-lhe uma cruel injustiça. Não tornara a reviver sua mãe estendida no leito de morte, formosa com todo o brilho dos seus janei­ros, levada em pleno desabrochar das rosas a um cemitério vivente e perfumado, todo cheio do canto das aves, e riscada subitamente do livro dos vivos, ao passo que a Natureza inteira continuara a can­tar, a florescer e luzir; não tornara mais a reviver, digo, o pálido semblante de sua mãe, sem que súbito calafrio lhe percorresse o corpo todo, da cabeça aos pés. Não, sua mãe não morrera. Não, ela própria não morreria, nem aos trinta, nem mais tarde. E ele? Ele, morrer! aquela sublime inteligência ani­quilar-se pela parada do coração ou da respiração? Não, não era possível. Os homens se enganam. Saber-se-á algum dia.

Pensava também, às vezes, nesses mistérios sob uma forma antes estética e sentimental do que científica; mas pensava neles. Todas as indagações, as dúvidas, o secreto fim das conversações, do seu apego, tão rápido talvez, ao amigo, - tudo isso tinha por causa a sede imensa de saber que lhe abrasava a alma. Esperava nele, porque em seus escritos encontrara já a solução dos maiores pro­blemas. Tinham-lhe eles ensinado a conhecer o Universo, e acontecia que esse conhecimento era mais belo, mais vivaz, mais grandioso, mais poético do que os erros e as ilusões antigas. Desde o dia em que nesses livros aprendera que a vida do autor não tinha outro fim senão a procura da realidade, estava certa de que ele a acharia, e seu Espírito se agarrava, se unia ao dele, talvez mais energicamente ainda do que o seu coração.

Havia cerca de três meses que viviam assim, de uma vida intelectual comum, passando quase todos os dias algumas horas na leitura de memórias originais, escritas nas diferentes línguas, a respei­to da filosofia científica, da teoria dos átomos, da física molecular, da química orgânica, da termo­dinâmica e das diversas ciências que têm por fim o conhecimento do ser; dissertando sobre as con­tradições aparentes ou reais das hipóteses, achan­do, às vezes, nos escritores puramente literários, relações e coincidências assaz surpreendentes com os axiomas científicos, admirando-se de certas presciências dos grandes autores. Essas leituras, pes­quisas e comparações haviam sempre interessado pela -eliminação que os seus Espíritos, cada vez mais esclarecidos, se viam levados a fazer dos nove décimos dos escritores, cujas obras são absoluta­mente vazias, e da metade do último décimo cujos escritos têm apenas um valor superficial! Tendo assim limpado o campo da literatura, viviam com certa satisfação, na restrita sociedade dos Espíritos superiores. Talvez entrasse nisso algum leve sen­timento de orgulho.

Um dia, Spero chegou mais cedo que de cos­tume. Eureca! exclamou. Mas retraindo-se pron­tamente: Talvez...

Apoiando-se à chaminé, onde crepitava vivo fogo, enquanto a companheira o contemplava com os seus grandes olhos cheios de curiosidade, come­çou a falar, com uma espécie de solenidade incons­ciente, qual se estivesse conversando com o seu próprio Espírito, na solidão de um bosque

- Tudo quanto vemos não é mais do que aparência. A realidade é outra.

O Sol parece girar em torno de nós outros, levantar-se pela manhã e recolher-se à tarde, e a Terra em que estamos parece imóvel. O contrário é que é a verdade. Habitamos em torno de um projétil turbilhonante, lançado no Espaço por uma velocidade setenta e cinco vezes mais rápida do que a de uma bala de canhão .

Harmonioso concerto vem encantar-nos os ouvidos. O som não existe, não passa de uma im­pressão dos nossos sentidos, produzida por vibra­ções do ar, de uma certa amplitude e de uma certa velocidade, vibrações silenciosas por si mesmas. Sem o nervo auditivo e sem o cérebro, não haveria sons. Na realidade não há senão movimento.

O arco-íris abre o seu círculo radiante; a rosa e a centáuria, orvalhadas pela chuva, cintilam ao Sol; a verde campina e o sulco de ouro diversificam a planície com as suas vistosas cores. Não há co­res, não há luz, não há senão ondulações do éter que põem em vibração o nervo óptico. Aparências enganosas. O Sol aquece e fecunda, o fogo queima; não há calor, mas somente sensações. O calor, e assim a luz, não passa de um modo de movimento. Movimentos invisíveis, mas soberanos, supremos.

Eis aqui uma forte trave de ferro, dessas que geralmente se empregam nas construções. Está colocada no vácuo, a dez metros de altura, sobre duas paredes, nas quais se apóiam as respectivas extremidades. E' sólida, com certeza. No centro dela foi posto um peso de mil, dois mil, dez mil quilogramas, e esse peso enorme ela nem mesmo o sente; muito será verificar-se, com o nível, uma imperceptível flexão. No entanto, essa trave é com­posta de moléculas que não se tocam, que estão em vibração perpétua, que se afastam umas das outras sob a influência do calor e se aproximam sob a do frio. Digam-me, por favor, que é que constitui a solidez dessa barra de ferro? Seus átomos materiais? Certamente não, pois eles não se tocam. Essa solidez reside na atração molecular, isto é, em uma força imaterial.

Falando, de modo absoluto, o sólido não existe. Tomemos nas mãos uma pesada bala de ferro. Essa bala é composta de moléculas invisíveis, que não se tocam também. A continuidade que a superfície dessa bala parece ter e a sua aparente solidez são puras ilusões. Para o espírito que analisasse a sua íntima estrutura seria um turbilhão de mosquitos, lembrando os que redemoinham na atmosfera dos dias de verão. Aqueçamos essa bala que nos parece sólida: ela se derreterá; aqueçamo-la mais: ela se evaporará, sem por isso mudar de natureza: liquido ou gás, será sempre ferro.

Estamos neste momento em uma casa. Todas estas paredes, soalhos, tapetes, móveis e esta cha­miné de mármore são compostos de moléculas que também não se tocam. E todas estas moléculas, constitutivas dos corpos, se acham em movimento de circulação, umas em torno das outras.

Nosso corpo está no mesmo caso. E' formado por uma circulação perpétua de moléculas; é uma flama incessantemente consumida e renovada; é um rio a cuja borda vem à gente sentar-se, acre­ditando ver sempre a mesma água, mas onde o curso perpétuo das coisas traz uma água sempre nova.

Cada glóbulo de nosso sangue é um mundo (e deles possuímos cinco milhões por milímetro cúbico). Sucessivamente, sem parada, nem trégua, em nossas artérias e veias, em nossa carne, em nosso cérebro, tudo circula, tudo caminha, tudo se precipita, em um turbilhão vital, proporcionalmente tão rápido quanto o dos corpos celestes. Molécula por molécula, o nosso cérebro, o nosso crânio, os nossos olhos, os nossos nervos e a nossa carne se renovam sem descanso e tão rapidamente que, em alguns meses, o nosso corpo é reconsti­tuído no todo.

Partindo de considerações fundadas nas atra­ções moleculares, tem-se calculado que, em uma gotinha minúscula de água obtida com o auxílio da ponta de um alfinete, gotinha invisível a olho nu, medindo um milésimo de milímetro cúbico, há mais de duzentos e vinte e cinco milhões de mo­léculas.

Em uma cabeça de alfinete não há menos de oito sextilhões de átomos, seja oito mil bilhões de bilhões, e esses átomos são separados uns dos outros por distâncias consideravelmente maiores do que as suas dimensões, sendo aliás essas dimensões invisíveis mesmo ao mais poderoso microscópio. Se quisesse contar o número desses átomos con­tidos em uma cabeça de alfinete, destacando-se, por pensamento, um milhar por segundo, fora necessário continuar essa operação durante dois mil quinhentos e trinta séculos para acabar a contagem.

Em uma gota de água, em uma cabeça de alfinete, há incomparavelmente mais átomos do que estrelas em todo o céu conhecido dos astrônomos - armados dos mais poderosos telescópios.

Quem sustenta, no vácuo eterno, a Terra, o Sol e todos os astros do Universo? Quem sustenta essa longa trave de ferro posta entre duas paredes e sobre a qual se vão edificar vários andares? Quem sustenta a forma de todos os corpos? A força.

O Universo, as coisas e as criaturas, tudo quanto vemos é formado de átomos invisíveis e imponderáveis. O Universo é um dinamismo. Deus é a alma universal: in eo vivimus, mover et sumrus. (Nele vivemos, nos movemos e existimos.)

De igual modo que a Alma é a força que move o corpo, assim o Ser Infinito é a Força que move o Universo! A teoria puramente mecânica do Uni­verso fica incompleta para a análise que penetra no fundo das coisas. A vontade humana é fraca, em verdade, com relação às forças cósmicas. En­tretanto, enviando um trem de Paris a Marselha, um navio de Marselha a Suez, eu desloco, livre­mente, uma parte infinitesimal da massa terrestre, e modifico o curso da Lua. Cegos do décimo-nono século, voltai ao Cisne de Mântua (Virgílio): agitat nwlem.

Se disseco a matéria, encontro, no fundo de tudo, o átomo invisível: a matéria desaparece, es­vai-se em fumo. Se os meus olhos tivessem o poder de divisar a realidade, veriam através das paredes, formadas de moléculas separadas, através dos corpos, turbilhões atômicos. Os nossos olhos de carne não vêem o que existe. E' com o olhar do Espírito que cumpre ver. Não nos fiemos no único testemunho dos nossos sentidos: há tantas estrelas acima de nossas cabeças durante o dia quantas há durante a noite.

Não há na Natureza nem astronomia, nem física, nem química, nem mecânica: esses são mé­todos subjetivos de observação. Há apenas uma única unidade. O infinitamente grande é idêntico ao infinitamente pequeno. O espaço é infinito sem ser grande. A duração é eterna sem ser longa. Estrelas e átomos são um.

A unidade do Universo é constituída pela força invisível, imponderável, imaterial, que move os átomos. Se um só destes cessasse de ser mo­vido pela força, o Universo estacaria. A Terra gira em torno do Sol, o Sol gravita em torno de um foco sideral, móvel também; os milhões, os bilhões de sóis que povoam o Universo correm com maior velocidade do que os projetis da pólvora; essas estrelas que nos parecem imóveis são outros tantos sóis arremessados no eterno vácuo, com a veloci­dade de dez, vinte, trinta milhões de quilômetros por dia, correndo todos para um fim ignorado, sóis, planetas, terras, satélites, cometas errantes... o ponto fixo, o centro de gravidade buscado pelo analista, foge à medida que o buscam, e na reali­dade não existe em parte alguma. Os átomos que constituem os corpos movem-se relativamente com a mesma velocidade que as estrelas no céu. O movimento tudo rege, tudo forma.

O átomo invisível é o ponto de aplicação da força.

O que constitui essencialmente o ser humano, o que o organiza, não é a sua substância material, não é nem o protoplasma, nem a célula, nem essas maravilhosas e fecundas associações do carbono com o hidrogênio, o oxigênio e o azoto; é a força anímica, invisível, imaterial. E' ela quem agrupa, dirige e retém associadas às inúmeras moléculas que compõem a admirável harmonia do corpo vi­vente.

A matéria e a energia jamais foram vistas separadas uma da outra; a existência de uma im­plica a existência da outra; há talvez identidade substancial de uma e de outra.

Que o corpo se desagregue de uma só vez após a morte, ou se desagregue lentamente e se renove perpetuamente durante a vida, pouco importa. A alma fica. O átomo psíquico organizador é e centro dessa força. Também ele é indestrutível.

O que vemos é enganador. O REAL. É O INVISÍVEL.

E começou a caminhar a largos passos. A moça o escutara com a atenção de quem escuta um apóstolo, um apóstolo muito querido, e, embora ele não tivesse, de fato, falado senão para ela, não parecera prestar atenção à sua presença, tão imóvel e silenciosa ela se conservara. Aproximou-se dele e tomou-lhe, nas suas, uma das mãos.

- Oh! disse, se ainda não conquistaste a Verdade, ela não te fugirá.

Depois, inflamando-se e aludindo a uma res­trição muitas vezes expressa por ele

- Acreditas, acrescentou, ser impossível ao homem terrestre atingir a Verdade, porque possuí­mos apenas cinco sentidos, e multidão de manifes­tações da Natureza ficam estranhas ao nosso Es­pírito, nenhum caminho tendo para chegar até eles. De idêntica forma que a vista nos seria negada se privados do nervo óptico, a audição sem o nervo acústico, etc., assim também as vibrações, as manifestações da força que passam entre as cordas do nosso instrumento orgânico, sem fazer vibrar as que existem, permanecem desconhecidas. Concedo, e admito contigo que os habitantes de certos mundos podem estar incomparavelmente mais adian­tados do que os da Terra. Parece-me, porém, que, embora terreal, achaste.

- Minha querida, respondeu ele, sentando-se junto dela no vasto divã da biblioteca, é certo que à nossa harpa terrestre faltam cordas, e é pro­vável que um cidadão do sistema de Sírius risse das nossa pretensões. O menor pedaço de ferro imantado é mais, forte do que Newton e do que Leibnitz, para achar o pólo magnético, e a ando­rinha conhece melhor do que Cristóvão Colombo ou Magalhães as variações da latitude. Que disse eu há pouco? Que as aparências são enganadoras e que através da matéria o nosso espírito deve ver a força invisível. E' o que há de mais verdadeiro. A Matéria não é o que parece, e nenhum homem instruído nos progressos das ciências positivas - poderia mais, hoje em dia, pretender-se materia­lista.

- Então, tornou ela, o átomo psíquico cere­bral, princípio do organismo humano, seria imortal. e assim todos os átomos, aliás, - se admitissem as asserções fundamentais da Química. Mas diferia dos outros por uma espécie de posição mais elevada, por lhe estar ligada à alma. E conservaria ele a consciência do seu existir? Seria a alma com­parável a uma substância elétrica? Vi certa vez o raio atravessar uma sala e apagar as luzes. Quan­do tornaram a acendê-las, verificou-se que a pên­dula tinha sido desdourada e que o lustre de prata cinzelada fora dourado em vários pontos. Há nisto uma força sutil.

- Não façamos comparações; ficariam mui distantes da realidade. Toda a luz que a Ciência pode trazer à Terra constitui uma fraca réstia, coada por debaixo da porta do - Desconhecido. Todos sabem que hão de morrer, mas não o acre­ditam. E poderíamos acreditar em tal? Podería­mos compreender a morte, não sendo ela, em reali­dade, mais do que uma mudança de estado - do conhecido para o desconhecido, do visível para o invisível? Que a alma existe no caráter de - for­ça - não há dúvida. Que ela constitui um todo - uno com o átomo cerebral organizador, podemos admiti-lo. Que sobreviva, assim, à dissolução do corpo, concebemo-lo.

- Mas em que se torna ela? Para onde vai?

- A maior parte das almas nem suspeita se­quer a sua própria existência. Sobre os mil e quatrocentos milhões de criaturas humanas que povoam o nosso planeta, noventa e nove centésimos não pensam. Que fariam eles, grandes Deuses! da imortalidade? A exemplo da molécula de ferro que flutua, sem sabê-lo, no sangue que pulsa sob as têm­poras de Lamartine ou de Hugo, ou permanece fixa por algum tempo na espada de César; símile da molécula de hidrogênio que brilha no gás da sala da ópera ou se imerge na gota de água engulida pelo peixe no escuro fundo dos mares; os átomos viventes, que jamais pensaram, dormitam.

As almas que pensam se conservam apaná­gios da vida intelectual. Guardam o patrimônio da Humanidade e o aumentam para o futuro. Sem essa imortalidade das almas humanas, que têm consciência do seu existir e vivem pelo Espírito, toda a história da Terra deveria terminar em nada, e a Criação inteira, tanto a dos mais sublimes mundos quanto à do nosso ínfimo planeta, seria um falaz absurdo, mais miserável e mais idiota do que o detrito de um verme do Subsolo. Ele tem razão de ser e o Universo não a teria! Imaginas tu os milhares de mundos, atingindo os esplendores da vida e do pensamento, para se sucederem sem fim na história do universo sideral, e não conse­guindo senão dar nascimento a esperanças perpetuamente esvaecidas, a grandezas perpetuamente aniquiladas? Achamos bem nos fazer humildes, não podemos admitir o nada por fim supremo do pro­gresso perpétuo, provado pela história toda da Natureza. As almas são as sementes das humanidades planetárias.

- Podem elas então transportar-se de um para outro mundo?

- Nada é tão difícil de compreender quanto o que se ignora; nada é mais simples do que aquilo que se conhece. Quem, em nossos dias, se admira de ver o telégrafo elétrico transmitir instantaneamente o pensamento humano através dos continen­tes e dos mares? Quem pasma de ver a atração lunar erguer as águas do Oceano e produzir as marés? Quem se surpreende de ver a luz transmi­tir-se de uma a outra estrela com a velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo? Quando muito, só os pensadores poderiam apreciar a gran­deza dessas maravilhas; o vulgo de nada se admira. Se algum descobrimento novo nos permitisse diri­gir amanhã sinais aos habitantes de Marte e rece­ber respostas, as três quartas partes dos homens, depois da amanhã, não ficariam surpreendidas.

Sim, as forças anímicas podem transportar­-se de um a outro mundo, não por toda à parte, nem sempre, certamente, e nem todas. Há leis e condições. A minha vontade pode levantar o meu braço, atirar uma pedra, com o auxílio dos músculos; se pego em um peso de vinte quilos, ela ainda levantará meu braço; se quiser erguer o peso de de mil quilos, não o poderei mais. Uns Espíritos são incapazes de qualquer atividade; outros têm adquirido faculdades transcendentes. Mozart, aos seis de idade, impunha a todos os ouvintes o poder de seu gênio musical, e aos oito publicava as duas primeiras sonatas, enquanto que o maior autor dramático que haja existido, Shakespeare, não ti­nha escrito ainda, antes dos seis lustros de idade, nenhuma peça digna do seu nome. Não se deve acreditar que a alma pertence a algum mundo sobrenatural. Está tudo na Natureza. Não há mais de mil séculos que a Humanidade terrestre se desprendeu da crisálida animal; durante deze­nas de milênios, no decurso da longa série histórica dos períodos primário, secundário e terciário, não havia na Terra um único pensamento para apre­ciar esses grandiosos espetáculos, um único olhar humano para contemplá-los. O progresso elevou lentamente as almas. A Natureza está em inces­sante progresso; o Universo é um perpétuo futuro; a ascensão é a lei suprema.

Todos os mundos, acrescentou ele, não são atualmente habitados. Uns estão na aurora, outros no crepúsculo. Em nosso sistema solar, por exem­plo, Marte, Vênus, Saturno e vários dos seus saté­lites parecem em plena atividade vital; Júpiter pa­rece não ter ultrapassado o seu período primário; a Lua já não tem, talvez, habitantes. Nossa época não tem mais importância na história geral do Universo do que o nosso formigueiro no Infinito. Antes da existência da Terra, houve, em toda a Eternidade, mundos povoados de Humanidades; quando o nosso planeta houver exalado o último alento, e a derradeira família humana adormecer no definitivo sono, à borda da última lagoa do Oceano gelado, inúmeros sóis rutilarão sempre no Infinito, e haverá sempre manhãs e tardes, prima­veras e flores, esperanças e alegrias. Outros sóis, outras Terras, outras Humanidades. O Espaço, sem limites, é povoado de túmulos e de berços. Mas a vida, o pensamento e o progresso eterno são a meta da Criação.

A Terra é o satélite de uma estrela. Pre­sentemente, e também no futuro, somos cidadãos do céu. Saibamo-lo ou ignoremo-lo, em realidade vivemos nas estrelas.

Assim se entretinham os dois amigos a pro­pósito dos graves problemas que lhes preocupavam o pensamento. Quando conquistavam alguma solu­ção, embora incompleta, experimentavam verda­deira felicidade, por terem dado um passo mais na indagação do ignoto, e podiam mais tranquilamente conversar depois sobre outras coisas, habituais da vida. Eram dois Espíritos igualmente sequiosos de saber, imaginando, com todo o ardor da mocidade, poderem isolar-se do mundo, dominar as impressões humanas, e, em seu celeste vôo, atingir a estrela da Verdade, que lhes cintilava por cima das cabeças nas profundezas do Infinito.

IV

A M O R

Nessa convivência a dois, por mais íntima, por mais sedutora que fosse, alguma coisa faltava. Essas conversações sobre os formidáveis problemas do ser e do não ser, as trocas de idéias sobre a análise da Humanidade, as pesquisas sobre a meta final de existência das coisas, as contemplações astronômicas e as questões que elas inspiram, sa­tisfaziam, ás vezes, o Espírito, porém não ao co­ração. Quando, ao lado um do outro, tinham lon­gamente conversado, quer sob o caramanchel do jardim que dominava o quadro da grande cidade, ou na silenciosa biblioteca, o estudante -, o pes­quisador não podia desprender-se da companheira, e ficavam ambos, de mãos dadas, calados, atraídos, presos por dominadora força. Ele a contemplava bem nos olhos, e, não ousando ficar muito tempo sob o encanto delicioso, inventava um pretexto para deixá-la, e em breve de novo vinha para junto dela, admirando esse poema da vida, esses olhos ani­mados de luz celeste, a boca ideal cuja viva colo­ração fazia- pensar nas cerejas maduras, na carne nacarada, opalina, diáfana, onde transparecia, por vezes, rápida, a circulação do sangue vermelho re­primido dificilmente pelo império da vontade.

Depois da partida, um e outro sentiam sin­gular, doloroso vazio no peito, um mal-estar indefinível, como se lhes houvesse sido despedaçado um laço necessário à mútua existência; e, tanto um quanto o outro, não aspiravam senão à hora do reencontro. Ele a amava, não por si próprio, mas por ela, com afeto quase impessoal, em um senti­mento de tão profunda estima quanto de ardente amor, e, por uma luta de todos os instantes contra as atrações da carne, tinha sabido resistir. Um dia, porém, em que estavam sentados lado a lado um do outro, no espaçoso divã da biblioteca, cheio, conforme era já costume, de livros e folhas soltas, conservando-se calados, aconteceu que, sobrecarre­gada sem dúvida de todo o peso de esforços, con­centrados desde tanto tempo, para resistir a uma atração demasiado irresistível, a cabeça do jovem autor inclinou-se insensivelmente sobre a espádua da companheira e, quase logo... os lábios deles se encontraram.

Oh! indizíveis júbilos do amor partilhado! ebriedade do ser sedento de ventura, transportes sem fim da imaginação não vencida, suave música dos corações, a que etéreas alturas não tendes erguido os eleitos abandonados a vossas supremas felicidades! Subitamente esquecidos da Terra infe­rior, voam a asas soltas, nos paramos encantados, perdem-se nas profundezas celestes, e pairam nas sublimes regiões do eterno enlevo. Para eles não mais existe o mundo com suas comédias e suas misérias. Ventura radiosa! Vivem na luz, no fogo, salamandras, fênix, livres de todo peso, leves qual a flama, consumindo-se eles próprios, renascendo das próprias cinzas, sempre luminosos, sempre ar­dentes, invulneráveis, invencíveis.

A expansão tão longamente contida desses pri­meiros transportes lançou a ambos em uma vida de êxtase, que os fez, por momento, esquecer a metafísica e os seus problemas. Esse instante durou seis meses. O mais suave, porém, o mais imperioso dos sentimentos viera completar neles as insufi­cientes satisfações intelectuais do Espírito, e de uma só vez os absorvera, aniquilara quase. A datar do dia do beijo, Jorge Spero, não somente desapareceu de todo da cena do mundo, mas ainda cessou de escrever, e eu próprio o perdi de vista, apesar da longa e real afeição que ele me teste­munhara. Daí teriam podido os lógicos concluir que, pela primeira vez na vida, estava ele satisfeito, e achara a solução do grande problema, o supremo fim da existência dos seres.

Viviam desse egoísmo a dois que, afastando a Humanidade do nosso centro ótico, diminui os seus defeitos e a faz parecer mais amável e mais bela. Satisfeitos com o mútuo afeto, tudo lhes can­tava, na Natureza e na Humanidade, um perpétuo cântico de ventura e de amor.

Muitas vezes, ao cair da tarde, saíam, seguin­do o curso do Sena, e iam contemplar, sonhando, os maravilhosos efeitos de luz e de sombra que adornam o céu de Paris, tão admirável no cre­púsculo, à hora em que os perfis das torres e dos edifícios se projetam em negro no luminoso fundo do ocidente. Nuvens rosadas e purpúreas, ilumi­nadas pelo reflexo longínquo do mar, sobre o qual brilha, precisamente há essa hora, o Sol desapare­cido, dão ao nosso céu um cunho especial, que não é o do Nápoles, banhado no Ocidente pelo espelho mediterrâneo, mas excede talvez o de Veneza, cuja iluminação é oriental e pálida. Seja porque os seus passos fossem conduzidos para a antiga ilha da Cité, e descessem o curso do rio, passando à vista de Notre-Dame e do velho Châtelet, que alon­gava o perfil no firmamento ainda luminoso; ou porque, atraídos pelo esplendor do ocaso e pela campina, houvessem descido os cais até além das. trincheiras da imensa cidade, e se tivessem desgarrado até às solidões de Boulogne e de Bilan­court, fechadas pelas negras encostas de Meudon e de Saint-Cloud - contemplavam a Natureza, es­queciam a ruidosa cidade perdida para atrás deles, e caminhavam a passo igual, formando um ser único, recebiam, simultâneas, as mesmas impres­sões; pensavam os mesmos pensamentos e, em si­lêncio, falavam a mesma linguagem. O rio corria a seus pés, os ruídos do dia se extinguiam, as primeiras estrelas luziam no céu. Icleia gostava de nomeá-las a Jorge à proporção que iam aparecendo.

Março e Abril oferecem muitas vezes em Paris serenas tardes em que circula o primeiro sopro precursor da primavera. As brilhantes estrelas de Orion, o fulgurante Sírius, os Gêmeos Castor e Pólux cintilam no céu imenso; as Plêiades bai­xam para o horizonte ocidental, mas Arctúrus e o Boieiro, pastor dos celestes rebanhos, voltam, e al­gumas horas mais tarde a branca e resplandecente Vega se ergue no horizonte oriental, seguida em breve pela Via-láctea. Arctúrus, de raios de ouro, era sempre a primeira estrela identificada, pelo seu penetrante brilho e pela sua posição no pro­longamento da cauda da Grande-Ursa. Às vezes, o crescente lunar pairava no céu ocidental, e a jovem contempladora admirava, tal qual outrora Rut junto de Booz, a foice de ouro no campo das estrelas.

As estrelas envolvem a Terra; a Terra está no céu. Spero e sua companheira bem o sentiam, e em nenhuma outra terra celeste, talvez, vivia um par mais intimamente do que eles no Céu e no Infinito.

Insensivelmente, entretanto, sem talvez aper­ceber-se, o jovem filósofo retomou, gradualmente, por fragmentos retalhados, seus estudos interrom­pidos, analisando agora as coisas com profundo sentimento de otimismo, que não havia conhecido ainda, apesar da sua bondade natural, eliminando as conclusões cruéis, porque lhe pareciam devidas a conhecimento incompleto das causas, contemplan­do os panoramas da Natureza e da Humanidade sob nova luz. Ela continuara também, ao menos parcialmente, os estudos começados em comum; mas, um sentimento novo, imenso, lhe enchia a alma, e seu espírito já não tinha a mesma liberdade para o trabalho intelectual. Absorta nessa afeição de todos os momentos, por um ente que inteira­mente conquistara, não via senão pelos olhos dele, só procedia por ele inspirada. Durante as horas calmas da noite, quando se sentava ao piano, para tocar uma sonata de Chopin, que se admirava de não ter compreendido antes de amar, ou para acom­panhar-se cantando, com a sua tão pura e extensa voz, as romanças noruegueses de Grieg e de Bull, ou ainda as melodias do nosso Gounod, parecia-lhe, sem o perceber talvez, que o seu amado era o único ouvinte capaz de compreender aquelas inspirações do coração. Que horas deliciosas passou ele, na ampla biblioteca da casa de Passy, estendido no divã, seguindo às vezes com o olhar as caprichosas volutas da fumaça de um cigarro do Oriente, en­quanto, entregue às reminiscências de sua fantasia, ela cantava o suave Saetergientes do seu país, a serenata de Dom Juan, o Lago de Lamar­tine, ou então quando, deixando correr os hábeis dedos pelo teclado, fazia voar no ar o melodioso sonho do minueto de Boccherini !

Chegara à primavera. O mês de Maio tinha visto abrirem-se em Paris as festas da Exposição Universal de que falamos em começo desta narra­tiva, e as alturas do jardim de Passy abrigavam o Éden do amoroso par. O pai de Icleia, que fora subitamente chamado à Tunísia, regressara trazendo uma coleção de armas árabes para o seu museu de Cristiânia. Era intenção sua voltar dentro em bre­ve à Noruega, e ficara combinado entre a moça e seu amado que o casamento se efetuaria na sua Pátria, na data aniversária da misteriosa aparição.

O amor deles era, por sua própria natureza, muito diverso de todas essas triviais uniões fun­dadas, umas no grosseiro prazer sensual, ou sobre a ociosidade mundana e os caprichos de um mo­mento, outras em interesses mais ou menos disfarçados, que representam a maior parte dos amores humanos. Seu espírito cultivado os isolava nas regiões superiores do pensamento; a delicadeza de seus sentimentos mantinha-os em atmosfera ideal, onde todas as suas sensações os mergulhavam em êxtases cujo enlevo parecia infinito. Se ama em outros mundos, o amor ali não pode ser nem mais profundo, nem mais delicado. Para um fisiologista teriam sido o testemunho vivo de que, contrariamente à apreciação vulgar, todos os gozos nascem do cérebro, correspondendo à sensibilidade psíquica da criatura a intensidade das sensações.

Paris era para eles, não uma cidade, não um mundo, mas o teatro da história humana. Ali revi­veram eles os séculos desaparecidos. Passaram lon­gas horas no recinto dos nossos admiráveis museus, principalmente entre as obras-primas do grande Louvre, onde a Arte parecia haver eternizado toda a história do pensamento. Essas maravilhosas ga­lerias do Louvre guardavam, mais ainda do que as de Versalhes, a atmosfera dos reais esplendores. Gostavam de reencontrar-se ali, pois viam reviver, do meio dos vestígios do velho Paris, os séculos de há muito desaparecidos. Os velhos bairros, não destruídos ainda pelas transformações modernas, a Cité com a Notre-Dane, Sannt-Julien-le-Pauvre, cujas paredes recordam ainda Childerico e Frede­gonda, as antigas moradas onde habitaram Alberto o Grande, o Dante, Petrarca, Abelardo, a velha Universidade, anterior a Sorbona, e dos próprios séculos desaparecidos, o claustro Sannt-Merry com seus sombrios corredores, a abadia de Sannt-Martin, a torre de Clóvis na montanha Santa Genoveva, Sannt-Germain-des-Préa, lembrança dos Merovin­gios, Sannt-Germain- Auserrois, cujo campanário tocou o rebate do São Bartolomeu, a capela Angélica de Luís IX; todas as reminiscências da história de França foram objeto de suas peregrinações. Em meio das multidões, isolavam-se na contemplação do passado e viam o que quase ninguém sabe ver.

Assim, a imensa cidade lhes falava a sua lin­guagem de outrora, quando, perdidos entre as qui­meras, as grifas, as colunas, os capitéis, os arabes­cos das torres e das galerias de Norte-Dame, viam a seus pés a colméia humana adormecer na bruma da tarde, ou quando, elevando-se ainda mais, pro­curavam, do alto do Panteão, reconstituir a antiga forma de Paris e seu desenvolvimento secular, des­de os imperadores romanos que habitavam as Termas até Filipe Augusto é seus sucessores.

O sol da primavera, os lilases em flor, as ale­gres manhãs de Maio cheias do canto dos pássaros, de excitações nervosas, levavam ambos, às vezes, longe de Paris, ao acaso, pelos bosques. As horas escoavam qual o sopro das brisas; o dia findava, e a noite continuava o divino sonho de amor. No mundo redomoinhante de Júpiter, onde os dias e as noites passam duas vezes mais rápidos do que aqui e nem duram mesmo dez horas, os namorados não vêem as horas fugir mais velozes. A medida do tempo está na criatura.

Certa tarde, estavam ambos sentados na co­berta sem parapeito da velha torre do castelo de Chavreuse, aconchegados um ao outro, no centro, donde sem obstáculo se dominava toda paisagem em torno. O ar subia tépido do vale, impregnado dos silvestres perfumes das matas vizinhas; a ca­lhandra cantava ainda, e o rouxinol ensaiava, na sombra nascente dos bosques, o melodioso cântico às estrelas. O Sol acabava de esconder-se em um deslumbramento de ouro e escarlate, e só o Ocidente­ se conservava iluminado de uma luz ainda intensa.

Tudo parecia adormecer no regaço da imensa Na­tureza.

Um tanto pálida, mas iluminada pela luz do céu ocidental, Icleia parecia penetrada pelo dia e iluminada interiormente, tão clara, delicada, ideal era a sua carnação. Com os olhos afogados em vaporosa languidez, com a boquinha infantil leve­mente entreaberta, parecia perdida na contempla­ção da luz ocidental. Apoiada ao peito de Spero, enlaçando-lhe nos braços o pescoço, entregava-se ao seu cismar, quando uma estrela cadente atra­vessou o céu precisamente por cima da torre. A moça estremeceu, um tanto supersticiosa. Já as mais brilhantes estrelas surgiam na profundeza dos céus: muito alto, quase no zênite, Arctúrus, de fulgurante amarelo de ouro; para o Oriente, bas­tante elevada, Vega, de cândida alvura; ao Norte, Capela; no Ocidente, Castor, Pólux e Prócion. Co­meçava-se a distinguir também as sete estrelas da Grande-Ursa, a Arista da Virgem, Régulo. Insen­sivelmente, uma por uma, as estrelas vinham pon­tuar o firmamento. A estrela polar indicava o único ponto imóvel da esfera celeste. Surgia a Lua, com o seu disco levemente avermelhado, atingido pela face minguante. Marte brilhava entre Pólux e Régulo, ao Sudoeste; Saturno ao Sueste. O crepúsculo dava lentamente lugar ao misterioso reino da noite.

- Não achas, disse ela, que todos esses astros são como que outros tantos olhos que nos estão olhando ?

- Olhos celestes iguais aos teus. Que podem eles ver na Terra mais belo do que tu... e do que o nosso amor?

- Entretanto...

- Sim, entretanto o mundo, a família, a sociedade, os usos, as leis da moral, que sei eu? Compreendo teus pensamentos. Temos esquecido todas essas coisas para obedecer unicamente a atra­ção, igual ao que acontece com o Sol, com todos os astros, com o rouxinol que está cantando, com a Natureza inteira. Em breve daremos a esses usos sociais o quinhão que lhes pertence, e pode­remos proclamar abertamente o nosso amor. Se­remos por isso mais ditosos? E' possível ser mais feliz do que o somos neste momento?

- Sou tua, respondeu ela. Não existo em mim; estou aniquilada na tua luz, no teu amor, na tua felicidade, e nada mais desejo. Não. Eu pen­sava nessas estrelas, nesses olhos que nos fitam, e a mim própria perguntava onde estão hoje todos os olhos humanos que as têm contemplado, desde há milhares de séculos, tal qual estamos fazendo neste crepúsculo; onde estão todos os corações que têm batido, qual neste momento bate o nosso co­ração; onde estão todas as almas que se confun­diram em beijos sem fim no mistério dás noites sumidas!

- Existem todos. Nada pode ser destruído. Nós outros associamos o Céu e a Terra, e temos razão. Em todos os séculos, em todos os povos, entre todas as crenças, tem a Humanidade pergun­tado sempre a esse firmamento estrelado o segredo dos seus destinos. Era uma espécie de adivinhação. A Terra é um astro da abóbada celeste, tanto quanto Marte e Saturno, que enxergamos além, ter­ras do céu, escuras, iluminadas pelo mesmo sol que nos clareia, e tanto quanto todas essas estrelas, longínquos sóis. O teu pensamento traduz o que a Humanidade tem pensado desde que existe. Todos os olhares hão buscado na esfera constelada a resposta ao grande enigma, e, desde os primeiros dias da mitologia, é Urânia quem tem respondido. E é ela, a divina Urânia, quem há de responder sem­pre. Têm nas mãos o Céu e a Terra; faz mover-nos no infinito... E depois, personificando nela o es­tudo do Universo, o sentimento poético de nossos pais não parece ter querido, completar a ciência com a vida, a graça e o amor? E' ela a musa por excelência. Sua beleza parece dizer que, para com­preender verdadeiramente a Astronomia e o Infi­nito, é mister... estar apaixonado.

Ia cair à noite. A Lua, elevando-se vagarosa no céu oriental, derramava na atmosfera uma cla­ridade que, insensivelmente, ia substituindo a do crepúsculo, e já na cidade, sob eles, entre as arvores e as ruínas, algumas luzes apareciam aqui e além. Tinham-se erguido e conservado de pé, no centro do alto da torre, estreitamente emaçados. Estava ela formosa, emoldurada na auréola dos cabelos, cujos anéis lhe flutuavam sobre as espá­duas; baforadas de ar primaveril, impregnadas dos perfumes das violetas, dos cravos, dos lírios e das rosas de Maio, subiam dos jardins vizinhos; as tépida volúpias das noites merencórias voavam rumo das estrelas, com seus odores e suas brisas. Cer­cavam-nos a solidão e o silêncio. Um longo beijo, o centésimo, pelo menos, daquele carinhoso dia de primavera, uniu os lábios de ambos.

Ela meditava ainda. Fugaz sorriso iluminou­-lhe de súbito o semblante e passou, esvaindo-se qual uma imagem que se some.

- Em que pensas? perguntou ele.

- Oh! em nada. Uma idéia mundana, profa­na, um tanto frívola.

- Mas que idéia? insistiu ele, tomando-a nos braços.

- Pois bem! a mim própria perguntava se ...nesses outros mundos se tem boca... porque, vês tu? o beijo... os lábios...

Assim se passavam as horas, os dias, as se­manas, os meses, em uma união íntima de todos os seus pensamentos, de todas as suas sensações, das suas impressões totais. Guiados por idêntico desdém pelas paixões vulgares, e por uma inda­gação instintiva dos belos quadros que a Natureza terrestre podia oferecer ao divino romance de seus corações, - remediavam muitas vezes bastante lon­ge da agitação humana, rumo das solitudes pro­fundas dos bosques ou dos sublimes espetáculos do mar. As ravinas sombreadas da floresta de Fon­tainebleau; as margens calmas e aprazíveis que bordam o Sena; as quietudes agrestes tapeçadas de urzes e foliáceas; os arroios murmurantes dos vales de Cernay; o quieto parque de Rambouillet; as velhas torres feudais de Etampes e de Mont­lhéry; a foz do Sena ao Havre; os valezinhos de Saint-Adresse; o cabo de Hève - dominando o horizonte do mar; as penedias esverdeadas de Gran­ville, projetadas por cima do abismo; os antigos baluartes do Mont-Saint-Michel, envoltos pela vaga das marés, e as maravilhas de sua abadia erguida para as nuvens; - serviram alternativamente de teatro às excursões curiosas de ambos, nas quais, à semelhança de dois pássaros ávidos de liberdade e de amor, iam sonhar, cantar, adormecer, cantar e sonhar ainda. Intensas claridades de luar, de luz madreperolada, pôr-de-sol, de ouro flamígero ; e vós, silenciosas estrelas da Noite que cintilais no alto dos mares insondáveis, - jamais olhares tão encantados se abriram ante vós, jamais corações humanos palpitaram em comunhão assim íntima com o eterno sopro do amor que maneja o mundo.

O sol de Julho luzia já no solstício, e era chegado o momento da partida para a Pátria de Icleia. Na época marcada, partiu ela com o pai para Cristiânia. Mas, podiam eles ficar muito tempo sepa­rados? Se, em aritmética, um e mais um fazem dois, pode-se dizer que, em amor, um e um fa­zem um.

Spero seguiu alguns dias depois. A intenção do jovem sábio era passar na Noruega os meses de Agosto e Setembro, e continuar ali os estudos que empreendera no ano anterior sobre a eletrici­dade atmosférica e sobre as auroras boreais, obser­vações tão particularmente interessantes para ele, e que tivera tido apenas tempo de encetar.

Essa estada na Noruega foi à continuação do mais doce dos sonhos. Visitaram juntos os lagos solitários e silenciosos; as colinas selváticas, co­bertas de plantas rasteiras; as vastas e merencórias paisagens que lembram a Escócia cantada por Ossian na lira dos bardos antigos. Tudo lhes fa­lava de Infinito e de Amor. A loura filha do Norte envolvia o noivo em uma auréola de perpétua se­dução, que talvez lhe houvesse feito esquecer para sempre os atrativos da Ciência, se ela própria não tivesse, conforme vimos, insaciável gosto pessoal pelo estudo. As experiências gire o infatigável in­vestigador empreendera sobre a eletricidade atmos­férica interessaram-na tanto quanto a ele, e não tardou a tomar parte nos labores, associando-se com a dedicação de auxiliar devotada às curiosas experiências. Quis também conhecer a natureza dessas misteriosas flamas da aurora boreal que vêm à noite palpitar nas alturas da atmosfera, e, porque a série dessas pesquisas o levassem a de­sejar uma ascensão em aeróstato, destinada a ir surpreender o fenômeno em sua origem, teve tam­bém o mesmo desejo. Tentou ele dissuadi-Ia, não sendo destituídas de perigo as experiências aeronáuticas. Mas, só a idéia de um perigo a partilhar teria bastado para torná-la surda às súplicas do bem-amado. Após longas hesitações, Spero deci­diu levá-la, e preparou, na Universidade de Cristiânia, uma ascensão para a primeira noite de aurora boreal.

V

A AURORA BOREAL

As perturbações da agulha imanada haviam anunciado a chegada da aurora antes mesmo do ocaso do Sol, e se começara a encher o aeróstato com gás hidrogênio puro, quando, com efeito, o céu deixou perceber ao Norte magnético a colo­ração de ouro verde transparente, que é sempre o índice certo de uma aurora boreal. Em al­gumas horas ficaram terminados os preparativos. A atmosfera, inteiramente despida de nuvens, es­tava de perfeita limpidez; as estrelas cintilavam nos céus, no seio de profunda escuridão, sem Lua, atenuada apenas para o Norte por suave clari­dade, que se levantava em arco acima de um segmento escuro, e lançava nas alturas do éter tênues jactos cor de rosa e um tanto verdes, que pareciam as palpitações de uma vida desconhecida. O pai de Icleia, que assistia ao enchimento do balão, não desconfiava da partida da filha; no último momento, porém, entrou ela na barquinha, parecendo que ia para Visitá-la; Spero deu o sinal, e o aeróstato levantou-se lenta, majestosamente, acima da cidade de Cristiânia, que apareceu, ilumi­nada por milhares de luzes, abaixo dos dois via­jantes aéreos, e foi diminuindo de tamanho ao afastar-se na negra profundidade.

Dentro em pouco, o aeróstato, levado por uma ascensão oblíqua, pairou por cima das caliginosas campinas, e os clarões vacilantes desapareceram.

O ruído da cidade distanciara-se ao mesmo tempo; profundo silêncio, o silêncio absoluto das alturas, envolveu o navio aéreo. Impressionada por esse silêncio sem igual, principalmente talvez pela novi­dade da situação, Icleia aconchegava-se ao peito do temerário amigo. Subiam rapidamente. A auro­ra boreal parecia descer, estendendo-se sob as es­trelas, qual ondulante panejamento de chamalote de ouro e púrpura, sacudido de frêmitos elétricos. Com o auxilio de uma esferazinha de cristal onde foram metidos pirilampos, Spero observava os ins­trumentos e inscrevia as indicações corresponden­tes às alturas atingidas. O aeróstato continuava a subir. Que imensa satisfação para o investigador! Dentro de poucos minutos, ia pairar no cimo da aurora boreal, ia encontrar resposta à questão da altura da aurora, em vão exposta por tantos físicos, e principalmente pelos seus amados mestres, os dois grandes psicólogos e filósofos Ersted e Am­père.

A emoção de Icleia acalmara.

Tiveste medo? perguntou o noivo. O aerós­tato é seguro. Nenhum acidente há que recear. Tudo está calculado. Dentro de uma hora descere­mos. Não há nem sombra de vento na Terra.

- Não, respondeu ela, enquanto que celeste clarão a iluminava com transparente luz rosada. Mas é tão estranho, é tão belo, tão divino! E é tão grande para mim, que sou tão pequena! Tremi um momento. Parece-me -que te amo mais do que nunca...

E, lançando-lhe os braços em torno do pescoço, cingiu-o em um amplexo apaixonado, longo, sem fim.

O aeróstato solitário vogava em silêncio nas alturas aéreas, esfera de gás transparente encer­rada em tênue envoltório de seda, cujas zonas verticais se podiam distinguir, reunindo-se todas em cima, no círculo da válvula, ficando a parte inferior largamente aberta pela dilatação do gás. A indecisa claridade que cai das estrelas, de que fala Corneile, teria bastado, em falta dos clarões da aurora boreal, para permitir que se distinguisse o conjunto do esquife aéreo. A barquinha, suspensa na rede que envolvia a esfera de seda, estava presa com o auxílio de oito sólidas cordas, tecidas no vime da própria barquinha e passando sob os pés dos ocupantes. O silêncio era profundo, solene; te-se-ia podido ouvir as pulsações do coração. Os últimos ruídos da Terra haviam desaparecido. Va­gava-se a cinco mil metros de altura, com uma velocidade desconhecida, levando o vento superior o navio aéreo sem que se lhe sentisse o menor sopro na barquinha, pois o balão é imergido no ar que caminha, no grau de uma simples molécula relativamente imóvel na corrente que o arrebata. Únicos habitantes daquelas regiões sublimes, os nossos dois viajantes gozavam a situação da deliciosa felicidade que os aeronautas conhecem, quan­do têm respirado aquele ar vivo e leve, dominadas as regiões baixas, esquecidas no silêncio dos es­paços todas as vulgaridades da vida terrestre; e, melhor do que nenhum de seus predecessores, apre­ciavam essa situação única, duplicando-a, decuplan­do-a pelo sentimento de sua pessoal ventura. Fa­lavam em voz baixa, como se receassem ser ouvidos dos anjos e ver esvair-se o encanto mágico que os mantinha suspensos na vizinhança do céu... Às vezes, uns clarões repentinos, raios da aurora bo­real, vinham feri-los, e depois tudo recaía nova­mente na escuridão mais profunda e mais inson­dável.

Vogavam assim no seu sonho estrelado, quan­do súbito ruído lhes veio ferir os ouvidos, qual um sibilo surdo. Prestaram atenção, debruçaram­-se à borda da barquinha, escutaram. O ruído não vinha da Terra. Seria um murmúrio elétrico da aurora boreal? seria alguma tempestade magné­tica nas alturas? Parecia que do fundo do Espaço chegavam relâmpagos, que os envolviam e se es­vaíam. Escutaram, ofegantes. O ruído era perti­nho deles... Era o gás que se escapava do aerós­tato.

Fosse que a válvula se tivesse entreaberto por si mesma, fosse que, em seus movimentos, eles houvessem exercido pressão na corda, o gás fugia!

Spero percebeu logo a causa do temeroso ruído, mas o foi com terror, pois era impossível fechar a válvula. Examinou o barômetro, que começava a subir vagarosamente: o aeróstato começava, pois, a descer. E a queda, a princípio lenta, mas ine­vitável, devia ir aumentando em proporção mate­mática. Sondando o Espaço inferior, viu os clarões da aurora boreal refletirem-se no límpido espelho de um lago imenso.

O balão descia com velocidade e não estava mais do que a três mil metros do solo. Conser­vando na aparência toda a calma, mas sem con­servar ilusão sobre a iminência da catástrofe, o infeliz aeronauta lançou sucessivamente por cima da borda os dois sacos de lastro que restavam, as coberturas, os instrumentos, a âncora, e pôs vazia a barquinha; esse alívio insuficiente, porém, não serviu senão para diminuir por momento a velocidade adquirida. Descendo, ou antes, caindo agora com inaudita rapidez, depressa chegou o balão a algumas centenas de metros acima do lago. Intenso vento começou a soprar de baixo para cima e a sibilar-lhes nos ouvidos.

O aeróstato redemoinhou sobre si mesmo, qual se fosse arrebatado por uma tromba. De repente sentiu Jorge Spero um violento abraço, um longo beijo nos lábios

- Meu senhor, meu Deus, meu tudo, amo-te exclamou Icleia.

E, afastando duas cordas, precipitou-se no vácuo.

O balão, aliviada, tornou a subir feito uma flecha: Spero estava salvo.

A queda de Icleia na profunda água do lago produziu um ruído surdo, estranho, horrível, em meio do silêncio da noite. Louco de dor e de deseSpero, sentindo os cabelos eriçados no crânio, abrin­do os olhos, sem ver nada, arrebatado pelo aerós­tato a mais de mil metros de altura, o desventurado suspendeu-se à corda da válvula, na esperança de voltar ao ponto da catástrofe; a corda, porém, não funcionou. Procurou, tateou sem resultado. Sob a mão encontrou o véu de sua amada, que ficara preso a uma das cordas, tênue véu perfumado, im­pregnado ainda do inebriante perfume da formosa companheira; olhou bem para as cordas, julgou encontrar nelas os sinais das mãozinhas crispadas, e, pondo as suas no mesmo lugar onde, segundos antes, Icleia pusera as dela, precipitou-se.

Um pé lhe ficou, por momento, preso em uma das cordas; mas teve forças para desprender-se, e caiu no Espaço, redemoinhando.

Uma barca de pescador, que assistira ao fim do drama, fizera força de velas para o ponto do lago onde a moça se precipitara, e conseguira achá-la e recolhê-la. Não estava morta. Mas todos os cuidados que lhe foram prodigalizados não im­pediram que a febre a acometesse. Os pescadores chegaram pela manhã a um pequeno porto à borda do lago e transportaram-na para a modesta caba­na, sem que ela houvesse recuperado os sentidos. Jorge! dizia, abrindo desmedidamente os olhos, Jorge! e nada mais. No dia seguinte, ouviu o sino da aldeia dobrar a finados. Jorge! repetia, Jorge. Deste, haviam achado o corpo, em estado de mas­sa informe, a alguma distância da praia. A queda do infeliz, de mais de mil metros de altura, come­çara por cima do lago; mas, conservando,o corpo a velocidade horizontal adquirida pelo aeróstato, não caíra verticalmente: descera em sentido oblíquo, qual se houvesse resvalado ao longo de um fio, seguindo o balão na marcha, e caíra, massa preci­pitada do céu, em um prado que bordava a mar­gem do lago; marcara profundamente no solo o sinal do corpo e saltara para mais de um metro do ponto da queda; os próprios ossos estavam esmi­galhados e o cérebro saíra pela fronte. A sua sepultura se fechara apenas, quando se teve de abrir, ao lado, a de Icleia, que morrera repetindo, com voz extinta: Jorge! Jorge!

Uma única pedra cobriu as duas sepulturas, e o mesmo salgueiro estendeu por sobre o sono de ambos a sua sombra. Ainda hoje, os ribeirinhos do belo lago de Tyrifjorden conservam nos cora­ções a tristonha lembrança da catástrofe, que se tornou quase lendária, e não mostram a lousa se­pulcral ao viajante sem que se associe à memória o pesar de um suave sonho esvaecido.

VI

O Progresso Eterno

Os dias, as semanas, os meses, as estações, o ano, passam depressa neste planeta, e sem duvida também nos outros. Mais de vinte vezes já a Terra percorreu a sua revolução anual em torno do Sol, depois do dia em que o destino fechou tão tragicamente o livro que os dois amigos liam havia, então, menos de um ano: rápida lhes foi à ventura, a sua alvorada se esvaiu igual a uma aurora. Tinha-os eu, senão esquecido (1), ao menos per­dido de vista, quando recentissimamente, em uma sessão de hipnotismo, em Nancy, onde me detive alguns dias em viagem para os Vosges, tive a curiosidade de interrogar um paciente, com o auxilio do qual os sábios experimentadores da Aca­demia Stanislau haviam obtido alguns desses re­sultados verdadeiramente pasmosos, de que a im­prensa científica nos fala desde há alguns tempos. Não recordo já como aconteceu que a conversação se entabulou entre mim e ele acerca do planeta Marte.

Depois de me haver feito a descrição de região ribeirinha de um mar conhecido dos astrônomos pelo nome de mar da Ampulheta, e de uma ilha solitária que se ergue no seio desse oceano; depois de ter descrito as paisagens pitorescas e a vege­tação avermelhada que ornam essas margens; as encostas batidas pelas ondas e as praias arenosas aonde vêm expirar as vagas, esse paciente, de extre­ma sensibilidade, empalideceu de súbito e levou a mão à fronte; seus olhos se fecharam, as sobran­celhas se lhe contraíram; parecia querer agarrar uma idéia fugitiva que se obstinava em fuga. Veja! exclamou o Dr. B . . . , postando-se defronte dele, em tom de ordem formal. Veja! eu o quero!

- O senhor tem amigos lá, disse-me ele.

- Isso não me surpreende, repliquei rindo. Bastante hei feito por eles.

- Dois amigos, acrescentou, que neste mo­mento estão falando a seu respeito.

- Oh! oh! pessoas que me conhecem?

- Sim.

- E de que modo?

- Conheceram-no aqui.

- Aqui?

- Sim, na Terra.

- Ah! ... E há muito tempo?

- Não sei.

- Desde quando habitam Marte?

- Não sei.

- São moços?

- São, dois enamorados que se adoram. Então as imagens sedutoras dos meus saudosos amigos traçaram-se vivas no meu pensamento. Apenas, porém, e mal as havia eu entrevisto, o paciente exclamou, desta vez em timbre mais firme

- São eles

- E porque o sabe?

- Vejo-o. São as mesmas Almas. As mes­mas cores.

- As mesmas cores? !

- Sim, as almas são luz.

Decorridos alguns instantes, acrescentou

- Contudo, há uma diferença.

Calou-se, com a fronte, dir-se-ia, a procurar. Mas, recuperando o semblante toda a calma, toda a serenidade, acrescentou:

- Ele se tornou ela, a mulher. Ela é agora ele, o homem. E se amam ainda mais do que se amavam outrora.

Como não houvesse ele próprio compreendido o que acabava de dizer, pareceu procurar uma explicação, fez penosos esforços, a julgar-se pela contração de todos os músculos do semblante, e caiu em uma espécie de catalepsia, da qual o Dr. B. não tardou a livrá-lo. O momento lúcido, porém, tinha fugido e não voltou mais.

Terminando, entrego este último fato aos lei­tores desta narrativa, tal qual ele se passou a meus olhos, e sem comentários. Pela hipótese atualmente admitida por vários hipnotistas, teria o paciente sofrido a influência de meu pensamento, quando o professor lhe ordenou me respondesse? Ou, mais autônomo, verdadeiramente se desligara e tinha visto além da nossa esfera? Não tomo a permissão de decidi-lo. Talvez se venha a sabê-lo pelo seguimento da narração.

Entretanto, confessarei, com toda a sinceri­dade, que a ressurreição do meu amigo e de sua adorada companheira no mundo de Marte, morada vizinha da nossa, e tão notavelmente semelhante a que habitamos, embora mais antiga e adiantada sem dúvida na senda do progresso, - pode parecer aos olhos do pensador a continuação lógica e na­tural da sua existência tão rapidamente despeda­çada.

Spero, sem dúvida, não se enganara, decla­rando que a Matéria não é o que parece ser; que as aparências são enganadoras; que o real é o invisível; que a força anímica é indestrutível; que, no absoluto, o infinitamente grande é idêntico ao infinitamente pequeno; que os espaços celestes não são intransponíveis e que as almas são as sementes das Humanidades planetárias. Quem sabe se a filo­sofia do dinamismo não revelará um dia aos apósto­los da Astronomia a religião do futuro? Não em­punha URÂNIA o facho sem o qual todo o problema é insolúvel, sem o qual a Natureza toda se con­servaria em impenetrável escuridão? O Céu deve explicar a Terra; o Infinito deve explicar a alma e suas faculdades imateriais.

O desconhecido de hoje é a verdade de amanhã. As páginas seguintes vão talvez deixar-nos pressentir o misterioso elo que liga o transitório ao eterno, o visível ao invisível, a Terra ao Céu.

TERCEIRA PARTE

CEU E A TERRA

I

TELEPATIA

A sessão magnética de Nancy havia deixado viva impressão no meu espírito. Pensava muitas vezes no meu amigo desaparecido, em suas inves­tigações nos domínios inexplorados da Natureza e da vida, em suas indagações analíticas, sinceras e originais, sobre o misterioso problema da imorta­lidade, mas, não podia mais pensar nele sem asso­ciar a idéia de uma reencarnação possível no pla­neta Marte.

Essa idéia, a mim mesmo, parecia audaz, teme­rária, puramente imaginária, se o quiserem, porém, não absurda. A distância daqui a Marte é igual a zero para a transmissão da atração; é quase in­significante para a da luz, pois alguns minutos bas­tam a uma ondulação luminosa para atravessar esses milhões de léguas. Eu pensava no telégrafo, no telefone, no fonógrafo, na transmissão da von­tade de um magnetizador ao seu paciente, através da distância de vários quilômetros, e chegava às vezes a perguntar-me se um maravilhoso progresso da Ciência não lançaria, de repente, uma ponte ce­leste entre o nosso mundo e seus congêneres do Infinito.

Nas noites subsequentes, observei Marte com o telescópio, mas distraído por mil estranhas idéias. O planeta aparecia, no entanto, admirável, e assim se mostrou durante toda a primavera e todo o verão de 1888. Vastas inundações se haviam produzido em um de seus continentes, na Líbia, tal qual já os astrônomos observaram em 1883 e em diversas circunstâncias. Reconhecia-se que a sua meteoro­logia e a sua climatologia não se igualam às nossas, e as águas que cobrem cerca de metade da sua superfície sofrem estranhas deslocações e variações periódicas, de que a geografia terrestre nenhuma idéia pode dar. As neves 'do pólo boreal tinham diminuído muito, o que provava ter sido o verão daquele hemisfério bastante quente, embora menos elevado do que o do hemisfério austral. Finalmente, houvera pouquíssimas nuvens sobre Marte durante toda a série de nossas observações. Mas, coisa apenas crível, não eram esses fatos astronômicos, aliás tão importantes, e base de todas as nossas conjeturas, que mais me interessavam: era o que o magnetizado me dissera de Jorge e de Icleia. As imagens fantásticas que me atravessavam o cére­bro impediam fazer uma observação verdadeira­mente científica. A mim próprio perguntava, com tenacidade, se não podia existir comunicação entre dois seres afastadíssimos um do outro, e mesmo entre um morto e um vivo, e de cada vez me respondia que tal questão era por si mesma anti­-científica e indigna de um espírito positivo.

Entretanto, no fim de contas, a que chama­mos - Ciência? Que é que não é científico em a Natureza.' Onde estão os limites do estudo posi­tivo? A ossada de um pássaro tem realmente ca­ráter mais científico do que a sua plumagem de luminosas cores e o seu canto de tão sutis cadên­cias? O esqueleto de formosa mulher é porventura mais digno de atenção do que a sua estrutura de carne e a sua forma viva? A análise das comoções da alma não é científica? Não é científico pes­quisar se realmente a alma pode ver ao longe e de que modo? E depois, que estranha vaidade, essa ingênua presunção de imaginar que a Ciência haja dito a sua última palavra; que conhecemos tudo quanto há a conhecer; que os nossos cinco sen­tidos sejam suficientes para apreciar a natureza do Universo? Do que esmiuçamos, entre as forças que atuam em torno dos seres, a atração, o calor, a.luz, a eletricidade, deve-se concluir pela inexistência de outras forças, as quais nos escapam porque não possuímos sentidos para percebê-las? Não é essa hipotese que é absurda, e sim a ingenuidade dos pedagogos e dos clássicos. Sorrimos das idéias dos astrônomos, dos físicos, dos médicos, dos teólogos de há três séculos. Decorridos outros tantos, os nossos sucessores nas ciências não sorrirão, por sua vez, das afirmações daqueles que pretendem, agora, tudo conhecer?

Os médicos a quem comuniquei, há três lus­tros, os fenômenos magnéticos, por mim próprio observados em certas experiências, negavam todos, convictos, a realidade dos fatos observados. En­contrei recentemente um de entre eles no Insti­tuto: Oh! disse, não sem finura, naquela época era magnetismo, hoje é hipnotismo, e somos nós outros que o estamos estudando. E bem diferente.

Moralidade: Nada reguemos por antecipação. Estudemos, constatemos: a explicação virá mais tarde.

Estava eu nessas disposições de espírito, quan­do, passeando de um para outro lado na minha biblioteca, os meus olhos pousaram sobre uma ele­gante edição de Cícero, em que não reparara desde muito tempo. Peguei em um volume, abri maquinalmente a primeira página que se apresentou, e li o seguinte

Dois amigos chegam a Megara e vão hospe­dar-se separadamente. Apenas um adormeceu, viu diante o companheiro de viagem, anunciando-lhe, com ar triste, ter o seu hospedeiro formado plano de assassiná-lo, e suplicando fosse o mais depressa possível em seu socorro. O outro desperta; mas, persuadido de ludíbrio de um sonho, não tarda em readormecer. O amigo aparece de novo e roga que se apresse, porque os assassinos vão entrar-lhe no aposento. Mais perturbado, admira-se da persis­tência de tal sonho, mas se dispõe a ir ter com o amigo; porém, o raciocínio e a fadiga acabam por triunfar, e ele se deita novamente. Então, o amigo se lhe mostra pela terceira vez, pálido, ensanguen­tado, desfigurado. Infeliz, falou, não vieste quan­do eu te implorava! Está consumado; agora, vinga­-me. Ao erguer do Sol, encontrarás à porta da cidade um carro cheio de estrume; faze-o parar e ordena que o descarreguem: acharás meu corpo escondido ali. Presta-me as honras da sepultura e faze punir os assassinos.

Tamanha tenacidade, particularidades tão se­guidas não permitem mais hesitação. O amigo se levanta da cama, veste-se, corre à porta indicada, encontra ali a carroça, prende o condutor, que se perturba, e, logo às primeiras pesquisas, é encontrado o cadáver da vítima, o seu companheiro.

Esta narrativa parecia vir expressamente em apoio de minhas opiniões sobre as incógnitas do problema científico. Não faltam, sem dúvida, hi­póteses, para responder ao ponto de interrogação. Pode dizer-se que a história não se passou talvez do modo narrado por Cícero: que foi ampliada, exagerada; que dois amigos, chegando a uma cidade estranha, podem temer um acidente; que, re­ceando pela vida de um amigo, após as fadigas de viagem e no meio do silêncio da noite, pode-se chegar a sonhar, que esse amigo é vítima de um assassínio. Quanto ao episódio da carroça, podem os viajantes ter visto uma no pátio da hospedaria, e o princípio de associação de idéias vem ligá-lo ao sonho. Sim, podem fazer-se todas essas hipóteses explicativas, mas não passam de hipóteses. Admi­tir que houve realmente comunicação entre o morto e o vivo é outra hipótese também.

São muito raros os fatos desta ordem? Pare­ce-me que não. Lembro-me, entre outros, da nar­ração que me foi feita por velho amigo de minha juventude, João Best, que fundou o Magasin Pitto­resque, em 1833, com o meu eminente amigo Eduar­do Charton, e que é morto não há muito. Era um homem sério, frio, metódico (hábil gravador-tipó­grafo, administrador escrupuloso). Todos quantos o conheceram sabem quanto o seu temperamento era pouco nervoso e quanto o seu espírito era afastado das coisas da imaginação. Pois bem! o fato seguinte aconteceu a ele mesmo, quando era criança, aos cinco ou seis de idade.

Era em Toul, sua terra natal. Estava ele, por uma bela noite, deitado, e ainda não dormira, quando viu sua mãe entrar no quarto, atravessá-lo e dirigir-se à sala contígua, cuja porta se achava aberta, e onde o pai jogava cartas com um amigo. Ora, sua mãe estava então, doente, em Pau. Le­vantou-se imediatamente do leito e correu para junto da mãe na sala, onde em vão a procurou . O pai o repreendeu com alguma impaciência e o mandou deitar-se novamente, afirmando que ele havia sonhado.

Então, o menino, acreditando desde logo ter efetivamente sonhado, tentou adormecer. Alguns minutos mais tarde, porém, estando com os olhos abertos, viu pela segunda vez, mui distintamente, a mãe passar por junto dele, e correu para ela, a fim de abraçá-la. Ela, porém, desapareceu logo. Não quis mais deitar-se: deixou-se ficar na sala, onde o pai continuava a jogar.

No mesmo dia, àquela mesma hora, sua mãe falecia em Pau.

Ouvi esta narração do próprio Sr. Best, que conservara indelével reminiscência do caso. Como explicá-lo? Pode dizer-se que o menino, sabendo estar a mãe doente, pensava nisso com frequência, e teve a alucinação que, casualmente, coincidiu com a morte dela? E possível. Mas pode pensar-se também que havia um laço simpático entre a mãe e a criança e que, naquele solene momento, a alma da mãe esteve realmente em comunicação com a do filho. De que modo? perguntar-se-á. Não sa­bemos. Mas o que não sabemos está para o que sabemos na proporção do oceano para uma gota de água.

Alucinações? E' fácil dizer. Quantas obras médicas escritas sobre este assunto! Conhecem todos a de Brierre de Boismont. Entre as inúme­ras observações que a compõem, citemos, a este respeito, as duas seguintes:

Obs. 84 - Quando o rei Jaques veio à Inglaterra, na época da peste em Londres, achando-se no campo, em casa de sir Roberto Cotton, com o velho Cambden, viu em sonho o filho pri­mogênito, ainda criança, que habitava então em Londres, com uma cruz sangrenta na fronte, como se tivesse sido ferido por uma espada. Assustado com essa aparição, começou a orar, e pela manhã se dirigiu ao aposento de sir Cambden, a quem narrou o acontecimento noturno. Cambden tran­quilizou o monarca, dizendo-lhe que fora ludibrio. De um sonho, e não havia motivo para atormen­tar-se. No mesmo dia, recebeu o rei uma carta de sua mulher, que lhe noticiava a perda do filho, vítima da peste. Quando o menino se mostrou ao pai, tinha o talhe e as proporções de um homem feito.

Obs. 87 - Srta. R. . . , dotada de muito bom senso, religiosa sem carolice, morava, antes de casar, na residência de seu tio D. . . , célebre mé­dico, membro do Instituto. Estava separada da mãe, afetada, na Província, de moléstia bastante grave.

Uma noite, a moça sonhou que a avistava de­fronte, pálida, desfigurada, prestes a exalar o último suspiro, e mostrando, principalmente, vivo pesar por não se achar rodeada dos filhos, um dos quais, cura em uma paróquia de Paris, emigrara para a Espanha, e o outro também então em Paris. Pouco ,depois, ouviu chamarem-na várias vezes pelo nome de batismo; viu, no sonho, as pessoas que rodea­vam sua mãe, imaginando que esta chamava pela neta, que tinha o mesmo nome, irem buscá-la a um aposento contíguo; um sinal da doente indicou não ser a neta, mas a filha, que habitava Paris, a quem desejava ver. O semblante exprimia a dor que sentia por motivo dessa ausência; e, de repente, as feições se lhe decompõem, cobrem-se da lividez da morte, e a agonizante cai sem vida no leito.

No dia seguinte, a Srta. R. . ., apareceu mui­to triste a D. . . , que lhe perguntou a causa do seu pesar; ela contou minuciosamente o sonho que tanto a atormentara. D. . . , aproveitando essa dis­posição de espírito, apertou-a ao peito, confessan­do-lhe que a notícia do sonho era real; sua mãe acabava de morrer. E não entrou em outras expli­cações.

Meses depois, a Srta. R . . . , valendo-se da ausência do tio, para pôr-lhe em ordem os papéis, nos quais, a exemplo de muitos outros sábios, ele não gostava que tocassem, achou uma carta con­tando ao tio as circunstâncias da morte de sua mãe. Qual não foi a sua surpresa ao ler as par­ticularidades todas do seu sonho!

Alucinação! coincidência fortuita! Será por­ventura isso uma explicação satisfatória? E em todo caso, uma explicação que absolutamente nada explica!

Uma turba de ignorantes, de toda a idade e de todas as profissões, capitalistas, negociantes ou deputados, cépticos por temperamento ou por gos­to, declaram simplesmente não acreditar em todas essas histórias, e que em tudo isso nada existe de verdadeiro. Não é também uma solução séria. Os espíritos afeitos ao estudo não podem satisfa­zer-se com tão fútil negativa.

Um fato é um fato. Não se pode deixar de admiti-lo, quando mesmo, no estado atual de nos­sos conhecimentos, seja impossível explicá-lo.

Os anais de medicina, é exato, testemunham que há realmente alucinação de mais de um gênero, e que certas organizações nervosas são vítimas delas. Daí, porém, a concluir que todos os fenô­menos psico-biológicos não explicados são alucina­ções, há um abismo.

O espírito científico do nosso século procura, com razão, desprender todos esses fatos dos enga­nosos nevoeiros do sobrenaturalismo, atento a que nada há sobrenatural, e que a Natureza, cujo reino é infinito, abrange tudo. Desde algum tempo, prin­cipalmente, está organizada na Inglaterra uma sociedade científica especial para o estudo desses fenômenos, a Society for Psychioal Research. Tem ela à sua frente alguns de entre os mais ilus­tres sábios do-Além-Mancha, e já forneceu impor­tantes publicações. Esses fenômenos de visão a distância são classificados sob o título geral de Telepatia. Rigorosas indagações são feitas para verificar os testemunhos. E' considerável a sua variedade. Folheemos juntos, por momento, uma dessas compilações(2), e destaquemos alguns do­cumentos devida e cientificamente bem compro­vados.

No seguinte caso, recentemente constatado, o observador estava tão perfeitamente acordado, quanto o estamos neste momento. Trata-se de um certo Sr. Roberto Bee, residente em Wigan (In­glaterra). Eis a curiosa narrativa escrita pelo pró­prio observador:

A 18 de Dezembro de 1873, fomos, minha esposa e eu, visitar a sua família, em Southport, deixando meus parentes de perfeita saúde, segundo toda a evidência. No dia seguinte, à tarde, tínha­mos saído a passeio, à beira-mar, quando me senti tão profundamente triste que me foi impossível interessar-me pelo quer que fosse, de sorte que não tardamos em regressar.

De repente, minha mulher manifestou certo sentimento de mal-estar, e disse que ia recolher-se ao aposento de sua mãe por alguns momentos. Instantes depois, levantei-me também da poltrona em que estava, e caminhei para a sala.

Uma senhora, vestida em trajes de rua, apro­ximou-se de mim, saindo do quarto de dormir que ficava contíguo. Não lhe reparei nas feições, por­que ela não olhava para o meu lado; entretanto, imediatamente lhe dirigi a palavra, saudando-a, mas não me lembro do que disse então.

No mesmo momento, e enquanto ela passava por diante de mim, voltava minha esposa do apo­sento da mãe e transitava justamente pelo lugar onde estava a mulher, sem dar mostra de reparar nela. Exclamei logo, surpreendido:

- Quem é essa senhora por quem acabas de passar?

- Não passei por ninguém! respondeu minha mulher, ainda mais admirada do que eu.

- Então, tornei, não acabas de ver, agora mesmo, uma senhora que cruzou diante de ti, jus­tamente quando entravas; que saiu provavelmente do aposento de tua mãe e que deve estar agora no vestíbulo?

- E impossível, respondeu minha mulher; na casa não há presentemente ninguém, senão minha mãe e nós dois.

Com efeito, nenhuma pessoa estranha tinha vindo, e a busca a que procedemos imediatamente nenhum resultado deu.

Eram oito horas menos dez minutos. Na ma­nhã seguinte, um telegrama nos noticiava a morte súbita de minha mãe, em consequência de uma enfermidade cardíaca, precisamente à mesma hora. Estava ela então na rua, e vestida exatamente com os trajes da desconhecida que eu vira atravessar por diante de mim.

Tal é a narrativa do observador. O inquérito a que a Sociedade das Investigações Psíquicas pro­cedeu demonstrou a autenticidade absoluta e a concordância dos testemunhos. E' um fato esse tão positivo quanto uma observação meteorológica, as­tronômica, física ou química. Qual a explicação? Coincidência, dir-se-á. Pode uma rigorosa critica científica ficar satisfeita com essa resposta?

Ainda outro caso.

O Sr. Frederico Wingfield, habitante de .Belle­-Isle-en-Terre (Costas do Norte), escreve que a 25 de Março de 1880, tendo-se acomodado para dormir bastante tarde, depois de haver lido durante parte da noite, - sonhou que seu irmão, residente no Condado de Essex, na Inglaterra, estava junto dele, mas que, em vez de responder a uma pergunta que lhe dirigira, meneou a cabeça, levantou-se e saiu. Tão viva tinha sido a impressão, que o narrador, meio adormecido, precipitou-se fora da cama e des­pertou no momento em que punha o pé no solo e chamava pelo irmão. Três dias depois, recebia a notícia de que o irmão morrera, em conseqüência de uma queda de cavalo, no mesmo dia, 25 de Março de 1880 (às oito horas e meia da noite), algumas horas antes do sonho que acaba de ser referido.

Pelo inquérito a que se procedeu, ficou de­monstrado que a data dessa morte é exata, e que o autor da narração escrevera o seu sonho em um diário, na mesma data do acontecimento, e não depois

Mais outro caso

O Sr. S ... e o Sr. L. . . , empregados ambos em uma Repartição, tinham relações de intima amizade havia quase um decênio. Na segunda-fei­ra, 19 de Março de 1883, L. .., indo para o emprego, teve manifestações de indigestão e entrou em uma farmácia, onde, ao lhe darem medicamento, lhe foi dito que era vítima de mal do fígado. Na quinta­-feira seguinte, não estava melhor; no sábado não havia comparecido ainda à Repartição.

Sábado, à noite, 24 de Março, S . . ., estando em casa, acometido de dores de cabeça, disse à esposa que sentia muito calor, o que não lhe acon­tecera havia dois meses. Depois de feito esse re­paro, deitou-se e, passado um minuto, viu o amigo L... em pé defronte dele, vestido com a roupa costumeira. S. .. notou mesmo que L . . . trazia um crepe negro no chapéu, o sobretudo desabotoado e uma bengala na mão. L... olhou fixamente para S . . . e passou. Então S . . . se lembrou da frase que se lê no livro de Job : Um Espírito passou diante de mim e os cabelos se me eriçaram. Nesse momento sentiu um calafrio percorrer-lhe todo o corpo e eriçar-se-lhe o cabelo. Perguntou então à mulher

- Que horas são? Ela respondeu - Nove horas menos doze minutos.

- Pergunto isto, tornou ele, porque L. .. mor­reu; acabo de vê-lo...

Tentou ela persuadi-lo de que era pura ilusão; ele, porém, afirmou do modo mais formal que ne­nhum raciocínio poderia fazê-lo mudar de opinião.

Tal é a narrativa feita pelo Sr. S. . . Não soube da morte de L. senão muito depois, no domingo, às três horas da tarde.

L... morrera realmente no sábado à noite, às nove horas menos dez minutos.

Pode aproximar-se este fato do acontecimento histórico referido por Agripa d'Aubigné, por oca­sião da morte do Cardeal de Lorena.

Estando o Rei em Avìnhão, a 23 de Dezembro de 1574, ali morreu Carlos, Cardeal de Lorena. A Rainha (Catarina de Médicis) recolhera-se ao leito mais cedo que de costume, assistindo a esse ato, entre outras pessoas notáveis, o Rei de Navarra, o Arcebispo de Lião, as Sras. De Retz, de Lignerolles e de Saunes, duas das quais confirmaram o caso. Quando ia proferir as boas noites, atirou-se de um sobressalto para a cabeceira, tapou o rosto com as mãos, e, soltando violento grito, chamou em socorro as pessoas presentes, querendo mostrar­-lhes aos pés da cama o Cardeal, que lhe estendia a mão. Por várias vezes exclamou:

- Cardeal, nada tenho que tratar convosco. O Rei de Navarra envia imediatamente à casa do Cardeal um dos seus cortesãos, o qual voltou trazendo a notícia de que o prelado acabava de expirar, justamente naquele momento.

Em seu livro sobre .A Humanidade Póstuma publicado em 1882, garante Adolfo Assier a auten­ticidade do seguinte fato, que lhe foi referido por pessoa de Saint-Gaudens e ocorreu com a própria narradora:

Era eu ainda menina, disse, e dormia com minha irmã, mais velha do que eu. Certa noite, acabávamos de nos meter na cama e de soprar a vela., O fogo da chaminé, mal apagado, ainda alumiava fracamente o aposento. Voltando os olhos para o lado da lareira, avistei, com grande sur­presa, um padre sentado em frente à chaminé, aque­cendo-se. Tinha a corpulência, as feições e o ar de um de nossos tios, que habitava nos arredores e era Arcipreste. Dei imediatamente parte da obser­vação à minha irmã. Esta olha para o lado da lareira e vê a mesma aparição. Reconhece igual­mente nosso tio, o Arcipreste. Indizível susto apo­dera-se então de nós e começamos a gritar: Socorro! com todas as forças. Meu pai, que dormia em aposento contíguo, despertado por esses gritos de deseSpero, ergue-se a toda a pressa, e chega ime­diatamente com uma vela na mão. O fantasma havia desaparecido; não vimos mais ninguém no quarto. No dia seguinte, soubemos, por meio de carta, que nosso tio, o Arcipreste, morrera naquela noite.

Outro fato ainda, referido pelo mesmo discí­pulo de Augusto Comte e por ele consignado du­rante a sua estada no Rio de Janeiro:

Era em 1858. Na colônia francesa daquela Capital, falava-se ainda em uma singular aparição que se dera alguns tempos antes. Certa família alsaciana, composta de marido, mulher e uma filhi­nha ainda de pouca idade, viajava para o Rio de Janeiro, onde ia reunir-se a uns compatriotas esta­belecidos naquela cidade. Sendo longa a viagem, a mulher adoeceu, e, por falta sem dúvida de cuida­dos ou de alimentação conveniente, sucumbiu antes de chegar. No dia da morte, caiu em síncope, con­servou-se por muito tempo nesse estado, e, quando recuperou os sentidos, disse ao marido, que velava ao lado

- Morro contente, pois agora estou tranquila sobre a sorte de nossa filha. Venho do Rio de Janeiro. Encontrei a rua e a casa de nosso amigo Fritz, o carpinteiro. Estava ele de pé na porta; apresentei-lhe a pequena; estou certa de que à tua chegada ele a reconhecerá e cuidará dela.

O marido ficou surpreso com essa narração, sem contudo ligar importância. No mesmo dia, à mesma hora, Fritz, o carpinteiro, o Alsaciano de quem acabo de falar, achava-se à porta da sua residência no Rio de Janeiro, quando acreditou ver passar na rua uma de suas compatriotas, tendo nos braços uma criança. A mulher olhava para ele com ar suplicante, e parecia apresentar-lhe a menina que levava ao colo. O semblante, de aspecto extremamente magro, lembrava todavia as feições de Lata, a mulher do seu amigo e compatriota Schmidt. A expressão do rosto, a singularidade do andar, que parecia mais de uma visão do que rea­lidade, impressionaram vivamente Fritz. Querendo certificar-se de que não era vítima de uma ilusão, chamou um dos operários da loja, e também Alsa­ciano, da mesma localidade.

- Olha, disse-lhe, estás vendo aquela mulher que vai passando na rua, com uma criança ao colo? Não se diria que é Lata, a mulher de nosso patrício Schmidt?­

- Não posso dizer-lhe não a distingo bem,respondeu o operário.

Fritz não disse nada as circunstâncias mais porém, daquela aparição, real ou imaginária , gravaram-se-lhe no Espírito, principalmente a hora e o dia.

Algum tempo depois, vê-o chegar o seu pa­trício, trazendo nos braços uma meninazinha. A visita de Lata reavivou-se, e, antes que Schmidt houvesse aberto a boca, disse-lhe ele

- Meu pobre amigo, sei tudo; tua mulher morreu na viagem, e antes de morrer veio apre­sentar-me à filhinha para que eu cuidasse dela. Eis a data e a hora.

Eram exatamente o dia e o momento consig­nados por Schmidt a bordo do navio.

Em sua obra a respeito dos altos fenômenos da Magia, publicada em 1864, Gougenot des Mosseaux refere o seguinte fato, que assevera ser absolutamente autêntico:

Sir Roberto Bruce, da ilustre família esco­cesa desse nome, é imediato de um navio. Nave­gava um dia próximo de Terra-Nova e, estando entregue aos seus cálculos náuticos, julgou ver o seu capitão sentado à secretária; mas, olha com atenção, e constata que aquele a quem está vendo é um estranho, cujo olhar friamente fito nele lhe causa espanto. O capitão, para junto do qual ele sobe; percebe-lhe o pasmo e o interroga a respeito

- Mas quem está então sentado à sua secre­tária?

- pergunta Bruce.

- Ninguém.

- Sim! alguém está lá; e será um estranho?..

-. mas de que modo?

- Estás sonhando... ou zombando.

- De maneira alguma; faça o favor, desça e venha ver.

Descem, e ninguém está sentado à secretária. O navio é revistado em todos os sentidos; nenhum estranho se encontra.

- Entretanto, a pessoa. que eu vi estava es­crevendo na sua ardósia; a letra dele deve lá estar, disse Bruce.

Examina-se a pedra; contém estas palavras: Steer to the north-west, isto é : aproem para o Nordeste.

- Esta letra é sua, ou de alguém de bordo?

- Não.

Pediu-se a todos que, escrevessem a mesma frase, e nenhuma letra se assemelhava à da ardósia. - Bem, obedeçamos ao sentido dessas pala­vras; aproem para o Nordeste, o vento é favorável e permite tentar a experiência.

Três horas depois, o gajeiro assinalava verdadeira montanha de gelo e via, preso a ela, um navio de Quebec, desmantelado, cheio de gente, que se destinava a Liverpool, e cujos passageiros foram trazidos pelos escaleres do navio de Bruce.

No momento em que um dos homens subiu o costado do navio libertador, Bruce estremeceu e recuou, fortemente abalado. Acabava de reconhe­cer o estranho a quem vira escrevendo as palavras na ardósia. Corre ao Capitão e conta o novo inci­dente.

- Faça o favor de escrever: Steer to the north-west, nesta pedra, disse ao recém-chegado o Capitão, apresentando-lhe o lado da lousa onde nada havia escrito.

O homem escreve as palavras ditadas.

- Bem, é essa exatamente a sua caligrafia comum? perguntou o Capitão, admirado da iden­tidade da letra.

- O senhor viu escrever! pode acaso duvidar? Por única resposta o Capitão volta à ardósia, e o homem fica confundido ao ver de ambos os lados a sua própria letra.

- O senhor sonhou que estava escrevendo nesta pedra? indagou o Capitão do navio naufragado, àquele que acabava de escrever.

- Não, pelo menos não me recordo.

- Mas que estava este passageiro fazendo ao meio-dia? pergunta ao colega o Capitão do na­vio-socorro.

- Achando-se extremamente fatigado, este passageiro adormeceu profundamente, e, tanto quanto me recordo, deu-se isto pouco antes do meio-dia. Passada uma hora, quando muito, des­pertou, e me disse: Capitão, seremos salvos, hoje mesmo! E acrescentou- Sonhei que estava a bordo de um navio, e que esse navio vinha em nosso auxílio. Descreveu o barco e a sua mas­treação; e grande foi, a nossa surpresa, quando navegastes em nosso encontro, ao reconhecermos a fidelidade da descrição feita.

Afinal, o passageiro disse por sua vez:

- O que acho estranho é parecer-me familiar tudo quanto aqui vejo; e, no entanto, jamais es­tive a bordo deste navio.

O Barão Du Potet, em seu curso de Magnetismo animal, refere, de outro aspecto ainda, o fato se­guinte, publicado em 1814 pelo célebre Iung Sti­ling, que o ouvira do próprio observador, o barão de Sulza, camarista do rei da Suécia.

Recolhia-se ele a sua casa, no verão, por cerca da meia-noite, hora em que há ainda na Suécia bastante claridade para que se possa ler a letra mais miúda. Quando cheguei a casa, disse ele, meu pai veio ao meu encontro à entrada do parque; estava vestido do modo costumeiro e tinha na mão uma bengala que meu irmão havia esculpido. Sau­dei-o e conversamos ambos durante muito tempo. Chegamos assim a casa e à porta do seu aposento. Ali entrando, vi meu pai despido, ao mesmo tempo em que a aparição se esvaíra. Pouco depois, meu pai despertou e olhou-me com ar interrogativo.

- Meu caro Eduardo, disse, louvado seja Deus, pois te vejo são e salvo. Estive bem atormentado por tua causa, em sonho; parecia-me que havias caído na água e estavas em risco de afogar.

Ora, naquele dia, acrescentou o Barão, tinha eu ido, com um de meus amigos, ao rio para pescar caranguejos, e escapara de ser arrastado pela correnteza. Contei a meu pai que vira a sua aparição à entrada da casa, e que tivéramos uma longa con­versação. Ele respondeu que muitas vezes ocorriam fatos semelhantes.

Nessas diversas narrativas vêem-se aparições, para bem dizer, provocadas pelo desejo ou pela vontade. Pode então ir até esse ponto a sugestão mental? Os autores do livro Phantasms o f the Li­ving, de que acima falamos, respondem afirmati­vamente com sete exemplos, suficientemente teste­munhados, dentre os quais oferecerei ainda um à atenção dos meus leitores.

Ei-lo:

O Rev. C. Godfrey, residente em Eastbourne, no Condado de Sussex, tendo lido uma notícia de aparição premeditada, ficou tão impressionado que resolveu fazer por seu turno a experiência. A 15 de Novembro de 1886, próximo das onze horas da noite, concentrou toda a força de imaginação e toda a tensão da vontade de que era capaz, na idéia de aparecer a uma senhora de sua amizade, mostran­do-se-lhe de pé, junto ao leito. O esforço durou cerca de oito minutos, ao termo dos quais o Sr. Godfre,y sentiu fadiga e adormeceu. No dia seguinte, a senhora que fora objeto da experiência veio espontaneamente contar ao Sr. Godfre.y que o tinha visto. Convidada a escrever o sucedido, ela o fez nos seguintes termos: À noite passada, despertei em sobressalto, com a sensação de que alguém tinha entrado no meu quarto de dormir. Ouvi igualmente ruído, mas julguei fosse causado por pássaros na hera fora da janela. Experimentei depois uma espécie de inquietação, e vago desejo de sair do aposento e descer ao andar térreo. Tão vivo se tornou esse sentimento, que afinal me levantei. Acendi uma vela e desci com a intenção de tomar algo para acalmar-me. Tornando a subir para o quarto, vi o Sr. Godfrey em pé sob a grande janela da escada. Estava vestido no modo habitual, e tinha a expressão que lhe é típica quando olha atentamente para alguma coisa. Conservava-se imóvel ali, enquanto eu, levantando a luz, o mi­rava com extrema surpresa. Durou isso três ou quatro segundos, findos os quais, continuando eu a subir, ele desapareceu. Não me senti assustada, mas muito agitada, e não pude mais dormir.

O Sr. Godfrey pensou judiciosamente que a experiência feita tomaria muito mais importância se a repetisse. Uma segunda tentativa falhou, mas a terceira teve êxito. Fica entendido que a se­nhora sobre quem operava não fora prevenida da sua intenção, do mesmo modo que da primeira vez. A noite passada, escreveu ela, quarta-feira, 7 de Setembro, recolhi-me às dez horas e meia. De­pressa adormeci. Repentinamente, ouvi uma voz que dizia: Acorde! e senti que me punham a mão no lado esquerdo da cabeça. (A intenção do Sr. Godfrey, desta vez, tinha sido fazer sentir a sua presença pela voz e pelo tato.) Despertei logo, completamente. Havia no aposento um som cu­rioso, lembrando o de uma bandurra. Sentia ao mesmo tempo a semelhança de um hálito frio que me envolvia; o coração batia com violência, e vi distintamente um rosto inclinado sobre o meu. A única luz que iluminava o recinto era a de uma lâmpada, do lado de fora, que projetava longo ras­tro luminoso na parede, por cima do toucador; esse raio luminoso estava particularmente escurecido pelo vulto. Voltei-me com rapidez, e a mão pareceu cair da minha cabeça na almofada, a meu lado. O vulto estava debruçado sobre mim, e o senti apoiado à barra do leito. Vi-lhe o braço descansando no tra­vesseiro. Distingui o contorno do semblante, mas parecendo velado por uma nuvem. Devia ser, mais ou menos, meia hora depois da meia-noite. O vulto tinha afastado levemente o cortinado, mas veri­fiquei esta manhã que este estava descido na forma do costume. Não tenho a menor dúvida de que o vulto fosse o do Sr. Godfrey; reconheci-o pelo feitio dos ombros e pela forma do rosto. Durante todo o tempo em que ele se manteve ali, reinou uma corrente de ar frio através do aposento, parecendo que as duas janelas tivessem sido abertas. Estas coisas são fatos.

No atual estado de nossos conhecimentos, seria absolutamente temerário buscar-lhe a explicação. A nossa psicologia não está bastante adiantada. Há muitas coisas que somos forçados a admitir, sem de nenhum modo poder explicá-las. Negar o que não se pode explicar seria pura demência.

Explicava-se porventura o sistema do mundo há dez séculos? Hoje em dia mesmo, explicamos a atração? Mas a Ciência caminha, e o seu pro­gresso será sem fim.

Conhecemos toda a extensão das faculdades humanas? Que existam na Natureza forças ainda ignoradas, qual o era, por exemplo, a eletricidade há menos de um século; que se encontrem no Uni­verso outras criaturas, dotadas de outros sentidos e de outras faculdades, eis do que o pensador não pode duvidar um só instante. Mas, o próprio ho­mem terrestre nos é porventura completamente conhecido? Não parece.

Há fatos cuja realidade somos forçados a re­conhecer, sem que de modo algum os possamos explicar.

A vida de Swedenborg apresenta três fatos dessa ordem. Deixemos de lado, por agora, suas visões planetárias e siderais, que parecem mais subjetivas do que objetivas; notemos de passagem que Swedenborg era um sábio de primeira ordem em geologia, em mineralogia, em cristalografia, membro das academias de ciências de Upsal, Esto­colmo e São Petersburgo, e limitemo-nos a recordar os três fatos seguintes:

A 19 de Julho de 1759, voltando de uma via­gem à Inglaterra, o filósofo desembarcou em Go­temburgo, e foi jantar a casa de um certo William Costel, onde era numerosa a sociedade. Às seis horas da tarde, o Sr. de Swedenborg, que havia saído, tornou a entrar na sala, pálido e conster­nado, e disse que naquele momento, precisamente, acabava de atear-se um incêndio em Estocolmo, no Sudermoln, na rua em que ele habitava, e que o fogo se estendia com violência, rumo da sua casa de moradia. Tornou a sair, e voltou lamentando-se de que a residência de um de seus amigos houvesse sido reduzida a cinzas e de que a sua corresse o maior perigo. Às oito horas, depois de nova saída, disse com alegria: Graças a Deus, o incêndio está extinto, à terceira porta que precede a da minha casa.

Espalhou-se a notícia em toda a cidade, que se consternou, tanto mais quanto o governador lhe dera crédito, e muitas pessoas estavam inquietas pelos bens e amigos que ali possuíam. Dois dias depois, o Correio Real trouxe de Estocolmo a noticia do incêndio: nenhuma diferença havia entre as suas indicações e as que Swedenborg havia dado: o incêndio ficara extinto às oito horas.

Esta narração foi escrita pelo ilustre Emanuel Kant, que procurara indagar do fato, e que acres­centa: Que se pode alegar contra a autenticidade de semelhante acontecimento?

Ora, Gotemburgo fica a duzentos quilômetros de Estocolmo.

Swedenborg estava então no septuagésimo se­gundo aniversário.

Eis o segundo fato:

Em 1761, a Sra. de Marteville, viúva de um ministro da Holanda em Estocolmo, recebe de um credor de seu marido a reclamação de vinte e cinco mil florins holandeses (cinquenta mil francos), que ela sabia terem sido pagos pelo marido, e cujo novo pagamento a colocava na maior dificuldade, arruinava-la quase. Era-lhe impossível achar o recibo.

Vai ter com Swedenborg e, oito dias depois, vê em sonho o marido, que lhe indica o móvel onde se achava o recibo, com' um alfinete de brilhantes, que ela julgava perdido também. Eram duas ho­ras da manhã. Cheia de alegria, levanta-se e en­contra tudo no lugar indicado. Tornando a deitar­-se, dorme até às nove horas. Próximo das onze, o Sr. Swedenborg se faz anunciar. Antes de lhe haverem dito o que acontecera, contou ele que, na noite antecedente, vira o Espírito do Sr. de Marteville, o qual lhe declarara que ia ter com a sua viúva.

O terceiro fato é o seguinte:

No mês de Fevereiro de 1772, achando-se em Londres, mandou um bilhete ao reverendo John Wesley (fundador da comunidade dos Wesleyanos), a fim de dizer-lhe que teria grande satisfação em conhecê-lo. O ardente pregador recebeu o bilhete no momento em que ia partir para certa missão, e respondeu que se aproveitaria do amável consentimento para visitá-lo ao termo de tal ausência, que devia durar perto de seis meses. Swedenborg respondeu: que, em tal caso, não se veriam neste mundo, devendo o dia 29 de Março próximo ser o de sua morte.

Swedenborg morreu, com efeito, na data que indicara com antecedência de mais de um mês.

Eis aí três fatos, cuja autenticidade não é possível negar, mas que no presente estado de nos­sos conhecimentos ninguém quereria certamente in­cumbir-se de explicai.

Poderíamos multiplicar infinitamente estas au­tênticas narrativas. Fatos análogos aos que acima ficam referidos, de comunicações à distância, ou no momento da morte, ou no estado normal da vida, não são tão raros - sem que todavia sejam mui frequentes - que cada um dos leitores não tenha ouvido citar, e talvez observado pessoalmente, em mais de uma ocasião. Demais, as experiências fei­tas nos domínios do magnetismo provam igualmen­te que, em certos e determinados casos psicológicos, um experimentador pode atuar sobre um paciente à distância, não só de alguns metros, mas de vários quilômetros, e mesmo acima de cem quilômetros, conforme a sensibilidade e a lucidez do paciente, e, sem dúvida também, conforme a força da von­tade do magnetizador. Por outra parte ainda, o Espaço não é o que acreditamos. À distância de Paris a Londres é grande para um caminhante, e era mesmo intransponível antes da invenção dos navios: é nula para a eletricidade. À distância da Terra à Lua é grande para os nossos atuais modos de transporte: é nula para a atração. De fato, no ponto de vista do absoluto, o Espaço que nos separa de Sírius não é maior porção do Infinito do que à distância de Paris a Versalhes, ou do nosso olho direito ao esquerdo.

Ainda mais: a separação que nos parece exis­tir entre a Terra e a Lua, ou entre a Terra e Marte, ou mesmo entre a Terra e Sírius, é apenas uma ilusão devida à insuficiência de nossas percepções.

A Lua age constantemente sobre a Terra e a agita perpetuamente. A atração de Marte é igualmente sensível para o nosso planeta, e, por nossa vez, per­turbamos Marte em seu curso, sofrendo a influên­cia da Lua. Nós atuamos sobre o próprio Sol, e o fazemos mover-se tal qual se nele tocássemos. Em virtude da atração, a Lua faz a Terra girar men­salmente em torno de seu centro comum de gravi­dade, ponto que viaja a 1.700 quilômetros abaixo da superfície do globo; a Terra faz o Sol girar anualmente em torno de seu centro comum de gra­vidade, situado a 456 quilômetros do centro solar; os mundos todos atuam perpetuamente una sobre os outros, de sorte que não há isolamento, sepa­ração real entre eles. Em vez de existir um vácuo, separando os mundos uns de outros, o Espaço é antes um laço de comunicação. Ora, se a atração estabelece assim uma solidariedade real, contínua, ativa e indiscutível, verificada pela precisão das observações astronômicas, entre a Terra e suas ir­mãs da imensidade, não se vê bem claramente com que direito pretensos positivistas poderiam decla­rar que nenhuma comunicação é possível entre dois seres mais ou menos afastados um do outro, quer na Terra, quer mesmo em mundos diferentes.

Dois cérebros que vibram uníssonos, a vários quilômetros de distância, não podem ser emocio­nados por idêntica força psíquica? A comoção par­tida de um cérebro não pode, através do éter, de igual maneira que a atração, ferir o cérebro que vibra a qualquer distância que seja, tal qual o som através do recinto vai fazer vibrar as cordas de um piano ou de um violino? Não esqueçamos que os cérebros são compostos de moléculas que não se tocam e se acham em perpétua vibração.

E para que falar de cérebros? O pensamento, à vontade, a força psíquica, qualquer que seja a sua natureza, não pode atuar, à distância, sobre uma criatura que lhe está ligada pelos laços sim­páticos e indissolúveis do parentesco intelectual? Porventura as palpitações de um coração não se transmitem subitamente ao coração que bate unís­sono ao nosso ?

Devemos admitir, nos casos de aparição acima assinalados, que o Espírito do morto haja real­mente revestido uma forma corpórea na proximidade do observador? Na maior parte dós casos, não parece necessária essa hipótese. Em nossos sonhos, supomos ver pessoas que, de modo nenhum, se acham diante de nossos olhos, aliás fechados. Vemo-las perfeitamente, tão bem quanto à luz do dia; falamos-lhes, ouvimo-las, conversamos com elas. Seguramente, não é nem a nossa retina, nem o nosso nervo óptico que as vê, nem muito menos é também o nosso ouvido que as ouve. Só as nossas células cerebrais estão em ação.

Certas aparições podem ser objetivas, exterio­res, substanciais; outras podem ser subjetivas, in­teriores. Neste.caso, o ente que se manifesta atua­ria a distância sobre o ente que vê, e essa influên­cia no cérebro determinaria a visão interior, a qual parece exterior, tal qual ocorre nos sonhos, mas pode ser puramente subjetiva sem ser, por isso, quimérica e ilusória. Os estudos experimentais fei­tos recentemente a respeito dos fenômenos de sugestão, de hipnotismo e de sonambulismo abriram caminho, senão da explicação, ao menos da admis­são racional de certo número de tais fatos. Existe aí, indubitavelmente, a ação de um Espírito so­bre outro. Decerto, a alma não se transporta, to­mando em realidade o aspecto de pessoa vestida por alfaiate ou costureira, nem existe diante de quem - vê - um ser vestido de paletó mais ou menos amplo, de chambre ou capote, exagerado nos detalhes do vestuário masculino ou feminino, mu­nido de bengala ou guarda-chuva, etc. Mas, provavelmente, o Espírito que se vai mostrar age de modo direto sobre o outro e o impressiona de tal modo que - este - acredita ver, ouvir, tocar mesmo uma pessoa - que se apresenta exatamente sob a forma pela qual é do outro conhecida.

De igual modo que um pensamento, uma recor­dação, desperta em nosso espírito uma imagem, que pode ser muito evidente e viva, assim também uma criatura, atuando sobre outra, pode fazer apa­recer nela uma imagem que lhe dará por momentos a ilusão da realidade. Obtêm-se agora, experimen­talmente, esses fatos nos estudos de hipnotismo e de sugestão, estudos que ainda se acham em começo, e dão, entretanto, resultados certamente dig­nos da maior atenção, tanto no ponto de vista psicológico, quanto no ponto de vista fisiológico. Não é a retina que é ferida por uma realidade efetiva; são camadas ópticas do cérebro, excitadas por uma força psíquica. E o próprio ser mental que é impressionado. De que maneira? Não o sa­bemos.

Tais são as induções, as mais racionais que, parece, podem ser tiradas dos fenômenos da or­dem daqueles que acabamos de apontar, fenômenos inexplicados, mas muito antigos, pois a história de todos os povos, desde a mais remota antigui­dade, tem conservado exemplos que seria difícil negar ou destruir.

Mas quê! dir-se-á: devemos, podemos, em nos­so século de método experimental e de ciência positiva, admitir que um moribundo, ou mesmo um morto, possa comunicar-se?

Que é um morto?

Morre uma criatura humana em cada segundo, no conjunto do globo terrestre, isto é, cerca de 86.400 por dia, ou cerca de 31 milhões por ano, ou mais de 3 bilhões por século. Em dez séculos, mais de 30 bilhões de cadáveres têm sido entregues a terra e restituídos à circulação geral sob a forma de produtos diversos, água, gás, vapores, etc. Se tivermos em conta o decréscimo da população hu­mana, à medida que remontarmos às idades his­tóricas, acharemos que, nestes últimos cem séculos, duzentos bilhões de corpos humanos, pelo menos, têm sido formados da terra e da atmosfera, pela respiração e pela alimentação, e para ela têm vol­tado.

As moléculas de oxigênio, de hidrogênio, de ácido carbônico e de azoto que constituíram esses corpos têm adubado a terra, e têm sido restituídas à circulação atmosférica.

Sim, a Terra em que habitamos é hoje for­mada em parte por esses bilhões de cérebros que pensaram, por esses bilhões de organismos que viveram. Caminhamos sobre nossos avós, e assim eles nos pisarão também. As frontes dos pensa­dores; os olhos que contemplaram, que sorriram, que choraram; os corações que amaram e sofreram; as bocas que entoaram cânticos de amor; os lábios rosados e os seios de mármore; as entranhas das mães; os braços dos trabalhadores; os músculos dos guerreiros; o sangue dos vencidos; as crianças e os velhos; os bons e os maus; os ricos e os po­bres; tudo quanto viveu, tudo quanto pensou, jaz na mesma terra. Seria difícil hoje dar um único passo no planeta sem pisar no despojo dos mortos; seria difícil comer e beber sem reabsorver o que já foi comido e bebido milhares de vezes; seria difícil respirar sem incorporar o hálito dos mortos. Os elementos constitutivos dos corpos, hauridos na Natureza, à Natureza voltaram, e cada um traz em si átomos que precedentemente pertenceram a ou­tros,corpos.

Pois bem! pensais que a Humanidade toda seja isso? Pensais que ela não haja deixado nada mais nobre, mais grandioso, mais espiritual?

Cada um, ao exalar o último suspiro, não dá ao Universo sessenta ou oitenta quilos de carne e osso, que se vão desagregar e reverter aos elemen­tos? Não permanece a alma que nos anima, pela mesma razão por que permanece cada molécula de oxigênio, de azoto ou de ferro? E não continuam a existir todas as almas que viveram?

Nenhum direito nos assiste de afirmar que o homem seja unicamente composto de elementos ma­teriais, e que a faculdade de pensar não seja mais do que uma propriedade desse conjunto. Temos, ao contrário, as mais intimas razões para admitir que a alma é uma entidade individual, e que é ela quem rege as moléculas para organizar a forma vivente do corpo humano.

A serenidade luminosa e quase sorridente do semblante do ser humano quando morre, sereni­dade que substitui - qual relâmpago de calma felicidade - as angústias da agonia -, não indi­cará que, nessa hora suprema, a última impressão da alma, no momento do desligamento, foi uma impressão de luz, uma espécie de visão de liber­dade?

Que resulta às moléculas invisíveis e intan­gíveis que compuseram o corpo durante a vida? Va-o pertencer a novos corpos. Que destino têm as almas, igualmente invisíveis e intangíveis? Po­de-se pensar que reencarnam, também, em novos organismos, cada uma segundo a sua natureza, as suas faculdades, o seu destino.

A alma pertence ao mundo psíquico. Sem duvida, há na Terra uma quantidade inúmera de almas ainda pesadas, grosseiras, apenas despren­didas da Matéria, incapazes de conceber as reali­dades intelectuais. Outras há, porém, que vivem no estudo, na contemplação, no cultivo do mundo psíquico ou espiritual. Essas podem não ficar pre­sas na Terra, e o seu destino é viver da vida urânica.

A alma uraniana vive, mesmo durante as en­carnações terrestres, no mundo do absoluto e do divino. Ela sabe que, mesmo habitando na Terra, está no céu em realidade, e que o nosso planeta é um astro do céu.

Qual é a natureza íntima da alma; quais são os seus modos de manifestação; quando sua me­mória se torna permanente e mantém com certeza a identidade consciente; sob que diversidade de formas e de substâncias pode viver; que extensão de espaço pode transpor; qual a ordem de paren­tesco intelectual que existe entre os diferentes pla­netas de um mesmo sistema; qual é a força ger­minadora que sementeia os mundos; quando nos poderemos pôr em comunicação com as pátrias vi­zinhas; quando penetraremos o segredo profundo dos destinos ?

Mistério e ignorância hoje. Mas o desconhecido de ontem é a verdade de amanhã.

Fato de ordem histórica e científica, absolu­tamente incontestável: em todos os séculos, em todos os povos, e sob as mais diversas aparências religiosas, a idéia de imortalidade repousa invul­nerável no fundo da consciência humana. A educação lhe tem dado mil formas, mas não a inventou. Essa idéia existe por si mesma. Toda criatura humana, vindo ao mundo, traz, de maneira mais ou menos vaga, esse sentimento intimo, esse desejo, essa esperança.

II

ITER EXTATICUM CELESTE

As horas e os dias que eu consagrava ao estu­do dessas questões de psicologia e de telepatia não me impediam de observar Marte, ao telescópio, e de tirar desenhos geográficos, sempre que a atmos­fera, tão frequentemente nebulosa, permitia. Po­de-se reconhecer que não somente todas as questões se tocam, no estudo da Natureza e nas ciências, mas também que a Astronomia e a Psicologia são solidárias uma da outra, atendendo-se a que o universo psíquico tem por ambiente o universo material; que a Astronomia tem por objeto o es­tudo das regiões da vida eterna, e que não pode­ríamos formar a menor idéia dessas regiões se não as conhecêssemos astronomicamente. Quer o saiba­mos ou não, o fato é que, presentemente, habitamos uma região do céu, e todos os seres, quaisquer que sejam, são eternamente cidadãos celestes. Não foi sem secreta intuição das coisas que a antiguidade fez de Urânia a musa de todas as ciências.

O meu pensamento tinha, pois, estado longa­mente ocupado com o nosso vizinho, o planeta Mar­te, quando, um dia, em passeio solitário à beira de um bosque, após algumas quentes horas de Julho, tendo-me sentado perto de um grupo de carvalhos, não tardei em adormecer.

O calor era excessivo; a paisagem silenciosa; o Sena parecia parado, semelhando um canal no fundo do vale. Fiquei estranhamente surpreendido, despertando ao cabo de um momento de sonolência, por não reconhecer mais a paisagem, nem as arvores vizinhas, nem o rio que corria ao pé da encosta, nem o prado onduloso que se ia perder ao longe no horizonte. O Sol se escondia, menor do que de ordinário o vemos. O ar palpitava em ruídos har­moniosos, desconhecidos na Terra, e insetos do ta­manho de pássaros volitavam em árvores despidas de folhas, cobertas de gigantescas flores verme­lhas. Levantei-me, impelido pelo pasmo, qual por potente mola, de um salto tão enérgico que me achei subitamente em pé, sentindo-me de singular leveza. Tinha dado apenas alguns passos, quando mais da metade do peso de meu corpo pareceu ter-se evaporado durante o sono. Esta íntima sensação me impressionou mais profundamente ainda do que a metamorfose da Natureza desdobrada diante de mim.

Mal dava crédito aos meus olhos e aos meus sentidos. Além disso, eu não tinha mais os mesmos olhos, não ouvia mais do costumeiro modo; percebi logo que a minha organização era dotada de vá­rios sentidos novos, inteiramente diferentes dos da nossa harpa terrestre, em particular de um sen­tido magnético, com o qual se pode entrar em co­municação de um para outro ser, sem que seja necessário traduzir os pensamentos por palavras audíveis. Esse sentido recorda o da agulha ima­nada que, do fundo de um subterrâneo do Observa­tório de Paris, estremece quando uma aurora boreal se acende na Sibéria, ou quando rompe no Sol uma explosão elétrica.

O astro do dia acabava de apagar-se em um lago longínquo, e os rosados clarões do crepúsculo pairavam no fundo dos céus qual derradeiro sonho da luz. Duas luas se acenderam em diversas altu­ras, a primeira em forma de crescente, por cima do lago em cujo seio o Sol se sumira; a segunda em forma de primeiro quarto, muito mais elevada no céu e para do Oriente. Eram muito pequenas e não lembravam senão de longe o imenso facho das noites terrestres. Dir-se-ia que de mal grado davam a sua viva, mas pequena claridade. Eu as contemplava alternadamente,. com espanto,. O mais extraordinário talvez em toda a estranheza desse espetáculo estava em que a Lua ocidental, cerca de três vezes maior do que a sua companheira do Este, sendo cinco vezes menos volumosa do que a nossa Lua terrestre, caminhava no céu com um movimento fácil de seguir com a vista, e parecia correr com velocidade, da direita para á esquerda, a fim de alcançar no Oriente a sua celeste irmã.

Assinalavam-se ainda, nos últimos clarões do ocaso que se ia extinguindo, uma terceira Lua, ou, para melhor dizer, uma brilhante estrela. Menor do que o menor dos dois satélites, não apresentava disco sensível; mas a luz era fulgurante. Pairava no céu da tarde igual a Vênus em nosso firma­mento, quando, nos dias de seu mais esplêndido brilho, a estrela do pastor reina soberana nas indolentes tardes da primavera de ternos sonhos.

Já nas alturas surgiam as mais brilhantes es­trelas; reconhecia-se Arctúrus, de raios de ouro; Vega, tão alva e pura; os sete astros do setentrião e várias constelações zodiacais. A estrela da tarde, a nova Vésper, rutilava então na constelação dos Peixes. Depois de haver estudado durante alguns instantes a sua situação no céu, de me haver orien­tado a mim mesmo, conforme as constelações; de haver examinado os dois satélites e refletido na leveza do meu próprio peso, não tardei em ficar convencido de que me achava no planeta Marte e de que essa sedutora estrela da tarde era... a Terra.

Meus olhos detiveram-se fitos nela, impregna­dos do melancólico sentimento de amor que nos confrange as fibras do coração, quando o pensa­mento voa para um ente querido do qual nos se­para cruel distância; contemplei longamente essa Pátria onde tantos diversos sentimentos se mistu­ram e se chocam nas flutuações da vida, e pensei

Quanto é lamentável que as inúmeras cria­turas que habitam a pequena morada não saibam onde estão! E' lindíssima esta minúscula Terra, assim iluminada pelo Sol, com a respectiva Lua, mais microscópica ainda, parecendo um ponto ao lado dela. Levada no invisível pelas divinas leis da atração, átomo flutuante na imensa harmonia dos céus, tem ela o seu lugar, e paira lá em cima, qual uma ilha angélica. Os seus habitantes, porém, o ignoram. Singular Humanidade! Achou a Terra de­masiado vasta, dividiu-a em rebanhos, e passa o tempo espingardeando-se reciprocamente. Há nessa ilha celeste tantos soldados quantos habitantes Estão todos armados uns contra os outros, quando tão simples teria sido viver tranquilamente, e acham glorioso mudar, tempos em tempos, os nomes dos países e a cor das bandeiras. E' a preocupação fa­vorita das nações e o ensinamento primordial dos cidadãos. Fora disso, empregam a existência em adorar a Matéria. Não apreciam o valor intelectual, ficam indiferentes aos mais maravilhosos proble­mas da Criação, e vivem sem desígnio. Que lastima! Um habitante de Paris, que jamais tivesse ouvido pronunciar o nome dessa cidade, nem o da. França, não seria mais estrangeiro do que eles em sua própria pátria. Ali! se pudessem ver a Terra daqui, com que prazer para ela regressariam, e seriam reformadas as suas idéias gerais e parti­culares! Então conheceriam, ao menos, o país em que habitam; seria um começo; estudariam pro­gressivamente as realidades sublimes que os cer­cam, em vez de vegetar sob um nevoeiro sem hori­zonte, e em breve viveriam da verdadeira vida, da vida intelectual!

- Que honra lhe faz! Acreditar-se-ia real­mente que ele deixou amigos naquele presídio!

Eu não falara. Mas ouvi bem distintamente essa frase, que parecia responder à minha íntima conversação. Dois habitantes de Marte olhavam para mim, e me haviam compreendido, em virtude do sexto sentido de percepção magnética de que tratei antes. Fiquei um tanto surpreso, e, confes­sá-lo-ei, sensivelmente ofendido com a apóstrofe

- No fim de contas, pensei eu, amo a Terra, é meu país, e tenho patriotismo!

Desta vez os meus dois vizinhos riram ao mes­mo tempo.

- Sim, tornou um deles com inesperada bon­dade, tens patriotismo. Bem se vê que chegas da Terra.

E o mais idoso acrescentou:

- Deixa lá os teus compatriotas; nunca serão nem mais inteligentes, nem menos cegos do que hoje. Há oitocentos séculos já que assim se con­servam. E, tu mesmo o confessas, não são ainda capazes de pensar. És admirável em olhar a Terra com olhos tão enternecidos. E' demasiada inge­nuidade.

Não tens, caro leitor, deparado às vezes em tua passagem um desses homens impregnados de im­perturbável orgulho, e que se julgam, sinceras e inabalàvelmente, acima de todo o resto do mundo? Quando essas altivas personagens se acham em pre­sença de uma superioridade, esta se lhes torna ins­tantaneamente antipática: não a suportam. Pois bem! durante o que precede (e de que dei há pouco uma pálida tradução), eu me senti muito superior à Humanidade terrestre, pois que tinha compaixão dela, e invocava para ela melhores dias. Quando, porém, aqueles dois habitantes de Marte pareceram comiserar-se de mim, e cri reconhecer neles uma fria superioridade, tornei-me, então, por momentos, um desses ineptos orgulhosos; o meu sangue deu apenas uma volta, e, contendo-me por um resto de polidez francesa, abri a boca para dizer:

- No fim de contas, meus amigos, os habi­tantes da Terra não são tão estúpidos quanto por aqui, parece, se acredita, e valem talvez mais do que os senhores.

Infelizmente, eles não me deixaram sequer en­cetar a frase, atendendo-se a que a tinham adivi­vinhado enquanto se formava pela vibração das medulas do meu cérebro.

- Permite-me dizer-te desde já, exclamou o mais moço, que o teu planeta está absolutamente errado, em consequência de uma circunstância que data de uns cem mil séculos. Era no tempo do período primário da gênese terrestre. Havia plan­tas já, e mesmo plantas admiráveis, e no fundo dos mares, e também nas margens, apareciam os primeiros animais, os moluscos sem cabeça, surdos, mudos e desprovidos de sexo. Sabes que a respiração basta às árvores para o seu nutrimento com­pleto, e que os mais robustos carvalhos, os cedros mais gigantescos jamais comeram coisa alguma, o que não os impediu de crescer. Nutrem-se unicamente pela respiração. A desgraça, a fatalidade quis que um primeiro molusco tivesse o corpo atra­vessado por uma gota de água mais espessa do que o meio ambiente. Achou-a ele talvez agradável. Foi essa a origem do primeiro tubo digestivo, que tão funesta ação devia exercer sobre a animalidade inteira, e mais tarde sobre a Humanidade mesmo. O primeiro assassino foi o molusco que comeu.

Aqui não se come, nunca se comeu, não se comerá jamais. A criação tem-se desenvolvido gra­dual, pacifica, nobremente, do modo pelo qual começara. Os organismos se nutrem, isto é, renovam suas moléculas, por simples respiração, qual o fa­zem as árvores terrestres, cada uma de cujas folhas é um pequeno estômago.-Na tua cara Pátria, não se pode viver um só dia sem a condição de matar. Entre vós outros a lei de vida é a lei de morte. Aqui, a ninguém jamais acudiu a idéia de matar, sequer, um pássaro.

Vós outros sois todos, mais ou menos, car­niceiros. Tendes os braços cheios de sangue; os estômagos estão repletos de vitualhas. Como que­rem, com organismos tão grosseiros quanto esses, possuir idéias sãs, puras, elevadas - direi mesmo (perdoa-me a franqueza), idéias limpas? Que al­mas poderiam habitar semelhantes corpos? Reflete um momento, e não te enganes mais com cegas ilusões demasiado ideais para tal mundo.

- Quê! exclamei, interrompendo, negais a pos­sibilidade de ter idéias próprias? Os seres humanos são meros animais? Homero, Platão, Fídias, Sêneca, Vergílio, o Dante, Colombo, Bacon, Galileu, Pascal, Rafael, Mozart, Beethoven nunca tiveram aspiração elevada? Achais grosseiros e repelentes os nossos corpos; se tivésseis visto passar diante dos olhos Helena, Frineia, Aspásia, Safo, Cleópatra, Lucrecia Bórgia, Agnes Sorel, Diana Poitiers, Margarida de Valois, Talien, Recamier, Georges e suas admirá­veis rivais, pensaríeis talvez de modo diferente. Ah! meu caro Marciano, por minha vez, permiti lamentar que não conheçais a Terra senão de longe.

- E no que te enganas; habitei durante meio século esse mundo. Bastou-me isso, e asseguro-te que lá não tornarei mais. Tudo ali está errado, mesmo... o que te parece mais sedutor. Imaginas que em todas as Terras do Céu as flores dão nasci­mento aos frutos por maneira idêntica? Não seria isso um tanto cruel? Pelo que me toca, prefiro as primaveras e os botões de rosa.

- Mas, tornei eu, entretanto, e apesar de tudo, há grandes Espíritos na Terra, e criaturas realmente admiráveis. Não se pode nutrir a espe­rança de que a beleza física, e moral se irá aper­feiçoando cada vez mais, conforme o tem feito até aqui, e que as inteligências se esclarecerão progres­sivamente? A gente não passa o tempo todo co­mendo. Os homens, apesar dos seus trabalhos materiais, terminarão consagrando, todos os dias, algumas horas ao desenvolvimento da inteligência. Então, sem dúvida, não continuarão mais fabrican­do deusinhos à sua imagem, e quiçá também suprimirão as pueris fronteiras para que reine a harmonia e a fraternidade.

- Não, meu amigo, porque, se o quisessem, tê-lo-iam desde já. Ora, eles o evitam. O homem terrestre é um animalzinho que, por um lado, não experimenta a necessidade de pensar, não tendo mesmo a independência da alma, e que, por outro lado, gosta de bater-se e estabelece francamente o direito da força. Tal é a sua vontade e a sua natureza. Jamais conseguirás que um espinheiro produza pêssegos.

O planeta terrestre está ainda em estado de barbárie. Vós outros ainda não encontrastes nada melhor do que o absurdo do duelo para resolver uma questão de honra. As instituições sociais são estabelecidas sobre o direito do mais forte e sobre o - número - brutal. A região mais civilizada da Terra é a Europa: todos os cidadãos são educados no culto do assassínio internacional, e impostos ultrajantes atiram (eu o vejo no teu espírito) seis bilhões por ano, mais de dezesseis milhões por dia nas casernas improdutivas. A guerra perpétua é a alegria imbecil dos pequenos, e a maneira de domi­nação para os grandes. Se os cidadãos, a qualquer país que pertençam, tivessem o bom espírito de recusa, todos, sem exceção, ao serviço militar, me­receriam o título de homens de senso. Eles não querem isto, porque amam a escravidão, e o estado de mediocridade do planeta é ainda muito delicioso para a besta humana.

- Bem, retorqui eu, não se imagine que por isso estejamos condenados à impenitência final. Dia virá, talvez em centenas de séculos, em que a Humanidade, chegada à idade do siso, formará uma família única, falando o mesmo idioma, e onde o sentimento de patriotismo, que a divide ainda para muito tempo, terá dado lugar ao sentimento único, geral, absoluto, da solidariedade humana. Então somente o planeta será transformado e viverá intelectualmente.

- Jamais, repôs um dos Marcianos, jamais vosso planeta medíocre atingirá a perfeição do nosso. Sois muito espessos.

Reflete, pois, que as deliciosas belezas ter­restres, a que aludias há pouco, são apenas uns grosseiros monstros comparadas às nossas aéreas mulheres de Marte, as quais vivem do ar de nossas primaveras, dos perfumes de nossas flores, e são tão voluptuosas, no frêmito de suas asas, no ideal beijo de uma boca que jamais comeu: que, se a Beatriz do Dante tivesse sido de tal natureza, jamais o imortal Florentino teria podido escrever dois cantos do Divina Comedia; houvera começado pelo Paraíso e dai não teria descido. Reflete que os nossos adolescentes possuem tanta ciência inata quanto Pitágoras, Arquimedes, Euclides, Képler, Newton, Laplace e Darwin após todos os seus labo­riosos estudos. Os nossos doze sentidos nos põem em comunicação direta com o Universo; sentimos daqui, a cem milhões de léguas, a atração de Júpiter que passa; vemos a olho nu os anéis de Saturno; adivinhamos a chegada de um cometa, e o nosso corpo está impregnado da eletricidade solar, que põe em vibração a Natureza inteira. Aqui, nunca houve fanatismo religioso, nem carrasco, nem már­tires, nem divisões internacionais, nem guerras; mas, desde os seus primeiros dias, a Humanidade, naturalmente pacífica e livre de toda a necessidade material, tem vivido independente de corpo e de espírito, em constante atividade intelectual, ele­vando-se sem parar no conhecimento da Verdade. Mas, chega até mais perto.

Dei alguns passos com os meus interlocutores no cimo da montanha, e, chegando à vista da outra vertente, distingui multidão de luzes de diversos cambiantes volteando nos ares. Eram os habitantes que, de noite, se tornam luminosos, quando o que­rem. De carnação aérea, parecendo formados de flores fosforescentes, guiavam orquestras e coros; um deles passou por muito perto, e tomamos lugar no meio de uma nuvem de perfumes. As sensações que eu experimentava eram singularmente estra­nhas a todas aquelas que eu havia tido na Terra, e essa primeira noite em Marte passou qual rápido sonho, pois, quando rompeu a aurora, eu me achava ainda no carro aéreo, discorrendo com os meus interlocutores, com os seus amigos e suas indefi­níveis companheiras. Que panorama ao erguer do Sol! Flores, frutos, perfumes e palácios mágicos er­guiam-se em ilhas de alaranjada vegetação; as águas estendiam-se em límpidos espelhos, e alegres pares aéreos desciam turbilhonando para as encan­tadoras margens. Ali, todos os trabalhos materiais são executados por máquinas e dirigidos por algu­mas raças animais aperfeiçoadas, cuja inteligência é pouco mais ou menos da mesma ordem da dos humanos na Terra. Os habitantes não vivem senão pelo Espírito e para o Espírito; a tal grau de de­senvolvimento chegou o seu sistema nervoso, que cada uma daquelas criaturas, ao mesmo tempo deli­cada e fortíssima, parece um aparelho elétrico, e as suas mais sensuais impressões, muito mais sen­tidas por suas almas do que pelos corpos, excedem no cêntuplo todas aquelas que os nossos cinco sen­tidos terrestres reunidos jamais nos podem oferecer. Uma espécie de palácio de verão, iluminado pelos raios do Sol nascente, estava aberto por debaixo da nossa gôndola. A minha vizinha, cujas asas palpitavam de impaciência, pôs o delicado pé em um pendão de flores que se erguia entre dois jactos de perfumes.

- Voltarás tu à Terra? perguntou estenden­do-me os braços.

- Nunca mais! exclamei. E precipitei-me para ela.

Mas, de súbito, eu me encontrei solitário à beira do meu bosque, na vertente da colina a cuja falda serpenteava o Sena em ondulosas rugas.

- Nunca mais!... repeti, procurando agar­rar-me ao sonho desfeito.

Onde estava eu ? Era tão belo!

O Sol acabava de esconder-se, e já o planeta Marte, rutilantíssimo então, se acendia na abóbada celeste.

- Ali! exclamei, atravessado por fugitivo cla­rão, eu estava lá!

Embalados pela mesma atração, os dois pla­netas vizinhos miravam-se através do Espaço trans­parente. Não teríamos, nessa fraternidade celeste, uma primeira imagem da viagem eterna? A Terra não existe sozinha no mundo. Começam a abrirem-se os panoramas do Infinito. Habitemos nós aqui ou vivamos além, somos, não cidadãos de um país ou de um mundo, mas, na realidade, cidadãos do céu.

III

O PLANETA MARTE

Tinha sido ludíbrio de um sonho?

O meu Espírito se transportara realmente ao planeta Marte, ou fora vítima de uma ilusão abso­lutamente imaginária?

Tão vivo, tão intenso havia sido o sentimento da realidade, e as coisas que vira se achavam tão perfeitamente concordes com as noções científicas que possuímos já sobre a natureza física do mundo marciano, que eu não podia aceitar uma dúvida a esse respeito, conservando-me estupefato dessa via­gem extática, e a mim próprio dirigindo mil per­guntas que se combatiam umas às outras.

A ausência de Spero, em toda essa visão, in­trigava-me um tanto. Continuava a sentir-me tão intimamente ligado à sua querida lembrança, que me parecia devera ter adivinhado a sua presença, voar diretamente para ele, vê-lo, falar-lhe, ouvi-lo. Mas não teria o magnetizado de Nancy sido ludí­brio da sua própria imaginação, ou da minha, ou da do experimentador? Por outra parte, admitindo mesmo que os meus dois amigos estivessem real­mente reencarnados naquele planeta vizinho, eu respondia, a mim próprio, que pessoas podem perfeitamente não se encontrar, percorrendo a mesma cidade, e, com muito maior razão, um mundo. E, no entanto, não era decerto o cálculo das probabi­lidades que se devia invocar para o caso, pois o sentimento de atração, da força daquele que nos ligava, devia modificar o acaso dos encontros, e pôr na balança um elemento que o fizesse vencer tudo o mais. Assim discorrendo comigo mesmo, recolhi-me ao meu observatório de Juvisy, onde preparara algumas baterias elétricas para uma ex­periência de óptica, em correspondência com a torre de Montlhery. Quando me certifiquei de que tudo estava bem em ordem, entreguei ao meu aju­dante o cuidado de fazer os sinais convencionados, das dez às onze horas, e parti, eu próprio, para a velha torre, na qual me instalei uma hora depois. Caíra à noite. Do alto do antigo torreão, o hori­zonte é perfeitamente circular, e destacado em toda a sua circunferência, que se estende em um raio de 20 a 25 quilômetros em redor daquele ponto central. Um terceiro posto de observação, situado em Paris, estava em comunicação conosco. O fim da experiência era saber se os raios de diversas cores do espectro luminoso viajam todos com a mesma velocidade de 300.000 quilômetros por se­gundo. O resultado foi afirmativo.

Tendo as experiências ficado concluídas às onze horas, mais ou menos, e porque a noite estrelada estivesse maravilhosa e a Lua começasse a erguer-se, logo que coloquei os aparelhos ao abri­go do tempo, no interior da torre, subi para a pla­taforma superior, a fim de contemplar a imensa paisagem iluminada pelos primeiros raios da lua nascente. A atmosfera estava serena, tépida, quase quente.

O meu pé, porém, ainda estava no último degrau, quando estaquei, petrificado de espanto; soltando um grito que pareceu imobilizar-se na garganta. Spero, sim, o próprio Spero estava ali, diante de mim, sentado no parapeito. Levantei os braços para o céu, e me senti prestes a perder os sentidos; ele, porém, me disse, com a sua voz extremamente meiga, que eu tanto e tanto conhecia:

- Porventura te causo medo?

Não tive forças para responder, nem para adiantar-me. Contudo, ousei olhar de frente para o meu amigo, que sorria. O seu querido semblante, iluminado pelo luar, conservava-se tal qual eu o havia visto por ocasião da partida de Paris para Cristiânia, moço, agradável, pensativo, com um olhar muito brilhante. Deixei o último degrau e tive o impulso íntimo de precipitar-me para ele, a fim de abraçá-lo. Não me atrevi, porém, e con­servei-me defronte dele, contemplando-o.

Tinha recuperado o uso dos sentidos. - Spero ! ... És tu ! . .. exclamei.

- Estava aqui durante a tua experiência, res­pondeu ele, e fui eu mesmo quem te inspirou a idéia de comparar o extremo roxo ao extremo ver­melho, para a velocidade das ondas luminosas. unicamente estava invisível, tanto quanto os raios ultra-roxos.

- Vejamos! é isto possível? Deixa-me to­car-te.

Passei minha mão pelo rosto, pelo corpo, pelos cabelos, e tive absolutamente a mesma impressão de haver tocado um corpo vivo. A minha razão se negava a admitir o testemunho dos meus olhos, dos meus dedos e do meu ouvido e, no entanto, eu não podia duvidar de que fosse ele. Não há sósia igual. E, depois, minhas dúvidas ter-se-iam desfeito desde as suas primeiras palavras, pois que acrescentou logo:

- O meu corpo, neste momento, está dormin­do em Marte.

- Assim, disse eu, tu continuas a existir, vives ainda... e conheces afinal a resposta ao grande problema que tanto te atormentou... E Icleia ?

Vamos conversar, respondeu ele.- Tenho muitas coisas que te dizer.

Sentei-me a seu lado, na borda do largo para­peito que domina a velha torre, e eis o que ouvi - Algum tempo depois do acidente do lago de Tyrifjorden, sentira-se acordado do que parecia um longo e pesado sono. Achava-se sozinho, em escuridão completa, à beira de um lago; sentia-se vivo, mas não se podia ver, nem tocar em si mesmo. O ar o feria. Não estava somente leve, mas tam­bém imponderável. O que lhe parecia subsistir dele era somente a faculdade de pensar.

A sua primeira idéia, reunindo as reminiscências, foi que despertava da queda no lago norueguês. Quando, porém, amanheceu o dia, perce­beu que se achava em outro mundo. As duas luas que giravam rapidamente no firmamento, em sen­tido contrário uma à outra, fizeram-no pensar que estava em nosso vizinho, o planeta Marte, e não tardou que outros testemunhos tal lho provassem.

Conservou-se ali um certo tempo na condição de Espírito; reconheceu a presença de uma Huma­nidade muito elegante, na qual predomina sobe­rano o sexo feminino, por incontestável superiori­dade sobre o sexo masculino. Os organismos são leves e delicados; a densidade dos corpos é muito fraca, o peso mais fraco ainda. Na superfície desse mundo a força material desempenha apenas um papel secundário na Natureza; a delicadeza das sensações decide de tudo. Há ali grande número de espécies de animais e várias raças humanas. Em todas essas espécies e em todas essas raças, o sexo feminino é mais belo e mais forte (consistindo a força na superioridade das sensações) do que o masculino, e é aquele que rege o mundo.

O grande desejo de conhecer a vida que tinha diante de si, decidiu-o não se conservar por muito tempo em estado de Espírito contemplados, mas a renascer sob uma forma corporal humana, e, dada a condição orgânica daquele planeta, sob a forma feminina.

Entre as almas terrestres flutuantes na atmos­fera de Marte tinha ele encontrado já (pois as almas se sentem) a de Icleia, que o seguira, guia­da por uma atração constante. Ela, por seu lado, sentira-se levada para uma encarnação masculina.

Estavam assim reunidos ambos, em um dos mais privilegiados países desse mundo, vizinhos e predestinados a novo encontro na vida e a partilhar das mesmas emoções, dos mesmos pensamentos, das mesmas obras. Assim, conquanto a memória da sua existência terrestre se conservasse velada e quase apagada pela nova transformação, vago sen­timento de parentesco e simpático apego imediato os havia reunido logo que se tinham avistado. A superioridade psíquica, a natureza dos seus pensa­mentos habituais, o estado de espírito acostumado a procurar os fins e as causas, lhes haviam dado uma espécie de íntima penetração que os despren­dia da geral ignorância dos viventes. Tinham-se amado tão de súbito, haviam tão passivamente sen­tido a influência magnética do choque de reencon­tro, que para logo constituíram um mesmo e único ente, tão unidos quanto o estavam no momento da separação terrestre. Lembravam-se de se terem encontrado já, estavam convencidos de que fora na Terra, nesse planeta vizinho que à noite brilha com tão vivo fulgor no céu de Marte, e às vezes, em seus vôos solitários por sobre as colinas povoa­das de plantas aéreas, contemplavam a estrela da tarde, procurando reatar o fio quebrado de uma tradição interrompida.

Inesperado acontecimento veio explicar tais re­miniscências e provar que não se enganavam.

Os habitantes de Marte são muito superiores aos da Terra, pela sua organização, pelo número e pela delicadeza de seus sentidos, e pelas faculdades intelectuais. O fato de ser a densidade muito fraca na superfície daquele mundo, e as substâncias cons­titutivas dos corpos menos pesadas lá do que aqui, permitiu a formação de seres incomparàvelmente menos pesados, mais aéreos, mais sutis, mais sen­síveis. O fato de ser nutritiva a atmosfera, libertou os organismos marcianos das grosserias das neces­sidades terrestres. E' totalmente outro estado. A luz ali é menos viva, estando o planeta mais afas­tado do Sol do que a Terra; o nervo óptico é mais sensível. Sendo ali intensíssimas as influências elétricas e magnéticas, os habitantes possuem sentidos ignorados das organizações terrestres, sentidos que os põem em comunicação com essas influências. Tudo se contém na Natureza. Os seres, em toda parte, são apropriados aos meios em que habitam e em cujo seio nasceram. Os organismos não podem mais ser terrestres em Marte, de igual modo que não podem ser aéreos no fundo do mar.

De mais, o estado de superioridade consequente dessa ordem de coisas evoluiu por si mesmo, pela facilidade da realização de todo o trabalho inte­lectual. A Natureza parece obedecer ao pensa­mento. O arquiteto que quer levantar um edifício; o engenheiro que deseja modificar a superfície do solo, quer se trate de levantar ou de cavar, de cortar montanhas ou de aterrar vales, não se es­barram, qual acontece na Terra, com o peso dos materiais e nas dificuldades da execução. Assim, têm a Arte feito, desde a origem, os mais rápidos progressos.

Além disso ainda, sendo a Humanidade mar­ciana várias dezenas de milhares de séculos ante­rior à terrestre, tem percorrido anteriormente a esta todas as fases do seu desenvolvimento. Os mais transcendentes progressos científicos atuais da Terra não passam de pueris brinquedos de crian­ça, comparados à Ciência dos habitantes daquele planeta.

Principalmente em astronomia estão mais adiantados e conhecem melhor a Terra do que desta conhecem aquela pátria.

Inventaram eles, entre outros, uma espécie de aparelho telefotográfico, no qual um rolo de estofo recebe perpetuamente, desenrolando-se, a imagem do nosso mundo e a fixa inalteravelmente. Imenso museu, consagrado especialmente aos planetas do sistema solar, conserva na ordem cronológica todas essas imagens fotográficas fixadas para sempre.

Encontra-se ali a história toda da Terra; a França do tempo de Carlos Magno, a Grécia do tempo de Alexandre, o Egito do tempo de Ramsés. Microscópicos permitem mesmo reconhecer ali os porme­nores históricos, assim Paris durante a revolução francesa, Roma sob o pontificado de Bórgia; a frota espanhola de Cristóvão Colombo chegando a Amé­rica; os Francos de Clóvis tomando posse das Gálias; o exército de Júlio César detido na conquista da Inglaterra, pela maré que lhe levou os navios; as tropas do Rei David, fundador dos exér­citos permanentes; e também a maior parte das cenas históricas, reconhecíveis por certos caracteres especiais.

Um dia em que os dois antigos noivos visi­tavam esse museu, a reminiscência, vaga até então, iluminou-se qual paisagem noturna atravessada por um relâmpago. De súbito reconheceram o aspecto de Paris durante a Exposição de 1867. Acentuou­-se-lhes a lembrança. Cada um deles sentiu, separa­damente, que tinha vivido ali, e, sob essa impressão tão forte, foram logo dominados pela certeza de ali terem vivido juntos. A memória avivou-se gradual­mente, não já por intermitentes clarões, mas qual a luz progressiva do começo da aurora.

Lembraram-se então, ambos, sob a forma de inspiração, das palavras do Evangelho: Há diver­sas moradas na casa de meu Pai.

Em verdade te digo, se um homem não nasce de novo, não verá o reino de Deus ... Cumpre que nasças de novo.

Desde esse dia, não conservaram mais dúvida alguma sobre a sua anterior existência terrestre; ficaram inteiramente convencidos de que continua­vam, no planeta Marte, a sua precedente vida. Pertenciam ao ciclo dos grandes Espíritos de todos os séculos, os quais sabem que o destino não pára no mundo atual, e continua no Céu - e também cada planeta, Terra, Marte, ou qualquer outro, é um astro desse Céu.

O fato bem singular da mudança de sexo, que se me afigurava ter certa importância, ao que pa­rece, não tinha nenhuma. Contrariamente ao que admitido entre os terrestres, contou-me que as almas não possuem sexo e têm um destino igual. Soube eu também que naquele planeta, menos ma­terial do que o nosso, a organização em nada se assemelha à dos nossos corpos terrestres. As con­cepções e os nascimentos efetuam-se ali de um modo inteiramente diverso, que lembra, mas sob uma forma espiritual, a fecundação das flores e o seu desabrochar. O prazer é sem azedume. Não se conhecem lá os pesados fardos terrestres, nem os dilaceramentos da dor. Tudo é mais aéreo, mais etéreo, imaterial. Poder-se-ia chamar aos marcia­nos - flores viventes, aladas e pensantes. Mas, de fato, nenhuma criatura terrestre pode servir de pa­ralelo para auxiliar a compreensão da forma e do modo de existência ali.

Eu escutava a narração da alma defunta, quase sem a interromper, pois me parecia sempre que ela ia sumir-se, conforme tinha vindo. Entretanto, à lembrança do meu sonho, que me havia acudido, pela coincidência das precedentes descrições com o que eu tinha visto, não pude deixar de referir ao meu celeste companheiro esse surpreendente sonho, e de exprimir-lhe o meu pasmo por não o ter visto nessa viagem a Marte, o que me dizia duvidar da realidade de tal excursão.

- Mas, replicou ele, eu te vi perfeitamente, e tu me viste também, e me falaste ... Porque era eu...

Tão estranha foi a entonação da voz ao pro­nunciar as últimas palavras, que reconheci nela,subitamente, a melodiosa voz da bela Marciana que tanto me impressionara.

- Sim, prosseguiu ele, era eu; procurava dar­-me a conhecer; mas, deslumbrado por um espe­táculo que te cativara o Espírito, não te desprendias das sensações terrestres; conservavas-te. sensual e terrestre, e não conseguiste elevar-te à pura per­cepção. Sim, fui eu quem te estendeu os braços para te fazer apear do carro aéreo à porta da nossa morada, quando subitamente despertaste.

- Mas então, exclamei, se és essa Marciana, porque me apareces aqui sob a forma de Spero, que já não existe?

Não é na tua retina nem no teu nervo ópti­co que atuo, replicou ele, mas no teu ser mental e no teu cérebro. Acho-me neste momento em co­municação contigo; influencio diretamente a sede cerebral da tua sensação. Na realidade, o meu ser mental não tem forma, é igual ao teu, idêntico a todas as almas. Quando, porém, me coloco, e é o caso neste momento, em relação direta com o teu pensamento, não me podes ver senão tal qual me conheceste. Acontece o mesmo durante o sonho, isto é, durante mais da quarta parte da vida terrestre - durante quatro lustros sobre catorze - vedes, ouvis, falais, tocais com a mesma impressão, com a mesma clareza, com a mesma segurança com que o fazeis durante a vida normal, de vigília, e, no entanto, no sonho, os olhos estão fechados, o tím­pano está insensível, os lábios mudos, os braços estendidos sem movimento. A mesma coisa se dá também nos estados de sonambulismo, de hipno­tismo, de sugestão. Tu me vês, tu me ouves e me tocas, pelo teu cérebro influenciado; porém, sob a forma que tu vês eu não existo, de igual modo que não existe o arco-íris ante os olhos de quem o contempla.

- Poderias tu, porventura, aparecer-me também sob a tua forma marciana?

- Não; a menos que sejas realmente trans­portado em Espírito àquele planeta. Seria um modo de comunicação inteiramente diverso. Aqui, em nossa conversação, tudo é subjetivo quanto a ti. Os elementos da minha forma em Marte, não exis­tem na atmosfera terrestre, e o teu cérebro não os imaginaria. Não me poderias tornar a ver senão pela lembrança do teu sonho de hoje; mas, desde que procurasses analisar as minudências, a imagem se esvairia. Tu não nos viste exatamente tal qual somos, porque o teu Espírito não pode julgar senão pelos olhos terrestres, que não são sensíveis para todas as radiações, e porque os da Terra não pos­suem todos os nossos sentidos.

- Confesso, repliquei, que não apreendo bem a vida marciana no estado de entes de seis membros.

- Se suas formas não fossem tão elegantes, ter-te-iam parecido monstruosas. Cada mundo tem os seus organismos apropriados às condições de existência. Confesso-te, por minha vez, que, para os habitantes de Marte, o Apolo do Belvedere e a Vênus de Médicis são verdadeiras monstruosidades, por motivo do seu peso animal.

Entre os marcianos, tudo é de extrema deli­cadeza. Conquanto o nosso planeta seja muito me­nor do que a Terra, todavia os seres ali são maiores do que aqui, pois o peso é mais fraco, e os orga­nismos podem elevar-se mais alto sem ser impe­didos pelo seu peso e sem pôr em risco a corres­pondente estabilidade.

São maiores e mais leves, porque os mate­riais constitutivos desse planeta têm uma densidade muito fraca. Aconteceu lá o que aconteceria na Terra, se o peso aqui não fosse tão intenso. As espécies aladas teriam dominado o mundo, em vez de se atrofiarem na impossibilidade de um desen­volvimento. Em Marte, o desenvolvimento orgânico se efetuou na série das espécies aladas. A Humanidade marciana é, com efeito, uma raça de origem sextúpede; atualmente, porém, é bípede, bí­mana, e o que se poderia chamar bialada, pois que esses seres têm duas asas.

O gênero de vida é inteiramente diverso da vida terrestre, primeiramente porque se vive tanto nos ares e nas plantas aéreas, quanto na superfície do solo; depois, porque, sendo a atmosfera nutri­tiva, ali não se come. As paixões não são as mes­mas. O assassínio é desconhecido lá. Não tendo necessidades materiais, sua Humanidade jamais viveu, mesmo nas idades primitivas, na barbárie da rapina e da guerra. As idéias e os sentimentos são de uma ordem inteiramente intelectual.

Contudo, encontram-se na morada daquele planeta, senão semelhanças, ao menos analogias. Assim, há ali, quanto na Terra, uma sucessão de dias e de noites que não difere essencialmente do que existe aqui, sendo de 24 horas, 39 minutos e 35 segundos a duração do dia e noite. Havendo 668 desses dias no ano marciano, temos mais tempo para os nossos trabalhos, investigações, estudos e divertimentos. As nossas estações são também quase duas vezes maiores do que as deste mundo, mas têm a mesma intensidade. Os climas não são muito diferentes; tal região de Marte, nas margens do mar equatorial, difere menos do clima da Fran­ça do que a Lapônia do da Núbia.

Um habitante da Terra não se considera ali muito expatriado. A maior disparidade entre os mundos consiste certamente na grande eleva­ção da nossa Humanidade sobre a da Terra.

Essa superioridade é devida principalmente aos progressos realizados pela ciência astronômica e à propagação universal, entre todos os habitantes do planeta, dessa ciência sem a qual é impossível pensar com acerto, sem a qual não se tem senão idéias falsas sobre a Criação, sobre os destinos. Somos muito favorecidos, tanto pela agudeza dos nossos sentidos, quanto pela pureza de nosso céu. Há muito menos água em Marte do que na Terra, e muito menos nuvens.

O céu ali é quase constantemente belo, em particular na zona temperada.

- Entretanto, são frequentes as inundações.

- Sim, e muito recentemente ainda os teles­cópios da Terra assinalaram uma, bastante extensa, ao longo das margens de um mar a que os teus colegas deram um nome que me será sempre que­rido, mesmo distante da Terra. A maior parte das nossas plagas são praias, planícies iguais. Poucas montanhas possuímos, e os mares não são fundos. Os habitantes aproveitam esses transbordamentos para irrigação das vastas campinas. Têm retifica­do, alargado, canalizado os cursos de água, e cons­truído nos continentes uma rede inteira de imensos canais. Esses continentes mesmos não são, qual os do globo terrestre, eriçados de elevações alpes­tres ou himalaicas, mas planícies imensas, atraves­sadas em todos os sentidos pelos rios canalizados e pelos canais que põem em comunicação todos os mares uns com os outros.

Outrora havia, relativamente ao volume do planeta, quase tanta água em Marte quanta na Terra. Insensivelmente, de século em século, uma parte da água das chuvas atravessou as profundas camadas do solo e não tornou à superfície. Com­binou-se quimicamente com as rochas e foi excluída do curso da circulação atmosférica. De século em século também, as chuvas, as neves, os ventos, os gelos do inverno, as secas do verão, têm desa­gregado as montanhas e os cursos de água, tra­zendo esses destroços para a bacia do mar, cujo leito têm gradualmente levantado. Não possuímos mais grandes oceanos, nem mares profundos, mas unicamente mediterrâneos. Muitos estreitos, golfos, mares análogos à Mancha, ao mar Vermelho, ao Adriático, ao Báltico, ao Cáspio. Praias lindíssimas, enseadas mansas, lagos e espaçosos rios, frotas an­tes aéreas do que aquáticas, céu quase sempre puro, principalmente pela manhã. A Terra não tem ma­nhãs tão luminosas quanto as nossas.

O regime meteorológico difere sensivelmente do da Terra, porque, sendo a atmosfera mais rare­feita, as águas, na superfície aliás, se evaporam mais facilmente; depois porque, condensando-se no­vamente, em vez de formar nuvens duradouras, tornam a passar, quase sem transição, do estado gasoso ao estado líquido. Poucas nuvens e poucos nevoeiros.

A Astronomia lá é cultivada por motivo da pureza do céu. Temos dois satélites cujo curso pa­receria estranho aos astrônomos da Terra, porque, enquanto um dá meses de cento e trinta horas, ou de cinco dias marcianos e mais oito horas, o outro, pela combinação do seu movimento com a rotação diurna do planeta, surge ao Ocidente e desaparece no Levante, atravessando o céu de Oeste para Este em cinco horas e meia, e passa de uma à outra fase em menos de três horas! E um espe­táculo esse único em todo o sistema solar, que muito tem contribuído para atrair a atenção dos habitantes para o estudo do firmamento. Além disso, temos eclipses de luas quase todos os dias; jamais, porém, eclipses totais do Sol, porque os nossos satélites são muito pequenos.

A Terra nos aparece no mesmo grau de Vênus para a Terra. E' ela, para lá, a estrela da manhã e da tarde, e, na antiguidade, antes da invenção dos instrumentos de óptica - os quais nos ensi­naram que é um planeta habitado qual o nosso, mas inferiormente, -, os nossos antepassados ado­ravam-na, saudando nela uma divindade tutelar. Todos os mundos têm uma forma de mitologia durante os séculos de infância, e essa mitologia tem por objeto o aspecto aparente dos corpos celestes.

Às vezes a Terra, acompanhada da Lua, passa por lá diante do Sol e se projeta sobre o seu disco, qual uma pequena mancha negra acompanhada de outra menor. Então, seguem todos com curiosidade esses fenômenos celestes. Nossos jornais tratam muito mais de ciência do que de teatros, de fantasias literárias, de questões políticas ou de tri­bunais.

O Sol nos parece um tanto menor, e dele rece­bemos menos luz e menos calor. Nossos olhos, mais sensíveis, vêem melhor do que os dos terres­tres. A temperatura é um pouco mais elevada.

- Quê! exclamei; vós outros estais mais longe do Sol e sentis mais calor do que os da Terra? - Chamounix fica um pouco mais distante do Sol do que o cimo do Monte-Branco, respondeu ele. Não é só a distância do Sol que regula as temperaturas: cumpre levar em conta também a constituição da atmosfera. Os nossos gelos polares se desfazem mais completamente do que os da Ter­ra sob o nosso Sol de verão.

- Quais são os países de Marte mais po­voados?

Somente as regiões polares (onde da Terra se avistam as neves e os gelos derretendo-se em cada primavera) são as inabitadas; a população das regiões temperadas é muito densa; mas são, ainda assim, as terras equatoriais as mais povoa­das (a população é tão densa ali quanto a da China) e, principalmente, às margens dos mares, apesar das enchentes. Grande número de cidades são edificadas quase sobre a água, de algum modo suspensas nos ares, dominando as inundações de antemão calculadas e esperadas.

- As artes e as indústrias assemelham-se às nossas? Há caminhos de ferro, navios a vapor, o telégrafo, o telefone? - Isso é diferente. Nunca tivemos vapor, nem caminhos de ferro, porque co­nhecemos sempre a eletricidade, e a navegação aérea nos é natural. As nossas frotas são movidas pela eletricidade, e mais aéreas do que aquáticas. Vivemos principalmente na atmosfera, e não temos habitações de pedra, de ferro e de madeira. Não conhecemos os rigores do inverno, porque ninguém ali fica exposto; os que não habitam nas regiões equatoriais, emigram todo o outono, qual fazem os pássaros aqui. Ser-te-ia muito difícil formar uma idéia exata do nosso gênero de vida.

- Existe em Marte grande número de huma­nos que tenham já habitado na Terra?

- Não. Entre os cidadãos deste planeta, a maior parte são ignorantes, ou indiferentes, ou cépticos, e não estão preparados para a vida do Espírito. Acham-se presos à Terra, e por muito tempo. Muitas almas dormem completamente. As que vivem, trabalham, aspiram ao conhecimento do verdadeiro, são as únicas chamadas à imortalidade consciente, as únicas a que o mundo espiritual interessa e estão aptas para compreendê-lo. Essas almas podem deixar a Terra e reviver em outras Pátrias. Algumas vão durante certo tempo habitar em Marte, primeira estação de uma viagem ultra­-terrestre, afastando-se do Sol, ou Vênus, primeira parada aquém; mas Vênus é um mundo análogo à Terra e menos privilegiado ainda, devido a suas demasiado rápidas estações, que obrigam os orga­nismos a sofrer os mais bruscos contrastes de tem­peratura. Certos Espíritos voam imediatamente até às regiões estreladas. Conforme sabes, o Espaço não existe. Em resumo, a justiça reina no sistema do mundo moral, qual o equilíbrio no sistema do mundo físico, e o destino das- almas não é mais do que o resultado perpétuo das aptidões, das aspira­ções, e, conseguintemente, das suas obras.

A senda urânica está, aberta a todos, mas a alma não é verdadeiramente uraniana senão quando se tem desprendido totalmente do peso da vida material. Dia virá em que não haverá mais, neste planeta, outra crença, nem outra religião senão o conhecimento do Universo e a certeza da imortalidade em suas infinitas regiões, no seu domínio eterno.

- Que estranha singularidade, exclamei, não conhecer ninguém na Terra essas sublimes verda­des'. Ninguém olha para o Céu. Vive-se aqui como se somente a nossa ilhota existisse no mundo.

- A Humanidade terrestre é jovem, replicou Spero. Não se deve desanimar. E criança, e está ainda na ignorância primitiva. Diverte-se com frio­leiras, obedece a mestres que ela mesma escolhe. Gosta de dividir-se em nações, e vestir-se ridicula­mente em trajes nacionais para se exterminar por música. Depois, vós outros ergueis estátuas aos que vos levam à matança. Arruínais-vos, suicidais­-vos e, no entanto, não podeis viver sem arrancar a Terra o pão cotidiano. E' uma triste situação essa, mas que basta largamente à maior parte dos habitantes do planeta. Se alguns, de aspirações mais elevadas, têm, às vezes, pensado nos pro­blemas de ordem superior, na natureza da alma, na existência de Deus, o resultado não tem sido melhor, pois puseram as almas fora da Natureza, e inventaram uns deuses esquisitos, infames, que jamais existiram senão na sua imaginação perver­tida, e em cujo nome têm cometido todos os aten­tados à consciência humana, abençoado todos os crimes e submetido os espíritos fracos à escravidão, da qual difícil será libertarem-se. O menor animal, em Marte, é melhor, mais belo, mais meigo, mais inteligente e mais grandioso do que o deus dos exércitos de David, de Constantino, de Carlos Mag­no, e de todos os assassinos coroados. Não há, pois, que admirar a tolice e a grosseria dos Terrestres. Mas a lei do progresso rege o mundo. Estais mais adiantados do que no tempo dos antepassados da idade da pedra, cuja misera existência se consumia em disputar os dias e as noites às feras. Em algu­mas centenas de séculos estareis mais adiantados do que hoje. Então Urânia reinará nos vossos co­rações.

- Seria mister um fato material, brutal, para instruir os humanos e convencê-los. Se, por exem­plo, pudéssemos entrar algum dia em comunicação com a terra vizinha em que habitas, não em comu­nicação psíquica com um ser isolado, qual o faço neste momento, mas com o próprio planeta, por centenas e milhares de testemunhos, seria isso um gigantesco vôo para o progresso.

- Poderiam consegui-lo desde já, se o quisessem ; pois, pelo que nos toca, em Marte, estamos inteiramente preparados para isso, e o temos mes­mo tentado já por muitas vezes. Os da Terra, porém, jamais nos responderam! Refletores solares, desenhando em vossas vastas planícies figuras geo­métricas, provavam que existimos. Poderiam res­ponder-nos com figuras semelhantes, traçadas em suas planícies, ou durante o dia, ao sol, ou durante a noite, com a luz elétrica. Vós outros, porém, nem nisso mesmo pensais e, se alguém propusesse tenta-lo, os juízes declará-lo-iam interdito, pois só essa idéia está inacessivelmente acima do consenso uni­versal dos cidadãos do teu planeta. Em que se ocupam as suas assembléias científicas? Em con­servar o passado. Em que se ocupam as suas assembléias políticas? Em aumentar os. encargos públicos. No reino dos cegos os zarolhos são reis.

Mas não se deve perder totalmente a espe­rança. O progresso os arrebata a pesar seu. Um dia saberão que são cidadãos do céu. Viverão então na luz, no saber, no verdadeiro mundo do Espírito. Enquanto o habitante de Marte me dava a conhecer os principais traços da sua nova Pátria, o globo terrestre tinha voltado para o Oriente, o horizonte se inclinara, e a Lua se erguera gra­dualmente na cúpula celeste que ela iluminava com o seu clarão. De repente, baixando os olhos para o lugar onde Spero estava sentado, não pude conter um movimento de surpresa. O clarão do luar espa­lhava a sua luz, tanto sobre a pessoa do meu amigo quanto sobre mim, e, no entanto, ao passo que o meu corpo projetava sombra no parapeito, o dele ficava sem sombra! Levantei-me bruscamente para verificar melhor o fato, e voltei-me logo, esten­dendo a mão até o seu ombro e seguindo no para­peito a sombra do meu gesto. Instantâneamente, porém, o meu visitante desaparecera. Achava-me absolutamente só, na torre silenciosa. A minha sombra, muito negra, projetava-se distintamente no parapeito. A Lua brilhava. A cidade dormia a meus pés. O ar estava tépido e sem brisas.

Entretanto, pareceu-me ouvir passos. Prestei atenção, e distingui com efeito uns passos bastante pesados que se aproximavam de mim. Evidente­mente subiam na torre.

- O senhor não desceu ainda! exclamou o guarda, parando no terraço. Eu estava esperando para fechar as portas, e supunha que as experiên­cias se achavam terminadas.

IV

O PONTO FIXO DO UNIVERSO

A lembrança de Urânia, da viagem celeste em que me havia levado, das verdades que me fizera pressentir; a história de Spero, de suas lutas na indagação do absoluto; a sua aparição, sua narra­tiva de outro mundo, não cessavam de prender meu pensamento e de colocar continuamente diante do meu espírito os mesmos problemas, em partes resolvidos, em parte velados na incerteza das nos­sas ciências. Sentia que, gradualmente, me havia elevado na percepção da Verdade, e que, realmente, o Universo visível é uma aparência que cumpre atravessar para chegar à realidade.

Tudo é ilusão, no testemunho dos nossos sen­tidos. A Terra não é o que nos parece ser: a Na­tureza não é o que supomos.

No próprio universo físico, onde está o ponto fixo sobre o qual se acha em equilíbrio a criação material ?

A impressão direta e regular dada pela obser­vação da Natureza é de que habitamos na super­fície de uma Terra sólida, estável, fixa no centro do Universo. Foram necessários longos séculos de estudos e audaciosa temeridade de espírito para chegar a libertar-nos dessa impressão natural, e reconhecer que o nosso mundo está isolado no Espaço, sem sustentáculo de espécie alguma, em movimento rápido sobre si mesmo e em torno do Sol. Mas, para os séculos anteriores à análise científica, para os povos primitivos, e ainda modernamente para três quartas partes do gênero humano, temos os pés apoiados em uma Terra sólida, fixada na base do Universo, e cujos alicerces devem estender-se até ao Infinito nas profundezas.

Desde o dia, entretanto, em que se reconheceu que é o mesmo Sol que se deita e se levanta diariamente; a mesma Lua, as mesmas estrelas, as mes­mas constelações que giram em torno da Terra, fomos, por isso mesmo, levados a admitir, por incontestável certeza, que há, acima da Terra, o lugar vazio necessário à passagem de todos os astros do firmamento, desde o ocaso até ao seu nascedouro. Esse primeiro reconhecimento era de valor capital. A admissão do isolamento da Terra no Espaço foi a primeira grande conquista da Astronomia. Era o primeiro passo, e o mais difícil na verdade! Reflitam, pois! Suprimir os alicerces da Terra! Tal idéia jamais teria germinado em um cérebro sem a observação dos astros, sem a trans­parência da atmosfera. Sob um céu perpetuamente nebuloso, o pensamento humano conservar-se-ia fixo ao solo terrestre tal qual a ostra aderida ao rochedo.

Uma vez isolada a Terra no Espaço, estava dado o primeiro avanço. Antes dessa revolução, cujo alcance filosófico iguala o valor científico, to­das as formas tinham sido imaginadas para a nossa morada sublunar. Primeiramente, tinha-se conside­rado a Terra igual a uma ilha emergindo acima de um oceano sem limites, tendo essa ilha infinitas raízes. Depois, atribuíra-se à Terra inteira, com seus mares, a forma de um disco chato, circular, em roda do qual vinha apoiar-se a cúpula do firma­mento. Mais tarde, imaginaram-lhe formas cúbicas, cilíndricas, poliédricas, etc. Enquanto isso, os pro­gressos da navegação tendiam a revelar a sua natu­reza esférica, e quando o isolamento foi reconhecido com incontestáveis testemunhos, sua esfericidade foi admitida por um corolário natural desse isola­mento e do movimento circular das esferas celestes em torno do globo suposto central. Reconhecido desde então isolado no vácuo, já não era difícil fazer mover o globo terrestre. Outrora, quando o céu era considerado uma cúpula coroando a Terra maciça e indefinida, só a idéia de supô-la em mo­vimento teria sido tão absurda quanto insustentável. Desde o dia, porém, em que a vemos, em espírito, colocada igual a um globo no centro dos movimentos celestes, a idéia de imaginar que, talvez, esse globo poderia girar sobre si mesmo para evitar ao céu inteiro, ao Universo imenso, a obrigação de executar essa operação cotidiana -, pode acudir naturalmente à cogitação do pensador. E, com efeito, vemos a hipótese da rotação diurna do globo terrestre surgir nas antigas civilizações, nos Gre­gos, nos Egípcios, nos Indianos, etc. Basta ler alguns capítulos de Ptolomeu, de Plutarco, do Su­ria-Sïdhanta, para ter idéia dessas tentativas. Mas, nova hipótese, embora preparada pela primeira, não era menos audaciosa e contrária ao sentimento nascido da contemplação direta da Natureza. A Humanidade pensante teve que esperar até ao dê­cimo-sexto século da nossa era, ou, para melhor dizer, até ao décimo-sétimo século, para conhecer a verdadeira posição do nosso planeta no Universo e saber, com testemunhos em seu apoio, que ela se move com duplo movimento, cotidianamente sobre si mesma, anualmente em torno do Sol. A datar somente dessa época, a datar de Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, a verdadeira Astronomia foi fun­dada.

Não passava isso, entretanto, de um começo, pois o grande renovador da idéia do sistema do mun­do, o próprio Copérnico, não suspeitava dos outros movimentos da Terra, nem das distâncias das es­trelas. Foi somente em nosso século que as primei­ras distâncias das estrelas puderam ser medidas, e é somente em nossos dias que as descobertas side­rais nos têm oferecido elemento necessário para permitir à tentativa de idéia exata das forças que mantêm o equilíbrio da Criação.

A antiga concepção, das raízes sem fim atri­buídas a Terra, deixava evidentemente muito a desejar aos espíritos ansiosos de ir ao fundo das coisas. Não nos é absolutamente possível conceber um pilar material, tão espesso e tão largo quanto queiram (do diâmetro da Terra, por exemplo), en­terrando-se até ao Infinito, de igual maneira que não se pode admitir a existência real de um poste que tivesse só uma extremidade. Tão longe quanto o nosso espírito desce para a base desse pilar ma­terial, chega a um ponto onde lhe vê o fim. Tinha­-se disfarçado a dificuldade materializando a esfera celeste, e pondo-lhe a Terra dentro, ocupando toda a sua região inferior. Mas, de uma parte, tornavam­-se difíceis de justificar os movimentos dos astros, e, por outro, esse mesmo universo material, encer­rado em imenso globo de cristal, não era sustentado por coisa alguma, pois que o Infinito devia esten­der-se em redor dele, tanto por baixo quanto por cima. Os Espíritos investigadores tiveram então que se libertar da idéia vulgar do peso.

Isolada no Espaço, igual a um balão de criança flutuando no ar, e mais absolutamente ainda, pois que o balão é levado pelas vagas aéreas, enquanto que os mundos- gravitam no vácuo, a Terra é um brinquedo para as forças cósmicas invisíveis a que ela obedece, verdadeira bolha de sabão sensível ao menor sopro. Podemos, aliás, julgar facilmente dis­so, encarando sob o mesmo lance de olhos os onze movimentos principais de que ela é animada. Aju­dar-nos-ão talvez a achar esse ponto fixo que a nossa ambição filosófica reclama.

Lançada em torno do Sol, à distância de 37 milhões de léguas, e percorrendo, nessa distância, a sua revolução anual em torno do astro luminoso, corre conseguintemente com a velocidade de 643.000 léguas por dia, ou 26.800 léguas por hora, ou 29.450 metros por segundo. Essa velocidade é mil e cem vezes mais rápida do que a de um trem-relâmpago lançado na razão de 100 quilômetros por hora.

E' uma bala de artilharia, correndo com rapidez setenta e cinco vezes superior à de um obus, avan­çando incessantemente e sem jamais atingir o fim. Em 365 dias, 6 horas, 9 minutos e 10 segundos, o projetil terrestre volta ao mesmo ponto de sua órbita relativamente ao Sol, e continua a correr. O Sol, por seu lado, se desloca no Espaço, seguindo uma linha oblíqua ao plano do movimento anual da Terra, linha dirigida para a constelação de Hércules. Dai resulta que, ao invés de percorrer uma curva fechada, a Terra descreve uma espiral, e jamais passou duas vezes pelo mesmo caminho desde que existe. Ao seu movimento de revolução anual em torno do Sol, se junta, pois, perpetuamente, qual um segundo movimento, o do próprio Sol, que a arrasta, com todo o sistema, em uma queda oblíqua para a constelação de Hércules.

Durante esse tempo, o nosso globo gira sobre si mesmo em vinte e quatro horas, e nos dá a su­cessão cotidiana dos dias e das noites. Rotação diurna: terceiro movimento.

Não gira ele sobre si mesmo à maneira de um pião em vertical em cima de uma tábua, mas inclinado, como se sabe, 23.° 27'. Essa inclinação não é também estável: varia de ano em ano, de século em século, oscilando lentamente, por perío­dos seculares: eis um quarto gênero de movimento.

A órbita que o nosso planeta percorre anual­mente em torno do Sol não é circular, mas elíptica. Essa elipse também varia de ano em ano, de século em século; ora se aproxima da circunferência de um círculo, ora se alonga até uma grande excentri­cidade. E par de um aro elástico que se defor­masse mais ou menos. Quinta complicação no mo­vimento da Terra.

Essa própria elipse não é fixa no Espaço, mas gira em seu próprio plano, em um período de 210 séculos. O periélio, que, no começo da nossa era, estava a 65 graus de longitude, a partir do equi­nócio de primavera, passou agora a 101 graus. Essa deslocação secular da linha das apsides produz uma sexta complicação nos movimentos da nossa morada.

Eis uma sétima. Dissemos que o eixo de rota­ção do nosso globo é inclinado, e todos sabem que o prolongamento ideal desse eixo vai direito à es­trela polar. Esse eixo mesmo não é fixo: gira em 257 séculos e meio, conservando a sua inclinação de 22 a 24 graus; de sorte que o seu prolongamento descreve na esfera celeste, em torno do pólo da elíptica, um círculo de 44 a 48 graus de diâmetro, conforme as épocas. E' em consequência desse deslocamento do pólo que Vega se tornará estrela polar, daqui a mil e duzentos séculos, qual já o foi há mil. Sétimo gênero de movimento.

Um oitavo movimento, devido à influência da Lua sobre a inflação equatorial da Terra, o da nu­tação, faz descrever ao pólo do equador uma pe­quena elipse em 224 meses.

Um nono, devido igualmente à atração do nosso satélite, muda incessantemente a posição do centro de gravidade do globo e o lugar da Terra no Espaço. Quando a -Lua nos está adiante, acelera a marcha do globo; quando se acha atrás, nos re­tarda, ao contrário, qual um freio: complicação mensal que vem juntar-se às precedentes. Quando a Terra passa entre o Sol e Júpiter, a atração deste, apesar da distância de 155 milhões de léguas, faz a Terra desviar-se 2'10'' para além da sua órbita absoluta. A atração de Vênus a desvia 1'25'' aquém. Saturno e Marte atuam igualmente, porém de modo mais fraco. São perturbações exteriores essas constitutivas de um décimo gênero de corre­ções a acrescentar aos movimentos do nosso esquife celeste.

Pesando o conjunto dos planetas quase a sé­tima-centésima parte do peso do Sol, o centro de gravidade em torno do qual a Terra circula anual­mente nunca está precisamente no centro do Sol, mas distante desse centro, e muitas vezes mesmo fora do globo solar. Ora, falando de modo abso­luto, a Terra não gira em torno do Sol, mas os dois astros, Sol e Terra, giram em torno do seu centro comum de gravidade. O centro do movimento anual do nosso planeta muda, pois, de lugar, constantemente, e podemos juntar às anteriores esta undé­cima complicação.

Ser-nos-ia facultado mesmo acrescentar muitas outras ainda; basta, porém,,o que precede para fazer apreciar o grau de leveza, de sutilidade, da nossa ilha flutuante, submetida, como se vê, a todas as ondulações das influências celestes. A análise matemática penetra muito além desta expo­sição sumária: só na Lua, que parece girar tão serenamente em torno da Terra, descobriu mais de sessenta causas distintas de movimentos diferentes!

Não é, pois, exagerada a expressão: nosso planeta é apenas um brinquedo para as forças cós­micas que o conduzem nos paramos do céu, e o mesmo acontece a todos mundos e a tudo quanto existe no Universo. A Matéria obedece docemente à Força. Onde está, pois, o ponto fixo em que ambicionamos apoiar-nos?

De fato, o nosso planeta., considerado outrora na base do mundo, é sustentado a distância pelo Sol, que o faz gravitar em torno de si mesmo, com uma velocidade correspondente a essa distância. Tal velocidade, causada pela própria massa solar, mantém o nosso planeta na mesma distância média do astro central; menor velocidade faria predominar o peso e traria a queda da Terra no Sol; velo­cidade maior, ao contrário, afastá-la-ia progressiva e infinitamente do foco que a faz viver. Mas, pela velocidade resultante da gravitação, a nossa mo­radia errante se mantém sustentada em estabili­dade permanente. De idêntico modo é a Lua equi­librada no Espaço pela força de gravidade da Terra, que a faz circular em torno dela com a necessária velocidade para mantê-la constantemente à mesma distância média. A Terra e a Lua formam, assim, no Espaço, um par planetário que se mantém em perpétuo equilíbrio sob o domínio supremo da atra­ção solar. Se a Terra existisse no mundo, permaneceria ela eternamente imóvel no ponto do vácuo infindo onde houvesse sido colocada, sem jamais descer, nem subir, nem mudar de posição por qualquer modo que fosse (sem nenhum sentido absoluto essas expressões - descer, subir, esquer­da ou direita). Se essa mesma Terra, existindo sozinha, recebesse um impulso qualquer e fosse lan­çada com alguma velocidade em uma direção, não importa qual, rolaria eternamente em linha reta nessa direção, sem jamais poder parar, nem demo­rar a marcha, nem mudar de movimento. O mesmo aconteceria se a Lua existisse somente com ela; girariam ambas em torno do seu centro comum de gravidade, cumprindo o seu destino, no mesmo sítio do Espaço, fugindo juntas na direção para a qual tivessem sido projetadas. Existindo o Sol, e sendo ele o centro do sistema, a Terra, todos os planetas e respectivos satélites dependem dele, e têm o destino irrevogavelmente ligado ao seu.

O ponto fixo que buscamos, a base sólida que parecemos desejar para assegurar a estabilidade do Universo será, pois, no colossal e pesado globo solar que a encontraremos?

Certamente não, pois o próprio Sol não está em repouso, de vez que ele nos arrebata com todo o sistema para a constelação de Hércules.

Gravitará o nosso Sol em torno de outro Sol imenso cuja atração se estenda até ele e lhe governe os destinos, tal qual rege ele o dos planetas? As investigações da Astronomia sideral autorizam a pensar que, numa direção situada em ângulo reto da nossa marcha para Hércules, exista astro de tal poder? Não. O nosso Sol sofre as atrações side­rais; nenhuma, porém, parece dominar todas as outras e reinar soberana sobre o nosso astro central. Embora seja francamente admissível, ou, para melhor dizer, certo, que o sol, o mais próximo do nosso, a estrela Alfa do Centauro, e o nosso próprio Sol sintam a mútua atração; contudo não se pode­riam considerar esses dois astros formando um par análogo aos das estrelas duplas. Primeiramente, porque todos os sistemas de estrelas duplas conhecidos são compostos de estrelas muito mais próxi­mas uma da outra; depois porque, na imensidade da órbita descrita segundo essa hipótese, as atra­ções das estrelas vizinhas não poderiam ser consi­deradas permanecendo sem influência; e finalmente porque as velocidades, reais, com que se movem esses dois sóis são muito acima das que resultariam da mútua atração.

Mas, aqui intervém um outro fator mais im­portante do que todos os precedentes: a Via-Láctea, com os seus dezoitos milhões de sóis, da qual seria seguramente audacioso procurar o centro de gravidade.

Mas que é a Via-láctea, toda inteira, perante os milhares de estrelas que o nosso pensamento contempla no seio do universo sideral? Não se des­loca também essa Via-láctea qual arquipélago de ilhas flutuantes? Cada nebulosa resolúvel, cada montão de estrelas não é porventura uma Via-láctea em movimento, sob a ação da gravitação dos outros universos que a chamam e solicitam através da noite infinita?

De estrelas em estrelas, de sistemas em sis­temas, de plagas em plagas, o nosso pensamento se acha transportado à presença das grandezas in­sondáveis, dos movimentos celestes, cuja velocidade se começou a avaliar, mas que excedem já toda a concepção. O movimento próprio anual do sol Alfa do Centauro excede 1488 milhões de léguas por ano. O movimento próprio da 61 ª do Cisne (segun­do sol na ordem das distâncias) equivale a 370 milhões de léguas por ano ou cerca de 1 milhão de léguas por dia. A estrela Alfa do Cisne chega a nosso rumo em linha reta com uma velocidade de 500 milhões de léguas por ano. O movimento próprio da estrela 1830 do Catálogo de Groombrid­ge eleva-se a 2590 milhões de léguas por ano, o que representa 7 milhões de léguas por dia, 115.000 quilômetros por hora ou 320.000 metros por se­gundo.... São estimativas mínimas essas, atento a que não vemos certamente de frente, mas obliqua­mente, os deslocamentos estelares assim medidos.

Que projetis! São sóis, milhares e milhares de vezes mais pesados do que a Terra, lançados através dos vácuos insondáveis com velocidades ultra-vertiginosas, circulando na imensidade sob a influência da gravitação de todos os astros do Uni­verso. E esses milhões, e esses bilhões de sóis, de planetas, de montões de estrelas, de nebulosas, de mundos que começam, de mundos que acabam, pre­cipitam-se com velocidades análogas para fins que eles ignoram, com uma energia, uma intensidade de ação perante as quais a pólvora e a dinamite são sopros de crianças de berço.

E assim todos eles correm, para a eternidade talvez, sem jamais poderem aproximar-se dos limi­tes inexistentes do Infinito... Em toda a parte o movimento, a atividade, a luz e a vida. Feliz­mente, sem dúvida. Se todos esses inumeráveis sóis, planetas, terras, luas e cometas estivessem fi­xos, imóveis, reis petrificados em seus eternos túmulos, quanto mais formidável ainda, porém mais lamentável, seria o aspecto de tal Universo! Ima­gine-se a Criação inteira parada, coagulada, mumificada! Semelhante idéia não é porventura insustentável, e não tem o quer que seja de fúnebre?

E quem causa esses movimentos ? quem os entretém? quem os rege? A gravitação universal, a força invisível, à qual o universo visível (a que chamamos Matéria) obedece. Um corpo atraído do Infinito pela Terra atingiria uma velocidade de 11.300 metros por segundo; do mesmo modo um corpo lançado da Terra com essa velocidade jamais cairia. Um corpo atraído do Infinito pelo Sol che­garia à velocidade de 608.000 metros; um corpo projetado do Sol com essa velocidade jamais tor­naria ao seu ponto de partida. Aglomerados de estrelas podem determinar velocidades muito mais consideráveis ainda, as quais se explicam pela teo­ria da gravitação. Basta lançar os olhos para uma carta dos movimentos próprios das estrelas para ter idéia da variedade desses movimentos e de sua grandeza.

A gravitação não explica a origem do mo­vimento. Se fosse ela a única existente, de toda a eternidade, o Universo formaria um bloco. O movimento tem por origem uma - causa primeira. Assim, as estrelas, os sóis, os planetas, os mundos, os cometas, as estrelas cadentes, os ura­nólitos, em uma palavra, todos os corpos constitu­tivos desse vasto Universo repousam, não em bases sólidas, como parecia exigi-lo a concepção primi­tiva e infantil de nossos pais, mas nas forças invisíveis e imateriais que lhes regem os movimentos. Esses milhares de corpos celestes têm seus respec­tivos movimentos por causa da estabilidade, e se apóiam mutuamente uns nos outros, através do vácuo que os separa. O Espírito que pudesse fazer abstração do Tempo e do Espaço veria a Terra, os planetas, o Sol, as estrelas chovendo de um céu sem limites, em todas as direções imagináveis, quais gotas levadas pelos turbilhões de gigantesca tem­pestade, e atraídas, não por uma base, mas pela atração de cada uma e de todas; cada uma dessas gotas cósmicas, cada um desses mundos, cada um desses sóis é levado por uma velocidade tão rápida, que o vôo das balas de artilharia é apenas um re­pouso comparado; não são cem, nem quinhentos, nem mil metros por segundo, são dez mil, vinte mil, cinqüenta mil, cem mil, e mesmo duzentos ou tre­zentos mil metros por segundo!

Como não se dão encontros no meio de seme­lhantes movimentos? Talvez se produzam: as es­trelas temporárias, que se nos afiguram renascer de suas cinzas, pareceriam tal indicar. Mas, de fato, só dificilmente poderiam dar-se encontros, porque o Espaço é imenso relativamente as dimen­sões dos corpos celestes, e porque o movimento de que cada um é animado o impede precisamente de sofrer em passividade a atração de outro corpo e de cair sobre ele: conserva o seu movimento pró­prio, que não pode ser destruido, e resvala em torno do foco que o atrai, qual a mariposa obedeceria à atração da chama sem nela se queimar. Além disso, falando de modo absoluto, esses movimentos não são rápidos.

Com efeito, tudo corre, voa, cai, rola, preci­pita-se através do vácuo, mas em tais distâncias respectivas que tudo parece em repouso! Se quisesse colocar em uma quadro da dimensão de Paris os astros cuja distância tem sido medida até 'hoje, a estrela mais próxima ficaria colocada a 2 quilômetros do Sol, do qual a Terra ficaria afastada a 1 centímetro, Júpiter a 5 centímetros e Netuno a 30. A 61. do Cisne ficaria a 4 quilô­metros, Sirius a 10, a estrela polar a 27 quilômetros, etc., e a imensa maioria das estrelas ficaria além do departamento do Sena. Pois bem, animando todos esses projetis com seus movimentos relativos, a Terra deveria empregar um ano em percorrer a sua órbita de um centímetro de raio, Júpiter doze em percorrer a sua de cinco centímetros e Netuno cento e sessenta e cinco. Os movimentos próprios do Sol e das estrelas seriam da mesma ordem. Equivale a dizer que tudo pareceria em repouso, mesmo ao microscópio. Urânia reina calma e se­rena na imensidade do Universo.

Ora, a constituição do universo sideral é a imagem da dos corpos a que nós chamamos mate­riais. Todo o corpo, orgânico ou inorgânico, ho­mem, animal, planta, pedra, ferro, bronze, é com­posto de moléculas em movimento perpétuo e que não se tocam. Essas moléculas a seu turno são compostas de átomos, que não se tocam também. Cada um desses átomos é infinitamente pequeno e invisível, não só aos olhos, não só ao microscópio, mas mesmo ao pensamento. Tem-se calculado que em uma cabeça de alfinete há no mínimo 8 sexti­lhões de átomos, ou oito mil bilhões de bilhões, e que em um centímetro cúbico de ar não há menos de um sextilhão de moléculas. Todos esses átomos, todas essas moléculas, estão em movimento sob a influência das forças que o regem, e, relativamente a suas dimensões, grandes distâncias os separam. Podemos mesmo pensar que não há, em princípio, senão um gênero de átomos, e que é o número de átomos primitivos, essencialmente simples e ho­mogêneos, nos modos de acomodação e movimentos, o que constitui a diversidade das moléculas: a mo­lécula de ouro e a de ferro não difeririam da molé­cula de enxofre, de oxigênio, de hidrogênio, etc., senão pelo número, pela disposição e pelo movi­mento dos átomos primitivos que as compõem; cada molécula seria um sistema, um microcosmo.

Mas, qualquer que seja a idéia que se faça da constituição íntima dos corpos, a verdade, hodier­namente reconhecida, e de ora em diante incontestável, é que o ponto fixo procurado pela nossa imaginação não existe em parte alguma. Pode Ar­quimedes pedir em vão um ponto de apoio para levantar o mundo. Os mundos, e assim os átomos, repousam no invisível, na força imaterial; tudo se move excitado pela atração e parecendo à procura desse ponto fixo, que se esquiva à medida que o buscamos, e que não existe, pois que no Infinito o centro está em toda a parte e em parte nenhuma. Os pretensos espíritos positivos, que com seguran­ça afirmam que unicamente a Matéria reina com suas propriedades, e que sorriem desdenhosamente das investigações dos pensadores, deveriam primei­ramente dizer o que entendem por esse famoso vo­cábulo Matéria. Se eles não se detivessem na superfície das coisas, se suspeitassem que as apa­rências ocultam realidades intangíveis, seriam sem dúvida um pouco mais modestos.

Quanto a nós, que procuramos a Verdade, sem idéias preconcebidas e sem espírito de sistema, pa­rece-nos que a essência da matéria se conserva tão misteriosa quanto a essência da força, não sendo o universo visível absolutamente o que aos nossos olhos parece ser. De fato, esse universo visível é composto de átomos invisíveis; repousa no vácuo, e as forças que o regem são em si mesmas imate­riais e invisíveis. Pensar que a matéria não existe que tudo é dinâmico, seria menos audacioso de que pretender afirmar a existência de um universo exclusivamente material. Quanto ao sustentáculo material do mundo, desapareceu, nota bastante curiosa, precisamente com as conquistas da Mecânica, que proclama a vitória do invisível. O ponto fixo se esvaece na universal ponderação dos poderes, na ideal harmonia das vibrações do éter; quanto mais o buscamos, menos o encontramos; e o último esforço do nosso pensamento tem por último apoio, por suprema realidade, o Infinito.

V

ALMA VESTIDA DE AR

Ela estava de pé, em sua casta nudez, com os braços levantados para os cabelos, cujas macias e opulentas madeixas torcia, esforçando-se por prendê-las no alto da cabeça. Era uma beleza juvenil, que não havia atingido ainda a perfeição e a am­pliação das formas definitivas, mas das quais se aproximava, radiante na auréola do seu décimo­-sétimo ano de existência.

Filha de Veneza, a sua carnação, de alvura levemente rosada, deixava adivinhar, sob a trans­parência, a circulação de uma seiva ardente e forte; os olhos brilhavam com misterioso fulgor, e o ave­ludado carmim dos lábios, apenas entreabertos, fa­zia pensar tanto no fruto quanto na flor.

Estava maravilhosamente bela assim, e, se al­gum novo Paris tivesse recebido a missão de con­ferir-lhe a palma, não sei se lhe houvera deposto aos pés a da graça, a da elegância ou a da formo­sura, tanto parecia reunir o vivo encanto da mo­derna sedução às serenas perfeições da beleza clássica.

O mais ditoso, o mais inesperado dos acasos nos havia levado à sua presença, ao pintor Falero e a mim. Por luminosa tarde de primavera, pas­seando à beira-mar, tínhamos atravessado um dos bosques de oliveiras de tristonha folhagem, que se encontram entre Nice e Mônaco, e, sem que nos apercebêssemos, havíamos pentrado em uma pro­priedade particular aberta do lado da praia. Um pitoresco atalho subia, serpenteando, para a colina. Acabávamos de passar por um bosque de laranjei­ras, cujos pomos de ouro lembravam o jardim das Hesperíades ; o ar estava perfumado, o céu de um azul profundo, e discorríamos sobre um paralelo entre a Arte e a Ciência, quando o meu compa­nheiro, estacado de súbito por força de irresistível fascinação, me fez sinal para calar e olhar.

Por detrás de um cerrado de cactos e de fi­gueiras africanas, a alguns passos adiante, uma suntuosa sala de banho, com a janela aberta para o lado do Sol, nos deixava ver, não longe de uma banheira de mármore onde caía fino jato de água com suave murmúrio, a mocinha desconhecida, de pé, em frente de colossal espelho, que, da cabeça aos pés, lhe refletia a imagem. Sem duvida o ruído do jorro de água a impediu de ouvir a nossa aproximação. Discretamente - ou antes indiscreta­mente - nos deixámos ficar por detrás dos cactos, contemplando, mudos, imóveis.

Era bela, parecendo ignorar-se a si mesma. Com os pés em uma pele de tigre, não se dava pressa. Achando a longa madeixa ainda demasiado úmida, deixou-a cair novamente sobre o corpo, voltou-se para nosso lado e veio colher uma rosa em cima da mesa próxima da janela; depois, tor­nando para o imenso espelho, se entregou de novo à tarefa do penteado, terminou-o tranquilamente, colocou a rosa entre as tranças e, voltando as cos­tas ao Sol, debruçou-se, sem dúvida para apanhar a primeira. roupa. De súbito, porém, ergueu-se, soltou um grito e escondeu o rosto nas mãos, pon­do-se a correr para um canto sombrio.

Pensamos sempre, depois, que um movimento de nossas cabeças denunciara a nossa presença, ou que, por jogo do espelho, ela nos percebera. Como quer que seja, julgamos prudente a retirada e, pelo mesmo caminho, descemos novamente rumo ao mar.

- Ah! exclamou o meu companheiro, confesso que, em todos os meus modelos, ainda não vi um mais perfeito, nem para o meu quadro das Estrelas duplas, nem para o de Célia. O senhor mesmo que pensa? Aquela aparição não veio agora a pro­pósito para me dar razão? O senhor celebra com entusiasmo as delícias da Ciência; convenha que a Arte tem igualmente os seus encantos. As estrelas da Terra não rivalizam vantajosamente com as beldades do céu? Não admira também a elegância daquelas formas? Que tons arrebatadores! Que carnes!

- Eu não teria o mau gosto de desdenhar o verdadeiramente belo, respondi, e admito que a be­leza humana (e concedo-lhe, sem hesitação, a be­leza feminina em particular) represente realmente o que a Natureza tem produzido de mais perfeito em nosso planeta. Sabe, porém, que mais admiro naquela criatura? Não é o aspecto artístico ou estético: é o testemunho científico que ela nos dá de um fato simplesmente maravilhoso. Nesse corpo sedutor eu vejo uma alma vestida de ar.

- Oh! o senhor gosta do paradoxo. Uma alma vestida de ar! E' muito idealista para um corpo tão real. Que essa sedutora moça tenha uma alma, não ponho dúvida; mas, permita ao artista admi­rar-lhe o corpo, a vida, a solidez, a cor. . . De boa­mente diria, com o poeta das Orientais:

Car c'est un astre qui bríUe Q'une fine

Qui sort d'un bain au flot clair,

Cherche s'il ne vient personne Et f rissonne

Toute mouillé au grand air!

(Um astro que brilha lembra a criança que sai de um banho de ondas níveas, olha se alguém se aproxima, e estremece, não enxuta, às carícias do ar).

- Não lhe proíbo. Mas é precisamente essa beleza física que me faz admirar a alma, a invisível força que a formou.

- De que maneira explica o senhor isso? Tem­-se seguramente um corpo. A existência da alma é menos palpável.

- Para os sentidos, sim. Para o Espírito, não. Ora, os sentidos nos enganam, absolutamente, quan­to ao movimento da Terra, a respeito da natureza do céu, sobre a solidez aparente dos corpos, rela­tivamente às criaturas e ainda com relação às coisas. Quer seguir um momento o meu raciocínio?

Quando respiro o perfume de uma rosa, quan­do admiro a beleza da forma, a suavidade de colo­rido, a elegância dessa flor em seu primeiro desa­brochar, o que mais me impressiona é a obra da força oculta, desconhecida, misteriosa, que preside à vida da planta, sabe dirigia na manutenção de sua existência, escolhe as moléculas do ar, da água, da terra, convenientes à sua alimentação, e, princi­palmente, que sabe assimilar essas moléculas e agrupá-las delicadamente, a ponto de com elas for­mar essa haste elegante, essas tão mimosas folhi­nhas verdes, essas pétalas de um róseo tão suave, esses tons macios e esses deliciosos perfumes. Essa força misteriosa é o princípio anímico da planta. Ponha na terra, ao lado uns dos outros, uma se­mente de lírio, uma bolota de carvalho, um grão de trigo e um caroço de pêssego; cada gérmen cons­tituirá o seu organismo.

Conheci uma planta tropical que definhava nos destroços de velha muralha, a alguns metros da excelente terra do fosso, e que, desesperada, lan­çou uma raiz aventurosa, alcançou o solo cobiçado, entranhou-se nele, firmou sólida base, de modo que, insensivelmente, ela, a imóvel, desprendeu-se, dei­xou morrer as raízes primitivas, abandonou as pedras e viveu ressuscitada, transformada, sobre o órgão libertador. Conheci uns olmos que iam ali­mentar-se na terra por baixo de um fértil campo, aos quais haviam cortado a alimentação pela aber­tura de um largo fosso. Por isso, tomaram a resolução de passar, por baixo desse fosso, as raí­zes não cortadas: conseguiram-no e voltaram à sua mesa permanente, com grande pasmo do horticultor. Conheci também um jasmineiro heróico que atra­vessou oito vezes uma tábua furada que o sepa­rava da luz, e ao qual um observador curioso tor­nava a meter para o escuro, na esperança de cansar afinal a energia dessa planta: não conseguiu.

A planta respira, bebe, come, escolhe, recusa, procura, trabalha, vive e atua conforme os seus ins­tintos; esta passa de perfeita saúde, aquela está doente, esta outra está nervosa, agitada. A sen­sitiva estremece e desmaia ao menor toque. Em certas horas de bem-estar, o árum é quente, o ilhó fosforescente, a valisnéria fecundada desce ao fundo das águas para amadurecer o fruto de seus amores. Sob essas manifestações de uma vida des­conhecida, o filósofo não pode deixar de reconhecer no mundo das plantas um cântico do coro universal.

Não me alongo mais agora falando da alma humana, embora seja ela incomparàvelmente supe­rior à alma da planta, e haja criado um mundo intelectual tão elevado, acima do resto da vida terrestre, qual as estrelas acima da Terra. Não é no ponto de vista de suas faculdades espirituais que a encaro aqui, mas somente no nível de força animando o ser humano.

Pois bem! admiro que essa força agrupe os átomos que respiramos, ou que assimilamos pela nutrição, a ponto de com eles constituir essa en­cantadora criatura. Veja aquela moça no dia em que nasceu, e siga com o pensamento o desenvol­vimento gradual daquele corpinho através dos tem­pos da idade ingrata, até às primeiras graças da adolescência e até às formas da nubilidade. Como se entretém, se desenvolve, se compõe o organismo humano? O senhor o sabe perfeitamente: pela res­piração e pela nutrição.

Já, pela respiração, o ar nos nutre três quar­tas partes. O oxigênio do ar entretém o fogo da vida, e o corpo é comparável a uma chama inces­santemente renovada pelos princípios da combus­tão. A falta de oxigênio extingue a vida como extingue a lâmpada. Pela respiração, o sangue ve­noso escuro se transforma .em rubro sangue arterial e se regenera. Os pulmões são um delicado tecido crivado de quarenta milhões de furinhos, justa­mente demasiado pequenos para deixar filtrar o sangue e bastante grandes para que o ar possa penetrar. Uma perpétua troca de gases se opera entre o ar e o sangue, fornecendo o primeiro ao segundo oxigênio, eliminando o segundo o ácido carbônico. Por um lado, o oxigênio atmosférico queima carbono no pulmão; por outro lado, o pul­mão exala ácido carbônico, azoto e vapor de água.

As plantas respiram (de dia) por um processo contrário, absorvem carbono e exalam ácido car­bônico, entretendo, com esse contraste, uma parte do equilíbrio geral da vida terrestre.

De que se compõe o corpo humano? O homem adulto pesa, na média, 70 quilogramas. Sobre essa quantidade há perto de 52 quilogramas de água, no sangue e na carne. Analise a substância do nosso corpo, e nela encontrará a albumina, a fibri­na, a caseína e a gelatina, isto é, substâncias orgâ­nicas compostas originariamente pelos quatro gases essenciais: o oxigênio, o azoto, o hidrogênio e o ácido carbônico. Achará também substâncias desprovidas de azoto: a goma, o açúcar, o amido, os corpos graxos; dessas matérias, passando igual­mente pelo nosso organismo, o seu carbono e o seu hidrogênio são consumidos pelo oxigênio aspirado durante a respiração e exalados depois sob a forma de ácido carbônico e de água.

A água, não o ignora, é uma combinação de dois gases, oxigênio e hidrogênio; o ar, mistura de dois gases, o oxigênio e o azoto, aos quais se juntam, em proporções mais fracas, a água sob a forma de vapor, o ácido carbônico, o amoníaco, o ozônio, que aliás outra coisa não é senão oxigênio condensado, etc.

Assim, o nosso corpo é composto apenas de gases transformados...

- Mas, interrompeu o meu companheiro, nós outros não vivemos unicamente de ar. E neces­sário acrescentar, em certas horas indicadas pelo estômago, alguns suprimentos que têm também o seu valor; uma asa de faisão, uma posta de lingua­do, um copo de Château-Laffitte ou de champanha, ou, segundo o gosto, uns espargos, umas uvas, uns pêssegos...

- Sim, tudo isso passa através do organismo e lhe renova os tecidos, bem rapidamente mesmo, pois em poucos meses (não em 84, conforme se acreditava antigamente) o nosso corpo é inteira­mente renovado. Torno ainda a essa arrebatadora criatura que contemplamos há pouco. Toda aquela carne que admiramos não existia há três ou quatro meses; aquelas espáduas, aquele semblante, aque­les olhos, aquela boca, aqueles braços, aqueles ca­belos, e até as próprias unhas, todo aquele orga­nismo não é mais do que uma corrente de moléculas, uma flama incessantemente renovada, um rio que se contempla durante a vida inteira, mas onde não se tornou jamais a ver a mesma água. Ora, tudo aquilo é ainda gás assimilado, condensado, modificado, e é, principalmente - ar. Aqueles próprios ossos, hoje sólidos, se formaram e soli­dificaram insensivelmente. Não esqueça que o nos­so corpo inteiro é composto de moléculas invisíveis, que não se tocam, e que constantemente se re­novam.

Com efeito, a nossa mesa é servida de legu­mes ou de frutas, somos vegetarianos, absorvemos substâncias tiradas quase inteiramente do ar; o pêssego é água e ar; pera, uva e amêndoa são igualmente de ar, água, alguns elementos gasosos ou líquidos trazidos pela seiva, pelo calor solar, pela chuva. Espargo ou salada, ervilhas ou alca­chofras, alface ou chicória, cerejas, morangos ou framboesas, tudo isso vive no ar e pelo ar. O que a terra dá, o que a seiva vai buscar são ainda gases, e sempre os mesmos: azoto, oxigênio, hidro­gênio, carbono, etc.

Se trata de um bife, de um frango ou de outra qualquer carne, não é considerável a diferença. O carneiro e o boi nutrem-se de relva. Saboreemos uma perdiz com repolho, uma codorniz as­sada, um peru com túberas ou um guisado de lebre, todas essas substâncias, tão diversas na aparência, são vegetal transformado, o qual não passa de um agrupamento de moléculas tiradas aos gases de que acabamos de falar, ar, elementos da água, molécu­las e átomos, em si mesmos quase imponderáveis, e aliás absolutamente invisíveis a olho nu.

Assim, qualquer que seja o nosso gênero de alimentação, o nosso corpo, formado, tratado, de­senvolvido pela absorção das moléculas adquiridas pela respiração e pela alimentação, é, em defini­tiva, uma corrente incessantemente renovada em virtude dessa assimilação, dirigida, regida e orga­nizada pela força imaterial que nos anima. A essa força podemos seguramente conceder o nome de alma. Ela agrupa os átomos que lhe convêm, elimina os que lhe são inúteis, e, partindo de um ponto imperceptível, de um gérmen impalpável, che­ga a construir aqui o Apolo do Belvedere, acolá a Vênus do Capitólio. Fídias não passa de um gros­seiro imitador, comparativamente a essa força in­tima e misteriosa. Pigmalião se torna amante da estátua de que foi pai, diz a Mitologia. Erro! Pigmalião, Praxiteles, Miguel Angelo, Benevenuto e Cá­nova não criaram senão estátuas. Mais sublime é a força que sabe construir o corpo vivo do homem e da mulher.

Essa Força, porém, é imaterial, invisível, in­tangível, imponderável, igual à atração que embala os mundos na universal melodia, e o corpo, por mais material que nos pareça, é um harmonioso agrupa­mento formado pela atração dessa força interior. Vê, pois, que me mantenho estritamente nos limites da ciência positiva, qualificando essa moça com o título de alma vestida de ar, aliás tal qual somos, o senhor e eu, nem mais, nem menos.

Desde as origens da Humanidade até estes últimos séculos, acreditou-se que a sensação era percebida mesmo no ponto em que a gente a expe­rimentava. A dor sentida no dedo era considerada como tendo a sua sede mesmo no dedo. As crianças e muitas pessoas ainda o acreditam. A fisiologia tem demonstrado que a impressão é transmitida da ponta do dedo até ao cérebro por intermédio do sistema nervoso. Se corta o nervo, pode quei­mar o dedo impunemente, a paralisia é com­pleta. Tem-se podido mesmo determinar o tempo que a impressão emprega para se transmitir de um ponto qualquer do corpo ao cérebro, e sabe-se que a velocidade dessa transmissão é de cerca de vinte e oito metros por segundo. Desde então, tem­-se atribuído a sensação ao cérebro. Mas não se foi adiante .

O cérebro é material, qual o dedo, e de modo nenhum matéria estável e fixa. E' matéria essen­cialmente mutável, rapidamente variável, não for­mando uma identidade.

Não existe, não pode existir em toda a massa encefálica um único lóbulo, uma única célula, uma única molécula que não mude. Uma parada de mo­vimento, de circulação, de transformação, seria uma sentença de morte. O cérebro não subsiste e não sente sem a condição de sofrer, e assim todo o resto do corpo, as incessantes transformações da matéria orgânica que constitui o círculo vital.

Não é, pois, não pode ser em uma certa matéria cerebral, em certo agrupamento de moléculas que reside a nossa personalidade, a nossa identi­dade, nosso eu individual, o nosso eu que adquire e conserva um valor pessoal, científico e moral, que aumenta com o estudo; o nosso eu que é e se sente responsável pelos atos praticados há, um mês, um ano, um decênio, dois, cinco, tempo durante o qual o mais íntimo agrupamento molecular tem sido mudado várias vezes.

Afirmando que a alma não existe, os fisiolo­gistas assemelham-se aos antepassados que afir­mavam sentir a dor no dedo Acham-se um tanto menos longe da verdade; mas, parando no cérebro e fazendo residir o ente humano nas impressões cerebrais, param em caminho. Essa hi­pótese é tanto menos desculpável, quanto esses mesmos fisiologistas sabem perfeitamente que a sensação pessoal é sempre acompanhada de uma modificação da substância. Por outros termos, o eu do indivíduo só persiste quando não persiste a identidade da sua matéria.

O nosso princípio de sensibilidade não pode, pois, ser um objeto material; está posto em relação com o Universo pelas impressões cerebrais, pelas forçais químicas desprendidas no encéfalo em conseqüência de combinações materiais. Mas é di­verso.

E a nossa constituição orgânica se transforma perpetuamente sob a direção de um princípio psíquico.

Tal molécula, que presentemente se acha in­corporada em nosso organismo, vai escapar-se-lhe pela expiração, pela transpiração, etc., pertencer à atmosfera durante um tempo mais ou menos longo; ser depois incorporada em outro organismo, planta, animal ou homem. As moléculas que cons­tituem atualmente o vosso corpo não se achavam todas ontem integradas em vossa pessoa, e nenhu­ma nele estava há alguns meses. Onde se achavam? No ar, ou em outro corpo. As moléculas que for­mam agora os vossos tecidos orgânicos, os vossos pulmões, os olhos, o cérebro, as pernas, etc., ser­viram todas já para formar outros tecidos orgâ­nicos... Todos somos mortos ressuscitados, fabri­cados do pó dos antepassados.. Se todos os homens que viveram até esta época ressuscitassem, haveria cinco para cada pé quadrado em toda a superfície dos continentes, e, para conseguirem lugar, seriam obrigados a subir nos ombros uns dos outros; não poderiam, porém, ressuscitar todos integralmente, pois muitas das moléculas têm sucessivamente ser­vido a vários corpos. De igual modo, os nossos organismos, divididos um dia em suas últimas par­tículas, achar-se-ão incorporados em nossos su­cessores.

Cada molécula de ar passa, pois, eternamente de vida em vida, e destas se escapa de morte em morte; alternadamente, vento, onda, terra, animal ou flor, é ela sucessivamente incorporada a subs­tância dos inúmeros organismos. Fonte inexaurível onde tudo quanto vive sorve o alento, o ar é ainda um reservatório imenso onde tudo quanto morre verte o seu último sopro: sob a sua absorção, vegetações e animais, diversos organismos nascem, depois perecem. A vida e a morte estão igual­mente no ar que respiramos, e se sucedem perpetuamente uma à outra pela troca das moléculas gasosas; a molécula de oxigênio que se exala do antigo roble vai voar aos pulmões da criancinha de berço; os últimos suspiros do moribundo vão tecer a brilhante corola da flor ou espalhar-se qual um sorriso na virente campina; e assim, por infi­nito encadeamento de mortes parciais, a atmosfera alimenta incessantemente a vida universal desdo­brada na superfície do mundo.

E, se o senhor imagina ainda alguma objeção, irei mais longe e acrescentarei que as nossas pró­prias roupas são, a exemplo dos nossos corpos, compostas de substâncias que, primitivamente, fo­ram gasosas. Tome este fio, puxe-o; que resistên­cia! Que de tecidos, cambraia, seda, linho, algodão, lã, não tem a indústria formado com o auxílio dessas tramas e dessas urdiduras! Entretanto, que é o fio de linho, de cânhamo ou de algodão? Gló­bulos de ar justapostos, e que só se sustêm pela força molecular. Que é esse fio de seda ou de lã? Outra justaposição de moléculas. Há-de convir, pois, que as nossas roupas, mesmo, ainda são ar, gás, substâncias hauridas em princípio na atmos­fera, oxigênio, azoto, carbono, vapor de água, etc..

- Vejo, satisfeito, disse o pintor, que a Arte não está tão longe da Ciência, conforme se julga em certas esferas. Se a sua teoria é, para o senhor, puramente científica, para mim é arte, e da melhor. E depois, além disso, existem porventura na Natu­reza todas essas distinções? Não; na Natureza não há nem arte, nem ciência; nem escultura, nem pintura, nem química, nem meteorologia, nem astro­nomia, nem mecânica. Olhe para esse céu, para o mar, para esses contrafortes dos Alpes, para as nuvens rosadas da tarde, para as luminosas pers­pectivas do lado da Itália; tudo isso é um. Tudo é um. E, pois que a física molecular nos demonstra que não há mais corpos; que mesmo em uma barra de aço ou de platina os átomos não se tocam; que nos restem ao menos as almas; ninguém per­derá com isso.

- Sim, é um fato contra o qual nenhum pre­conceito poderia valer: os seres viventes são almas vestidas de ar... Lastimo os mundos desprovidos de atmosfera.

Tínhamos voltado, após longo passeio à beira­ mar, não longe do nosso ponto de partida, e pas­sávamos em frente ao muro ameado de uma vila, dirigindo-nos de Beaulieu para o cabo Ferrat, quan­do duas elegantíssimas senhoras cruzaram por nos­so caminho. Eram a duquesa de V . . . e sua filha, que havíamos encontrado, na quinta-feira antece­dente, no baile da Prefeitura. Cumprimentamo-las, e desaparecemos entre o olival. Inconsciente filha de Eva, a moça se voltou para nossa direção, e pareceu-me que súbito rubor lhe purpureava o sem­blante; era sem dúvida o reflexo dos raios do sol poente.

- Acredita o senhor talvez, disse o artista vol­tando-se também, ter diminuído a minha admira­ção pela beleza? Pois bem! aprecio-a melhor ainda, saúdo nela a harmonia, e, confessar-lho-ei?, o corpo humano, assim considerado a manifestação sensí­vel de uma alma diretora, me parece adquirir por isso reais nobreza, mais formosura e mais luz.

VI

AD VERITATEM PER SCIENTIAM

Estava eu trabalhando, na minha biblioteca, em um estudo sobre as condições da vida na su­perfície dos mundos governados e iluminados por vários sóis, de grandezas e cores diferentes, quan­do, erguendo os olhos para a chaminé, me impres­sionou a expressão, diria quase a animação, do semblante da minha querida Urânia. Era a mesma graciosa e vivaz expressão que outrora - oh! quanto a Terra gira veloz e quão pouco representa um quarto de século'. - que outrora, nos dias da adolescência, tão rapidamente voados, me conduzira o pensamento e inflamara o coração. Não pude esquivar-me de contemplá-la ainda e de repousar os olhos nela. Realmente se conservava sempre bela e as minhas impressões não haviam mudado. Atraía-me qual a luz atrai o inseto. Levantei-me da mesa para aproximar-me e tornar a ver o sin­gular efeito da luz do dia na sua móvel fisionomia, e me surpreendi de pé, em frente dela, esquecido do labor.

O seu olhar parecia vagar ao longe, mas, no entanto, se animava e se tornava fito. Sobre quê? em quê? Tive a íntima impressão de que ela via realmente, é, seguindo a direção desse olhar fito, imóvel, solene, embora não severo, meus olhos en­contraram o retrato de Spero, suspenso ali, entre duas estantes.

Na verdade, Urânia mirava-o fixamente!

De súbito, o retrato destacou-se da parede e caiu, quebrando-se a moldura.

Precipitei-me. O retrato jazia no tapete, e o meigo semblante de Spero estava voltado para mim. Levantando-o, encontrei um grande papel encar­dido, que ocupava a extensão toda do quadro, e estava escrito, de ambos os lados, pela letra de Spero. Como não tinha eu jamais reparado nesse papel? Verdade é que poderia ter ficado escondido sob a guarnição da moldura, dissimulado por baixo do papelão protetor. Com efeito, quando eu trouxe de Cristiânia essa aquarela, não me ocorreu exa­minar-lhe o arranjo. Mas quem teria tido a estra­nha idéia de colocar assim essa folha de papel? Não foi sem viva estupefação que reconheci a letra do meu amigo e percorri aquelas duas páginas. Segundo toda a aparência, tinham elas sido escritas no último dia da vida terrestre do jovem pensador, no dia da sua ascensão para a aurora boreal, e sem dúvida o pai de Icleia havia querido conservar em maior segurança esses derradeiros e supremos pen­samentos, emoldurando-os com o retrato de Spero. Esquecera-se de falar-me nisso, depois, quando me ofereceu em lembrança àquela querida imagem, por ocasião da minha romaria ao túmulo dos dois na­morados.

Como quer que seja, colocando com todo o cuidado a aquarela em cima da minha mesa, expe­rimentei a mais viva emoção ao reconhecer cada pormenor daquele amado semblante: eram incontestavelmente aqueles Alhos tão meigos e tão pro­fundos, sempre enigmáticos, aquela fronte vasta, tão serena na aparência, aquela boca delicada e de uma sensualidade reservada, aquela coloração clara do semblante, do pescoço e das mãos; os seus olhares me seguiam, de qualquer lado que estivesse voltado o retrato, e se dirigiam também para Urâ­nia, e assim, ao mesmo tempo, se volviam em todas as direções. Estranha idéia do artista! Não pude deixar então de pensar nos olhos da deusa, que me haviam parecido afagar dolorosamente a imagem do seu jovem adorador. De igual modo que o crepúsculo vem sombrear um dia sereno, assim divina tristeza se lhe estendia sobre o nobre sem­blante.

Pensei, porém, no misterioso papel. Estava escrito com uma letra clara, precisa, sem a menor rasura. Transcrevo-o aqui, tal qual o achei, e sem lhe modificar uma única palavra, uma única vír­gula, pois ele me parece ser a conclusão natura­lissima das narrativas que são assunto desta obra.

Ei-lo, textualmente

Este é o testamento científico de um Espírito que, mesmo na Terra, empregou todos os esforços para se conservar desprendido do peso da matéria e que espera ter-se libertado dele.

Quisera deixar, sob a forma de aforismos, o resultado das minhas investigações. Parece-me que não se pode chegar à Verdade senão pelo es­tudo da Natureza, isto é, pela Ciência. Eis as in­duções que se me afiguram baseadas nesse método de observação.

I

O universo visível, tangível, ponderável e em movimento incessante, . é composto de átomos invi­síveis, intangíveis, imponderáveis e inertes.

II

Para construir os corpos e organizar os seres, esses átomos são regidos por forças.

III

A Força é a entidade essencial.

IV

A visibilidade, a tangibilidade, a solidez, a duração, o peso, são propriedades relativas, e não realidades absolutas.

V

Os átomos que compõem os corpos são, para a sensação humana, infinitamente pequena.

As experiências feitas sobre a laminagem das folhas de ouro mostram que dez mil folhas dessas se contêm na espessura de um milímetro. - Che­gou-se a dividir um milímetro, sobre uma lâmina de vidro, em mil partes iguais, e existem infusorios tão pequenos que o seu corpo inteiro, colocado en­tre duas dessas divisões, não as toca; os membros e os órgãos desses seres são compostos de células, estas de moléculas, estas de átomos. - Vinte cen­tímetros cúbicos de óleo estendido sobre um lago chegam a cobrir 4.000 metros quadrados, de sorte que a camada de óleo assim espalhada mede um duocentésimo milésimo de milímetro de espessura. - A análise espectral da luz revela a presença de um milionésimo de miligrama de sódio em uma chama. As ondas da luz se acham compreendidas entre 4 e 8 décimos-milionésimos de milímetro, do verde ao vermelho. São necessárias 2.300 ondas de luz para encher um milímetro. Na duração de um segundo, o éter, que transmite a luz, executa setecentos mil bilhões de oscilações, cada uma das quais é matematicamente definida. O olfato per­cebe 1 Por 64.000.000 de miligramas de mercaptan no ar respirado. - A dimensão dos átomos deve ser in­ferior a um milionésimo de milímetro de diâmetro.

VI

O átomo, intangível, invisível, dificilmente con­cebível para o nosso espírito afeito aos julgamentos superficiais, constitui a única matéria verdadeira, e o que chamamos matéria é apenas um efeito pro­duzido em nossos sentidos pelos movimentos dos átomos, isto é, uma possibilidade incessante de sen­sações.

Dai resulta que a matéria, e assim as manifes­tações da energia, é somente um modo de movi­mento. Se o movimento parasse, se a força pudesse ser anulada, se a temperatura dos corpos fosse reduzida ao zero absoluto, a matéria - tal qual a conhecemos - cessaria de existir.

VII

O universo visível é composto de corpos invi­síveis. Quanto se vê, é feito de coisas que não se vêem.

Há uma única espécie de átomos primitivos; as moléculas constitutivas dos diferentes corpos, ferro, ouro, oxigênio, hidrogênio, etc., não diferem senão pelo número, pelo agrupamento, e pelos mo­vimentos dos átomos que as compõem.

VIII

O que chamamos matéria se esvai quando a análise científica acredita atingir. Achamos, po­rém, por sustentáculo do Universo e princípio de todas as formas, a - Força, o elemento dinâmico. Com a minha vontade posso perturbar a Lua em seu curso.

Os movimentos de todo átomo, na Terra, são a resultante matemática de todas as ondulações etéreas que lhe chegam, com o tempo, dos abismos do Espaço infinito.

IX

O ente humano tem por princípio essencial a alma. O corpo é aparente e transitório.

X

Os átomos são indestrutíveis.

A energia que move os átomos e rege o Uni­verso é indestrutível.

A alma humana é indestrutível.

XI

A individualidade da alma é recente na histó­ria da Terra. - O nosso planeta foi nebulosa, depois sol, depois caos: não existia então nenhum ser terrestre. A vida começou pelos mais rudimen­tares organismos; progrediu de século em século para atingir o estado atual, que não é o último. A inteligência, a razão, a consciência, o que chama­mos faculdades da alma, são modernas. O Espírito se desembaraçou gradualmente da matéria, de igual modo - se a comparação não fosse gros­seira - que o gás se desprende da hulha, o per­fume da flor, a labareda do fogo.

XII

A força psíquica começa a afirmar-se desde há trinta ou quarenta séculos nas esferas superio­res da Humanidade terrestre; a ação dela está apenas na aurora.

As almas, conscientes da. sua individualidade, ou ainda inconscientes, estão, por sua própria na­tureza, fora das condições de Espaço e de Tempo.

Após a morte dos corpos, e assim também durante a vida, elas nenhum lugar ocupam. Algumas vão talvez habitar outros mundos.

Não têm consciência de sua vida extracorpo­ral e da sua imortalidade senão aquelas que se desprenderam dos laços materiais.

XIII

A Terra é uma província da pátria eterna; faz parte do Céu, o Céu é infinito; todos os mundos fazem parte do Céu.

Nosso planeta é navio etéreo que transporta através do Infinito uma população de almas, na velocidade de 643.000 léguas por dia em torno de uma estrela, e, aproximadamente, 185 milhões de léguas rumo da constelação de Hércules.

XIV

Os sistemas planetários e siderais que consti­tuem o Universo estão em diversos graus de orga­nização e adiantamento. E' infinita a extensão da sua diversidade; os seres guardam, em toda parte, relação com os mundos.

XV

Os mundos atualmente não são todos habita­dos. A época presente não tem importância maior do que as precedentes e nem sobre as que lhe hão de seguir.

Tais mundos foram habitados no passado, mi­lhares de séculos; tais outros sê-lo-ão no futuro, em milhares de séculos. Um dia, nada restará da Terra, e as suas próprias ruínas estarão destruídas. Mas o - Nada - jamais substituirá o Universo. Se as coisas e os seres não renascessem das suas cinzas, não existiria uma única estrela no Céu, pois, desde a eternidade pretérita, todos os sóis estariam extintos, datando toda a Criação da eternidade. A duração total da Humanidade representa um mo­mento no Tempo eterno.

XVI

A vida terrestre não é o tipo das outras vidas. Ilimitada diversidade reina no Universo. Há man­sões onde o peso é intenso, onde a luz é desconhe­cida, onde o tato, o olfato e o ouvido são os únicos sentidos; onde, não se tendo formado o nervo ópti­co, todos os entes são cegos. Outras há onde o peso é apenas sensível; onde os entes são tão leves e tão tênues que seriam invisíveis para olhos ter­restres; onde sentidos de extrema delicadeza re­velam a Espíritos privilegiados sensações vedadas à Humanidade terrestre.

XVII

O espaço que existe entre os mundos espalha­dos no imenso Universo não os isola uns dos outros. Estão todos em perpétua comunicação una com os outros pela atração, que se exerce instantaneamente através de todas as distâncias, e estabelece indissolúvel laço entre todos os mundos.

XVIII

O Universo forma uma unidade única.

XIX

O sistema do mundo físico é a base material, o ambiente do sistema do mundo moral ou espiri­tual. A Astronomia deve, pois, ser à base de toda a crença filosófica e religiosa.

Todo ser pensante traz em si o sentimento, mas a incerteza da imortalidade. E porque somos as rodas microscópicas de um mecanismo desco­nhecido .

XX

O próprio homem é quem faz o seu destino. Levanta-se ou cai segundo as suas obras. As criaturas presas aos interesses materiais, os avarentos, os ambiciosos, os hipócritas, os mentirosos, os fi­lhos de Tartufo, moram, com os perversos, nas zonas inferiores.

Mas, uma lei, primordial e absoluta, rege a Criação: a lei do Progresso. Tudo se eleva no Infinito. As faltas são quedas.

XXI

Na ascensão das almas, as qualidades morais não têm menos valor do que as qualidades inte­lectuais. A bondade, o devotamento, a abnegação e o sacrifício apuram a alma e a elevam, e assim também o estudo e a ciência.

XXII

A Criação universal é uma imensa harmonia na qual a Terra é um insignificante fragmento, bastante pesado e incompreensível.

XXIII

A Natureza é um perpétuo futuro. O Progresso é a lei. A progressão é eterna.

XXIV

A eternidade de uma alma não seria suficiente para visitar o Infinito e tudo conhecer.

XXV

O destino da alma é desprender-se, cada vez mais, do mundo material e pertencer definitiva­mente â, vida tirânica superior, donde domina a matéria e não sofre mais. O fim supremo dos seres é a aproximação perpétua da perfeição abso­luta e da felicidade divina.

Tal era o testamento científico e filosófico de Spero. Não parece ter sido ditado pela própria Urânia ?

As nove Musas da antiga Mitologia eram irmãs. As modernas concepções científicas tendem por seu turno para a unidade. A Astronomia ou o co­nhecimento do mundo e a Psicologia ou o co­nhecimento da criatura, unem-se hoje para esta­belecer a base única sobre a qual possa ser edifi­cada a filosofia definitiva.

P.S. - Os episódios que precedem, as investigações e as reflexões que os acompanham, foram reunidos aqui em uma espécie de Ensaio, no intuito de trazer algumas balizas para a solução do maior dos problemas que possam interessar ao espírito humano. E' a esse titulo que a pre­sente obra se oferece à atenção daqueles que, algumas vezes ao menos, no meio do caminho da vida , de que fala o Dante, se detêm, e a si próprios perguntam - onde estão. e - que são, procuram, pensam e sonham.

Fim

Notas de Rodapé

(1) Há às vezes estranhas coincidências. No dia em que Spero fez a ascensão, que tão fatal lhe devia ser, calculara eu que ele se havia arrojado aos ares, pela ex­traordinária agitação da agulha imantada que, em Paris onde me achava, anunciava a existência da intensa aurora boreal, tão ansiosamente esperada por ele para aquela via­gem aérea. Sabe-se, com efeito, que as auroras boreais se manifestam ao longe pelas perturbações magnéticas. O que mais me surpreendeu, porém, e aquilo de que ainda não tive explicação, é que, exatamente à hora da catástrofe, experimentei indefinível mal estar, depois uma espécie de pressentimento de que alguma desgraça lhe havia aconte­cido. O telegrama que anunciou a sua morte encontrou-me quase preparado para tal noticia.

(2) Phantasms of the Living, por E. Gurney e Fred. Myers, professores da Universidade de Cambridge, e Frank Podmore, Londres, 1886. A for Psychical Research tem por presidente o professor Balfour Stewart, da Socie­dade Real de Londres.