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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Animismo ou Espiritismo?-Parte 1-Ernesto Bozzano

 

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Ernesto Bozzano

Animismo ou Espiritismo?

Qual dos dois explica

o conjunto dos fatos?

Conteúdo resumido

Esta obra é um resumo de 40 anos de pesquisas desse incansável cientista espírita, como ele próprio informa no prefácio da presente obra – que foi elaborada em resposta a um pedido do Conselho Diretor do Congresso Espírita Internacional, de Glasgow –, em torno do tema “Animismo ou Espiritismo: Qual dos dois explica o conjunto dos fatos?”

Reunindo todas as suas publicações sobre o assunto – livros, monografias, opúsculos e artigos –, Bozzano elaborou esta grande síntese dos fenômenos metapsíquicos, demonstrando que os fenômenos anímicos (provocados pelo subconsciente do ser humano) e os espíritas (provocados por entidades espirituais) são interdependentes e provêm, ambos, de uma única causa: o Ser Espiritual – encarnado, no caso dos fenômenos anímicos, ou desencarnado, no caso dos fenômenos espíritas.

Sumário

Prefácio. 4

Capítulo I
As faculdades supranormais subconscientes independem da lei de evolução biológica. 6

Capítulo II
Os poderes supranormais da subconsciência podem circunscrever-se dentro de limites definidos. 23

Capítulo III
As comunicações mediúnicas entre vivos provam a realidade das comunicações mediúnicas com os defuntos. 32

Capítulo IV
Dos fenômenos de bilocação. 81

Capítulo V
Não é verdade que o Animismo inutiliza as provas em favor do Espiritismo 120

Conclusões. 206


Prefácio

Devo, antes de tudo, informar o leitor acerca das origens e da natureza do presente livro, que não é uma obra nova, no verdadeiro sentido do termo, e que jamais tive idéia de escrever.

Eis como se passaram as coisas.

O Conselho Diretor do Congresso Espírita Internacional, de Glasgow, que se reuniu na primeira semana de setembro do corrente ano (1937), me escreveu, convidando-me a dele participar pessoalmente, oferecendo-me o cargo honorífico de vice-presidente do mesmo Congresso e pedindo que eu enviasse um resumo da minha obra, em torno do tema: Animism or Spiritualism: Which explains the facts? (Animismo ou Espiritismo: Qual dos dois explica o conjunto dos fatos?) Formidável encargo, pois que se tratava de resumir a maior parte da minha obra de quarenta anos. Mas, de súbito, o tema se me apresentou teoricamente muito importante. Aceitei então, sem hesitar, o convite e, como escasso era o tempo e vasta a tarefa, pus-me a reunir todas as minhas publicações sobre o assunto: livros, monografias, opúsculos e artigos, lançando-me sem demora ao trabalho.

Do resumo ficou excluída uma importante seção da minha obra, porque o desenvolvimento do tema exigia que eu refutasse, baseando-me em fatos, a inefável objeção anti-espirítica segundo a qual, não se podendo assinar limites às faculdades supranormais da telepatia, da telemnesia, da telestesia, também nunca será possível demonstrar-se experimentalmente – e, portanto, cientificamente – a existência e a sobrevivência do espírito humano. Como se sabe, essa gratuita objeção se refere exclusivamente aos casos de identificação espirítica, baseada nos informes pessoais fornecidos pelos defuntos que se comunicam, casos que perderiam todo o valor demonstrativo, desde que resultasse fundada a referida objeção, porquanto, então, seriam explicáveis em massa, com os poderes da subconsciência, os quais chegariam a extrair os aludidos informes das subconsciências dos vivos que, embora distantes, houvessem conhecido os mencionados defuntos (telemnesia). Nessas condições, se eu quisesse eliminar preventivamente toda possibilidade de crítica às conclusões expostas no presente trabalho, necessário se fazia não levar em conta as minhas pesquisas sobre casos de identificação espirítica da natureza indicada, nem tampouco os meus laboriosos esforços de análise comparada acerca das mensagens em que os defuntos descrevem o ambiente em que se encontram.

Assim foi que procedi, chegando desse modo a fazer emergir, baseada nos fatos, uma verdade metapsíquica que, conquanto evidentíssima, era miseramente esquecida pelos propugnadores da objeção em causa. Aludo ao fato de que as provas de identificação espirítica, fundadas nas informações pessoais fornecidas pelos defuntos que se comunicam, longe de serem as únicas que se podem conseguir para a demonstração experimental da sobrevivência, mais não são do que simples unidade de prova, entre as múltiplas provas que se podem extrair do conjunto dos fenômenos metapsíquicos, mas, sobretudo, das manifestações supranormais de ordem extrínseca, as quais, de ninguém dependendo, resultam independentes dos poderes da subconsciência. Tais, por exemplo, os casos das “aparições dos defuntos quando ainda no leito de morte” e os das “aparições dos defuntos pouco depois da morte”, assim como outras importantes categorias de fenômenos metapsíquicos, que reuni e comentei no extenso e resolutivo Capítulo V do presente trabalho.

Noutros termos: procedendo desse modo, logrei demolir a única hipótese de que dispunham os opositores para, de certa forma, neutralizarem a interpretação do alto mediunismo, hipótese que, embora absurda e insustentável, parecia embaraçosa, visto que, por ser indemonstrável, se tornava irrefutável. Ver-se-á, porém, que, ao contrário disso, cheguei igualmente a demoli-la, estribando-me nos fatos, de sorte que, à questão que me foi proposta: Animismo ou Espiritismo, qual dos dois explica o conjunto dos fatos?, fácil se me tornou responder, nos termos seguintes:

Nem um nem outro logra, separadamente, explicar o conjunto dos fenômenos supranormais. Ambos são indispensáveis a tal fim e não podem separar-se, pois que são efeitos de uma causa única e esta causa é o espírito humano que, quando se manifesta, em momentos fugazes, durante a encarnação, determina os fenômenos anímicos e, quando se manifesta mediunicamente, durante a existência “desencarnada”, determina os fenômenos espiríticos.

Esta e unicamente esta é a solução legítima do grande problema, dado que ela se apresenta como resultante matemática da convergência de todas as provas que advêm da coletânea metapsíquica, considerada em seu conjunto.

Acredito, portanto, haver produzido um labor profícuo, a serviço da causa da Verdade, labor cujo desenvolvimento se revela praticamente mais formidável do que tudo quanto eu imaginara, pois não tardei a me aperceber de que as argumentações e os comentários sobre os casos, na forma especial que lhes eu dera, não se adaptaram a um trabalho de síntese geral. De sorte que tive de remanusear um pouco por toda parte. Ora, refazer é mais difícil do que fazer.

Como quer que seja, agora que concluí, muito me alegra que o Conselho Diretor do Congresso de Glasgow me haja levado a resumir-me a mim mesmo, porquanto da síntese de muitas publicações minhas, longas, breves, de ocasião, condensadas num livro, de pequeno porte, surge incontestável a solução espírita do mistério do ser.


Capítulo I
As faculdades supranormais subconscientes
independem da lei de evolução biológica

Foi no ano de 1891 – data para mim memorável – que pela vez primeira me pus em contacto com as pesquisas psíquicas e isso se deu por obra do professor Ribot, diretor da Revue Philosophique, o qual espontaneamente me enviou o primeiro número dos Annales des Sciences Psychiques, no qual se falava de telepatia. Essa “fortuita coincidência” decidiu para sempre do meu futuro de escritor e de pensador. Uma vocação predominante me havia, ao invés, conduzido a ocupar-me, exclusiva e apaixonadamente, de filósofa científica e Herbert Spencer era, naquele tempo, o meu ídolo. Durante dois anos, eu estudara, ininterruptamente, anotara, classificara com imenso amor todo o conteúdo do seu imponente e enciclopédico sistema filosófico, para, em seguida, lançar-me de corpo e alma nas lutas do pensamento, empenhando-me em polêmicas com quem ousasse criticar os argumentos e as hipóteses que o meu venerado mestre formulara. Transformara-me em apóstolo do meu ídolo, o que significa que em tudo pensava e sentia como Herbert Spencer e a concepção mecânica positivista do Universo era a minha profissão de fé. Acrescente-se que, ao passo que admirava a suprema sabedoria do grande filósofo, que intencionalmente se apartara do grosseiro materialismo imperante no seu tempo, dedicando a primeira parte dos seus First Principies à teoria do “Incognoscível” e afirmando com isso o próprio “agnosticismo” em presença do enorme mistério do ser; ao passo – digo – que admirava a suprema sabedoria daquele que assim se comportava, a síntese conclusiva das minhas concepções filosóficas gravitava decisivamente, nada obstante, nas órbitas dos Büchner, dos Moleschott, dos Haeckel, que negavam a existência de um Ente Supremo e a sobrevivência humana. Nessa conformidade, defendia eu, nas revistas filosóficas, esse ponto de vista com apaixonado ardor, correspondente, em tudo, ao que mais tarde viria a demonstrar em defesa de uma causa diametralmente oposta, porém infinitamente mais reconfortante.

Pareceu-me oportuno começar lembrando esse período do meu passado filosófico, porque o vigor com que agora defendo a causa espiritista a alguns se afigura indício manifesto de que a firmeza das minhas convicções, longe de exprimir a síntese de profundas pesquisas em torno dos fenômenos supranormais, é devida à invasão de um misticismo congênito, perturbador de todo juízo sereno. Nada mais distante da verdade: não existe, nem nunca existiu em mim indício de misticismo e o fervor com que defendo as minhas presentes convicções filosóficas é apenas expressão do meu temperamento de escritor. Tanto assim que, quando militava nas fileiras dos pensadores positivistas-materialistas, sustentava com igual ardor apaixonado as minhas convicções filosóficas de então.

Dito isto, entro, sem mais, no assunto.

Como já disse, há quarenta anos me dedico a pesquisas psíquicas; mas nos primeiros nove anos nada escrevi a respeito, porque de pronto medira a formidável complexidade da nova “Ciência da Alma” e, por conseguinte, compreendera a necessidade de penetrar nela a fundo, remontando-lhe às origens, investigando-a na história dos povos civis, bárbaros, selvagens, bem como experimentando a todo custo.

Por essa misteriosa lei que casualmente aproxima um e outro indivíduos que têm fortes afinidades intelectuais e aspirações científicas do mesmo sentido, cheguei presto a constituir em Gênova um grupo escolhido de estudiosos da matéria, entre os quais o professor Henrique Morselli, o professor Francisco Porro, Luiz Arnaldo Vassallo, grande jornalista e escritor, e o doutor José Venzano, conhecidíssimo profissional. Cheguei, outrossim, a descobrir e desenvolver ótimos médiuns particulares e, mais tarde, a fazer experiências, durante anos, com a célebre Eusápia Paladino, Fica, pois, entendido que, se deixei passassem nove anos antes de mergulhar a pena no assunto metapsíquico, não menos certo é que gastei muito bem o meu tempo, uma vez que então me sentia senhor de fortíssima preparação e conquistara o direito de externar publicamente a minha opinião sobre o formidável tema. Quando me decidi a entrar na liça, é de assinalar-se que o primeiro artigo que publiquei na Revista de Estudos Psíquicos, então dirigida por César de Vesme, foi precisamente um artigo em que demonstrava que o Animismo prova o Espiritismo. Daí em diante, não mais pude deixar de investigar, sob todos os aspectos, essa questão, que é fundamental para a correta interpretação da fenomenologia metapsíquica e cuja solução, em sentido espirítico, se apresenta como a única apta a explicar o conjunto inteiro dos fenômenos supranormais.

Mas, se do ponto de vista deste trabalho – cujo tema me foi sugerido pela Comissão Diretora do Congresso Espírita Internacional de Glasgow (1937) – me apresso a ponderar que o fato de haver explanado, por trinta e seis anos, a grande questão, submetendo-a a todas as provas e contemplando-a sob todos os aspectos, forçoso torna-se concluir que nada de novo poderei aditar ao que já publiquei, patente se faz, ao mesmo tempo, que deverei limitar-me a resumir, em parte mínima, a imensa mole de trabalho realizado.

O artigo a que aludi tinha por título – Espiritualismo e crítica científica. Apareceu em o número de dezembro de 1899 da Revista de Estudos Psíquicos e nele eu refutava, apoiando-me em fatos, a hipótese formulada pelos opositores contra a interpretação espirítico das manifestações dos defuntos. Em seguida, reforçava a refutação, invadindo o campo adversário e demonstrando que, mesmo quando se excluíssem os casos de identificação espiritista, bastaria sempre o fato da existência de faculdades supranormais subconscientes para fornecer a prova incontestável da sobrevivência humana. Abstenho-me de resumir a substância do ponto debatido, porque, tendo depois volvido muitas vezes ao assunto, sempre com maior eficiência de dados e argumentos, não é necessário citar essa primeira referência ao tema controvertido, referência que terminava com uma espécie de desafio concebido nestes termos:

“Poderá alguém se mostrar duvidoso ou céptico com relação aos fenômenos sobre os quais se fundam as minhas conclusões; desses, porém, me desembaraçarei com uma pergunta: “Estaríeis dispostos a reconhecer por incontestáveis os meus argumentos, desde que os fatos se revelassem conformes em tudo à verdade?” Se sim (e não pode ser diversamente), nada mais peço, nem de outra coisa pretendo cuidar. Os fatos são fatos e saberão impor-se, pela sua própria força, pouco a pouco, mal grado a tudo e a todos. A mim me basta se reconheça verdadeira a observação seguinte: “As conclusões podem ter-se por incontestáveis, sob a condição de que os fatos sejam verdadeiros.” Quanto aos fatos, repito, abrirão caminho por si mesmos e os espiritistas se sentem plenamente seguros e tranqüilos com respeito a esse ponto.”

Os casos a que me referia não eram fatos de identificação espirítica, mas episódios escolhidos de fenômenos anímicos, quais a “leitura do pensamento”, a “telepatia”, a “visão através de corpos opacos”, a “clarividência no presente, no passado e no futuro”, fenomenologia que me bastava para chegar às conclusões a que me propunha, ou, seja, à demonstração de que o Animismo prova o Espiritismo. De todo modo, repito, não podendo eximir-me de voltar ao tema com mais amplo desenvolvimento, me reservo o direito de recorrer a outros trabalhos, a fim de ilustrar o importantíssimo tema, que é fundamental para a defesa da tese espirítica, sobretudo se se considerar que o sistema de luta de que se valem os opositores é o de esforçarem-se, primeiramente, por demonstrar que a gênese das faculdades supranormais subconscientes se inclui na órbita da evolução biológica da espécie. Em seguida, tendo-se libertado de imenso obstáculo inicial, eles se julgam autorizados a ampliar, à vontade, os poderes supranormais das faculdades em apreço, à medida que se produzem incidentes de identificação de defuntos, incidentes cada vez mais inexplicáveis por meio de hipóteses naturalísticas. Essas ampliações já chegaram aos portentosos extremos de conferirem à subconsciência humana os atributos divinos da onisciência e da onividência.

Do que fica exposto decorre que a primeira objeção a ser refutada, ou, se o preferirem, o primeiro erro a ser corrigido nas opiniões dos opositores gira em torno do fato de que eles, para alcançarem seu escopo, se servem das faculdades normais subconscientes, no pressuposto de que o perturbador enigma de existirem, na subconsciência humana, portentosas faculdades praticamente inúteis, se pode elucidar em sentido naturalístico e no pressuposto também de terem alcançado seu objetivo com o formularem diversas hipóteses que, embora contrastando umas com outras, concordam todas em constranger – assim direi – as faculdades supranormais subconscientes a entrar na órbita da lei de evolução biológica, condição indispensável, esta última, a lhes legitimar cientificamente a origem naturalística. Porque, se, ao contrário, as faculdades de que se trata independessem da lei de evolução biológica, tal fato, então, provaria a gênese espiritual das aludidas faculdades, com as conseqüências teóricas daí decorrentes.

São as seguintes as hipóteses formuladas a esse propósito:

1° – As faculdades supranormais subconscientes são resíduos de faculdades atávicas que se foram atrofiando por obra da “seleção natural”, visto se haverem tornado inúteis à ulterior evolução biológica da espécie.

2° – As faculdades supranormais subconscientes são rudimentos abortivos de sentidos que nunca evolveram e jamais evolverão, por inúteis à espécie na luta pela vida.

3° – As faculdades supranormais subconscientes representam outros tantos germens de sentidos novos destinados a evolver nos séculos, até emergirem e se fixarem estavelmente na espécie.

4° – O fato de se manifestarem nalguns indivíduos, em lampejos fugazes, faculdades sensórias de ordem supranormal não implica que as mesmas faculdades hajam de existir, em estado latente, nas subconsciências de todos.

Tais as hipóteses com as quais os opositores ganham a ilusão de haverem constrangido as faculdades supranormais subconscientes a encaixar-se na órbita da lei de evolução biológica.

Postas as coisas nestes termos, faz-se mister demonstrar aos opositores que tudo concorre para provar o contrário, isto é, que as faculdades supranormais subconscientes não são e não podem ser levadas a cargo da evolução da espécie e que, ao demais, semelhantes conclusões resultam validíssimas, mesmo na hipótese de que as aludidas faculdades se destinassem a emergir e fixar-se na espécie em afastadíssimo porvir, hipótese que, entretanto, se revela insustentável em face da análise comparada dos fatos, assim como insustentáveis se revelam as outras hipóteses menores acima enumeradas.

Dito isto, entro no assunto, cuidando, antes de tudo, de eliminar rapidamente três das mencionadas hipóteses, as quais tão inconsistentes se mostram, que não apresentam valor teórico de espécie alguma.

Para clareza da discussão, importa começar lembrando que nos eixos da teoria evolucionista se encaixam duas leis biológicas indissoluvelmente conjugadas entre si: a das variações espontâneos nos organismos vivos, variações que, por serem úteis aos indivíduos na diuturna luta pela vida, chegam gradativamente a fixar-se e a evolver na descendência, em virtude de outra lei, a da seleção natural, que se compendia no fato da progressiva extinção dos indivíduos menos aptos àquela luta e na “sobrevivência dos mais aptos”, o que, necessariamente, leva à elaboração de organismos estavelmente providos dos sentidos e das faculdades mais adequadas ao ambiente em que eles vivem.

Aplicando essas leis biológicas à primeira das hipóteses acima citadas, na qual se afirma que as faculdades supranormais subconscientes são resíduos de faculdades atávicas que se foram atrofiando por obra da “seleção natural”, porque se haviam tornado inúteis à ulterior evolução biológica da espécie, logo se evidencia que a própria hipótese se acha em flagrante contradição com os fatos. Para que disso se convença quem quer que seja, bastará considere o modo pelo qual praticamente se desenvolve a luta pela vida, na espécie humana. Do chefe de uma tribo selvagem, que procura penetrar com astúcia o pensamento doutro chefe seu antagonista, até ao generalíssimo de um exército moderno, aplicado a prever, para preveni-los, os movimentos do inimigo; do tirano da antiguidade, que vigia desconfiado os seus cortesãos aduladores, ao juiz de instrução do nosso tempo, a estudar o meio de colher do delinqüente o seu segredo; do homem de governo que se esforça por descobrir os propósitos de um chefe de partido contrário, ao ávido comerciante que espreita o seu concorrente para sobrepujá-lo; do amante infortunado que vela sobre os passos do odiado rival, ao marido ciumento, que esquadrinha no olhar da esposa a prova da sua culpa, entre os homens, reinou sempre um afanoso enfurecimento recíproco e sem trégua, com o fim, da parte de cada um, de penetrar no ânimo dos outros e tudo isso, necessariamente, fatalmente, pois que, em tal sentido é que urge a luta pela vida. Segue-se daí que se a espécie, nalgum tempo, se houvesse achado provida normalmente dos sentidos telepáticos e clarividentes, estes, longe de se atrofiarem pelo desuso, deveram afinar-se e evolver rapidamente na descendência, em virtude da lei de seleção, que houvera conduzido fatalmente à gradual extinção dos indivíduos imperfeitamente aparelhados dos mesmos sentidos e à sobrevivência dos mais bem dotados deles.

Tudo isso parece, com efeito, tão manifesto, que não se me afigura necessário estender-me mais sobre o tema.

Por idênticas considerações, igualmente insustentável considero a segunda das hipóteses em exame, que o professor A. J. Balfour expõe da seguinte maneira: “Não será, porventura, lícito supor-se nos achemos aqui em presença de rudimentares germens de sentidos que nunca se desenvolveram e que, provavelmente, jamais se desenvolverão por obra da “seleção natural”, visto serem simples produtos de refugo da grande trama evolucionista, isto é, produtos que de maneira nenhuma poderiam utilizar-se? E pode dar-se (aventuro uma mera hipótese inverificável), pode dar-se, digo, que, nos casos de indivíduos assim dotados normalmente, venhamos a encontrar-nos em face de faculdades que não teriam deixado de evolver e de tornar-se patrimônio comum da espécie, se houvessem demonstrado merecedoras de que com elas se ocupasse a Natureza, ou, seja, se houvessem mostrado propícias, de qualquer modo, à luta pela vida.” (Proceedings of the S. P. R., vol. X, pág. 7).

Temos visto, ao contrário, que a imensa utilidade de tais faculdades teria coincidido, de forma incontestável, com as diretivas que a luta pela vida impõe à espécie humana. Estabelecido este ponto, torna-se ocioso recorrer a outros argumentos para demonstrar que a referida hipótese resulta errada nas premissas e não resiste à prova dos fatos.

Passo, portanto, à terceira das hipóteses a serem eliminadas. Segundo esta, o fato de se manifestarem faculdades supranormais em alguns indivíduos não implica que tais faculdades hajam de existir, em estado latente, nas subconsciências de todos. É uma hipótese indispensável aos propugnadores da tese naturalística, porquanto necessária a corroborar o asserto de que as faculdades supranormais subconscientes, à guisa das faculdades sensórias normais, se originam de uma única lei biológica: a das “variações espontâneas”, que, em virtude de outra lei complementar, a da “seleção natural”, viriam a generalizar-se gradualmente na espécie.

Nada de mais racional, à primeira vista, do que semelhante hipótese e ninguém pensaria em contradizer o Sr. Marcelo Mangin, quando observa: “Poderei desejar, durante vinte anos, com todas as forças de minha alma, adquirir esses dons maravilhosos, sem que ao cabo do vigésimo ano perceba em mim o mais insignificante indício de tais dons.” (Annales des Sciences Psychiques, 1903, pág. 241). Apresentada sob essa forma, a argumentação parece incontestável, o que não impede que, tomando por base a análise comparada dos fatos, se tenha de concluir resolutivamente no sentido da universalidade dos aludidos dons. Para verificar-se que assim é, bastará se pondere que a grande maioria dos indivíduos com os quais se dão manifestações da natureza das de que tratamos se conservam nas condições negativas do Sr. Marcelo Mangin, enquanto não lhes sobrevém alguma enfermidade grave, ou não lhes chega à hora da agonia, ou não lhes sucede algum sério acidente traumático-cerebral, ou não lhes acontece cair em delíquio, ou submeter-se a experiências sonambúlico-hipnóticas, ou fazer inalações de éter e assim por diante.

Para esclarecimento do tema, resumirei alguns casos do gênero.

Em o número de novembro-dezembro de 1904, do Bulletin de Institut Général Psychologique, o Dr. Sollier narra que um indivíduo, tendo caído de um trem em marcha, apresentara sérias perturbações nervosas de origem traumática e que, simultaneamente, se revelaram nele faculdades telestésicas. Através da espessura de uma parede de 40 centímetros de largura, percebia os acenos que o doutor lhe fazia, chamando-o e acorria, precipitando-se com fúria para a porta. No caso, não podia tratar-se de transmissão do pensamento, porquanto o Dr. Sollier nunca chegou a transmitir ao paciente ordem para ir ter com ele e, no entanto, aquele se precipitava infalivelmente para a porta, com o costumado ímpeto, a um aceno que o doutor lhe fazia com a mão, chamando-o. Aí está, pois, um indivíduo que certamente não imaginara possuir o dom da visão através de corpos opacos, antes que, atingido por sério acidente traumático, este lho houvesse revelado.

Nos Annales des Sciences Psychiques, ano de 1899, pág. 257, é narrado o caso do engenheiro E. Lacoste que, atacado de grave congestão cerebral, complicada de febre tifóide, permaneceu em estado de inconsciência e de delírio por mais de um mês, dando, durante esse tempo, prova de possuir faculdades telepáticas e telestésicas. Entre outros fenômenos que produziu, anunciou um dia a chegada a Marselha (ele residia em Tolosa) de seis caixas com alfaias, esperadas, de há muito, do Brasil e acrescentou que era preciso recusá-las ou apresentar uma reclamação, porquanto uma delas fora substituída, precisamente a que continha os retratos, as capas, os vestuários, assim como diversos outros objetos de valor. Verificou-se que tudo correspondia plenamente à verdade e que na caixa que substituíra a outra apenas havia coisas que nada valiam. Ora, indubitavelmente, o engenheiro Lacoste não se creria depositário inconsciente de faculdades supranormais, se, para testificar não lhe houvesse sobrevindo uma enfermidade grave.

Nas Memórias, de Sir Almeric Fitzroy, se descreve a morte de Lord Hampden, que jazeu inconsciente 48 horas, assistido por seu filho Tom. Este, não notando indícios de que o enfermo recuperasse os sentidos, resolveu ir a casa jantar, tomando-lhe o posto Lady Hampden. De improviso o agonizante abriu os olhos e exclamou: “Que aconteceu a Tom?” Surpreendida, Lady Hampden respondeu: “Tom foi jantar e está perfeitamente bem.” “Não – replicou o enfermo, acrescentando com grande ansiedade – ele se acha em grave perigo.” E, tendo-o dito, recaiu em estado de inconsciência e pouco depois morria. É que Tom, indo para casa numa caleça, esta colidiu com um ciclista, colisão de que lhe resultaram graves conseqüências. (Light, 1925, pág. 433). Sem dúvida, Lord Hampden, à maneira de Marcelo Mangin, teria tido o pleno direito de observar, a quem quer que o interrogue a respeito, que estava bem certo de não possuir faculdades de clarividência e, nesse caso, a hora da agonia interviera para desmenti-lo, revelando a existência daquelas faculdades na sua subconsciência.

Não apresentarei outros exemplos. Cingir-me-ei a lembrar que se contam por centenas os casos desse gênero, nos quais se nota uma variedade altamente sugestiva de situações episódicas, conducentes, de modo irresistível, às seguintes conclusões gerais:

Tendo-se em conta que o manifestarem-se de súbito no homem faculdades supranormais, muitíssimo superiores às normais, não pode ser atribuído ao fato de que um trauma na cabeça, um delírio febril, um estado comatoso, ou uma inalação de éter as tenham criado do nada, forçoso será se deduza que tais faculdades existem, em estado latente, nas subconsciências de todos e que os estados traumáticos, febris, comatosos, determinando no indivíduo um enfraquecimento ou uma parada temporária das funções da vida de relação, chegam a criar uma condição favorável a que as ditas faculdades surjam, também temporariamente. Por outras palavras: as faculdades da subconsciência, em virtude da sobrevinda parada, teriam meio – por assim dizer – de infiltrar-se pelas comissuras que se abriram no diafragma que as separa das faculdades psíquicas conscientes e de irromper no campo da consciência normal.

Segue-se que, baseado nas provas de fato acima expostas e nas considerações daí decorrentes, a ninguém será lícito pretender que na sua própria subconsciência não existam faculdades supranormais. Ninguém poderá afirmar com segurança senão que não é sujeito a irrupções espontâneas das faculdades subconscientes no plano consciente e normal da psique, irrupções que constituem a diferença que existe entre os chamados sensitivos e os que não o são.

Com isto, considero respondida exaustivamente a questão implícita na hipótese acima reproduzida.

Resta discutir a última das quatro hipóteses formuladas pelos opositores, hipótese esta que, mais do que qualquer outra, se mostra verossímil e racional, porque pressupõe que as faculdades supranormais subconscientes são germens fecundos de sentidos novos, destinados a emergir e fixar-se na espécie, em remoto futuro. Nada obstante, resultará fácil demonstrar que também esta hipótese não resiste à análise dos fatos. Advirto que, ao discutir a tese em apreço, terei necessidade de explanar a fundo outra tese importantíssima e fundamental no presente debate: a em que se afirma que as faculdades supranormais subconscientes não são e não podem ser fruto da evolução biológica da espécie.

Também nesta circunstância importa começar lembrando que a atividade organizadora da evolução biológica se exercita por meio de uma lei grandiosa e ao mesmo tempo simplíssima: a da “seleção natural”. Isto posto, ser-me-á fácil demonstrar que as faculdades supranormais subconscientes não são produto da “seleção natural”, porque são estranhas ao ambiente em que esta última se processa, o que equivale a afirmar que as referidas faculdades não se destinam a emergir e fixar-se permanentemente na espécie, como sentidos normais. Acrescente-se que, se as faculdades supranormais não são produto da “seleção natural”, por serem estranhas ao ambiente em que esta última se processa, igualmente se deve excluir a idéia de que a outra lei biológica, das “variações espontâneas”, chegue a lhes explicar a gênese. Deve-se afastar esta idéia, pela consideração de que o fato biológico das “variações espontâneas” não pode deixar de originar-se da soma dos estímulos que do mundo exterior chegam aos centros nervosos, ou, em outros termos, não pode deixar de ser gerado pelas relações indissolúveis que unem os centros nervosos ao plano da vida de relação. Se assim não fosse, então a gênese das “variações espontâneas” seria de ordem espiritual, o que os modernos biologistas não admitem e, se o admitissem, razão não mais haveria para discutirmos a questão em apreço. Partindo de tudo o que fica dito, deve-se concluir que, para provar a validez da tese que propugnamos, basta esta só capitalíssima circunstância de fato: que as condições requeridas para que as faculdades sensórias normais cheguem a despontar e evolver são diametral e irredutivelmente contrárias às que se exigem para que as faculdades supranormais subconscientes cheguem a surgir e explicar-se.

Vejamos.

As pesquisas biológicas e morfológicas hão demonstrado que os órgãos dos sentidos não eram, na origem, senão centros rudimentares de sensibilidade diferenciada, que se localizaram na periferia, sob a ação de estímulos exteriores e isso nos pontos que correspondiam aos filamentos terminais de fibras nervosas receptoras, servindo de cabeça aos gânglios centrais, sede de reações psíquicas. Assim, as pesquisas psicofisiológicas evidenciaram que a gênese e a evolução das faculdades normais da psique dependem da complexidade e da natureza das sensações e percepções que os órgãos da vida de relação transmitem do mundo exterior aos centros de elaboração psíquica. Cumpre, portanto, se tenha bem em mente que a obra dos fatores da evolução, nas suas relações com a gênese e a evolução dos órgãos dos sentidos e das faculdades psíquicas normais, se executa necessária e exclusivamente no plano da vida de relação, sob a forma de uma reação contínua e complexa, contra os estímulos exteriores. Quer isso dizer que se executa no plano da consciência normal, que é aquele no qual se desenvolve, para os seres sensíveis e animados, a luta pela vida.

Firmado esse ponto e passando a analisar as modalidades sob as quais se manifestam as faculdades supranormais subconscientes, é de assinalar-se que estas, em vez de se exercitarem no plano da consciência normal, somente surgem sob a condição de que as funções da vida de relação se achem temporariamente abolidas ou apagadas, dependendo do grau, mais ou menos profundo, de inconsciência em que jaza o sensitivo, o grau de maior ou menor perfeição com que elas se exteriorizam. Ora, não se podendo negar que, imerso no estado de inconsciência, um organismo sensiente é um organismo temporariamente privado de qualquer relação com o mundo exterior – portanto, impotente para a luta pela vida – logicamente se segue que os fatores biológicos não podem, não puderam e não poderão nunca nenhuma influência exercer, por mínima, que seja, sobre a gênese e a evolução das faculdades psicosensórias subconscientes, o que equivale a reconhecer-se que essas faculdades pertencem a um plano qualitativamente diverso e em absoluto independente daquele em que agem os fatores da evolução biológica.

Isto posto, apresentam-se e se impõem as seguintes questões: Se não existem relações de causa e efeito entre os fatores da evolução biológica e as faculdades supranormais subconscientes, qual então será a gênese dessas faculdades? Porque permanecem elas inoperantes, em estado latente, nos recessos da subconsciência, ao invés de se exercitarem a bem da Humanidade? Porque se limitam a aparecer, em momentos fugazes e somente em razão do estado de inconsciência em que jaz o sensitivo? Que finalidades terão, sendo tão misteriosas e anormais as características das suas manifestações? Tanto quanto as outras, esta última pergunta se impõe, visto que qualquer coisa, em a Natureza, pelo só fato de existir, é finalidade que se revela. Parece indubitável, pois, que a única solução racional dos formidáveis enigmas enunciados consiste em reconhecer-se que as faculdades subconscientes não se destinam a exercitar-se em ambiente terreno, por serem faculdades de sentido da existência espiritual, aguardando, para emergir e exercitar-se, o ambiente espiritual que sucede à crise da morte.

E tais conclusões, rigorosamente deduzidas dos fatos, têm a corroborá-las admiravelmente as modalidades sob as quais se exercitam as faculdades psicosensórias supranormais, modalidades que, a seu turno, são diametral e irredutivelmente contrárias àquelas sob as quais se exercitam as faculdades psicosensórias normais. Assim, por exemplo, quando um indivíduo vê com os olhos do corpo, isso significa que um objeto qualquer reflete a sua imagem na retina dos próprios olhos e que a imagem aí impressa, por intermédio do nervo óptico, é transmitida aos centros cerebrais correspondentes, em virtude dos quais a impressão se transforma em visão. Ora, precisamente o oposto se dá no que concerne à visão supranormal, em que o sensitivo percebe fantasmas ou cenas do passado, do presente e do futuro, não com os olhos do corpo, mas com a visão espiritual interior. E, como o espírito se acha em relação com o cérebro, produz-se um fenômeno de transmissão inversa, pelo qual a imagem espiritual, vindo dos centros ópticos, por intermédio do nervo óptico, chega à retina, donde é projetada no exterior em forma alucinatória, produzindo no sensitivo a ilusão de estar assistindo a uma manifestação objetiva. Outro tanto é de dizer-se das impressões auditivas que, em realidade, consistem num fato de audição espiritual que, influenciando, do interior, os centros acústicos cerebrais, dá ao sensitivo a ilusão de ouvir sons e palavras provenientes do exterior.

Tais modalidades de exteriorização, em antítese absoluta com as modalidades sob as quais operam os sentidos terrenos, se, de um lado, são explicabilíssimas, uma vez se reconheça que as faculdades supranormais subconscientes representam as faculdades psicosensórias do espírito, as quais se utilizam para seus fins dos sentidos terrenos, por outro lado se tornam, ao contrário, literalmente inexplicáveis, desde que se pretenda que as ditas faculdades são produtos da “seleção natural” e da “adaptação ao ambiente”. Com efeito, em tal caso, não deveria ocorrer o fato de elas se exteriorizarem em sentido inverso ao das faculdades psicosensórias terrenas, visto que as leis da “seleção natural” e da “adaptação ao ambiente” não poderiam exercitar seus poderes sobre impressões-sensações que não fossem reais, objetivas, provenientes do mundo exterior, porquanto o mundo exterior é constituído de força e matéria, coisa tão manifesta que não vale a pena alongar-me em demonstrá-lo. Considerando, portanto, que as faculdades psicosensórias subconscientes não recolhem percepções objetivas, provindas do ambiente terreno, mas, sim, percepções subjetivas, provenientes de um plano espiritual de percepção, é de inferir-se, logicamente, que aquelas faculdades não pertencem ao plano de evolução biológica da espécie e não podem, conseguintemente, ser produto dessa evolução. De novo, pois: deve-se, necessariamente, concluir que elas são os sentidos espirituais da personalidade humana, aguardando oportunidade de surgirem e exercitarem-se em ambiente apropriado, depois da crise da morte.

A fim de prevenir qualquer presumível contestação às considerações expendidas, adiantarei que duas objeções se lhes poderiam contrapor. A primeira consistiria em dizer-se que as faculdades supranormais subconscientes se desenvolvem por meio do exercício, o que valeria por demonstrar que, efetivamente, elas são suscetíveis de evolver no plano da consciência normal e que, então, em realidade, não independem das leis biológicas que regem a evolução da espécie. Respondo, antes de tudo, que a circunstância de que se trata apenas significa que as faculdades supranormais subconscientes, em virtude do exercício, adquirem maior facilidade de insinuar-se através do metafórico diafragma que as separa do plano da consciência normal, o que parece óbvio e não poderia deixar de verificar-se, qualquer que houvesse de ser a solução do problema; nada, porém, tem isso de comum com a natureza da questão a resolver, que se conjuga com o fato de que as faculdades em exame são independentes de toda lei biológica, porquanto não se conectam com o plano da vida de relação. Em segundo lugar, respondo não ser exata a afirmação de que as faculdades supranormais se desenvolvem com o exercício no plano da consciência normal, dado que, quando se manifestam, elas continuam a ser subconscientes com referência ao sensitivo, que se encontra em condições de inconsciência mais ou menos profunda, em razão do grau de perfeição maior ou menor com que as mesmas faculdades se exteriorizam, o que demonstra, ainda uma vez, e de um ponto de vista diverso, que as aludidas faculdades independem das leis que regem a evolução biológica da espécie. Nada mais acrescento, porque terei de voltar ao assunto, quando discutir diretamente a hipótese segundo a qual se presume que as faculdades supranormais terão um dia de emergir e fixar-se no plano da consciência normal, em função de sentidos terrestres.

A segunda objeção, que se poderia formular a propósito das considerações acima expendidas, consistiria em dizer-se que, contrariamente ao que nelas se afirma, é manifesto que um sensitivo, ao ler um escrito através de uma caixa fechada, receberá impressões vindas do “mundo exterior”, o que significa que percebe por via direta, não mais inversa, donde se seguiria já não ser exato afirmar que a lei de “seleção natural” e a de “adaptação ao ambiente” não podem exercer seus poderes sobre faculdades psicosensórias supranormais. Respondo que também poderei desinteressar-me dos fenômenos da “visão através dos corpos opacos”, por ser incerto o valor teórico que eles apresentam, uma vez que se pode reduzir a fenômenos de hiperacuidade visual dos olhos do corpo, que, então, se mostrariam sensíveis aos raios X.

Não obstante, como considero errônea semelhante interpretação, atendo à objeção a que me refiro, ponderando que tudo concorre para demonstrar que também tais manifestações incipientes da visão espiritual são de natureza inversa e não mais direta, ou, por outras palavras, que, em tais circunstâncias, quem vê é também o espírito, que transmite à sua personalidade consciente, sob a forma de objetivação alucinatória, a mensagem cuja leitura se lhe reclama. A validez desta explicação se demonstra pelo fato (que já discuti na monografia sobre os fenômenos de telestesia) de que, nas circunstâncias figuradas, a visualização do sensitivo assume forma simbólica. Assim, por exemplo, quando o major Buckle apresentava às suas sensitivas sentenças encerradas em conchas de nozes, extraídas por acaso de um cestinho, os sensitivos percebiam diante de si uma folha de carta inteiramente aberta, onde estava escrita a sentença que eles tinham de ler, folha de carta essa que se encontrava, em realidade, dobrada dentro da casca de noz, indício evidente de que não podia tratar-se de visão direta, mas de representação simbólica, de que se servia a personalidade subconsciente, para levar ao conhecimento da sua própria personalidade consciente o contexto do escrito a ser interpretado.

Ressalta, pois, evidente que as objeções acima figuradas já não têm razão de ser, e, em conseqüência, que as conclusões a que cheguei com relação ao fato de que as faculdades psicosensórias supranormais exercem suas funções de maneira inversa e nunca direta, conservam íntegro seu valor teórico, que é grande, tanto mais se for considerado de par com o valor teórico resultante das conclusões a que chegáramos com a discussão precedente. Daí decorre que, tendo por base ambas as conclusões alcançadas, dever-se-á inferir que, se as faculdades psicosensórias subconscientes se exteriorizam de modo inverso ou espiritual e nunca de modo direto ou fisiológico e só se exteriorizam sob a condição de que as faculdades psicosensórias conscientes estejam temporariamente abolidas ou apagadas, fica cientificamente demonstrado que as aludidas faculdades pertencem a um plano fundamentalmente diverso e em absoluto independente do em que atuam os fatores da evolução biológica. Isto, em conexão com o fato da maravilhosa potencialidade, que elas possuem, de exteriorização através do espaço e do tempo, leva necessariamente a concluir-se que nos achamos em presença de faculdades psicosensórias espirituais, que já existem, em estado latente, nos recessos da subconsciência, aguardando o ambiente apropriado para surgir e exercitar-se, após a crise da morte.

Com tudo quanto acabo de expor, penso haver respondido de modo exaustivo à questão principal, a de saber-se se as faculdades supranormais subconscientes são ou não são produto da lei de evolução biológica. Mediante inferências tiradas com rigor dos fatos, fácil me foi demonstrar que as condições sob as quais se exteriorizam aquelas faculdades provam que, na realidade, elas pertencem a outro ciclo de evolução espiritual humana, qualitativamente diverso e muitíssimo mais elevado do que o ciclo dos fatores da evolução biológica.

Resta examinar mais a fundo a outra questão, já tratada em parte, a de saber se as faculdades supranormais subconscientes se destinam ou não a surgir e fixar-se permanentemente na espécie como sentidos terrenos. Numa polêmica que sustentei com opositor de opinião favorável à emergência, na espécie, das faculdades supranormais em apreço, argumentava ele assim:

“É certo que tudo concorre a demonstrar que as faculdades subconscientes existem plenamente evolvidas, em estado latente, nos recessos da subconsciência, prontas a manifestar-se, desde que se produza uma “fenda” nas paredes do cárcere onde se acham metidas. É certo que tudo concorre a demonstrar que a gênese das aludidas faculdades não pode depender dos fatores da evolução biológica. Mas, isso não impede que, com o progresso e a elevação ulterior da espécie humana através dos séculos, hajam elas, a seu turno, de surgir e firmar-se em função de sentidos organicamente constituídos na humanidade futura. Quem contestará semelhante possibilidade?”

Respondo: Ninguém, mesmo porque semelhante possibilidade se apresenta logicamente presumível. Quando, porém, se analisam as condições de fato em que se manifestam e sempre se manifestarão tais faculdades, é-se levado a concluir que aquela possibilidade se torna sobremodo improvável e inverossímil.

Antes de expor as condições que a tais conclusões conduzem, importa estabelecer de antemão que a solução, em sentido afirmativo, da questão em foco, não infirmaria de maneira nenhuma a conclusão a que chegamos, com relação ao significado espiritualístico que se acha implícito no fato de existirem, na subconsciência humana, faculdades psicosensórias supranormais. Assim é, pela consideração de que, mesmo quando fosse demonstrado que as faculdades em apreço se destinam a emergir e fixar-se organicamente na espécie, essa demonstração não impediria que a circunstância da preexistência delas, em estado latente, na subconsciência humana, combinada com as outras circunstâncias delas emergirem quando o sensitivo se acha em condições de inconsciência e de se exteriorizarem em sentido inverso ou espiritual e nunca em sentido direto ou fisiológico, significaria, ainda e sempre, que as faculdades de que se trata independem dos fatores da evolução, com as conseqüências teóricas que daí decorrem, sem mesmo levar em conta que, se as ditas faculdades houvessem de emergir e fixar-se organicamente na espécie, isso, do ponto de vista biológico, significaria que as faculdades psicosensórias geram os seus órgãos e não que os órgãos as geram, como asseveram os biologistas. Tornar-se-ia, portanto, necessário retificar, em sentido espiritualista, as opiniões vigentes acerca da teoria da evolução, que se manteria fundamentalmente verdadeira, mas subordinada às faculdades psíquicas, nas relações do instrumento com o artífice. Por outras palavras: com isso se demonstraria que as faculdades supranormais subconscientes se manifestam no plano da existência terrena em virtude da “luta pela vida”, mas que não derivam da “luta pela vida”.

Dito isto, a fim de prevenir possíveis objeções, passo a formular algumas considerações contrárias à possibilidade de que as faculdades em questão surjam um dia e se fixem organicamente no plano da existência terrena. A primeira e a mais importante dessas considerações consiste nas condições de fato, precedentemente assinaladas, de que os fatores biológicos não podem exercer influência, ainda que mínima, sobre faculdades psicosensórias que, para emergirem e se manifestarem, exigem que o indivíduo se ache em estado de inconsciência parcial ou total ou, por outra, que se ache temporariamente desligado do plano da existência terrena, que é o em que atuam os fatores biológicos. Parece-me que essa consideração devera bastar, por si só, para tornar insustentável a hipótese em exame, tanto mais que a aludida consideração é admiravelmente corroborada pela contraprova histórica, por meio da qual se demonstra que as faculdades supranormais, com efeito, não evolveram através dos séculos. O tema é vasto e aqui não me será possível explaná-lo, senão em forma genérica.

Acentuarei, portanto, que, da análise comparada dos fatos, ressaltam, antes de tudo, duas relevantes características peculiares às manifestações supranormais da subconsciência: a ancianidade e a universalidade delas. Remonte-se tão longe quanto for possível na história dos povos; analisem-se os costumes e os ritos das raças aborígenes européias; consultem-se as primeiras narrativas da antiguidade clássica, da antiguidade bíblica, da egípcia, da babilônica; penetre-se ainda mais adentro no curso dos séculos, acompanhando as crônicas sacras dos povos do Extremo Oriente, e por toda parte se encontrarão provas positivas ou traços evidentes de que no seio de todos os povos se deram manifestações supranormais. Proceda-se a pesquisas análogas entre as hodiernas raças atrasadas e selvagens e em toda parte se descobrirão costumes e ritos fundados nas referidas manifestações. Assim sendo, cumpre relevemos, tendo em vista os nossos objetivos, que uma característica, teoricamente muito importante, dessas manifestações consiste exatamente na condição que elas apresentam de absoluto estacionamento através dos séculos, mal grado às civilizações e às raças. Com efeito, desde que se confrontem as manifestações congêneres, trazidas até nós pelas histórias e tradições dos povos, com as que hoje experimentalmente se conseguem, para em seguida comparar umas e outras com as que se produzem no seio das raças selvagens contemporâneas, comprovar-se-á que nada de substancialmente diverso elas denotam nas modalidades com que se realizam e que não existem povos entre os quais se descubram ou se hajam descoberto indícios de progressiva generalização e aperfeiçoamento das aludidas faculdades, na raça, nem, sobretudo, indícios de progressiva tendência a produzir-se em condições de perfeita vigília (e é quanto importa do ponto de vista biológico). Tudo isso se verifica em presença de uma série de séculos mais que apropriada a servir como legítima medida de confronto, acrescendo que no mesmo período outras faculdades muitíssimo menos importantes no que concerne à “luta pela vida” – qual, por exemplo, o senso musical – evolveram rapidamente e se generalizaram só por serem inerentes ao plano consciente do Eu. Em reforço de tais conclusões, farei notar que os povos hindus, que por vários milênios se aplicaram com fervor a desenvolver essa espécie de manifestações, não lograram mais do que conhecer melhor os métodos empíricos adequados a lhes favorecer a exteriorização naqueles que se revelavam sensitivos. Nenhum vestígio se descobre entre eles de que o número de indivíduos dotados de faculdades supranormais haja aumentado e, ainda menos, qualquer indício que denuncie entre eles uma tendência a conseguir manifestações supranormais em condições de perfeita vigília. Quanto ao valor intrínseco dos fenômenos que se dão com os faquires, nenhuma dúvida pode prevalecer quanto ao fato de que são substancialmente análogos aos que se obtêm com os médiuns do Ocidente.

Outra circunstância digna de ser posta em relevo é a de que, segundo as conclusões da Paleontologia e da Antropologia, as hodiernas raças selvagens são autênticas representantes do que foram, em épocas pré-históricas, os progenitores das raças civilizadas. Isto posto, dever-se-á, por lei de analogia, inferir que, se atualmente se produzem fenômenos supranormais no seio das raças selvagens, eles se hão de ter produzido, de forma idêntica, milhares de séculos antes, no seio das raças aborígenes que deram origem às atuais raças civilizadas. Com essa inferência, chegar-se-á a penetrar tanto pelos séculos adentro, que se terão de considerar demonstradas as condições de estacionamento peculiares às faculdades supranormais subconscientes.

De todo modo, mesmo deixando de lado esta última indução, as anteriores considerações já autorizam a afirmar-se que, desde tempos imemoriais, as faculdades em apreço se vão revelando em a espécie humana no estado de simples manifestações anormais, ou esporádicas, da subconsciência, assim como que nunca nelas se perceberam indícios que autorizem supor-se que a lei de “seleção natural” haja exercido, ou esteja exercendo seus poderes sobre as referidas faculdades. Isso, aliás, era de inferir-se, mesmo a priori, ponderando-se que a “seleção natural” não criou as “faculdades subconscientes”, o que significa que estas faculdades pertencem a um plano qualitativamente diverso daquele em que a “seleção natural” opera e que, por conseguinte, não podem existir ciclos de tempo em que esta última chegue a exercitar seus poderes num plano de existência que lhes é estranho e superior. Em resumo: se as “faculdades subconscientes” não promanam da “seleção natural”, claro é que não podem evolver por virtude da “seleção natural”.

Cumpre ainda se considere a questão de um último ponto de vista: o da existência prática. Quer dizer: cumpre indagar se as faculdades da telepatia, da telestesia, da clarividência no passado, no presente e no futuro se podem conciliar com o desenvolvimento regular e natural da existência terrena. Basta uma ligeira reflexão sobre o tema, para evidenciar a inconciliabilidade das duas séries de percepções sensórias. Aqui, porém, cedo a palavra ao Dr. Gustavo Geley, que, na sua obra intitulada Do Inconsciente ao Consciente, explanou magistralmente o assunto. Escreveu ele:

“Suponhamos que um homem disponha, na existência terrena, das faculdades supranormais e as empregue, a seu bel-prazer, na leitura do pensamento, na visão à distância, na clarividência no passado e no futuro. Que necessidade teria esse homem de refletir antes de agir, de ponderar as conseqüências de seus atos, de lutar contra a adversidade? Não haveria para ele possibilidade de cair em erro; mas, em contraposição, não existiria, para ele, o fator espiritual do “esforço”, sem o qual não lhe seria possível qualquer evolução da sua consciência e inteligência. À maneira do inseto, esse homem não seria mais do que um maravilhoso mecanismo. Seguindo essa estrada, a evolução biológica nunca chegaria a criar a “superior consciência humana”, porquanto se estabilizaria numa forma de sonambulismo hipersensível, que permitiria tudo conhecer sem nada compreender: o super-homem resultaria um autômato transcendental. Daí decorre que constitui um bem, ou melhor, uma necessidade imprescindível que as faculdades supranormais do espírito, juntamente com todo o tesouro psicológico acumulado pelo Ser na sua evolução se conservem permanentemente nas condições em que atualmente as observamos, o que quer dizer: latentes, em sua maior parte nos recessos da subconsciência.” (Ob. cit., pág. 317).

A estas considerações do Dr. Geley, outras adequadíssimas se poderiam aditar, com referência às graves perturbações que às relações familiares e sociais acarretariam as faculdades supranormais, se estendessem à Humanidade toda, em função de um “sexto sentido”. É, com efeito, evidente, que, se a clarividência no presente e no passado, combinada com a “leitura nas subconsciências dos outros”, se tornasse um sentido biológico, violada estaria para sempre e demolida a condição precípua de toda convivência social, porquanto os segredos mais íntimos e mais cuidadosamente guardados, que formam a trama da vida privada do indivíduo, das vidas conjugais, familiares, estariam à mercê de todas as comadres linguarudas e de todos os madraços da vizinhança. Se, a seu turno, a “clarividência no futuro” se tornasse um “sétimo sentido”, paralisada ficaria toda a iniciativa humana e a cada indivíduo nada mais restaria senão cruzar os braços, aguardando fatalisticamente que o seu destino, tão matematicamente previsto quão inevitável, se desdobrasse e cumprisse.... Parece-me que basta.

De tudo o que fica exposto segue-se que, contraditada pelos dados biológicos, históricos, paleontológicos e antropológicos, bem como por considerações resolutórias de ordem psicológico-social, deve considerar-se absurda e inverossímil a hipótese da emergência futura das faculdades supranormais subconscientes. E diga-se isto em homenagem à verdade pela verdade, uma vez que, do ponto de vista da tese propugnada, a de independerem, como já foi dito, as faculdades supranormais subconscientes das leis que governam a evolução biológica, a solução afirmativa da questão em apreço com ela igualmente se conciliaria. Como quer que seja, não é menos certo que a demonstração de que as faculdades de que se trata não se destinam a surgir e fixar-se no plano da consciência normal veio juntar às outras uma última e importante prova complementar em favor da tese sustentada.

*

Com o que acabo de expender, penso haver demonstrado exaustivamente que as faculdades supranormais subconscientes não são resíduos de faculdades atávicas; não são rudimentos abortivos de sentidos que nunca evolveram e nunca evolverão; não são patrimônios fortuitos de algumas subconsciências privilegiadas; não estão destinadas a surgir na qualidade de sentidos periféricos da Humanidade futura; não são, enfim, fruto da evolução biológica da espécie. Ora, todas essas demonstrações negativas conduzem inevitavelmente a uma demonstração afirmativa: a de que as faculdades supranormais subconscientes constituem os sentidos espirituais da personalidade integral subconsciente, sentidos que terão de aparecer e de exercitar-se em ambiente apropriado, depois da crise da morte. Estaria, pois, concluída a minha tarefa; em homenagem, porém, ao método científico da “convergência das provas”, disponho-me a fazer uma observação de fato, que converge para a mesma demonstração. Tal prova ressalta de uma circunstância precedentemente discutida e é que, em regra, as cognições supranormais chegam à consciência normal em forma de representações simbólicas. Pois bem: a natureza simbólica de quase todas as percepções supranormais adquire alto valor teórico, porque demonstra que elas não são apenas independentes dos sentidos periféricos, mas também dos correspondentes centros cerebrais e isso pela razão de que o simbolismo das percepções prova que os centros cerebrais não percebem ativamente e sim recolhem passivamente o que lhes transmite um terceiro agente extrínseco, que é o único a perceber diretamente, para depois transmitir as suas cognições ao sensitivo, sob a forma de representações simbólicas. Evidentemente, isto se dá porque, sendo as percepções do agente diversas em qualidade das que os centros cerebrais do sensitivo assimilam, o primeiro é obrigado a transmiti-las sob a forma de objetivações alucinatórias, de fácil interpretação por parte do sensitivo ou dos interessados. Ora, como esse terceiro agente extrínseco não pode ser outro senão a personalidade integral subconsciente do sensitivo, segue-se que, dadas as circunstâncias invocadas, evidente e irrefutável se torna a contraprova de que a “personalidade integral subconsciente” é uma entidade espiritual independente de qualquer ingerência funcional, direta ou indireta, do órgão cerebral.

Para apreciar todo o valor teórico das conclusões formuladas, convém lembrar em que consiste a objeção de que se valem os opositores para negar qualquer significado espiritualístico aos fenômenos do Animismo. Dizem eles: “Afirmam os espiritistas que, se se pode ver sem os olhos e ouvir sem ser pelos ouvidos, demonstrado se acha que as faculdades da visão e da audição, em sua forma substancial de exteriorização, independem dos órgãos específicos periféricos, de sorte que se deve deduzir que, quando esses órgãos forem destruídos pela morte do corpo, as faculdades da visão e da audição sobreviverão a essa destruição. Ora, é errônea semelhante maneira de argumentar e os espiritistas só teriam razão se se conseguisse demonstrar que a visão e a audição sonambúlicas independem dos sentidos cerebrais que governam os órgãos periféricos. Mas, a verdade, ao contrário, é que, se o clarividente não vê e não ouve por meio dos órgãos periféricos, ele vê e ouve por meio do cérebro. Assim sendo, a questão da sobrevivência nada, de fato, aproveita da existência subconsciente de faculdades supranormais.”

Estes os argumentos dos opositores. Ora, como já ficou visto, se é verdade que o clarividente ainda percebe por meio dos centros cerebrais, não é menos verdade que o simbolismo das percepções demonstra que estas não podem ser consideradas percepções originais ou diretas, mas apenas percepções derivadas ou indiretas, ou com mais exatidão, percepções transmitidas aos centros cerebrais por um terceiro agente extrínseco, que não pode deixar de independer dos centros cerebrais, aos quais ele transmite, sob forma simbólica, as suas cognições. Em outros termos: não pode deixar de ser um “agente espiritual”. E, como esse terceiro agente extrínseco se identifica com a “personalidade integral subconsciente” do sensitivo, é de concluir-se que esta última se tem de considerar uma “entidade espiritual em si”, independente do órgão cerebral, independente do “corpo somático”, que é, para a mesma entidade, instrumento indispensável enquanto persistem suas relações com o ambiente terreno.

*

Agora, em reforço das conclusões a que chegamos, importa relevar outra circunstância de fato que, embora de ordem diferente, se conjuga ao tema tratado e concorre, por sua vez, a corroborar as aludidas conclusões. Quero referir-me ao fato de que as mentalidades mais eminentes que ilustraram o campo das pesquisas metapsíquicas foram concordes em afirmar que a existência subconsciente de faculdades supranormais leva logicamente à dedução da sobrevivência do espírito humano. Não há quem não perceba o alto significado teórico que se contém nessa concordância de afirmações. Numa monografia que escrevi sobre o tema ora considerado, expus longa série de eloqüentes opiniões nesse sentido; aqui, por amor à brevidade, me limitarei a reproduzir a do mais irredutível adversário da hipótese espirítica, opinião que, precisamente por isso, assume importância muito especial. Tiro-a da obra de Frank Podmore: Modern Spiritualism (vol. II, pág. 359). Pondera ele:

“Seja ou não verdade que as condições do Além permitem a quem lá se encontre entrar por vezes em comunicação com os vivos, é evidente que essa questão se tornaria de secundária importância, desde que se chegasse a demonstrar, baseado em faculdades inerentes ao nosso espírito, que a vida da alma não se acha vinculada à do corpo. Ou, por outras palavras: não se pode deixar de conceder que, se é verdade que no sono mediúnico ou extático o Espírito conhece o que ocorre à distância, descobre coisas ocultas, prevê o futuro e lê no passado como em livro aberto, então – atendendo-se a que tais faculdades não foram certamente adquiridas no curso da evolução terrena, cujo ambiente é inadequado ao exercício delas e não lhes justifica a emergência – então, digo, parece legítimo concluir-se que tais faculdades demonstram a existência de outro mundo mais elevado, em que elas terão de exercitar-se livremente, de harmonia com outro ciclo evolutivo, não mais condicionada pelo nosso ambiente terreno. Em suma, ter-se-iam de considerar tais faculdades não mais como resíduos, porém como rudimentos, isto é, no sentido de uma promessa para o futuro e não no de uma inútil herança do passado.

E importa acrescentar que a teoria que aqui se apresenta em esboço não é absolutamente uma especulação filosófica fundada em suposições inverificáveis, mas uma hipótese científica baseada na interpretação de determinada classe de fatos. Tratando-se, porém, de fatos, julgamo-nos obrigados a considerar não apenas a validade das inferências que se possam deles tirar, mas, sobretudo, a autenticidade dos próprios fatos. Ora, é desse ponto de vista que parece vulnerável a posição de Myers. São estas as condições do debate: fora vão contestar que, se se pudesse provar a autenticidade dos fenômenos de precognição, de retrocognição, de clarividência e todos os outros que testificam o surto, em nosso espírito, de faculdades psicosensórias transcendentais, o fato de independer do corpo o espírito se tornaria manifesto. Mas, as provas dessa espécie se nos afiguram, por ora, longe de mostrarem-se aptas a esse efeito, sendo talvez suficientes apenas a justificar a inferência.”

A respeito destas observações de Podmore, embora afirmativas sub conditione, assumem elas particular importância por ter sido quem assim se expressa o mais tenaz adversário da hipótese espirítica. Como se vê, colocado em presença de uma classe de manifestações cujo significado, contrário à teoria da evolução biológica da espécie, não lhe era possível negar, lança ele mão do último recurso a que se apegam os negadores sistemáticos, o de pôr em dúvida a existência mesma dos fatos, dúvida que não me demorarei em refutar, porque, hodiernamente, se ainda se discute a autenticidade de algumas categorias de fenômenos físicos do mediunismo, já se não discute a existência de faculdades supranormais subconscientes, existência que todos reconhecem, o que, sobretudo, se deve à obra admirável de dois pesquisadores geniais: o professor Richet e o Dr. Osty.

Faço também notar que no trecho citado, Podmore concorda admiravelmente comigo, ao afirmar que, do ponto de vista da demonstração científica da existência e sobrevivência da alma, os fenômenos anímicos são os que importam, não cabendo aos fenômenos espiríticos senão aduzirem a prova complementar, aliás importante, da mesma demonstração. Também a esse propósito, deve-se convir em que, se Podmore afirma tudo isso, quer dizer que aquela verdade é incontestável. Portanto, nada mais me cabe senão assinalar aos leitores a imensa importância teórica de tal fato, com que se tira das mãos dos adversários a única arma de que eles dispunham para combater a hipótese espirítica.

Isto posto, lisonjeio-me de que os opositores que me lerem hão de recordar-se, no futuro, de que toda vez que se aventuram a combater a hipótese espirítica, recorrendo aos poderes da “criptestesia onisciente”, nada mais fazem, realmente, do que demonstrar a existência e a sobrevivência da alma, com o se colocarem no ponto de vista do Animismo, antes que no do Espiritismo, o que, precisamente, vem a dar no mesmo.

Faço igualmente notar que, pelo exposto, cheguei a uma primeira conclusão teórica, importantíssima, em demonstração da tese propugnada, conclusão a que se seguirão outras, não menos incontestáveis, que se revelarão cumulativamente resolutivas.


Capítulo II
Os poderes supranormais da subconsciência
podem circunscrever-se dentro de limites definidos

Este segundo capítulo se conjuga indissoluvelmente ao primeiro, completando-o e reforçando-lhe as conclusões. Mas, ao mesmo tempo, cumpre observar que, ainda quando, por ora, não fosse possível traçar os limites em que se exercitam as faculdades supranormais subconscientes e que, por conseguinte, houvesse quem se arrogasse o direito de lhes conceder teoricamente a onisciência divina, as conclusões promanantes da análise aprofundada dos fenômenos anímicos se conservariam sempre invulneráveis, pela boa razão de que, quanto mais se divinize a personalidade integral subconsciente, tanto mais se reforçará a tese aqui propugnada, segundo a qual o Animismo prova o Espiritismo.

De todo modo, porém, como se conferir a onisciência divina à subconsciência humana constitui uma pretensão fantástica e filosoficamente absurda, importa demonstrar, baseado nos fatos, que os opositores caem em erro quando afirmam que não se podem estabelecer limites à potencialidade investigadora das faculdades supranormais e, portanto, que é teoricamente legítimo atribuir-se cada vez maior latitude a essas faculdades, à medida que ocorram casos de elucidação cada vez mais complexa. Argumento é este supremamente cômodo, por meio do qual os opositores engendram outro, o de que, como quer que seja, a simples existência de semelhante possibilidade teórica basta, por si só, para neutralizar a interpretação espiritualista dos fenômenos mediúnicos. Repito que, ao contrário, assim argumentando, incidem eles em grave erro, pois tudo concorre a demonstrar que possível já é circunscrever, dentro de limites definidos, a potencialidade das faculdades supranormais.

Esta possibilidade se deduz, antes de tudo, de uma grande lei cósmica, que governa o universo físico e o psíquico, a lei de afinidade que, naquele, se manifesta pelas forças de atração e repulsão, das quais derivam a organização dos sóis e dos mundos e todas as combinações químicas da matéria cósmica, ao passo que, em ambiente psíquico, se expressa sob a forma da relação psíquica que, do ponto de vista que nos diz respeito, circunscreve em limites relativamente estreitos os poderes investigadores das faculdades supranormais, o que se pode demonstrar com apoio nas provas por analogia, coligíveis das modalidades sob as quais se apresentam algumas variedades de vibrações físicas. Haja visto, por exemplo, as modalidades sob as quais se exerce a energia cósmica na telegrafia sem fio e no rádio. Esta última aplicação da Ciência demonstra, de modo exato, que existimos imersos num turbilhão inextricável de vibrações de toda espécie, as quais, à nossa revelia, atravessam fulminantemente o ambiente em que vivemos e os nossos próprios organismos. Pois bem: que é o que se observa na aplicação do rádio? Isto, principalmente: que, se se quiser colher alguma das infinitas séries de vibrações que de todas as partes nos assaltam, temos que estar em harmonia com a lei de afinidade universal, segundo a qual se vem a saber que todo semelhante atrai o seu semelhante e repele o seu dessemelhante. Ora, no nosso caso, em que se trataria de um universo de vibrações, a aplicação da lei de afinidade consiste em regular o mecanismo do rádio com o comprimento de onda que se pretenda captar. Fazendo assim, chegamos a apanhar a precisa graduação de onda correspondente à desejada manifestação auditiva e nada mais.

Estes os fatos. Agora, aplicando-se à correspondente seção das “vibrações psíquicas” aqui consideradas os ensinos extraídos de tão eloqüente analogia, dever-se-á inferir que, se é certo que as subconsciências humanas recebem e registram as vibrações psíquicas de pessoas distantes, esse recebimento deverá considerar-se circunscrito às pessoas vinculadas, ou afetivamente, ou de outras maneiras, à subconsciência receptora. Equivale isto a dizer que esta última – como se dá com o rádio – precisa estar regulada pelo “comprimento de onda” correspondente à tonalidade vibratória que diferencia de outra qualquer a pessoa ausente que se procura. Isto que, em termos metapsíquicos, se denomina relação psíquica, ensina que os médiuns só chegam a colher informações das subconsciências de pessoas distantes sob a condição de que ocorram as seguintes modalidades experimentais: quando o sensitivo ou o médium conhece a pessoa ausente, ou, se tal não se dá, quando o experimentador a conheça e, ainda, em falta desta circunstância, quando seja entregue ao sensitivo ou ao médium um objeto que a pessoa buscada tenha usado por muito tempo (psicometria).

Tudo isto significa que a subconsciência humana, singularmente considerada, não poderá nunca apanhar os pensamentos de pessoas desconhecidas (nos três sentidos indicados) das próprias personalidades conscientes, porque, não as conhecendo, ignoram a tonalidade vibratória que as caracteriza e não podem, portanto, descobri-las. Tenha-se, pois, em mente que, na falta das três modalidades experimentais acima enumeradas, não é possível que um sensitivo ou um médium consiga pôr-se em relação com a subconsciência de pessoas distantes, como não é possível que o rádio entre em relação com uma estação receptora que não esteja regulada pelo mesmo comprimento de onda. Ora, todas estas coisas significam que os casos de identificação pessoal de defuntos desconhecidos de todos os presentes, quando se dão sem o concurso de objetos psicometrizáveis, levam racionalmente a admitir-se a presença, “na outra extremidade do fio”, do defunto que se comunica. Torna-se, então, evidente, que a lei de relação psíquica serve para circunscrever, em limites bem definidos, as faculdades supranormais investigadoras da subconsciência humana.

Chegamos assim a uma segunda conclusão teórica, rigorosamente fundada nos fatos, complementar da primeira e tão importante que confere a invulnerabilidade a esta. Com efeito, se fenômenos de comunicações telepáticas não podem produzir-se à distância, sem prévio estabelecimento da relação psíquica e se esta só se pode obter dentro das três modalidades experimentais indicadas, feita está, desde já, a prova científica da sobrevivência, tendo por base a categoria dos casos de identificação pessoal de defuntos conhecidos de todos e que se manifestam de modo independente de qualquer forma de relação psíquica terrena.

A tal propósito é, ainda uma vez, de assinalar-se que as conclusões de que se trata permanecem invulneráveis, mesmo quando fosse exato que a telepatia confina amiúde com a “telemnesia onisciente”, segundo a qual as faculdades perquiridoras dos médiuns teriam o poder de insinuar-se nas subconsciências de pessoas distantes, a fim de aí selecionar os informes de que necessitam para mistificar o próximo, informes esses – note-se bem – que quase nunca dizem respeito à pessoa selecionada, mas a terceiras pessoas que ela conheceu em épocas freqüentemente muito remotas, o que torna sobremaneira fantástica e insustentável semelhante hipótese.

Pois bem: mal grado a essa absurda extensão conferida pelos opositores a uma faculdade que existe, é certo, mas em limites muitíssimo mais restritos e que se manifesta sob modalidades perceptivas diversas das que eles supõem, modalidades que tiram todo valor à objeção em apreço; mal grado a isso, ela não infirmaria as conclusões a que chegamos, visto que o médium não poderia alcançar o seu objetivo, toda vez que se não verificassem as três modalidades experimentais exigidas para estabelecer-se a relação psíquica com uma pessoa ausente ou distante.

Daí decorre que estaríamos habilitados desde já a proclamar a grande nova de que a demonstração científica da sobrevivência humana se acha conseguida pela Ciência. E, naturalmente, se assim é, pelo que respeita à especial categoria dos casos de identificação pessoal de defuntos que todos desconhecem, dever-se-á deduzir que não mais vem a pêlo acumular sofismas para negar valor probante aos casos de defuntos que ministram informações pessoais que todos os presentes ignoram, mas sabidas de pessoas ausentes que um dos experimentadores conhece.

Ao demais,, a última modalidade de manifestação atribuída à “telemnesia” não existe e é fácil demonstrá-lo, mediante a análise comparada dos casos dessa natureza. Entretanto, para tal efeito, ser-nos-ia preciso desenvolver convenientemente o tema relativo aos poderes da telemnesia, evidenciando que ela, em realidade, se exterioriza sob modalidades bem diversas das imaginadas e que a tornam praticamente inaplicável ao nosso caso. Mas, para fazê-lo, não poderei deixar de citar e comentar uma série apropriada de casos desse gênero, o que seria fora de propósito num trabalho de síntese, qual o presente. Advirto, no entanto, que já fiz tal demonstração numa extensa monografia intitulada: Telepatia, Telemnesia e a lei da relação psíquica, à qual remeto quem quer que deseje aprofundar o assunto. Aqui, deverei limitar-me a mencionar as conclusões a que cheguei nesse meu laborioso esforço de análise comparada, da qual resulta que a hipótese da “telemnesia” só se patenteia suficientemente provada nos limites de um recebimento de informações “estritamente pessoais” com relação a um indivíduo ausente, que se ache em relação psíquica com o médium. E isto ocorre – note-se bem – unicamente quando se trate de informações ou dados que se conservem ainda vivazes no liminar da consciência do médium, pois que, de fato, não existem provas a favor do recebimento de informações referentes a terceiras pessoas que aquele indivíduo conheça. É também de notar-se que, querendo igualmente propugnar a existência desta última forma de telemnesia, se teria de admitir que as faculdades perquirentes da subconsciência possuem a potencialidade prodigiosa de “selecionar” os mais insignificantes dados mnemônicos referentes a terceiras pessoas, colhendo-os infalivelmente no meio do emaranhado inextricável de análogos registros mnemônicos latentes nos recessos da subconsciência do indivíduo “selecionado”.

Fica, pois, evidente que, antes de conferir às faculdades subconscientes uma virtude selecionadora tão portentosa, seriam necessárias boas provas de fato nesse sentido, provas essas que, entretanto, não existem, como não existem incidentes experimentais afins, que sugiram vagamente semelhante possibilidade. Em contraposição, conhecem-se, repito, boas provas a favor de uma “telemnesia” unicamente receptora de dados estritamente pessoais, acerca do indivíduo ausente que entra em relação subconsciente com o médium, mas isso mesmo sob a condição de que os referidos dados ainda existam vivazes no limiar da sua consciência. Postas as coisas nestes termos, segue-se que as deduções teóricas que se formulem com fundamento em tal modalidade de telemnesia terão alcance teórico muito diverso do que presumem os opositores, visto que, em semelhantes contingências, a telemnesia não se exercitaria ativamente, selecionando, mas passivamente, recebendo impressões, o que restringe em limites muito apertados a potencialidade da mesma telemnesia. Este último reparo assume grandíssima importância teórica, conforme adiante demonstraremos.

Neste ponto, sinto-me no dever de informar que com a célebre médium Sra. Osborne Leonard se verificam às vezes aparentes “exceções” à regra implícita na assertiva de que, nos casos de telemnesia, a análise comparada demonstra que os dados pessoais que o médium obtém nunca dizem respeito a terceiras pessoas conhecidas do indivíduo ausente que é “selecionado”, mas apenas informes estritamente pessoais, concernentes ao referido indivíduo. Ora, ao contrário, nos casos de identificação espirítica conseguidas com aquela médium, verifica-se que os defuntos que se comunicam ministram, por vezes, pormenores concernentes a terceiras pessoas conhecidas do mencionado indivíduo ausente, pormenores que não podem ser tomados à consciência do experimentador, pela razão de que este os não conhecia. É verdade que, na hipótese da presença espiritual do defunto que se comunica no lugar da experiência, não haveria a perplexidade teórica que apreciamos, uma vez que os pormenores de que se trata concernem sempre aos familiares e aos amigos do defunto; mas, do ponto de vista da discussão em curso, cumpre não se leve em conta essa lógica interpretação dos fatos. Cinjo-me, portanto, a reproduzir os instrutivos diálogos que travaram o Rev. Drayton Thomas e a personalidade mediúnica de seu pai e de sua irmã Etta, por ocasião de alguns incidentes do gênero. Observa este último o que se segue, a propósito de uma bolsa recamada com que uma pessoa amiga pensara presentear a mãe, viva, do Rev. Thomas, pensamento que a entidade espiritual do pai defunto interceptara e confiara ao filho:

“Suponhamos que o pensamento em questão haja chegado à tua mãe. Ele foi interceptado pela sua “aura”, conforme nosso pai te explicou. Ora, se eu me achasse com tua mãe, teria podido colhê-lo na sua “aura” e talvez houvesse podido apanhar-vos um pensamento dessa natureza, mesmo que vos houvesse ocorrido no dia precedente, dado que há indivíduos cuja “aura” guarda os pensamentos durante certo tempo, ao passo que outros não os conservam. Daí vem que conseguimos colher informações, do gênero das de que se trata, de uma pessoa e não o conseguimos de outra.” (Pág. 100-101).

Assim falou Etta e o pai do Rev. Thomas afirma a mesma coisa, referindo-se à “aura” daquele que faz de experimentador. Informa ele:

“Quando me acho contigo, apanho, muito freqüentemente, os pensamentos que pessoas afastadas te dirigem no momento. Os pensamentos que te são dirigidos permanecem presos à tua “aura” e eu consigo distingui-los e interpretá-los.” (Página 96).

Pouco mais adiante, acrescenta:

“Sim, a tua “aura” é sensibilíssima aos pensamentos que te são dirigidos. Servindo-me de uma comparação fotográfica, direi que a tua “aura” se assemelha a uma chapa sensível, que recebe impressões e pensamentos. Pode dar-se não te apercebas da existência dessas impressões e desses pensamentos, porque não tens meio de “revelar a chapa”, ao passo que eu me acho em condições de revelá-la.” (Pág. 98).

Comenta assim o Rev. Drayton Thomas:

“Normalmente, não temos consciência de sermos atingidos pelos pensamentos que nos dirigem pessoas distantes. Entretanto, a telepatia experimental há mostrado que tais pensamentos podem efetivamente alcançar-nos. A comparação com a telegrafia sem fio e com o rádio parece muito sugestiva a esse propósito, porque demonstra que tais aparelhos, postos a funcionar, determinam uma ação formidável no meio etéreo, ação da qual nos conservamos inconscientes, enquanto não temos à nossa disposição um instrumento receptor, que intercepte e interprete para nós as vibrações etéreas que passam. Analogamente, ao que parece, meu pai é capaz de interpretar um pensamento que vibre ativamente próximo de mim.” (Life Beyond Death, págs. 95-96).

Em face do exposto, faz-se notório que os episódios de tal natureza são radicalmente diversos dos aqui considerados e, portanto, não constituem, verdadeiramente, “exceções” à regra formulada antes, visto que, no caso do Rev. Drayton Thomas, não se tratava de informes mnemônicos concernentes a terceiras pessoas conhecidas do indivíduo ausente e apanhados ativamente na sua subconsciência, mas de pensamentos que terceiras pessoas lhe dirigiram e percebidos passivamente pelo médium, por permanecerem durante algum tempo presos à “aura” das pessoas a quem eram dirigidos. Noutros termos: achamo-nos em presença de um fenômeno ordinário de transmissão telepática do pensamento, com a diferença de que o impulso telepático, por fraco, não surgiria na consciência normal do paciente, enquanto que por intermédio de um Espírito comunicante o dito pensamento seria perceptível na “aura” do indivíduo que o recebera.

Ora, se bem tudo isto se revele muito interessante e instrutivo sob outros aspectos teóricos, nada tem de comum com a questão aqui considerada, em que se trata de invasões selecionadoras nas subconsciências de terceiros e não de percepções passivas na “aura” de outrem.

Eliminada esta primeira dúvida teórica, restam por esclarecer uma segunda, consistente no fato de haver episódios que aparentemente contradizem uma das proposições maiores, contidas na tese propugnada, proposição segundo a qual, também no caso de informes estritamente pessoais e referentes ao indivíduo com quem os sensitivos ou os médiuns se acham em relação, se notaria que os informes percebidos dizem respeito sempre ao pensamento atual do mesmo indivíduo, ou a vibrantes recordações ainda vivazes no limiar da sua consciência. Quer dizer que uma relativa vivacidade latente nas lembranças é condição indispensável para que elas sejam percebidas pelos sensitivos e pelos médiuns, de acordo com o asserto de que as suas faculdades supranormais não agem ativamente, selecionando acontecimentos nas subconsciências de outros, mas passivamente recolhendo e interpretando as vibrações do pensamento. Pois bem: conquanto fundado se mostre este último asserto, não deixam de haver episódios que aparentemente o contradizem e que consistem em serem colhidos acontecimentos mais ou menos antigos do passado de outrem. Eis aqui um exemplo desse gênero, que tomo ao vol. XI, pág. 124 dos Proceedings of the S. P. R. .

Miss Goodrich Freer, a conhecida sensitiva a quem se deve magistral estudo sobre as suas próprias experiências de “visão pelo cristal”, refere numerosos casos de “leitura do pensamento”, entre os quais o seguinte:

“Decidira-me a visitar, pela primeira vez, uma amiga que se casara, havia pouco. Não lhe conhecia o marido, mas, pelo que ouvira a seu respeito, esperava encontrar nele um perfeito gentil-homem, de caráter nobre e elevada posição social. Quando me foi apresentado, notei que se esforçava por ser agradável e finamente hospitaleiro para com os que iam à sua casa. Contudo, passado o primeiro momento que tive para observá-lo com certa atenção, fui turbada por uma alucinação de forma curiosa, que me pôs perplexa com relação a ele. Qualquer que fosse a situação em que se encontrasse – à mesa, como no salão ou ao piano – desaparecia dos meus olhos o fundo que o circundava, substituído por uma visão em que ele se me apresentava menino, a me olhar com uma expressão do mais abjeto terror, cabeça baixa, ombros alçados e os braços estendidos, como para defender-se de uma tempestade de socos prestes a desabar-lhe em cima.

Fui levada, naturalmente, a proceder a investigações acerca do caso e cheguei a saber que a cena com que eu me defrontava lhe sucedera na meninice, numa escola cívica, em conseqüência de um ato vil de fraude, pela qual fora ele ignominiosamente expulso e tivera de sofrer uma severa sanção de pugilato, por parte dos seus camaradas.

Como explicar semelhante forma de visualização verídica? Penso que era simbólica e que figurava uma espécie de advertência com relação à atmosfera moral que circunvolvia o homem que eu tinha diante de mim – uma amostra das suas qualidades de gentil-homem. E essa minha impressão veio a justificar-se pelo fato de que as desconfianças que se geraram em mim por efeito daquela visão foram amplamente confirmadas pelos sucessos desastrosos que se seguiram. Tais visualizações me parecem análogas às que se produzem por meio da psicometria e não são visões telepáticas, mas “impressões psíquicas”. Afigura-se-me absurdo que a cena por mim visualizada, ocorrida dez anos antes, estivesse, naquela ocasião, presente à mentalidade do protagonista.”

Este o interessante episódio narrado por Miss Goodrich Freer, que com toda a razão exclui a possibilidade de que a sua visão se originasse do pensamento consciente do protagonista, por se haver este, no momento, lembrado do fato vergonhoso que lhe sucedera na meninice. Eliminada essa hipótese, eis-nos em face de um exemplo, acorde com tudo quanto temos feito observar, em que uma sensitiva percebe, nas subconsciências de outros, informes pessoais de data muito antiga. Para as conclusões teóricas a serem formuladas, ainda uma vez importa evidenciar, em primeiro lugar, que, no episódio em questão, o incidente ocorrido concernia à existência pessoal do protagonista e não a sucessos referentes a um terceiro que ele desconhecesse. Em segundo lugar e do ponto de vista em que nos colocamos, cumpre notar que o incidente visualizado, embora afastado no tempo, era de natureza a imprimir-se indelevelmente no ânimo daquele que o sofrera, de modo a ficar vibrando permanentemente – por assim dizer – no limiar da consciência de quem fora nele protagonista e tornando-se dessa maneira perceptível, sob a forma objetivada de uma visão, pela sensitiva à qual nos referimos. Penso haver, assim, dissipado a contradição que parecia existir entre os casos do gênero desse de que falamos e a assertiva de que as faculdades supranormais dos médiuns recolhem passivamente o pensamento de outrem, caso em que se faz evidente que apenas devem eles perceber os pensamentos atuais, ou os pensamentos que ainda vibram vivazes no limiar da consciência do indivíduo com que os aludidos médiuns se acham em relação. Daí decorre que os casos da natureza desse que acabamos de apreciar provam somente que se dão na vida dos indivíduos acontecimentos mais ou menos dramáticos que, pelas tempestades emocionais que suscitam no ânimo de quem neles foi protagonista, conservam uma gradação vibratória que os mantém permanentemente vivazes no limiar da consciência do mesmo protagonista.

Enfim, de outro ponto de vista, importa notar a diferença radical que há entre a natureza importante da informação em apreço, reveladora de um caráter, e as informações, literalmente insignificantes em si mesmas, mas indispensáveis à identificação pessoal, que os defuntos que se comunicam fornecem, quando solicitados; e importa notar também que a natureza insignificante destas últimas ainda mais absurdo torna o presumir-se que os médiuns chegam a descobri-las, selecioná-las, extraí-las das subconsciências de indivíduos que não cogitaram de fazer tal experiência.

Eliminada também esta segunda dúvida teórica, volto ao assunto, começando por assinalar de novo a circunstância de fato que, mais do que qualquer outra, se deve ter presente: a de que a análise comparada dos casos de telemnesia demonstra que os dados pessoais que os médiuns colhem jamais dizem respeito a terceiras pessoas conhecidas do indivíduo que lhes sofre, à distância, o influxo. Insisto nesta circunstância porque, para chegar-se a explicar, por meio da telemnesia, certos casos importantes de identificação espirítica, fora preciso presumir-se constantemente o fenômeno da seleção, nas subconsciências de outrem, de indicações referentes a terceiras pessoas que o indivíduo ausente haja conhecido no passado. Este último ponto assume altíssimo valor teórico, não só porque encerra a hipótese em exame nos modestos limites que lhe competem, como porque leva a concluir-se que, se a telemnesia existe, ela se exterioriza sob modalidades perceptivas diversas das imaginadas, modalidades que lhe tiram todo o valor de objeção neutralizante da interpretação espiritualista dos fatos. Assim é porque, excluída a possibilidade de ela se manifestar em sentido ativo, selecionando, a telemnesia se apresenta redutível a um fenômeno de percepção passiva do pensamento atual, à distância, ou do pensamento que ainda vibra no limiar da consciência da pessoa que se ache em relação psíquica com o médium, caso em que ela se identifica com os fenômenos da “clarividência telepática”, o que equivale a admitir-se que a sua capacidade elucidativa, nas manifestações mediúnicas dos defuntos, se conteria em limites tão modestos, que se tornaria inaplicável aos casos importantes de identificação espirítica.

Fica entendido, portanto, que os poderes das faculdades supranormais subconscientes já se podem circunscrever dentro de limites definidos, com o que cai das mãos dos opositores o único engenho ofensivo que lhes restava, engenho exuberantemente posto em ação, toda vez que lhes surgem dúvidas teóricas intransponíveis com o auxílio de hipóteses naturalísticas, tudo de perfeita boa fé.

Nessa conformidade, também mais uma vez acentuo que, com o que deixo expendido, chego a uma terceira importantíssima conclusão teórica, em favor da existência e sobrevivência do espírito humano, conclusão a que seguirão outras análogas, igualmente incontestáveis, e que se mostrarão ao mesmo tempo resolutivas.


Capítulo III
As comunicações mediúnicas entre vivos provam a
realidade das comunicações mediúnicas com os defuntos

Não esqueçamos que a denominação de fenômenos mediúnicos propriamente ditos designa um conjunto de manifestações supranormais, de ordem física e psíquica, que se produzem por meio de um sensitivo a quem é dado o nome de médium, por se revelar qual instrumento a serviço de uma vontade que não é a sua. Ora, essa vontade tanto pode ser a de um defunto, como a de um vivo. Quando a de um vivo atua desse modo, à distância, somente o pode fazer em virtude das mesmas faculdades espirituais que um defunto põe em jogo. Segue-se que as duas classes de manifestações resultam de naturezas idênticas, com a diferença, puramente formal, de que, quando elas se dão por obra de um vivo, entram na órbita dos fenômenos anímicos propriamente ditos, e quando se verificam por obra de um defunto, entram na categoria, verdadeira e própria, dos fenômenos espíritas. Evidencia-se, portanto, que as duas classes de manifestações são complementares uma da outra, a tal ponto que o Espiritismo careceria de base, dado não existisse o Animismo.

É de suprema importância este tema, que já explanei a fundo numa monografia em que foram colecionados e comentados numerosos e variados casos do gênero. A grande importância do tema consiste em que os casos de comunicações mediúnicas entre vivos, com o se realizarem por processos idênticos àqueles pelos quais se operam as comunicações mediúnicas com defuntos, oferece a possibilidade de apreender-se melhor a gênese destas últimas, por projetarem luz nova sobre as causas dos erros, das interferências, das mistificações subconscientes que nelas ocorrem; mas, sobretudo, por contribuírem a provar, com rara eficácia, a realidade das comunicações mediúnicas com defuntos, uma vez se considere que nas comunicações mediúnicas entre vivos é possível verificar-se a realidade integral do fenômeno, interrogando-se as pessoas colocadas “nas duas extremidades do fio”. Daí a sugestiva inferência de que, quando “no outro extremo do fio” se encontra uma entidade mediúnica que afirme ser um espírito de defunto e o prove ministrando informações pessoais que todos os presentes ignoram, racionalmente se deveria concluir que “na outra ponta do fio” há de estar a entidade do defunto que se declara presente, do mesmo modo que nas comunicações entre vivos se verifica positivamente que “na outra extremidade do fio” se acha o vivo que se manifesta mediunicamente.

Na minha monografia, eu subdividira em sete categorias os fenômenos das comunicações mediúnicas. Na primeira, considerei os episódios de gêneros inteiramente afins com a “transmissão do pensamento”, salvo a circunstância de se produzirem mediunicamente. Nas outras, considerei sucessivamente as mensagens inconscientemente transmitidas ao médium por pessoas mergulhadas em sono e por pessoas em condições de aparente vigília; em seguida, as que foram obtidas por vontade expressa do médium, que a isso chegara pensando intensamente na pessoa distante com quem desejava comunicar-se; depois, a transmitida ao médium por vontade expressa de pessoas ausentes; a seguir, os casos de transição, em que o vivo que se comunicara era um moribundo; finalmente, as mensagens mediúnicas, entre vivos, transmitidas com o auxílio de uma entidade espiritual.

Na primeira categoria, em que se tratava de episódios afins com a “transmissão do pensamento”, salvo a circunstância de se produzirem mediunicamente pela escrita automática, os episódios referidos me ofereceram ensejo de assinalar que as mistificações subconscientes, quais se davam nas comunicações dos defuntos, ocorriam de maneira idêntica nas comunicações entre vivos e, como nestas últimas possível se tornava indagar-lhes as causas, instrutivo ensinamento resultava daí, a dissipar as dúvidas inerentes às mistificações análogas nas comunicações dos defuntos.

Na segunda categoria, em que foram consideradas as mensagens inconscientemente transmitidas ao médium por pessoas ausentes mergulhadas em sono, tive ocasião de acentuar o valor de uma das maiores aquisições teóricas postas em foco pela minha monografia, isto é, que a característica das comunicações mediúnicas entre vivos consistia no fato de que entre o agente e o percipiente se desenvolviam de ordinário longos diálogos, demonstrativos de que já não se tratava de um fenômeno de transmissão telepática do pensamento, mas de verdadeira conversação entre duas personalidades integrais subconscientes, com as conseqüências teóricas daí decorrentes.

Na terceira categoria, em que considerei as mensagens involuntariamente transmitidas ao médium por pessoas em condições de aparente vigília, ofereceu-se-me oportunidade de demonstrar a presumível inexistência de tal forma de comunicações mediúnicas entre vivos, por falta de exemplos convenientemente circunstanciados, que valessem para demonstrar que uma pessoa em condições de vigília possa entrar involuntariamente em comunicação mediúnica com um sensitivo distante, ainda que nele não pense. Ponderando-se os resultados efetivos, dever-se-ia, ao contrário, dizer que, para se produzirem episódios semelhantes, seria indispensável, pelo menos, que a pessoa em condições de vigília caísse em sonolência, por breve espaço de tempo, ou em “sonambulismo vígil”, ou em estado de “ausência psíquica”, ou, ainda, que pensasse mais ou menos vivamente na pessoa distante.

Na quarta categoria, em que considerei as mensagens obtidas por expressa vontade do médium, incluí casos revestidos de grande valor teórico, do mesmo passo que a maneira de os interpretar se revestia de eficácia resolutiva, quanto ao modo de se interpretarem os casos de identificação espirítica, fundados em informações fornecidas pelos defuntos que se comunicam, eficácia que ressaltava da circunstância de fornecerem os casos de comunicações mediúnicas entre vivos a mais preciosa das reconfirmações do fato de que as comunicações mediúnicas dos defuntos, longe de consistirem num absurdo processo de seleção das informações pessoais colhidas nas subconsciências dos que conheceram em vida o pretenso defunto que se comunica, consistiam, ao contrário, positivamente, numa verdadeira e legítima conversação com o próprio defunto, visto que, se isso era o que se dava nas comunicações mediúnicas entre vivos, racionalmente se havia de dar no tocante às comunicações mediúnicas dos defuntos, conclusões estas que anulavam a única objeção de que dispunham os opositores, para não admitirem a interpretação espiritualista das manifestações em apreço.

Na quinta categoria, referente às mensagens transmitidas ao médium por expressa vontade de uma pessoa ausente, ressaltava, antes de tudo, a raridade das mensagens dessa natureza, quando, ao contrário, as mesmas mensagens, com caráter de espontaneidade, eram muito freqüentes, nas condições de sono real ou aparente do agente, revelando-se estes últimos mais importantes do que os primeiros, dado que, no caso de mensagem transmitida ao médium por vontade expressa de uma pessoa ausente, se tratava estritamente de um fenômeno de transmissão telepático-mediúnica e, portanto, de uma mensagem pura e simples, que jamais tomava o desenvolvimento de um diálogo, enquanto que, no caso de uma pessoa em sono real ou larvado, as manifestações assumiam com freqüência esse caráter. E, quando o assumiam, isso queria dizer que já não se tratava de um fenômeno de transmissão telepático-mediúnica, mas, sim, de uma vera conversação entre duas personalidades espirituais subconscientes, a menos que se tratasse de uma mensagem de vivo transmitida com o auxílio de uma entidade espiritual.

Como quer que seja, o significado dos casos pertencentes a esta quinta categoria não deixava, a seu turno, de confirmar a hipótese espirítica, pois que, se a vontade consciente do espírito de um vivo podia atuar, à distância, sobre a mão de um médium psicógrafo, de modo a ditar-lhe o seu pensamento, nada impedia se inferisse que a vontade consciente de um “espírito desencarnado” chegasse a agir analogamente; que, se, pelas comunicações mediúnicas entre vivos, nas quais era dado verificar-se a autenticidade dos fenômenos interrogando-se as pessoas colocadas “nos dois extremos do fio”, ficava positivamente demonstrado que a mensagem mediúnica provinha do vivo que, distante, se declarava presente, então, quando “na outra extremidade do fio” se achava uma entidade mediúnica afirmando ser um espírito de defunto e provando-o por meio de informações pessoais ignoradas dos consulentes e do médium, legítimo teoricamente se tornava inferir-se que “na outra ponta do fio” devia achar-se, com efeito, a entidade do defunto que se declarava presente. Noutros termos: para ambas as categorias indicadas se haveria de excluir a hipótese das “personificações subconscientes”, de que tanto se tem abusado até hoje. Nada, pois, de personificações efêmeras de ordem onírico-sonambúlica em relação com as comunicações mediúnicas entre vivos e, em conseqüência, nada também de semelhante em relação às comunicações com entidades de defuntos que forneçam as reclamadas provas de identificação pessoal.

Na sexta categoria eu considerava os casos, por sua vez bastante raros, em que a pessoa que se comunicava mediunicamente morrera naquele momento mesmo, ou estava moribunda, casos esses que representavam a senda de transição entre os fenômenos anímicos e os espirítico, tudo isso considerando que, por se tratar de vivos no leito de morte, ficava patente que a telepatia entre vivos para manifestação mediúnica aparecia, em tais circunstâncias, como o último degrau de uma longa escala de manifestações anímicas, que levava ao limiar da grande fronteira além da qual somente podem haver manifestações telepáticas de defuntos. Demonstrava-se uma vez mais não existir solução de continuidade entre as modalidades sob as quais se produziam as comunicações mediúnicas entre vivos e as dos defuntos. Por outras palavras: uma vez mais, era-se conduzido a reconhecer que o Animismo prova o Espiritismo.

Finalmente, na sétima categoria, em que se contemplavam as mensagens entre vivos transmitidas com o auxílio de uma entidade espiritual, entrava-se de velas enfunadas no grande oceano das manifestações transcendentais; chegara-se a demonstrar que a existência de mensagens mediúnicas entre vivos, obtidas por meio de mensagens espirituais, já não podia ser contestada, conhecidas que eram longas séries de experiências que se não podiam explicar nem pela telepatia, nem pela clarividência telepática, nem pela telemnesia.

Do ponto de vista, porém, do presente trabalho, no qual tenho de sintetizar os numerosos argumentos especiais que encaminham a conclusões nitidamente afirmativas no tocante à grande verdade aqui considerada, defronto-me com uma dificuldade técnica intransponível: a de que, tratando-se de uma ordem de manifestações cujo profundo significado espiritualista nem sempre é fácil de apreender-se, devido às intrincadas modalidades sob as quais se produzem, não poderei furtar-me a fortalecer todo argumento especial enunciado, citando os casos que o sugerem, sem o que as conclusões gerais perderiam muito da sua eficácia demonstrativa. Mas, isso não é possível e, não o sendo, só me resta relatar um número conveniente de episódios elucidativos, respeitantes à maior das proposições teóricas conseguidas com a análise comparada dos fatos e a convergência das provas, proposição que também pode bastar por si só para robustecer a tese ora considerada: que “as comunicações mediúnicas entre vivos provam a realidade das comunicações mediúnicas com os defuntos”. Para tal fim, nada melhor do que relatar alguns episódios da longa série obtida, com a sua própria mediunidade, pelo célebre jornalista e escritor espírita William Stead.

Como é sabido, William Stead possuía, em grau notabilíssimo, a faculdade mediúnica da escrita automática (psicografia), por meio da qual lhe foi ditado o áureo livrinho de revelações transcendentais intitulado: Letters from Julia (Cartas de Júlia). Além disso, chegou sistematicamente a entrar em relação mediúnica e a conversar livremente, à distância, com personalidades vivas, obtendo muito amiúde confissões e informações que as personagens vivas jamais lhe teriam confiado em condições normais. Nunca ele pensara na possibilidade de conversações supranormais de tal natureza e foi a personalidade mediúnica “Júlia” que lho sugeriu, a título de experimentação. Numa famosa conferência que fez na London Spiritualist Alliance, no ano de 1893, narrou nestes termos como enveredara por essa ordem de pesquisas:

“Um dia, escreveu Júlia: “Porque te surpreende que eu possa servir-me da tua mão para me corresponder com uma amiga minha? Qualquer um pode fazê-lo.” – Perguntei-lhe: “Que queres dizer com esse qualquer um?” – Respondeu: “Qualquer um, isto é, qualquer pessoa pode escrever com a tua mão.” – Perguntei mais: “Queres dizer qualquer pessoa viva?” – Ela replicou: “Qualquer amigo teu pode escrever com a tua mão.” – Ao que observei: “Queres dizer que, se eu pusesse a minha mão à disposição dos meus amigos distantes, eles poderiam servir-se dela do mesmo modo pelo qual o fazes?” – Sim; experimenta e verás. – Pareceu-me que ia tomar sobre mim uma árdua tarefa; mas, decidi tentar a experiência. Os resultados foram imediatos e espantosos...

Coloquei, pois, minha mão às ordens de amigos que residiam em diversos lugares distantes e verifiquei que eles, em sua maioria, estavam em condições de comunicar-se, embora variasse muito a capacidade, que tinham, de fazê-lo. Alguns escreviam de súbito e correntemente, com as suas características de estilo, forma e caligrafia, às primeiras palavras transmitidas, para depois prosseguirem com intermitência, como se escrevessem normalmente uma carta. Confiavam-me seus pensamentos, informavam-me de que tinham a intenção de me vir consultar, ou me contavam como haviam empregado o dia. O que, porém, mais me surpreendia nessas conversações, já de si mesmas surpreendentes, era a inconcebível franqueza com que vários de meus amigos, que eu, estava certo, tão bem lhes conhecia a sensibilidade, a moderação e a reserva, jamais me teriam confiado alguns de seus segredos pessoais, ou alguns de seus embaraços econômicos, me declaravam com a maior franqueza achar-se em dificuldades financeiras, ou me falavam sem reservas de outros vários reveses íntimos.

Essa circunstância me pareceu tão séria, do ponto de vista social que, um dia, pedi a respeito explicações a Júlia, nestes termos: “Preocupam-me seriamente os resultados que tenho obtido neste novo campo de pesquisas, por se me afigurar que, se os outros fizessem como eu, não haveria mais segredos neste mundo.” – Ela respondeu: “Oh! não. Tu exageras.” – Ao que lhe retruquei: “Então, como se explica que pela minha mão um amigo me revele segredos pessoais que, normalmente, teria o cuidado de me não revelar?”

Foi-me dada uma explicação, que não apresento como definitiva, mas unicamente como a explicação de Júlia, escrita com a minha mão, e que, sem dúvida, não é produto da minha subconsciência, visto que ela nunca me passou pela mente. Disse Júlia: “A vossa personalidade real, ou espiritual, jamais confiará a ninguém, por via mediúnica, coisas que se considere no dever de guardar em segredo e, se às vezes confia incidentes mais ou menos íntimos, fá-lo com plena consciência do que faz. A diferença está em que a vossa personalidade real, ou espiritual, pensa e julga de um fato pelo seu valor intrínseco, muito diversamente do modo pelo qual procede a vossa personalidade normal.” – Perguntei: “Que é o que entendes por personalidade real, ou espiritual?” – Respondeu: “A vossa personalidade real, ou espiritual, isso a que chamais o vosso Eu, vigia e governa tanto a vossa mentalidade consciente, quanto a subconsciente, usando de uma e de outra à sua vontade. A vossa mentalidade consciente se serve das faculdades sensórias para comunicar-se com os seus semelhantes, quando estes se acham ao alcance daquelas faculdades, que, contudo, são muito rudimentares na sua potencialidade. O mesmo já não se dá com relação às faculdades sensórias da mentalidade subconsciente, que são um instrumento de comunicação muito mais sutil, apurado e eficiente, porque se conservam sempre a serviço da vossa personalidade espiritual que, quando deseja comunicar-se com alguma pessoa distante, se serve da mentalidade subconsciente que, entretanto, nunca se presta ao fim absurdo de revelar a outros aquilo que, verdadeiramente, deva conservar-se em segredo, da mesma maneira que não revelaria normalmente com a língua. Em suma, a vossa personalidade real, ou espiritual, é senhora absoluta dos seus instrumentos de comunicação”.

Perguntei ainda: “De que modos se realizam tais comunicações?” – Resposta: “Como? Não o compreendes? Os Espíritos de todo o Universo se acham em contacto uns com os outros, de sorte que podes falar com a personalidade espiritual de qualquer pessoa no mundo, sem limites de distância, com a única condição de que a tenhas conhecido pessoalmente. Se podes falar a uma pessoa que encontres, porque já a conheces, também podes conversar com ela, em qualquer parte do mundo onde esteja, convidando-a a escrever com a tua mão.”

... Talvez por se achar ainda imperfeitamente desenvolvida a minha mediunidade, o fato é que não consigo entrar em relação com todos os meus amigos e que noto grande diferença no valor intrínseco das suas comunicações. Assim, por exemplo, alguns há que me comunicam coisas de caráter pessoal com extraordinário cuidado, de maneira que, em cem afirmações suas, não surge uma só inexata. Em compensação, outros há que aparentemente se manifestam com suas características pessoais e assinam com seus nomes as comunicações, mas que transmitem informações completamente falsas. Nada obstante, a maioria deles demonstra o maior cuidado em transmitir suas notícias; mesmo, porém, nessas circunstâncias, ressalta um fato curioso e é que, se peço – figuremos um caso – a um amigo de Glasgow notícias da sua “inflamação facial”, ele me responde com escrupulosa exatidão, ou que vai piorando, ou que seus furúnculos se abriram e que tem o rosto coberto com um cataplasma, subscrevendo as mensagens com sua firma. Entretanto, quando me encontro com o amigo em carne e osso e lhe apresento o seu escrito, ele absolutamente não se recorda de haver conversado comigo. Pedi a “Júlia” que me elucidasse a esse respeito, formulando nestes termos a minha pergunta: “Como se explica que, quando perguntei ao meu amigo como estava da sua “inflamação facial”, ele me informou do seu estado e não se recorda de se haver comunicado comigo? Desde que a nossa personalidade espiritual nunca transmite informações sem ter plena consciência do que faz, como se explica que os amigos me forneçam informações e depois ignorem que mas deram?” – Ela respondeu: “Quando te diriges mediunicamente a um amigo teu, a sua personalidade espiritual responde por meio das faculdades mentais subconscientes, não mais por meio das faculdades conscientes ou cerebrais, e, naturalmente, não cuida de dar a saber à sua mentalidade consciente ou cerebral que ela transmitiu uma informação a quem lha pedira, servindo-se das faculdades mentais subconscientes, uma vez que não é necessário que o faça. Se, porém, julgasse conveniente fazê-lo, então o teu amigo se recordaria.” (Light, 1893, págs. 134-143).

Estes os trechos essenciais da interessantíssima conferência de William Stead, a cujo propósito faço notar, antes de tudo, que a personalidade mediúnica “Júlia”, quando informa a Stead que é possível a um médium entrar em relação com um vivo distante, mas unicamente sob a condição de que aquele conheça pessoalmente o outro, nada mais faz do que reforçar a tese que desenvolvi no capítulo precedente, segundo a qual não podem efetuar-se comunicações entre vivos, em falta da relação psíquica, que só se pode estabelecer com pessoas conhecidas do médium ou dos presentes, ou por meio de um objeto psicometrizável.

Faço, além disso, ressaltar esta outra afirmação de “Júlia”:

“Quando te diriges a um amigo distante, a sua personalidade espiritual responde exercendo suas faculdades mentais subconscientes, não as faculdades conscientes ou cerebrais.”

Ora, nessa afirmação se contém o núcleo substancial da tese que me disponho a desenvolver e segundo a qual as comunicações mediúnicas entre vivos são verdadeiras e reais conversações entre duas personalidades integrais subconscientes, que estabeleceram relação psíquica entre si. É esta uma conclusão teoricamente importantíssima, porque elimina a absurda hipótese na qual se imagina que as faculdades supranormais dos médiuns têm o poder de insinuar-se nas subconsciências de outros para aí selecionar os dados de que necessitem com o nobre escopo de mistificar o próximo.

Nada mais acrescento, pois que terei de voltar repetidamente a este assunto na exposição dos casos.

*

Começo pelo episódio com o qual se iniciaram as novas experiências em foco. O paciente distante, que Stead escolheu, era uma distinta escritora que colaborava na Review of Reviews e que se tornou, em pouco, uma das melhores “colaboradoras espirituais” daquele publicista. Ela lhe respondia imediatamente aos convites mentais, de onde quer que estivesse, assim de dia como de noite, travando conversações interessantíssimas, pois que exuberantes de provas de identificação pessoal. Tomo o incidente registrado por Myers, no vol. IX, pág. 53, dos Proceedings of the S. P. R.. O relato foi escrito por Stead e diz:

“Embora eu me conservasse mais ou menos incrédulo, comecei a experimentar pensando numa senhora de Londres, que escolhi por existirem entre mim e ela vínculos de recíproca simpatia. A experiência resultou maravilhosa. Quer dizer: verifiquei que a minha amiga nenhuma dificuldade encontrava para servir-se da minha mão, a fim de me transmitir noticias suas, exprimindo-se com o humor de que no momento se achava possuída.

Certa vez, estando ela – a quem chamarei Miss Summers – a ditar uma mensagem, eu a interrompi bruscamente com esta pergunta: “É você mesma quem escreve com a minha mão, ou sou eu que converso com a minha subconsciência?” – A minha mão escreveu: “Provar-lhe-ei que sou realmente eu quem escreve. Neste momento estou sentada diante da minha secretária e tenho nas mãos um objeto que amanhã lhe levarei ao escritório. Será um como presente que terá de aceitar de mim. É a figura de uma velha carda.” – Respondi: “Como? Uma velha carda?” – “Sim, uma velha carda, com efeito. Representa uma grata recordação da minha vida e é por isso que a tenho em muita estima. Levar-lhe-ei amanhã e lhe explicarei melhor tudo isso de viva voz. Conto que a aceitará.”

No dia seguinte, a minha amiga veio ao meu escritório e eu logo lhe perguntei se me trouxera algum presente. Respondeu que não; que realmente pensara em trazê-lo, mas que acabara deixando-o em casa. Perguntei então o que era e ela disse que se tratava de um presente tão absurdo que não queria dizer-lhe o nome. Como eu insistisse, explicou que se tratava de um pedaço de sabão! Fiquei profundamente desiludido com o suposto insucesso e lho disse. Ela, porém, surpreendida, replicou: “É deveras singular! Tudo se passa como você o escreveu nesta folha de papel. Trata-se efetivamente de uma “carda” e, ao demais, de uma “velha carda”, que, entretanto, se acha insculpida num pedaço de sabão. Trazê-la-ei amanhã. Não sei se sabe que a “carda” ocupa uma importante parte das recordações da minha vida.” E passou a narrar o incidente pessoal que correspondia a essa afirmativa. No dia seguinte, levou-me o pedaço de sabão, sobre o qual se percebe impressa, de fato, a imagem de uma “velha carda”.”

Myers confirma assim o exposto:

“Foi-me narrado o incidente pessoal a que diz respeito a imagem de uma “velha carda”, narrativa donde ressalta que a referida imagem gravada no pedaço de sabão é que conferia ao objeto todo o seu significado. Miss Summers pensara em levá-lo de presente a Stead, antes que a mão deste último escrevesse tal pormenor e provavelmente o pensou no instante exato em que Stead o escreveu.”

No caso, o incidente de identificação, tentada para provar a Stead que não se tratava de uma mistificação da sua subconsciência, mas de uma conversação real com a personalidade espiritual de Miss Summers, parece apropriado ao objetivado fim, porquanto o presente prometido a título de prova consistia numa coisa efetivamente excepcional, de modo a não se poder explicar o fato com a hipótese habitual das “coincidências fortuitas”. Manifesto, com efeito, se faz que a imagem de uma antiga carda gravada num pedaço de sabão não é decerto um objeto que se costume dar de presente.

Observo ao demais que, no incidente com que me ocupo – como noutros ocorridos com a mesma sensitiva – esta teria aparentemente entrado em relação mediúnica com Stead, durante o estado de vigília, o que, porém, não significa que o incidente se haja desenvolvido exatamente assim. Não significa, antes de tudo, porque, em nenhuma das experiências em questão havia testemunhas que pudessem afirmar que a sensitiva, no momento, não se achasse adormecida; depois, porque, ainda quando existissem tais testemunhas, não teriam grande valor, visto que uma pessoa pode muito bem passar e permanecer algum tempo em condições de sonambulismo vígil, sem que os presentes se apercebam do fato e sem que a própria pessoa o perceba. Tudo isto é teoricamente importante e voltarei ao tema quando tiver ensejo de aludir a um caso recente do mesmo gênero, em que o paciente, à distância e inconsciente, se achava, na aparência, em estado de vigília, caso continuamente citado pelos opositores, para demonstrarem que os médiuns tiram tudo o que queiram das subconsciências de outros e chegam, desse modo, a mistificar o próximo, como se personificassem entidades de defuntos (caso Soal-Górdon Davis).

Repito, pois, mais uma vez, que o ensinamento teórico a extrair-se do episódio exposto, e que será amplamente corroborado pelos que se seguirão, consiste na prova manifesta e indubitável de que, nas comunicações mediúnicas entre vivos, se trata de verdadeiras e legitimas conversações entre duas personalidades integrais subconscientes, transmitidas à personalidade consciente do médium, por meio da escrita automática. Do mesmo passo, evidente também resulta que os médiuns nada tiram, nem selecionam e que, por conseguinte, a hipótese tão cara aos opositores é destituída de qualquer fundamento experimental.

Cumpre se tenha muito em vista o ensinamento acima apontado, pois que, do fato positivamente averiguado de que as comunicações mediúnicas entre vivos são verdadeiras conversações entre duas personalidades integrais subconscientes, decorre que essas comunicações se transformam em provas resolutivas de identificação pessoal dos vivos que se comunicam e, por sua vez, corroboram, com igual eficácia, as manifestações análogas por meio das quais se obtêm as provas de identificação pessoal dos defuntos. Entretanto, se, ao contrário, se fantasiar, com os opositores, que, nas comunicações mediúnicas entre vivos, os médiuns tiram das subconsciências dos mesmos vivos todas as informações que fornecem sobre a existência privada deles, dever-se-ia, em tal caso, argumentar no mesmo sentido com relação a grande parte das comunicações mediúnicas com os defuntos, considerando-as um noticiário de fatos tomados pelos médiuns às subconsciências de terceiros, o que tornaria teoricamente mais difícil a demonstração rigorosamente científica das provas de identificação espirítica. Assinalado esse ponto, apresso-me a acrescentar que a hipótese em apreço tem que ser eliminada, não apenas em face dos processos científicos da análise comparada e da convergência das provas, mas, igualmente, em face da consideração de que com ela não se explicaria a característica fundamental das comunicações entre vivos, característica que é a da conversação que se desenvolve entre o médium e a personalidade subconsciente do vivo distante daquele, conversação que assume aspectos sempre novos e imprevistos, que nada de comum apresentam com as lembranças latentes nas subconsciências de terceiros, porquanto as informações fornecidas, os manifestados estados de ânimo, as características morais, as idiossincrasias pessoais brotam das perguntas que o automatista dirige à personalidade do vivo que se comunica. Assim sendo, só resta concluir formulando uma proposição tão simples, que parece ingênua, e é que, quando uma hipótese se revela impotente para explicar a característica maior de uma dada classe de manifestações, isso significa que ela é inaplicável às mesmas manifestações. E me parece que basta.

*

Este outro episódio, também ocorrido com Miss Summers, servirá para corroborar tudo quanto ficou dito acerca da sinceridade sem reservas com que as personalidades integrais subconscientes confiam suas angústias íntimas a terceiros. Em data de 20 de setembro de 1893, William Stead, como de costume, encaminhou seu pensamento para Miss Summers, pedindo-lhe notícias. Imediatamente sua mão escreveu:

“Hoje, para mim, é um dia de tristes desilusões. Em pagamento de um trabalho que fiz, recebi soma muito inferior à que eu esperava e com que contava, de modo que me encontro em aperturas econômicas assaz penosas. Não quis pô-lo ao corrente de tudo isto, porque bem sabia que me proveria do dinheiro necessário, o que não quero. Tenho, entre outros, um débito de três libras esterlinas com o proprietário da casa. Não importa: hei de consegui-las.

Disse eu: Mandar-lhe-ei a soma de que necessita. Resposta imediata: Não, não aceitarei e lha devolverei. Tenho a minha altivez e não quero parecer uma colaboradora mercenária.

No dia seguinte mandei a Miss Summers uma pessoa que gozava de toda a sua confiança e vim a saber que ela, efetivamente, se achava nas dificuldades econômicas de que me informara mediunicamente. Quando, porém, soube por que meio eu fora informado de seus embaraços econômicos, ficou extremamente desgostosa.” (Proceedings, vol. IX, pág. 54).

Deste incidente, ressalta mais que notório que nas experiências em questão não há cabimento para a “telemnesia”; que se trata, ao contrário, de verdadeiros e legítimos diálogos travados entre duas personalidades espirituais subconscientes. Note-se, com efeito, que, quando Stead declara: “Mandar-lhe-ei a quantia de que necessita”, Miss Summers responde: “Não, não aceitarei e lha devolverei”, resposta que implica uma ação dialogada que se desenvolve no presente e não um processo de seleção das lembranças latentes nas subconsciências de terceiros. E, pois que o diálogo foi reconhecido verídico, não é o caso de invocar-se a sólida hipótese dos chamados “romances subliminais” com relativa dramatização subconsciente.

*

O incidente seguinte ocorreu entre William Stead e seu próprio filho, que andava pelo Reno, em viagem de recreio. Escreve o pai:

“Meu filho levava consigo uma câmara Kodak e, como sói acontecer, veio a ficar sem chapas fotográficas, pelo que escreveu para casa, a fim de lhe enviarem algumas. Dei-me pressa em remeter-lhe as chapas e, passados os dias necessários a que elas lhe chegassem, perguntei-lhe mediunicamente se as recebera. Ele respondeu que as esperava impaciente, mas que não chegavam, razão pela qual não podia fotografar os sítios pitorescos que ia atravessando. Tratei, logo, de informar-me a respeito e verifiquei que as chapas tinham sido expedidas. Eis, no entanto, que, dois dias depois, meu filho escreveu novamente com a minha mão: “Por que não me mandas as chapas?” – Cuidei de informar-me novamente sobre o caso, obtendo a certeza de que a expedição fora feita, havia uma semana. Conclui que minha mão era influenciada por interferências subconscientes e não mais consenti que me fossem ditadas mensagens da parte de meu filho. Quando, porém, ele regressou, vim a saber, com viva surpresa, que as chapas enviadas não tinham chegado a seu destino, e que os dois pedidos impacientes, escritos em seu nome, pela minha mão, em Wimbledon, correspondiam exatamente ao seu estado de ânimo, quando se encontrava em Boppard.” (Light, 1893, pág. 63).

Neste caso e do ponto de vista da autenticidade do fenômeno de comunicação mediúnica entre vivos, é interessante a circunstância de ter Stead a certeza de que as chapas fotográficas haviam sido enviadas, certeza inconciliável com a hipótese de uma mistificação subconsciente, pois que, então, ele devera ter-se auto-sugestionado, no sentido de suas convicções, de maneira a provocar uma resposta em que se anunciasse a chegada das tão esperadas chapas fotográficas. Ao contrário, o filho responde, protestando pela segunda vez que as chapas não lhe chegavam. Forçoso, portanto, concluir-se que o diálogo em questão era de ordem telepático-mediúnico.

*

No exemplo a seguir, ainda se trata de uma pessoa que, depois de se haver mostrado reticente com Stead ao confiar-lhe suas aflições econômicas, lhe fala sem reservas, por via mediúnica. Refere William Stead:

“No mês de fevereiro transato (1893), encontrei-me no trem de ferro com um senhor a quem conhecera casualmente havia pouco. Sabia eu de modo geral que ele, desde algum tempo, se mostrava presa de graves preocupações, de sorte que a nossa palestra tomou um aspecto confidencial, por onde vim a saber que as suas preocupações eram de ordem financeira. Disse-lhe que ignorava se poderia ou não lhe ser útil, mas que, fosse como fosse, lhe pedia me confiasse francamente as condições em que se encontrava, quais os seus débitos e os créditos ou a soma de que podia dispor. Respondeu que não se sentia com ânimo de entrar nessas particularidades. Abstive-me de insistir. Na primeira estação, separamo-nos. Naquela mesma noite, recebi dele uma carta em que pedia desculpas de se haver mostrado reticente para comigo, talvez desatencioso, e explicava que, em realidade, não se sentia com ânimo de me confiar o que eu lhe perguntara. Recebi a carta às dez horas e por volta das duas da manhã, antes de meter-me na cama, sentei-me à mesa e, dirigindo o pensamento à pessoa em questão, ponderei-lhe: “Não tivestes a força moral de declarar-me face a face quais eram as vossas condições financeiras; mas, agora, podeis confiar-me tudo, escrevendo com a minha mão. Dizei-me, pois, como vos encontrais. Quanto deveis?” – Veio a resposta: “Os meus débitos montam a 90 libras esterlinas.” – Havendo perguntado se era exata a soma escrita, repetiu com todas as letras: “Noventa libras esterlinas.” – Perguntei:

– “É tudo?”

– “Sim e, em verdade, não sei o que poderei fazer para pagá-las.”

– “Quanto pensa que podeis obter pela pequena propriedade de que me falastes?”

– “Conto obter 100 libras esterlinas; mas, talvez, seja muito. Em todo caso, preciso vendê-la por qualquer preço. Oh! Se pudesse achar com que ganhar a vida! Estou disposto a empregar-me seja no que for.”

– “De quanto necessitais para viver?”

– “Não creio que possa viver com menos de 200 libras esterlinas por ano, pois não sou só: tenho os meus velhos para sustentar. Se fosse só, poderia viver com 50 esterlinas; mas, há o aluguel da casa e o vestuário. Nunca chegarei a ganhai tal soma. Não sei o que pensar.”

No dia imediato, fui à procura do meu amigo. Mal me viu, disse: “Espero que não vos tenhais ofendido por me ter eu recusado a confiar-vos as circunstâncias em que me acho. Na verdade, o meu sentimento era o de não vos aborrecer com os meus queixumes.” – Respondi: “Absolutamente não me ofendi e, a meu turno, espero não vos ofendereis, quando souberdes o que fiz.” E expliquei-lhe então sumariamente os métodos de comunicação telepático-mediúnica e acrescentei: “Não sei se alguma palavra de verdade há em tudo o que a minha mão escreveu e hesito em vo-lo comunicar, sobretudo porque penso que a cifra por mim grafada como montante das vossas dívidas, é extremamente exígua para ser verdadeira, tanto mais considerando a depressão moral em que estais, Assim, antes de tudo, vou ler-vos a cifra em questão. Se for exata, darei a conhecer o resto; se estiver errada, considerarei tudo como fruto de uma mistificação subconsciente, em que a vossa personalidade não entrou por coisa alguma.” – Ele parecia interessado, embora incrédulo. Prossegui assim: “Antes que eu leia a mensagem, é preciso que façais mentalmente o cálculo do montante total das vossas dividas, bem como da soma que esperais obter da venda da vossa propriedade, depois, o da soma que vos é necessária anualmente para vos manterdes com a vossa família e, por fim, o da soma com que poderíeis viver se fôsseis só.” – Ele se concentrou um momento e disse: “Já pensei em tudo isso.” – Saquei então da mensagem e li: “O montante das vossas dívidas é de 90 libras esterlinas.” – Ele deu um salto e exclamou: “Exato! Entretanto, 100 esterlinas foi a quantia em que pensei, porque incluí o dinheiro necessário das despesas correntes.”

Continuei: “Uma vez que está exato o montante do que deveis, prossigo na minha leitura. Esperais obter 100 libras esterlinas pela vossa propriedade.” – “Sim – respondeu – é precisamente essa a cifra em que pensei, se bem haja hesitado em declará-la, por me parecer exagerada.”

– “Haveis-me informado de que, com os vossos encargos atuais, não podereis viver com menos de 200 libras esterlinas por ano.” – “Exatíssima – o disse – assim é, de fato.”

– “Acrescentastes, porém, que, se fôsseis só poderíeis viver com 50 libras.” – “Ora bem: eu pensara neste momento em uma libra por semana.”

Segue-se, portanto, que a minha mão transcreveu com exatidão o pensamento de uma pessoa do meu conhecimento, distante de mim muitas milhas, poucas horas depois de me haver essa mesma pessoa escrito, desculpando-se de não ter tido a coragem de me confiar as informações que lhe eu solicitara.”

Myers pediu a Stead que lhe obtivesse o testemunho do seu amigo, a fim de depô-lo nos arquivos da Society for Psychical Researches, no interesse das pesquisas psíquicas, e Stead lho proporcionou. Myers o publicou em os Proceedings (Vol. IX, pág. 57), suprimindo a nome da testemunha, mas declarando que o mostraria particularmente a quem o desejasse.

É esta a carta do amigo de Stead:

“Egrégio Senhor Stead,

Recebi a vossa exposição e nada tenho que opor a que seja enviada a Society F. P. R.. Tudo quanto nela se contém é escrupulosamente verdadeiro. Eu ignorava absolutamente a vossa experiência é dela só fui sabedor no dia seguinte, por vosso intermédio. O resultado da dita experiência produziu em mim grande impressão, porquanto eu sabia perfeitamente que não podíeis ter conhecimento algum dos meus negócios, nem do montante das minhas dividas, nem do valor da minha propriedade e dos meus projetos de vida. (Assinado): E. J.”

Este caso não difere substancialmente dos outros; revela-se, porém, mais importante, do ponto de vista teórico, pela maior eficácia demonstrativa, levadas em conta a duração invulgar do diálogo mediúnico e as minuciosas informações de natureza privada, obtidas de uma pessoa que poucas horas antes declarara verbalmente a Stead que não queria descer a confidências sobre o tema delicado das suas angústias econômicas.

Entre as informações que Stead obteve mediunicamente e as que conseguiu verbalmente notam-se ligeiras diferenças na forma em que foram concebidas pelas duas personalidades: a subconsciente e a consciente, do mesmo indivíduo. Outro tanto, porém, não se dá relativamente à substância, que é idêntica num caso e noutro.

Diante de um diálogo verídico tão prolongado e tão circunstanciado, quem ainda ousaria sustentar que as comunicações mediúnicas entre vivos se dão por meio de uma suposta faculdade de “clarividência telepática”, ou “telemnesia”, capaz de insinuar-se nos mais recônditos recessos das subconsciências de outros, com o fim de extrair daí os elementos necessários a figurar uma falsa personalidade de vivo, com relativo desenvolvimento dialogado, que resultaria uma “dramatização espúria” de particularidades percebidas telepaticamente? Sem dúvida, não se podem definir como percepções telepáticas dramatizadas as que se acham nos trechos de diálogo em que Stead pergunta: “De que soma necessitais?” e obtém como resposta: “Não creio que possa viver com menos de 200 libras esterlinas por ano, pois que não sou só; tenho os meus velhos para sustentar. Se eu fosse só, poderia viver com 50 libras esterlinas...” Achamo-nos aqui em presença de uma resposta que implica haver feito aquele que a deu cálculos mentais antes de formulá-la. Assim sendo, é claro que esses cálculos não podiam ser extraídos da sua subconsciência, visto que se originaram de uma pergunta especial que lhe foi dirigida naquele mesmo instante. Creio que não se me faz mister acrescentar coisa alguma: é positivo que a explicação racional dos diálogos em apreço ressalta evidente das modalidades sob as quais eles se desenvolvem e essa explicação consiste em que se trata de duas personalidades espirituais conversando entre si.

Segue-se que, se se têm de excluir as hipóteses da “clarividência telepática” e da “telemnesia”, por impotentes para explicar as manifestações dos vivos, com mais forte razão deverão ser excluídas quando se cogite de explicar as manifestações dos defuntos, desde que as informações necessárias a representar a falsa personalidade de um trespassado teriam de extrair-se das subconsciências de indivíduos desconhecidos do médium e se achariam, ao demais, espalhados um pouco por toda parte do mundo.

Em outros termos: surge logicamente inevitável que, para explicar as manifestações dos defuntos, se tem de preferir a hipótese que se harmonize perfeitamente com as modalidades sob as quais se produzem as manifestações dos vivos, posto que estas se apresentam como a única base sólida de toda inferência científica, em semelhante ordem de pesquisas. Nessas condições, dever-se-á dizer que, assim como nas manifestações dos vivos são os próprios vivos que comunicam aos médiuns, ou por meio destes, os dados pessoais adequados a identificá-los, também, nos casos das manifestações dos defuntos, são os próprios defuntos que comunicam aos médiuns, ou por meio destes, as informações pessoais apropriadas a identificá-los. Em suma, o argumento essencial no presente debate consiste em que a característica de uma conversação entre duas personalidades espirituais se apresenta como fundamental em ambas as categorias de manifestações em foco. Ora, se essa característica corresponde a um fato cientificamente averiguado, no caso das manifestações dos vivos, não é possível se deixe de concluir que também corresponde a um fato igualmente real e verificado, no caso das manifestações dos defuntos. Isto, bem entendido, sempre sob a condição de que as informações obtidas em ambos os casos sejam verídicas, assim como ignoradas de todos os presentes.

De tudo quanto acabo de expor, decorre que a hipótese adversa tem de ser excluída, porque não corresponde às modalidades sob as quais os fatos se produzem.

Outras importantes circunstâncias existem, a ser aduzidas em reforço das considerações expostas. Dessas circunstâncias falarei na síntese conclusiva do presente capítulo, por serem de ordem geral.

*

De um longo artigo que William Stead publicou em o número de janeiro de 1909, da citada The Review of Reviews, transcrevo o episódio seguinte:

“Uma senhora de minha amizade (tratava-se de Miss Summers), que, longe de mim, escreve com a minha mão ainda mais facilmente do que com a sua própria mão, passara o fim da semana em Halsmere, aldeia situada a trinta milhas de Londres. Ficara de almoçar comigo numa quarta-feira, desde que houvesse regressado à capital. Na tarde da segunda-feira, quis informar-me a esse respeito e, pousando a pena sobre o papel, perguntei mentalmente à senhora em questão se regressara à sua casa. Minha mão escreveu o que se segue:

“Muito me desgosta ter de informá-lo de que um incidente tão lamentável se deu comigo, que quase tenho vergonha de narrar. Eu partira de Halsmere às 2:27 da tarde, num vagão de segunda classe, onde se achavam outras duas senhoras e um homem. Chegados à estação de Godalming, as senhoras desceram e fiquei a sós com o viajante. Ele se levantou e veio sentar-se a meu lado. Espantei-me e o repeli. Ele, porém, não quis retirar-se dali e, em dado momento, tentou beijar-me. Enfureci-me e atracamo-nos. Durante a luta apoderei-me do seu guarda-chuva e lhe apliquei com estes repetidos golpes. O guarda-chuva, porém, se quebrou e eu começava a temer que levaria a pior, quando o trem passou a certa distância da estação de Guildford. O homem assustou-se, soltou-me e, antes que chegássemos à estação, desceu e pôs-se em fuga. Eu me achava agitada em extremo, mas conservei o guarda-chuva.”

Imediatamente, mandei o meu secretário à casa da senhora a quem me refiro, com um bilhete em que lhe expressava o meu pesar pela agressão que ela sofrera e dizia, ao terminar: “Acalme-se e na quarta-feira traga-me o guarda-chuva pertencente ao homem.”

Ela me respondeu: “Desgosta-me sabê-lo informado do que me sucedeu, pois decidira não falar do caso a ninguém; mas, o guarda-chuva era meu e não do homem.”

Quando, na quarta-feira, ela veio almoçar comigo, confirmou a exatidão absoluta de todas as informações que minha mão escrevera sobre a aventura ocorrida e me mostrou o guarda-chuva, que era, de fato, seu e não do agressor. Como se teria produzido aquele erro de transmissão? Ignoro-o; mas talvez tivesse sofrido uma retificação, se eu me houvesse lembrado de pedir a revisão de todos os pormenores que a minha mão grafara.

É quase supérfluo advertir que eu nenhuma idéia tinha acerca da hora e do dia em que a minha amiga partiria, nem tão-pouco a sombra de uma suspeita com relação ao deplorável incidente de que foi vítima.”

O episódio cuja narrativa se acaba de ler não cede, quanto ao valor teórico, ao precedente, dado que na descrição minuciosa e completa da aventura sucedida à “correspondente espiritual” de Stead, ressalta sobremaneira evidente que em tais circunstâncias não se podia tratar de informações apanhadas por Stead na subconsciência de Miss Summers e depois organizadas de modo a figurar uma falsa personificação sua, a referir mediunicamente; mas que se tratava, ao contrário, de uma conversação como qualquer outra, entre duas personalidades integrais subconscientes.

O erro de transmissão que curiosamente se interpolou a tantos pormenores verídicos, em nada diminui a importância teórica do fato e é, provavelmente, resultado de uma fugaz interferência subconsciente. Faz-se mister não esquecer que o estado de receptividade mediúnica é uma condição passiva e eminentemente instável do espírito, condição essa afim, por sua natureza, com outra condição também passiva e eminentemente instável do mesmo espírito: o estado onírico, ou seja, o reino dos sonhos. Daí a extrema facilidade com que, nas comunicações mediúnicas, quer de vivos, quer de defuntos, se interpõem elementos de sonho. Quando se trata de comunicações com defuntos, esses elementos de sonho, que se vêm interpor às informações verídicas, constituíram sempre o grande obstáculo a que numerosos pesquisadores aderissem à hipótese espirítica. É que, para muitos deles, uma autêntica personalidade de defunto não deveria nunca se enganar, ao referir algumas particularidades de destaque da sua existência terrena. Essa afirmação, aparentemente racional e incontestável, é, na realidade, completamente errada, por não levar em conta as imperfeições inerentes ao instrumento onírico-subconsciente do qual se servem os defuntos para comunicar-se com os vivos, instrumento que exige uma passividade absoluta da mentalidade do médium, passividade em perpétua condição de equilíbrio instável, com freqüentes infrações e irrupções, ora oníricas, ora sonambúlicas, ora auto-sugestivas, às quais se devem imputar os erros, as contradições e as imperfeições que se notam em muitas comunicações dos defuntos.

Deste ponto de vista, os erros, idênticos em tudo, que se encontram nas comunicações com os vivos se revelam literalmente preciosos pela sua eloqüência demonstrativa da tese sustentada. De sorte que, tendo-se em vista o caso exposto, se devera inferir que, assim como o erro interposto a tantos pormenores verídicos não impede que o conjunto orgânico dos mesmos pormenores lhe demonstre a origem extrínseca, ou, mais precisamente, a natureza de manifestação mediúnica de um vivo, também os ditos erros, quando ocorrem nos casos de identificação espirítica, não podem impedir que o conjunto orgânico das informações verídicas que sejam ministradas demonstre a origem extrínseca das mesmas informações, ou, com maior precisão, a sua natureza de manifestações mediúnicas de defuntos.

O tema se mostra teoricamente muito importante e faz necessário se considerem outros erros de transmissão ocorridos nas experiências em questão. Stead os refere na sua revista e Myers os colecionou num trabalho que inseriu nos Proceedings of the S. P. R. (vol. IX, páginas 56-57). Narra Stead:

“Contudo, houve duas ou três circunstâncias em que, nas comunicações, se interpolaram curiosos erros, com referência aos pormenores. Tão importantes são eles, quanto as mensagens transmitidas corretamente. Um, que se deu com Miss Summers, foi o de ter afirmado que estivera a passear em Regent’s Park, quando, em realidade, não saíra de casa. Não sei explicar como se há podido produzir essa falsa transmissão. Penso, no entanto, que tenha havido de minha parte a suposição de que ela tivesse ido àquele parque. Mas, mesmo que assim fosse, restaria sempre positivado que se dera uma transmissão falsa.

Noutra ocasião, um erro muito mais relevante se produziu. Achava-me eu em Redcar e minha mão transcreveu uma conversação que Miss Summers teria tido com uma pessoa que ela nomeava. Tratar-se-ia de uma entrevista que degenerara em disputa e me foi transmitida parte do diálogo vivíssimo que se travara. Quando me encontrei com Miss Summers, comparamos as notas que ambos tomáramos e eu com surpresa verifiquei que, conquanto Miss Summers se tivesse avistado naquele dia com a pessoa cujo nome ela declinara, a entrevista que degenerara em disputa absolutamente não lhe dizia respeito, nem à pessoa por ela visitada, mas a uma amiga sua e a outro interlocutor. Acontece, porém, que a amiga de Miss Summers a procurara para lhe contar com viva emoção o doloroso incidente que se dera e minha mão transcrevera a narrativa, exagerando-lhe a importância e isso a uma distância de 350 milhas. Eu não conhecia pessoalmente a amiga de Miss Summers, de sorte que esta última ficou profundamente estupefata ao ver que a disputa de sua amiga fora transmitida em seu próprio nome, interpolada no relato genuíno de uma conversação sua com outra pessoa de negócio.”

Esta a exposição de Stead. Quanto ao primeiro erro de transmissão que ele aponta, não vem ao caso discuti-lo, porque, muito presumivelmente, a razão que lhe atribui Stead é verdadeira. Quanto ao segundo, esse é sem dúvida singular, incomum e enigmático. De todo modo, lembra muito de perto um outro verificado nas experiências do príncipe Wittgenstein, referido no “caso X” da minha monografia sobre Comunicações mediúnicas entre vivos, onde se assinala que esse príncipe, desejando entrar em relação com a sua “correspondente espiritual” de costume, orientara o pensamento para o domicílio dela; mas, como a senhora estivesse ausente e na sua casa dormia uma sua irmã, aconteceu que o príncipe, por efeito da “afinidade fluídica” existente entre as duas irmãs, se pôs em relação psíquica com a que coabitava no mesmo ambiente. Daí vem que esta última narrou ao príncipe um incidente que com ela se dera num baile. Como, porém, o príncipe cria estar em relação com a pessoa que lhe era conhecida, produziu-se uma interferência por auto-sugestão, que levou a mão do sensitivo a firmar erroneamente a mensagem com o nome daquela que se achava ausente.

Ora bem, tudo leva a presumir que análoga interferência havia ocorrido no caso de Stead e, nessa conformidade, se deveria inferir que o seu pensamento, orientado para a residência da sua “correspondente espiritual”, no momento em que ela conversava com uma amiga que lhe narrava com emoção viva os pormenores de uma disputa em que se empenhara, deu em resultado que o estado emocional da amiga de Miss Summers repercutisse nas condições de relação psíquica existentes, na ocasião, entre ele e essa senhora, determinando uma perturbação correspondente na transmissão da mensagem, a qual, depois de iniciar-se com uma informação de Miss Summers acerca do resultado de uma entrevista sua, sobre negócios, com um senhor cujo nome ela mencionava, improvisamente se alterou, desde que as “ondas hertzianas da telegrafia sem fio”, mediante as quais as duas personalidades espirituais conversavam, foram sobrepujadas por outras “ondas hertzianas” mais potentes, que chegaram a sintonizar-se com as primeiras, em virtude da coexistência, no mesmo ambiente, das duas amigas que conversavam. Assim, esse segundo sistema de “ondas hertzianas”, apanhando notícias da disputa havida, se sobrepôs ao primeiro sistema, com este se amalgamando e confundindo.

Por ocasião da conferência de William Stead na sede da London Spiritual Alliance, empenhou-se entre ele e os ouvintes uma interessante discussão sabre o tema dos erros intercalados nas suas experiências de comunicações mediúnicas com os vivos, o que lhe forneceu ensejo de referir outros dois casos do mesmo gênero. Disse ele:

“Agora, consenti que eu volte ao problema dos erros. Pode dar-se que se trate de uma imperfeição do que defino como o meu “automático receptor telepático”, ou de um defeito dos nervos motores do meu cérebro. Pode dar-se que lhes caiba a culpa, mas julgo bem difícil arquitetar-se uma hipótese de trabalho que se mostre satisfatória. Quando meu filho se achava na Germânia, transmitia, servindo-se da minha mão, muitas informações verídicas, dizendo que partia para determinado país, ou pormenorizando o que fazia no momento. Mas, em meio da mensagem me falava, por exemplo, de um domingo horrivelmente chuvoso durante o qual, obrigado a permanecer em casa, nada tinha para ler, afora uma Bíblia tedesca, o que o levava a lamentar não haver levado bons livros consigo. Eis, porém, que, a seu tempo, vinha a verificar-se que nada disso era exato. O domingo em questão não fora “horrivelmente chuvoso”, os dois viajantes nenhum desejo, com efeito, tinham tido de ler e não possuíam nenhuma Bíblia tedesca.”

Neste incidente, dir-se-ia que a interferência do elemento onírico-subconsciente se tenha produzido em conseqüência de um autêntico “domingo horrivelmente chuvoso” na localidade em que Stead se encontrava, circunstância agravada por achar-se ele em lugar desprovido de livros com que distraísse o seu tédio.

Este o segundo caso por ele referido:

“Uma senhora de minha amizade, tendo deliberado visitar, no dia de Natal, o túmulo do poeta Matthew Arnold, escreveu, pela minha mão, naquela mesma noite, informando-me das ocorrências da viagem. Começou por dizer que se dirigira à estação de Paddington, que tomara o trem de tal hora e que lhe coubera um compartimento para si só durante a viagem toda; depois, que comprara outra passagem para a estação de Laleham. Nesse ponto observei: “Não pode ser; não existe semelhante estação ferroviária.” – Ela continuou: “Tomei uma passagem para Laleham e, lá chegando, rumei para o cemitério, que estava deserto, encaminhei-me para o túmulo do poeta, no qual depositei um ramo de flores de cor branca. Daí, voltei diretamente para a estação. De novo me coube um compartimento para mim só.” – Como se vê, essa mensagem continha uma observação minuciosa de circunstâncias que eu ignorava totalmente. Consideremos, agora, os erros que aí se intercalaram, pois que os erros, a meu ver, interessam mais do que os pormenores verídicos. Estes últimos são naturais, pois é natural que a minha amiga diga sempre a verdade, visto ser contrário a sua natureza dizer falsidades. Na sua maior parte, a mensagem é verdadeira: mas, quando com ela estive e lhe ponderei: “Não sabia que em Laleham houvesse uma estação ferroviária.” – ela respondeu: “De fato, não há; tomei o trem em Staines.” – Perguntei: “Mas, então, porque escreveu com a minha mão que havia tomado passagem para a estação de Laleham?” – Retrucou: “Pedi, com efeito, uma passagem para Laleham, mas o empregado me deu um bilhete para Staines, dizendo que essa era a estação em que devia saltar para ir a Laleham.” – Estes os fatos. Agora, analisemos os erros cometidos. A minha amiga não fora à estação de Paddington, porém a de Waterloo; não depositara um ramo de flores de cor branca no túmulo do poeta e sim um ramo de flores azuis. Como explicar esses dois pequeninos erros? – Trata-se de um gênero de incidentes que embaraçam o meu critério, levando-me a concluir que ainda teremos de pesquisar e ponderar longamente a questão antes de formularmos teorias em torno das modalidades sob as quais os fatos se produzem...” (Light, 1893, pág. 143).

Neste último caso, os dois leves erros cometidos não dizem respeito à veracidade dos incidentes narrados, mas a pormenores secundários em que aqueles incidentes se desdobraram. Como quer que seja, não resta senão imputá-los à mesma causa das perturbações mais ou menos notáveis, porém inseparáveis das condições de equilíbrio instável da camada onírico-subconsciente, receptora das mensagens supranormais. Esse era também o parecer do Rev. Allen que, ao terminar Stead a sua conferencia, pediu a palavra para observar:

“Desejo externar o meu pensamento acerca das comunicações erradas, transmitidas por entidades espirituais. Pessoalmente, não estou certo, com efeito, de que haja razão para se porem de parte tais comunicações, qualificando-as de falsas. Conseguintemente, ouvi com grande interesse, do Sr. Stead, que também nas comunicações entre vivos se obtêm, algumas vezes, informações fantasiosas. Ora, parece-me que, se assim é, tal fato aconselha que, por enquanto, se deve considerar aberta e não resolvida à questão vertente, sobre as chamadas “comunicações mentirosas dos defuntos”. É provável que as aparentes mentiras sejam conseqüentes a alguma imperfeição do organismo através do qual as mensagens são transmitidas ou determinadas por algum obstáculo no processo de transmissão...”

Não há dúvida de que as observações do Rev. Allen são racionalíssimas, embora não resolvam a questão, especificando-lhe as causas.

Com relação a este ponto, não será ocioso lembrar que, também nas clássicas experiências de transmissão do pensamento por via mediúnica, realizadas com severo critério científico pelo Rev. Newnham (Proceedings, vol. III, págs. 3-23), e em que a médium era sua própria mulher, se davam às vezes análogas interferências subconscientes, porém de ordem mais que embaraçosa, pois não se tratava de simples erros e sim de verdadeiras e positivas mistificações, análogas em tudo às que se registram nas comunicações com os defuntos, circunstância altamente interessante e instrutiva, que merece ser recordada.

O Rev. Newnham experimentava com sua própria esposa, sentados ambos no mesmo aposento, ele a oito pés de distância dela, dando-se as costas um ao outro. Ele escrevia uma a uma as perguntas que resolvia transmitir mentalmente à sensitiva, que pousava a mão sobre uma “prancheta”, por meio da qual respondia instantaneamente a cada pergunta, antes mesmo que ele tivesse tempo de escrevê-la. As respostas correspondiam sempre às perguntas e se referiam, as mais das vezes, a coisas e assuntos que a sensitiva desconhecia, mas conhecidas do experimentador, exceto uma vez em que a resposta dava uma informação que também ele ignorava. Nesse caso, porém, era conhecida de outra pessoa presente, que escrevera a pergunta e a dera a ler ao reverendo Newnham.

Importante ensinamento a tirar-se das experiências em apreço reside na circunstância de que, quando o experimentador se mostrava demasiado exigente, insistindo por obter respostas muito complexas para a capacidade de percepção subconsciente da sensitiva, surgiam respostas que, conquanto de perfeito acordo com as perguntas, eram de pura invenção. Assim, por exemplo, havendo Newnham, que fazia parte da Maçonaria, pedido à sensitiva que escrevesse a prece maçônica de uso para a promoção a Grão-Mestre, a “prancheta” escreveu instantaneamente uma longa prece nesse sentido, que continha reminiscências maçônicas, mas que no conjunto era uma fantástica invenção. Ora, essa espécie de mistificações, em experiências de transmissão mediúnica do pensamento, são muito sugestivas e interessantes, pela analogia que apresentam com as correspondentes interferências mistificadoras que freqüentemente se dão nas comunicações mediúnicas genuinamente espiríticas. Dir-se-ia que as excessivas insistências do pesquisador, tendo por efeito determinar, nas personalidades mediúnicas, uma demasiada tensão da vontade, com relativa dispersão de fluido mediúnico e consecutivo enfraquecimento do “controle psíquico” abrem passagem à “camada onírica” da subconsciência, a qual, emergindo, continua a seu modo a comunicação em curso, desenvolvendo uma ação de sonho.

De toda maneira, importa tomar nota de que as “mistificações espiríticas” guardam analogia com as “mistificações anímicas” que se verificam nas comunicações mediúnicas entre vivos, do que resulta um ensinamento teórico notabilíssimo, porque fundado em processos de análise comparada, aplicada às duas classes de manifestações em foco.

É de tal modo importante o assunto das mistificações mediúnicas desse gênero, que sou levado a sair, por exceção, dos limites do tema das “comunicações mediúnicas entre vivos”, para pesquisá-lo ulteriormente e completá-lo com citações tiradas das “comunicações mediúnicas entre vivos conseguidas por intermédio de entidades de defuntos”, pois importa assinalar que, se é certo que muitos erros e numerosas mistificações mediúnicas se dão em conseqüência da imperfeição do instrumento receptor das mensagens, ou, seja, do médium, isso não significa que se haja exaurido o árduo tema vertente sobre a gênese das manifestações mediúnicas. Quer dizer que também se deve ter muito em conta a circunstância de que podem dar-se, como de fato se dão, erros e mistificações de toda espécie, dependentes das condições precárias em que se produzem as comunicações mediúnicas, mesmo pelo lado extrínseco dos defuntos que se comunicam. Limito-me, portanto, a demonstrá-lo, baseado numa série de experiências recentes, conduzidas com critério rigorosamente científico pelo Sr. Frederick James Crawley, Chief Constable of the Newcastle-upon-Tkne City Police, função que o torna sobremodo consciente da importância que revestem os mais minuciosos pormenores nas experiências desta natureza, com respeito às quais ele expõe os fatos revelando o máximo cuidado em corroborá-los mediante tão abundante quão exaustiva documentação, constituída de trechos de cartas pertencentes ao acervo da correspondência trocada pelos dois círculos de experimentação, assim como da citação das datas referentes a todas as mínimas circunstâncias de fato e, ainda, de esclarecimentos e comentários que nada deixam a desejar. Dessa maneira, chegou a realizar uma obra cientificamente importante e teoricamente preciosa.

Cumpre, pois, se reconheça que esta série de experiências merece o título que o autor lhe apôs: Survival: My Quota.[i] Trata-se, com efeito, de uma contribuição verdadeiramente eficaz, para a demonstração da sobrevivência do espírito humano.

Da leitura do relato apreende-se que a idéia de iniciar experiências de tal natureza não germinou espontaneamente no cérebro de alguém. Foram as circunstâncias, combinadas com algumas manifestações espontâneas das personalidades mediúnicas que se comunicavam, que levaram os experimentadores a empreendê-las.

Refere o Sr. Crawley que desde muitos anos se interessava, em caráter privado, pelas experiências mediúnicas, dado que sua esposa possuía a faculdade da escrita automática e uma amiga da família, a seu turno, escrevia mediunicamente com o aparelho denominado Ouijà e possuía a faculdade de vidência.

Aconteceu que no outono de 1922, a Sra. Crawley teve de ir passar algum tempo na cidadezinha de Woolastone, no Gloucestershire, permanecendo o Sr. Crawley em sua residência, em Sunderland. Entre as duas localidades medeia uma distância de cerca de 300 milhas.

A 1º de setembro de 1922, recebeu o Sr. Crawley, de sua mulher, uma carta em que havia o seguinte parágrafo:

“Ontem à noite, quando me fui deitar, ouvi sonoras pancadas na madeira do peitoril da janela. Reconheci nelas a tonalidade característica das pancadas de “Lutero” (falecido irmão da Sra. Crawley). Perguntei se era mesmo ele e recebi resposta afirmativa, por meio de três fortes pancadas. Depois disso, estas continuaram. Como, porém, ressoavam muito fortemente e eu me acho em casa alheia, pedi a Lutero que cessasse com aquilo e ele de pronto me atendeu. Eram 11 horas. Pedi-lhe então que fosse bater as suas pancadas no teu quarto em Sunderland. Esta manhã, escrevendo automaticamente, manifestou-se “Ourio” (falecido filho do casal Crawley), o qual me disse que ele e Lutero tinham ido ao teu quarto e executado a minha ordem.”

Estas as informações que a Sra. Crawley enviou a seu marido.

Ora, o fenômeno se dera tal qual. Em Sunderland, pelas 11 horas da noite, o Sr. Crawley ouvira pancadas mediúnicas no seu próprio quarto de dormir.

Era natural que esse primeiro episódio espontâneo sugerisse ulteriores experiências, no mesmo sentido, tanta mais que o Sr. Crawley continuava, em Sunderland, a fazer experiências com a Sra. Low que, como já se disse, possuía a faculdade de médium vidente e bem assim a da escrita automática com o instrumento mediúnico chamado Ouijà. Por seu lado, a Sra. Crawley, em Woolastone, continuava a experimentar sozinha, com o objetivo de manter-se em relações com o filho e o irmão falecidos. E foi a Sra. Crawley quem, animada pelo bom êxito no episódio exposto, teve primeiro a idéia de tentar novamente a prova sob outra forma, encarregando os Espíritos que se comunicavam de uma breve mensagem a seu marido em Sunderland.

Essa primeira mensagem não foi transmitida; mas a personalidade mediúnica de Lutero, a quem o encargo fora dado, se justificou plenamente, afirmando que não conseguira transmiti-la porque encontrara o Espírito “Frank” a ditar para o Sr. Crawley uma longa comunicação ao médium Sra. Low. Ora, essa informação de Lutero foi confirmada numa carta do Sr. Crawley, acompanhada de extensa comunicação do Espírito “Frank”, obtida na noite de 14 de setembro, ou seja, na mesma noite em que a Sra. Crawley incumbira Lutero de transmitir a sua mensagem. Ressalta, pois, que o fenômeno das “mensagens mediúnicas entre vivos, transmitidas com o auxílio de personalidades mediúnicas”, efetivamente se produzira, conquanto em sentido oposto ao que se esperava. Quer dizer: em vez de ter o Sr. Crawley recebido uma mensagem mediúnica da parte de sua mulher, fora esta quem recebera uma mensagem verídica acerca do que naquele momento preciso se passava na presença do marido.

Seguem-se outras mensagens da mesma natureza, que não vem ao caso transcrever aqui.

Antes de avançar mais no assunto, importa acentuar uma circunstância de fato, que caracteriza esta ordem de experiências: a de que quase todas as mensagens mediúnicas enviadas de um círculo ao outro, sob os auspícios de “Espíritos mensageiros”, ao passo que, pela essência do conteúdo, correspondam exatamente ao que devia ser transmitido, se mostram mais ou menos lacunosas ou imperfeitas, não sendo, quase nunca, reproduzidas literalmente. Ora, esta circunstância de fato apresenta grande importância teórica, por esclarecer muitas dúvidas inerentes às comunicações mediúnicas desse gênero, conforme oportunamente veremos.

Em data de 20 de setembro de 1922, o Sr. Crawley perguntou ao Espírito comunicante “Lutero”:

– Queres incumbir-te de transmitir uma mensagem à minha mulher?”

Lutero: De muito boa vontade. Faze, no entanto, por ser claro e conciso.

Sr. Crawley: Aqui está a mensagem: “Fred te informa que o cãozinho Jim deseja ardentemente ver a sua mamãe.”

Lutero: Tentarei transmitir apenas isto: “O cãozinho Jim deseja a mamãe.”

No dia seguinte, 21 de setembro, ao meio-dia, a Sra. Crawley se dispõe a escrever automaticamente e “Lutero” se lhe manifesta, ditando isto:

– Querida Emmie, quero informar-te acerca do cãozinho Jim.

Sra. Crawley: Terá morrido?

Lutero: Não; está bom; eu tinha de te participar que ele goza boa saúde.

Sra. Crawley: estás bem certo do que afirmas?

Lutero: Sim, Emmie, tenho a certeza.

Como se vê, a mensagem foi, de fato, transmitida. mas de modo parcial e imperfeito. Realmente, não era exato que o Espírito “Lutero” estivesse incumbido de informar a “Emmie” que o cãozinho Jim gozava boa saúde. Essa inexatidão, porém, é teoricamente muito interessante, pois que do contexto do diálogo se evidencia claramente que ela deve atribuir-se a um fenômeno de interferência sugestiva provocada pela pergunta da Sra. Crawley: “Terá morrido?” Isto vem confirmar tudo o que, desde largo tempo, já se havia assinalado com relação às comunicações mediúnicas, isto é, que os Espíritos que se comunicam, quando se acham imersos na “aura” dos médiuns, ficam em condições análogas às dos pacientes hipnóticos e se tornam, em conseqüência, sugestionáveis, sofrendo notável diminuição suas faculdades mnemônicas, o que dissipa muitas dúvidas teóricas.

A propósito, é também de assinalar-se o incidente de o Espírito pedir ao Sr. Crawley que a sua mensagem fosse clara e concisa e de a modificar por conta própria, logo que a recebeu, condensando-a numa forma mais clara e sintética. Este incidente corrobora a afirmação anterior, porquanto demonstra que o encargo de transmitir mensagens desse gênero não é tão simples como à primeira vista se poderia imaginar, o que manifestamente se deve imputar às condições sonambúlico-hipnóticas em que vêm a ficar os Espíritos dos defuntos, quando imergem na “aura” dos médiuns, condições que influem passageiramente e negativamente sobre as suas faculdades mnemônicas. Só tendo-se isto em conta é que se apreende o motivo pelo qual o Espírito que se comunica reclama sejam simples, claras e concisas as mensagens.

A 22 de setembro, Lutero se manifestou novamente ao Sr. Crawley para lhe comunicar que se desobrigara do encargo recebido:

Lutero: Fred, transmiti a Emmie a tua mensagem.

O Sr. Crawley: Lembras-te ainda da mensagem?

Lutero: Creio que sim: foi qualquer coisa a respeito de um cãozinho.

Também neste incidente, deve-se notar a circunstância de que o Espírito, cuja resposta dá a ver que ele esquecera todos os pormenores da mensagem que lhe fora confiada dois dias antes, apenas guardara dela uma lembrança genérica.

No dia 23 de setembro, às 7 horas da tarde, o Sr. Crawley inicia a costumada sessão com a médium Sra. Low.

Manifesta-se Willie Low, falecido filho da médium. Pergunta o experimentador:

– Quererias encarregar-te de dizer à minha mulher que a Sra. Annie Brown está doente?

Willie Low: De boamente.

(O Sr. Crawley faz notar que a Sra. Annie Brown, objeto da mensagem, era amiga da médium, mas inteiramente desconhecida do casal Crawley).

A 26 de setembro, às 2:30 da tarde, a Sra. Crawley se dispõe a escrever automaticamente e de súbito se manifesta o Espírito de Willie Low, que lhe dita:

– Vim para te informar que a Sra. Annie Brown está doente.

Sra. Crawley: Quem é essa senhora Brown?

Willie Low: Uma amiga de minha mãe.

Sra. Crawley: É ou não amiga nossa?

Willie Low: Não é amiga de vocês.

Sra. Crawley: Então, porque me vens informar de que ela está doente?

Willie Low: Unicamente a título de experiência de identificação pessoal. Minha mãe falou disso com teu marido, em Sunderland.

Neste episódio a mensagem mediúnica foi transmitida com fidelidade, presumivelmente devido ao fato de ser simplíssima a própria mensagem, que se compõe de um único assunto, sem acessórios e adjetivos qualificativos. Notável a última observação de Willie Low, que assim demonstrou ter consciência da importância e do escopo das experiências a que se prestava.

Citarei três outros episódios, dos quais ressalta em toda a evidência a grande verdade aqui propugnada.

A 1º de outubro, pelas 6:30 da tarde, o Espírito de Frank se manifesta em Sunderland ao Sr. Crawley, que lhe pergunta:

– Poderias transmitir uma mensagem à minha mulher?

Frank: Posso e mesmo desejo muito experimentá-lo.

Sr. Crawley: Ouve: proponho três à tua escolha. Podes transmitir que esta tarde ouviu Doroty e Gwen cantarem; ou que esta tarde me falaste da existência espiritual; ou que o Sr. Todd está doente.

Frank: Muito bem: Todd doente; comunicação sobre a existência espiritual; Doroty e Gwen cantaram.

No dia 3 de outubro, às 9 horas da manhã, em Woolastone, manifesta-se à Sra. Crawley o falecido pai de seu marido, que lhe dita o que se segue:

– Temos de participar-te que alguém está doente.

Sra. Crawley: Não me podes dizer o nome?

Espírito: Não me recordo.

Sra. Crawley: Alguém que eu conheço?

Espírito: Sim, alguém que conheces muito bem, que é mesmo freqüentador assíduo do teu pequenino círculo experimental.

(O Sr. Crawley confirma que o doente, Sr. Todd, era seu amigo íntimo e membro do seu pequeno círculo experimental para desenvolvimento dos médiuns).

Sra. Crawley: Tens mais alguma coisa a me comunicar?

Espírito: Tenho... Conversamos com teu marido sobre a existência espiritual. Vim eu transmitir a mensagem, porque Frank não o conseguia. A empresa é muito difícil.

Neste episódio é muito sugestivo o incidente da substituição do Espírito mensageiro, substituição que ulteriormente servirá para mostrar as grandes dificuldades que encontram as personalidades espirituais para desempenharem a sua tarefa. Por isso mesmo, adquire não pequeno valor teórico, no sentido da gênese extrínseca dos fatos, o outro incidente, o de o Espírito não só informar a Sra. Crawley da substituição havida, como declinar corretamente o nome do Espírito que recebera a incumbência de transmitir aquela mesma mensagem que ele, em lugar do outro, acabara de reproduzir.

Pode-se perguntar: Por que “Frank” não logrou sair-se bem da tarefa? – Evidentemente, um só motivo se pode encontrar para o insucesso de que se trata e é que o “Espírito”, depois de haver imergido na “aura” do médium, se haja apercebido de que esquecera tudo.

Pelo que concerne à transmissão das mensagens, faço notar que, na primeira delas, se observou as costumadas lacunas mnemônicas. Com efeito, o Espírito refere corretamente que tinha a informar a Sra. Crawley acerca de alguém que estava doente, mas de cujo nome não se lembra. Ao mesmo tempo, demonstra saber quem era o doente, pois acrescenta que se trata de alguém que a Sra. Crawley conhece muito bem, por ser freqüentador assíduo do pequeno círculo experimental fundado pelo casal Crawley. Tem-se, portanto, de concluir que, no episódio referido, o inconveniente da amnésia mediúnica se limitava ao nome da pessoa designada, conservando-se íntegra a lembrança acerca da própria pessoa. A segunda mensagem, ao contrário, foi transmitida fielmente.

Em data de 5 de outubro, às 6:30 da tarde, o Sr. Crawley, em Sunderland, dirige ao Espírito “Lutero” a pergunta habitual:

– Queres tentar a transmissão de uma mensagem à minha mulher?

Lutero: A empresa é bastante árdua; mas, tentarei.

Sr. Crawley: É esta a mensagem: A fotografia de Lutero está em cima da mesa, defronte da de Fred. Repete-me a mensagem.

Lutero: A minha fotografia está sobre a mesa das experiências.

No dia seguinte, 6 de outubro, às 8 horas da noite, Lutero se manifestou a Sra. Crawley, em Woolastane, mas se limitou a dizer:

– Eu tinha de te comunicar qualquer coisa, mas esqueci completamente.

A 11 de outubro, o mesmo Espírito se manifestou novamente à Sra. Crawley, que lhe perguntou:

– Lutero, não mais te voltou à mente a mensagem que recebeste para me transmitir?

– Minha querida Emmie, vou ver se me recordo... Parece-me que é isto: “Informa a Emmie que tenho uma fotografia de Lutero”.

Também este episódio é teoricamente muito instrutivo, porquanto as modalidades sempre diversas sob as quais se produzem as transmissões de mensagens mediúnicas de um círculo ao outro tendem cumulativamente a provar, de maneira incontestável, que a causa das lacunas que se notam, em bom número delas, depende quase sempre da amnésia parcial ou total que se apodera das personalidades mediúnicas, no ato de se comunicarem. No incidente acima, apresenta-se uma variante igualmente demonstrativa e é que o Espírito, que se manifestara uma primeira vez com o escopo de transmitir a mensagem que lhe fora confiada, se apercebe de que a esquecera e teve de limitar-se a informar que recebera o encargo de transmitir uma mensagem e que a olvidara. Entretanto, depois de transcorridos alguns dias, ele se mostra em condições de transmitir a parte substancial da referida mensagem. Daí, portanto, inferir-se que o Espírito comunicante, depois de haver esquecido a mensagem, consegue recordar-se dela cinco dias mais tarde, o que demonstra que a amnésia total da primeira vez fora meramente passageira. Quer isto dizer que, sendo consecutiva ao ato da comunicação, ela se dissipara com o libertar-se o Espírito da “aura” perturbadora, para, em seguida, renovar-se parcialmente quando o mesmo Espírito tentou de novo a prova. Mas, se dá segunda vez a amnésia foi apenas parcial, esse fato põe de manifesto que as condições perturbadoras da “aura” mediúnica eram menos desfavoráveis.

Observo que a justeza das considerações expendidas é confirmada por uma declaração importante que o Espírito “Ourio” – um dos falecidos filhos do casal Crawley – deu à sua mãe. Tendo-lhe esta pedido que transmitisse a seu marido uma das costumadas mensagens, “Ourio” ponderou:

“Querida mamãe, estou certo de que a esquecerei. Quando nos afastamos da vossa presença, a mensagem que nos confiais se apaga da nossa memória. Além disso, para mim, a transmissão dessas mensagens é mais difícil do que para outros.”

(Segundo seu irmão Frank, a dificuldade em transmitir mensagens dessa natureza era maior para o Espírito “Ourio” pelo fato de haver este morrido ao nascer. Não tendo vivido, saía-se mal em tudo o que se referia a experiências práticas no mundo dos vivos, ao passo que conseguia transmitir mensagens transcendentais muito mais facilmente do que outros).

É teoricamente preciosa esta última mensagem porque esclarece em poucas palavras o que eu tive de demonstrar afanosamente, recorrendo à minuciosa pesquisa analítica dos episódios considerados. Por conseguinte, firmado em tudo quanto tenho expendido, dever-se-á deduzir que, se os Espíritos que se comunicam esquecem em grande parte, quando saem da “aura” dos médiuns, a incumbência dos experimentadores, é racional se presuma que, nas circunstâncias em que se colocam ao imergirem na referida “aura”, com o objetivo de provarem sua identidade, citando avultado número de pormenores pessoais, hajam de esquecer a maioria destes pormenores, mal se dê a imersão deles na “aura” inibidora. Pondero que tudo isto é análogo ao que se verifica nos pacientes hipnotizados, quando caem em sono provocado e, inversamente, quando despertam desse sono.

O Dr. Hodgson e o Professor Hyslop, experimentando com a médium Sra. Piper, salientaram um fato muito sugestivo, no mesmo sentido. Observaram freqüentes casos em que as personalidades que se comunicavam, depois de haverem fornecido espontaneamente ótimas provas de identificação pessoal, com pormenores que todos os presentes ignoravam, se confundiam de modo inexplicável e ficavam sem saber responder, desde que se lhes pediam outros pormenores particulares, ou nomes, que não podiam ignorar, de pessoas de suas famílias. Eis, porém, que, quando a médium passava pelo período transitório do despertar; quando deixava de estar imersa em “transe” profundo, sem, contudo, achar-se ainda no estado de vigília, mas apenas no período de torpor, notavam os experimentadores que ela pronunciava palavras sumidas. Se, então, lhe aproximavam dos lábios os ouvidos, verificavam com surpresa que aqueles murmuravam o nome e as informações que inutilmente haviam solicitado ao Espírito comunicante.

Ora, não há quem não veja que de semelhante circunstância um grande ensinamento reponta e é que Podmore estava em erro quando se referia ironicamente aos “Espíritos que se comunicam”, por ignorarem os nomes dos seus familiares. Estava em erro, porque devia considerar que, se os referidos Espíritos chegavam com muita freqüência a transmitir, achando-se a médium no período do despertar, os nomes pedidos e não declinados antes, era, manifestamente, que as lacunas mnemônicas de que se trata tinham de imputar-se exclusivamente às condições de imersão na “aura” mediúnica em que os aludidos Espíritos se encontravam, condição que lhes ocasiona um estado transitório de “amnésia” mais ou menos acentuado e que se vai gradualmente dissipando, à medida que eles se libertam das condições de imersão na “aura” inibitória. Esta interferência explicava admiravelmente o fato de que o Espírito comunicante, apenas chegado a uma condição de liberação suficiente a lhe permitir recordar-se, embora ainda se encontrasse fracamente vinculado à médium, logo se aproveitava dessa circunstância para transmitir aos experimentadores os nomes e pormenores pedidos.

Observarei a esse propósito que os Espíritos que se comunicavam por intermédio da Sra. Piper repetidamente explicavam que as lacunas em suas comunicações provinham das condições em que ficavam no ato de se comunicarem, condições que os punham num estado mais ou menos acentuado de perturbação e apoucamento psíquico. Os opositores, porém, não estavam, em verdade, dispostos a acolher como boas as razões dos Espíritos e, por isso, ao contrário, concluíam que essas presumidas explicações não passavam das costumadas “desculpas chochas”, preparadas pelas personalidades subconscientes para, de qualquer modo, justificarem as flagrantes deficiências das suas insulsas personificações mistificadoras.

Ora, precisamente do ponto de vista desta objeção, que ressurge sem cessar – objeção quase sempre gratuita e insustentável, mas praticamente irrefutável, como o são todas as hipóteses que se erguem no vácuo –, precisamente por isso é que as experiências aqui consideradas adquirem notabilíssimo valor teórico, porquanto, desta vez, a dita objeção não se lhes pode aplicar, atento que, havendo sempre os Espíritos, no nosso caso, conseguido desempenhar suas funções de mensageiros, não precisaram recorrer às “chochas desculpas”, para justificar-se de não terem-nas desempenhado. Recorreram, sim, à mesma explicação, mas limitando-a à circunstância secundária das lacunas e inexatidões com que eram transmitidas as referidas mensagens. Ora, não há quem não veja que a questão se torna assim muitíssimo diversa: no primeiro caso, semelhante explicação podia passar por uma “desculpa chocha”, visto faltarem dados que a justificassem; no segundo caso, ao contrário, os dados incontestavelmente existem, ou, melhor, trata-se, pura e simplesmente, de uma comprovação de fato, porquanto, se as mensagens eram transmitidas, apresentando-se, porém, muitas vezes, inexatas, o que se seguia era que, existindo as inexatidões, cumpria fossem explicadas e que a explicação não podia ser dada, senão do modo indicado pelas personalidades que se comunicavam. Quer dizer: elas esqueciam, em parte, o texto exato das mensagens que lhes eram confiadas, logo que saíam da “aura” dos médiuns, ou, inversamente, ficavam sujeitas a uma amnésia parcial das suas lembranças pessoais, mal imergiam na “aura” inibitória dos aludidos médiuns. Por conseguinte, aqui, agora, longe de se ter de considerar a explicação ministrada pelas personalidades mediúnicas, como “chocha escusa”, ela é a única que se pode formular em semelhantes contingências. Repito: é a única explicação que se pode formular e não pode haver outras e o repito, porque tal circunstância de fato assume valor resolutivo, no sentido da explicação espirítica dos fatos.

Resta considerar uma última objeção possível, embora inaplicável à série de experiências em apreço, porque não enfrenta as modalidades que essas experiências revestem. Nada obstante, não será ocioso discuti-la sumariamente, visto que pode parecer justa ao critério de alguns.

A ninguém escapará que, nas mensagens mediúnicas acima apreciadas, se observa a particularidade, teoricamente importantíssima, de mediarem largos espaços de tempo entre o momento em que eram formuladas e o em que chegava a seu destino, o que desde logo exclui a interpretação telepática dos fatos: Poder-se-ia, entretanto, objetar que as referidas mensagens ainda são suscetíveis de explicar-se mediante a hipótese suplementar da “telepatia retardada”, segundo a qual a mensagem transmitida de um a outro dos grupos de experimentadores chegaria regularmente ao seu destino, no momento mesmo em que era formulada; mas permaneceria latente nas subconsciências dos médiuns, para daí emergirem na primeira ocasião.

Não é caso de me demorar a discutir e analisar uma hipótese que se mostra literalmente gratuita e fantástica, desde que o intervalo de tempo transcorrido entre a emissão e a recepção de um impulso telepático exceda de uma hora. Limitar-me-ei, portanto, a demoli-la valendo-me dos fatos e, para consegui-lo, bastar-me-á comentar o último episódio relatado acima, do qual ressalta que o Espírito comunicante se manifesta, uma primeira vez, vinte quatro horas depois de formulada a mensagem, declarando que recebera a incumbência de transmitir uma mensagem, mas que a esquecera, mensagem que cinco dias depois ele consegue transmitir. Pondero a propósito, que, se com a hipótese de uma amnésia transitória, consecutiva ao ato da comunicação, se explicam exaustivamente essas circunstâncias de fato – conforme em tempo demonstrei – recorrendo-se, ao invés, à hipótese da “telepatia retardada”, não se lograria, com efeito, compreender que a subconsciência da médium, presumida receptora da mensagem que permaneceu latente, não a tenha, logo da primeira vez, vertido de pronto ao experimentador, em lugar de esperar, para revelá-lo, que transcorressem cinco dias. Mas, não é tudo, dado que, para os propugnadores da “telepatia retardada”, o episódio em foco oferece outro obstáculo formidável. Quem, de fato, entre os opositores, ousaria sustentar que a “telepatia retardada” haja podido manifestar-se, numa primeira ocasião, ditando: “Eu tinha de comunicar-te alguma coisa, mas esqueci-a.” É claro que uma mensagem telepática chega, ou não chega; mas... não se desculpa por não haver chegado!

Concluindo: como já evidenciamos, a única hipótese naturalística que se poderia invocar para dar explicação às experiências acima referidas é a hipótese telepática, considerada a telepatia nas suas várias modalidades de manifestação, modalidades que no nosso caso teriam tomado a semelhança de comunicações mediúnicas entre vivos. Contudo, vimos que a análise cuidadosa dos fatos patenteou luminosamente que nenhuma das modalidades pelas quais se manifesta a telepatia chega a explicá-las.

Deve-se, pois, convir em que a série de experiências examinadas constitui outra memorável prova da independência espiritual das personalidades mediúnicas, com relação aos médiuns dos quais elas se servem. Assim, também, esta série de experiências adquire o valor de ótima prova cumulativa, a acrescentar-se às outras que convergem, como para um centro, para a demonstração da existência e da sobrevivência do espírito humano e, já agora, com exclusão dos casos de identificação espirítica, dependentes dos pormenores que forneçam os defuntos que se comunicam. Sublinhei este último período, porque devo advertir, a propósito, que o presente trabalho de síntese, empreendido para demonstrar a Grande Verdade contida na fórmula – o Animismo prova o Espiritismo, tem por objetivo final preparar o terreno para chegar à demonstração, baseada nos fatos, de que a prova científica da sobrevivência também se pode conseguir com exclusão dos casos de identificação espirítica fundados nas informações pessoais fornecidas pelos defuntos que se comunicam. Essa demonstração começa a surgir prematuramente da série de experiências em apreço e o cabedal de fatos que ainda me restam para discutir a elas vos conduzirá lentamente, diretamente, necessariamente, como se verá no último capítulo deste livro.

Isto posto, faço notar, de outro ponto de vista, que tudo concorre para demonstrar que as experiências a que me refiro, consideradas paralelamente a outras da mesma natureza, assim como a muitas de categoria diversa, mas que convergem para a mesma conclusão, levam a considerar-se cientificamente dissipada, com fundamento nos resultados da análise comparada e da convergência das provas, uma das maiores dúvidas teóricas inerentes à questão fundamental que defronta as provas de identificação espirítica, dúvida que consiste no fato da existência de lacunas inexplicáveis nos pormenores que os Espíritos que se comunicam fornecem, lacunas essas cujas causas, já agora descobertas e escalpeladas, conduzem à certeza científica. Assim é porque, nas experiências aqui consideradas, pusemo-nos na condição de comparar as mensagens confiadas pelo “mandante” às personalidades mediúnicas com as ditadas ao destinatário pelas mesmas personalidades. Tinha eu, portanto, razão para afirmar que na série de experiências relatadas sobressaíam especiais particularidades de manifestação que revestiam um valor teórico de primeira ordem.

*

Para exaurir o tema, falta-me mostrar que há casos de mistificações espiríticas que, embora explicáveis pela emergência da “camada onírica subconsciente”, poderiam ter, na realidade, uma origem diversa, observação esta que encontra curiosa ilustração no seguinte trecho de diálogo mediúnico, que extraio das clássicas experiências do Prof. Ochorowicz com a médium senhorita Stanislawa Tomczick. O professor iniciara um dos interrogatórios que costumava dirigir à personalidade mediúnica da “pequena Stásia” com o propósito de obter esclarecimentos acerca dos fenômenos produzidos. Dessa vez a “pequena Stásia” se havia materializado e se fotografara a si mesma, colocando-se diante da objetiva e provocando um vivíssimo relâmpago mediúnico. Em dado momento, o professor, que persistia na opinião de que a “pequena Stásia” era o duplo da médium, sem embargo do testemunho fotográfico que contradizia semelhante opinião, perguntou-lhe:

“– Tu existias antes do nascimento da “grande Stásia” (a médium)?

– Existia; mas, não me deves fazer tais perguntas, se não queres que te responda com mentiras. Bem que eu gostaria de revelar-vos tudo; mas não me é permitido fazê-lo.

– Por que?

– Não o perguntes. Provavelmente, porque, se revelássemos tudo, provocaríamos no mundo um revolvimento social por demais violento.

– Diga-me ao menos quem te proíbe que fales.

– Não o perguntes.” (Annales des Sciences Psychiques, 1909, pág. 201).

Como esclarecimento desse diálogo, cumpre informar que o Prof. Ochorowicz chegara a arrancar à “pequena Stásia” algumas informações vagas acerca do seu ser, segundo as quais ela seria um Espírito que nunca encarnara na Terra e que aguardava a sua vez, se bem que pouco desejosa de renunciar à livre existência de espírito.

Dito isto, assinala a circunstância nada comum de uma personalidade mediúnica declarar explicitamente que, se insistissem em saber demais, acabaria pregando mentiras, resposta curiosa e perturbadora, mal grado à manifesta circunspeção das personalidades em jogo, e que põe de prevenção o interrogante contra tudo o que o espera se não desistir dos seus propósitos excessivamente indagadores. Muitas coisas essa resposta explicaria e dissiparia muitas dúvidas do mediunismo teórico porquanto reclamaria a seu turno uma explicação, visto que não compreenderia a necessidade de recorrer a mentiras quando em tais circunstâncias bastaria replicar do modo que o fez a “pequena Stásia”, isto é, ponderando não lhe ser permitido responder a perguntas indiscretas. Ao mesmo tempo, a expressão usada pela personalidade mediúnica, de que “não lhe era permitido fazê-lo”, implicaria a existência de entidades espirituais superiores, reguladoras dos destinos humanos, a cujos decretos se submeteriam os Espíritos de grau inferior, ainda capazes de se comunicarem mediunicamente com os vivos.

Quantos mistérios a desvendar! Dentre eles, destaco este: há entidades espirituais superiores que interdizem aos Espíritos que se comunicam a revelação de certos segredos do Além, para os quais a Humanidade não está preparada, ficando subentendido que as mesmas entidades permitem a esses Espíritos que supram com mentiras a curiosidade dos vivos. Assim sendo, ter-se-iam de inferir que, em certas contingências, também as mentiras se justificam, no sentido, talvez, de que resultem propícias à evolução ordenada e regular das disciplinas metapsíquicas, por exercerem uma benéfica influência moderadora sobre a difusão dessas disciplinas no seio das massas, influência que de outra forma se não conseguiria, do mesmo modo que a evolução biológico-psíquica das espécies não pode ser conseguida senão com a intervenção do fator Mal, em perpétuo contraste com o fator Bem.

Quando assim fosse, dever-se-ia dizer que, para as vicissitudes evolutivas da nova Ciência da Alma, também teriam sua razão de ser as mentiras proferidas pelas entidades espirituais inferiores, em circunstâncias especiais, porquanto desorientariam os experimentadores demasiado crédulos, obrigando-os a meditar e a aprofundar ulteriormente o tema, determinando paradas providenciais no progresso das pesquisas psíquicas, obstando às convicções intempestivas, baseadas em fé cega, com grande vantagem para os métodos de pesquisa cientifica, e, sobretudo, esconjurando o perigo de um “revolvimento social muito violento”, como infalivelmente se daria, se a nova orientação do pensamento ético-religioso houvesse de impor-se com perniciosa rapidez às massas não preparadas. Bem-vindas são, por conseguinte, as mistificações espiríticas e as fraudes inconscientes e conscientes dos médiuns, quando atuam como freios moderadores sobre a rápida e imprudente corrida a que facilmente se entregariam alguns núcleos, excessivamente impulsivos, do novo exército do Ideal.

Como quer que seja, o fato é que as mistificações e as mentiras da natureza indicada se dão freqüentemente nas manifestações mediúnicas e, assim sendo, nada obsta a que se atribua a gênese de umas e outras às causas assinaladas, isto é, de uma parte aos surtos freqüentes do “elemento onírico-subconsciente” nos sensitivos e, de outra parte, a mistificações do Além, às vezes produzidas voluntariamente pelas personalidades mediúnicas, com objetivo de disciplina espiritual e para salvaguarda da ordenada evolução espiritual humana, afastando o perigo de uma reforma excessivamente precipitada de instituições religiosas milenares, reforma que, ao contrário, deve operar-se com muita lentidão, com muita prudência, de forma muito conciliatória, de sorte a preparar-se simultaneamente a reconstrução do novo Templo de Deus.

Assim, não será ocioso tomar nota deste outro ensinamento extraído da análise comparada dos fenômenos anímicos com os fenômenos espiríticos.

*

Depois desta longa mas oportuna digressão, volto ao assunto, para referir um último episódio tomado às experiências de William Stead, episódio que ocorreu com uma pessoa que ignorava fizesse ele experiências de comunicações mediúnicas entre vivos e que não lhe estava vinculada por especiais relações de parentesco ou de simpatia. Escreveu ele:

“Há alguns meses, achava-me eu em Redcar, no norte da Inglaterra, e tinha de ir à estação para receber uma senhora estrangeira, colaboradora da Review of Reviews e que me escrevera dizendo chegaria pelas três horas da tarde. Eu era hóspede de meu irmão, cuja casa ficava a cerca de dez minutos da estação. Quando faltavam 20 minutos para as três, veio-me à mente que, com a expressão “pelas três horas”, a senhora em questão houvesse querido indicar algum tempo antes daquela hora e, como não dispunha de horário da estrada de ferro, dirigi o pensamento para a mencionada senhora, pedindo-lhe me informasse, por intermédio da minha mão, qual a hora exata em que devia chegar o trem. Faço notar que semelhante experiência se realizou sem que tivesse havido entre nós qualquer entendimento a respeito. Ela imediatamente respondeu à minha pergunta mental, escrevendo, antes de tudo, o seu próprio nome e informando, em seguida, de que o trem devia chegar dez minutos antes das três. Não havia tempo a perder; mas, antes que saísse para recebê-la, deliberei perguntar em que estação ela se encontrava naquele momento. Minha mão escreveu: “Estamos parados na estação de Middlesborough e viemos da de Hartlepool.”

Saí à pressa e, chegando à estação, fui ver a tabela dos horários, para me certificai da hora precisa em que chegaria o trem esperado. Vi assinalado: 2:52 horas. Mas o trem vinha com atraso e, quando deram 3 horas, ainda não chegara. Transcorreram mais cinco minutos sem nenhum indício de que o trem se aproximava. Tomei então de uma folha de papel e de um lápis e perguntei mentalmente à viajante em que ponto da linha se achava. Ela para logo escreveu o próprio nome e informou: “Neste momento o trem faz a curva que precede a estação de Redcar. Dentro de um minuto aí estaremos.” – Perguntei: “Como se explica tão grande atraso?” – Respondeu: “Fomos detidos longamente na estação de Middlesborough, sem que eu saiba o motivo.” – Meti a folha de papel no bolso e encaminhei-me para a plataforma; o trem surgia, a distancia. Quando a senhora desceu, fui-lhe ao encontro, perguntando: “Porque tanto atraso? Que aconteceu?” – Respondeu ela: “Não sei por que motivo, mas o trem esteve parado longo tempo na estação de Middlesborough. Parecia não querer mais sair.” – Dei-lhe então a ler a folha de papel que trazia no meu bolso.”

(Segue-se o testemunho da senhora de quem se trata, assinado com o seu próprio nome de Gerda Grass. Proceedings of the S. P. R., vol. IX, pág. 59).

No episódio acima, é patente a autenticidade do fenômeno de comunicação mediúnica entre vivos, como é também patente o fato de desenvolver-se nele uma verdadeira e real conversação, que não poderia, de certo, explicar-se pela hipótese das “dramatizações subconscientes”, tendo-se em vista as considerações precedentemente formuladas. Antes, o próprio episódio torna oportuna uma ulterior discussão para esclarecimento do asserto de que, quando uma pessoa entra em relação psíquica e em conversação mediúnica com outra que se acha distante, tem de pôr-se em condições de fugaz modorra, ou de “ausência psíquica”, manifesta ou larvada, o que pareceria conciliar-se pouco com o fato de ter tido, a conhecida de William Stead, de responder em dois tempos diversos às perguntas deste, e de havê-lo feito imediatamente em ambas às circunstâncias. Daí decorrem as seguintes questões: Será licito admitir-se tanta presteza na passagem do estado normal à condição de inconsciência e vice-versa? Será lícito admitir-se que a pessoa com quem isso se dê não tenha conhecimento do que lhe sucede? Pareceria que sim. Durante a conferência de William Stead na sede da London Spiritualist Alliance, essa questão veio à baila e o Rev. G. W. Allen narrou, a propósito, o seguinte incidente pessoal, que tende a demonstrar aquelas possibilidades. Disse ele:

“Tendo de sujeitar-me à extração de dois molares, aconselharam-me que me submetesse à ação do clorofórmio. Como me achasse convalescente de uma enfermidade grave, a dúvida sobre se, em tais condições de saúde, o clorofórmio não me seria prejudicial, fazia-me hesitar. Quando começaram a administrar-me o narcótico, fui presa de penosa aflição, pelo que arranquei a máscara, exclamando: “Não resisto; não quero aspirá-lo.” O doutor encarregado da anestesia ponderou: “O senhor fez muito mal em tirar a máscara, pois estava quase a adormecer. Experimente de novo e lhe asseguro que tudo correrá bem.” Também a enfermeira a seu turno me animava. Decidi então me submeter à prova, embora houvesse de sucumbir. Ajustaram-me novamente as máscaras. e respirei profundamente várias vezes. Logo, porém, ergui-me de um salto e me sentei na cama, declarando: “E inútil insistirem; não posso adormecer.” – Disse o doutor: “Peço-lhe, lave a boca com esta solução.” – Perguntei: “Por quê?” – Respondeu ele: “Porque os dentes já lhe foram extraídos.” – Pois bem: eu juraria, perante qualquer Tribunal de Justiça, que nem por um só momento estivera inconsciente. Entretanto, permanecera inconsciente todo o tempo que fora necessário à extração dos dois dentes! – Isto posto, não é perfeitamente admissível que possamos de fato achar-nos noutra condição de existência por tempo mais ou menos breve, sem que disso nos apercebamos?” (Light, 1893, pág. 142).

Este incidente pessoal, narrado pelo Rev. G. W. Allen, é muito instrutivo e me parece bastante a demonstrar a possibilidade de uma pessoa passar a condições de sonambulismo, mais ou menos vígil, durante o período de uma comunicação mediúnica entre vivos, sem absolutamente se recordar do acontecido. Dever-se-ia acrescentar: e sem que dêem por isso as pessoas presentes, uma vez que, mesmo quando um interlocutor percebesse no seu companheiro um estado fugaz de “ausência psíquica”, não lhe poderia atribuir importância especial, porquanto isso normalmente ocorre em períodos momentâneos de concentração do pensamento, estado esse confundível em tudo com os casos de outra natureza aqui considerados.

Teoricamente, são muito importantes as considerações expendidas, porquanto se prestam a elucidar um caso recentemente sucedido de “comunicações mediúnicas entre vivos”, caso a que precedentemente aludi e do qual quiseram fazer uma espécie de “espantalho” a agitar-se com insistência diante dos propugnadores da hipótese espirítica. Isso apenas demonstra que os que assim se comportam conhecem muito pouco o assunto sobre que discutem, visto que os casos de manifestações de vivos, análogos ao a que nos referimos, se contam por centenas na coletânea metapsíquica, já tendo eu publicado uma longa série dos mais escolhidos, numa como monografia, tirando deles conclusões diametralmente opostas às conclusões fantásticas dos antiespíritas.

Cingir-me-ei, portanto, a discutir rapidamente o famoso caso Górdon Davis, obtido pelo professor Soal com a médium de voz direta Sra. Blanche Cooper e publicado nos Proceedings of the S. P. R., vol. XXXV, págs. 560-580.

O próprio professor o resume nestes termos:

“Trata-se de um caso em que, pela voz direta, se comunicou espontaneamente uma personagem julgada morta pelo experimentador. Essa personagem reproduziu de maneira mais ou menos exata a tonalidade da sua voz, a acentuação das palavras, o seu modo característico de exprimir-se. Além disso, descreveu episódios da sua meninice, conhecidos do experimentador, acrescentando dois ou três incidentes que este último ignorava. E, mais do que tudo, interessante é o fato de haver feito uma descrição precisa das circunvizinhanças e da arrumação interior de um apartamento em que iria habitar um ano depois. Mais ainda: remontando ao passado, referiu-se com exatidão ao ambiente em que pela última vez se encontrara com o experimentador, repetindo, em substância, a conversação em que então se empenharam. Finalmente, conduziu-se como se fora um defunto desejoso de mandar uma mensagem de conforto à esposa e ao filho. A seu tempo, porém, o experimentador veio a descobrir que a dita personagem ainda era viva e, por meio de um diário de negócios que esta última possuía, chegou a saber também, com precisão, o que ela fazia quando se realizaram as duas sessões mediúnicas em que se manifestara.”

Este último pormenor acerca do caso em apreço, o de achar-se Górdon Davis, de ambas as vezes em que se manifestara mediunicamente, no seu próprio gabinete a falar de negócios com alguns clientes, é o a que atribuem grande valor teórico os opositores, dizendo que, se assim era, não podia tratar-se de autêntica manifestação de vivos, inferência que, por lei de analogia, se deveria ter aplicado a manifestações análogas dos defuntos. Apresso-me, portanto, a observar que os diálogos verificados no caso do vivo Górdon Davis, sendo de brevíssima duração – que de certo não excedeu de um minuto – autorizam a aplicar-se a esse mesmo caso as considerações sugeridas pelo incidente ocorrido com o Rev. Allen, isto é, que, se naquele breve lapso de tempo o vivo Górdon Davis houvesse estado nas condições de “ausência psíquica”, não só ele próprio não houvera dado por isso, como também não o teriam percebido os clientes com quem tratava de negócios, porquanto estes considerariam aquele seu estado como de recolhimento, para refletir antes de pronunciar-se sobre o assunto que se debatia.

Quanto às outras circunstâncias enumeradas pelo Prof. Soal no resumo acima reproduzido, nenhum valor teórico apresentam em sentido negativo e ninguém manifestou o propósito de utilizá-lo nesse sentido. Importa, no entanto, esclarecer alguns pontos de tais circunstâncias. O primeiro a elucidar-se é que, manifestando-se pela voz direta, o comunicante demonstrou positivamente que se cria defunto. Explica o Professor Soal que ele próprio acreditava que Górdon Davis morrera na guerra e acrescenta:

“Semelhante dramatização mediúnica de um vivo, em que este, preciso e exato nos pormenores pessoais que forneceu, cria estar defunto, se poderia explicar supondo que tal idéia lhe fora sugerida pelas convicções espíritas da médium que, a seu turno, teria recebido falsas informações acerca da mentalidade do experimentador.. Mas, será esta a verdadeira interpretação dos fatos? A esse propósito, cumpre se leve em conta a circunstancia de não haver o comunicante fornecido detalhe especial sobre o fato da sua morte...”

Por minha conta, acho que a hipótese do Professor Soal, conquanto legítima, não se adapta perfeitamente ao caso em exame, porquanto, se analisam e comparam outros casos do mesmo gênero, em que se depara com o mesmo erro de supor-se que são defuntos os comunicantes, é-se levado a deduzir que, mais de acordo com as modalidades sob as quais os fatos se produzem, seria o presumir-se que são os próprios comunicantes que se julgam colhidos de improviso pela morte, visto que, achando-se em condições mais ou menos incipientes de “bilocação”, com relativa desorientação psíquica, não podem eles deixar de crer que desencarnaram subitamente. São em bom número os casos que autorizam essa interpretação; aqui, porém, citarei um só, relatado pelo Professor Schiller, no Journal of the S. P. R. (1910, pág. 87) e obtido com a Sra. Piper. Trata-se de uma anciã, enferma, de “demência senil”, sujeita a breves crises de “transe”, durante as quais se manifestava mediunicamente, à distância, discorrendo sobre interesses familiares, demonstrando-se na plena posse das faculdades mentais, excetuada a circunstância de supor-se morta, quando, entretanto, os experimentadores a sabiam viva e demente. Daí se segue que, neste caso, é mais verossímil presumir-se que a comunicante, por se achar temporariamente em ambiente espiritual e, aí, de posse da razão, lembrando-se de haver estado enferma e demente, haja racionalmente concluído que desencanara. A esse propósito, observa o professor Schiller:

“... Este caso suscita induções teóricas de natureza muito importante. Dir-se-ia que a nossa consciência pessoal, ou, mais precisamente, o que se denomina a alma, não se acha tão estreitamente vinculada ao corpo nas suas manifestações – conforme se há sempre suposto – e que também não é inteiramente uma representação das funções do corpo, como pareceria não só racional, mas cientificamente “ortodoxo” supor-se. Em outros termos: o órgão cerebral poderia funcionar de modo tão incoerente que irresistivelmente sugerisse a anulação da alma, quando, ao contrário, poderia dar-se que a alma, em tal momento, leve uma vida independente, noutra “esfera”, ou “plano” de existência, embora não cheguem a exprimir essas suas novas condições de vida por meio de um órgão cerebral, cuja posse, em sentido prático, já ela não tem...” (Loc. cit., pág, 91).

Faço notar que as considerações racionais do professor Schiller, baseadas no fato de “não se achar a alma, em suas manifestações, tão estreitamente vinculada ao corpo, conforme sempre se supôs”, não só subentendem tudo quanto tive de expor com relação ao caso em apreço, como se revelam conformes à mais provável interpretação do mesmo caso, em que tudo concorre para demonstrar que, fundamentalmente, se tratava de um episódio mais ou menos incipiente de “bilocação”, ou, se o preferirem, de “psicorragia” – para usar o neologismo proposto por Myers –, segundo o qual nos acharíamos por vezes em presença de “um elemento psíquico posto de súbito em liberdade”, o que implicaria uma “excursão psíquica”, ou uma “invasão” de qualquer coisa de psiquicamente substancial que tem “alguma relação com o espaço”. No caso Górdon Davis, dever-se-ia dizer que essa “invasão psíquica” se revelara suficientemente para combinar-se com os fluidos que a médium exteriorizara, manifestando-se individuada na voz direta.

Assim sendo, tudo isso serviria para explicar a circunstância de haver “Nada” – o Espírito-guia da médium – interrompido duas vezes a comunicação mediúnica, para observar que o Espírito que se comunicava era forte demais para o médium e que, por conseguinte, esta sofria fisicamente com a manifestação. De fato, ao fim da sessão a médium acusou delíquio e cefalalgia, sintomas que antes jamais experimentara. Resultou daí que, na segunda sessão. “Nada” não permitiu mais que o Espírito de Górdon Davis se comunicasse diretamente, encarregando-se ele próprio de interrogá-lo (ouviam-se os sussurros da conversação entre Espíritos), para, em seguida, transmitir as respostas ao experimentador. Ora, o fato de ser o Espírito Górdon Davis forte demais para o médium dá lugar a supor-se que isso acontecia devido à “invasão psíquica” de um Espírito encarnado, levando consigo elementos psíquicos fortemente impregnados de fluidos terrenos. Note-se que “Nada” não percebera que se tratava de um vivo, erro com que se depara em outros casos do mesmo gênero; mas, nem sempre é assim, pois que, ao contrário, os Espíritos-guia distinguem quase sempre o vivo do defunto, por causa da densidade do corpo etéreo do primeiro.

Um segundo ponto a esclarecer é o que se refere ao incidente de ordem precognitiva em que a comunicante descreve não só a casa que iria habitar um ano depois, como também a disposição dos móveis nos aposentos e os objetos colocados sobre os móveis, coisas todas essas não apenas inexistentes, de fato, no momento das suas manifestações, mas inexistentes também no pensamento daquele que se comunicava. Trata-se, pois, de interessante fenômeno pré-cognitivo, igualmente embaraçoso, não tanto, porém, do ponto de vista espiritualista, como do ponto de vista genérico da inconceptibilidade dos fenômenos de precognição, os quais, entretanto, são os que melhor se têm averiguado experimentalmente, em toda a fenomenologia metapsíquica. Do ponto de vista aqui considerado, observo que os fenômenos dessa natureza se produzem com discreta freqüência nas comunicações dos vivos, o que não é de causar espanto, dado que, depois das magistrais pesquisas do Dr. Osty nesse campo, pode considerar-se demonstrado cientificamente que a personalidade integral subconsciente tem conhecimento das vicissitudes futuras a cujo encontro vai a personalidade consciente, se bem que, normalmente, aquela não possa ou não queira prevenir dessas vicissitudes a segunda. Formidável mistério, perturbadoras conclusões filosóficas e cientificamente absurdas, o que, entretanto, repito, não impede sejam verdadeiras. Mas, não é este o momento de discutir tão árduo tema.

A título de corroboração, passo a relatar, em resumo, outro caso do mesmo gênero.

A Sra. Florence Marryat, no livro There is no death (Não há morte), narra que num círculo experimental de amigos seus, o Espírito-guia afirmara que se podia levar a sessões Espíritos de vivos, em condições de sono. Como fosse noite alta, pediram ao Espírito-guia que levasse à sessão a Sra. Marryat e o fenômeno se operou em menos de um quarto de hora. Seu Espírito, porém, se mostrava presa de grande agitação e não cessava de repetir: “Deixai que me vá embora. Grande perigo paira sobre meus filhinhos! Preciso voltar para junto deles.” – Ora, aconteceu que, no dia seguinte, um cunhado da Sra. Marryat, voltando do tiro ao alvo, deixou que um filhinho daquela senhora lhe apanhasse o fuzil, do qual partiu de improviso um tiro, indo a bala cravar-se na parede a dois dedos acima da cabeça de sua irmã mais velha, que ali se achava sentada. Marryat, estupefata, pergunta a si mesma: “Mas, como pude conhecer o acontecimento na noite precedente à sua realização?” – Mistério impenetrável, certamente, tanto mais que dessa vez se tratava de um fato acidental, ainda mais inconcebível portanto, do que o episódio referente à casa futura de Górdon Davis. Entretanto, a personalidade integral subconsciente de Marryat estava dele informada. Por que? De que modo? Quem o sabe!

De outro ponto de vista, observo que o episódio citado guarda afinidade com outro aqui considerado, também pela circunstância de que em ambos os casos teriam sido os Espíritos-guia os condutores do Espírito de um vivo à sessão. Ressalta, com efeito, que, no caso de Górdon Davis, se manifestou, antes de tudo, o irmão defunto do experimentador, a expressar-se nestes termos: “Sam, eu trouxe aqui alguém que tu conheces.” – Ora, esta circunstância, no caso especial, se revela importante também no sentido de prestar-se a elucidar a questão implícita no fato de manifestar-se um vivo que, não sendo amigo íntimo do experimentador, dificilmente poderia explicar-se por meio da vontade subconsciente deste último a se fazer sentir sobre aquele, como acontecia nas experiências de William Stead, nas quais a sua vontade consciente era que determinava o estabelecimento da relação psíquica com as pessoas convidadas a conversar com ele por intermédio de sua mão. Assim, não há dúvida de que tenha sido por iniciativa do Espírito do irmão do experimentador que o do vivo Górdon Davis se manifestou e, em tal caso, a questão em apreço estaria resolvida, porquanto deveria inferir-se que a relação psíquica se estabelecera por intermédio de um defunto.

A este propósito, não será ocioso acrescentar que o irmão defunto do Professor Soal ministrara admiráveis provas de identificação pessoal, indicando, entre outros, o fato preciso de haver, quando menino, enterrado uma medalha, que foi efetivamente encontrada, mediante escavações, no ponto indicado. Aliás, também o Professor Soal admite o valor probante dos dados fornecidos por seu irmão defunto e a Sra. Sidgwick, à sua vez, escreveu sobre isso àquele professor: “Não me recordo se lhe disse quão impressionantes são as provas em favor da sobrevivência da memória de seu irmão e, acrescento, mesmo prescindindo-se dos episódios da “medalha enterrada” e do “panorama visto de River Church...” (Light, 1926, pág. 80).

Tais declarações aumentam a eficácia da solução proposta para o incidente em foco, no sentido de que, se se admitir a presença real do irmão defunto do Professor Soal no local da reunião, a afirmação, por ele feita, de ter levado ali alguém que o irmão vivo conhecia adquire equivalente valor probante.

E a circunstância do vivo que se comunicava haver reproduzido, “mais ou menos exatamente, a tonalidade da sua voz, a acentuação que costumava dar às palavras e o seu modo característico de exprimir-se...”, essas circunstâncias notabilíssimas, combinadas com o fato de estar o vivo, naquele momento, em estada de vigília, ignorando o que se passava à distância, tende a reforçar a hipótese de Myers, segundo a qual, nas comunicações dos vivos, nos acharíamos às vezes em presença da “irrupção de um elemento psíquico posto em liberdade”, o que implicaria uma “excursão, ou invasão psíquica” de qualquer coisa de psíquico e fluídico, que tem “relação com o espaço”. De fato, as circunstâncias expostas tendem a demonstrar a presença real, no local da sessão, de elementos mais ou menos individuados da personalidade integral subconsciente do comunicante, tanto mais se ele se revela capaz de vaticinar incidentes do seu próprio futuro.

Nessas condições, dever-se-ia inferir também que o fenômeno das comunicações mediúnicas entre vivos se produz sempre, é certo, em forma de uma conversação entre duas personalidades integrais subconscientes, mas que é suscetível de produzir-se sob duas modalidades diversas, uma das quais, a mais freqüente, consistiria numa conversação, à distância, entre as personalidades subconscientes em questão; a outra, mais rara, consistiria, ao contrário, numa conversação das ditas personalidades, achando-se ambas no mesmo local, em conseqüência da manifestação e da intervenção, na própria sessão, de elementos psíquicos e fluídicos suficientemente individuados do “corpo etéreo” do vivo ausente dali. Tratar-se-ia, portanto, de um fenômeno incipiente de “bilocação”.

Com o que acabo de expor, creio haver passado em revista todas as modalidades teoricamente importantes sob as quais se desenvolveu o muito famoso caso Górdon Davis, o qual, longe de constituir exceção, é, ao contrário, análogo a muitos outros que se têm produzido um pouco por toda parte, salvo a particularidade, com que se fizeram fortes os opositores da hipótese espírita, de que, quando o suposto Górdon Davis se comunicava mediunicamente, o Górdon Davis autêntico se achava no seu escritório, em condição de vigília, a conversar sobre negócios com alguns clientes. A esse propósito se há visto que o incidente de inconsciência ocorrido com o Rev. A1len demonstra que uma pessoa pode ficar nesse estado sem de tal se aperceber e sem que de tal se apercebam as pessoas presentes, de modo a poder-se concluir nesse sentido também com relação ao caso Górdon Davis.

Estabelecido este ponto, pondero que bem longe se acha de estar provado que Górdon Davis se encontrasse em estado de completa vigília nos dois brevíssimos espaços de tempo em que se comunicou mediunicamente, à distância. Em realidade, apenas se chegou a reconhecer que assim podia ser, pela existência de um canhenho em que Górdon Davis anotava diariamente as suas transações; mas ninguém seria capaz de dizer de que modo se desenvolveram as duas transações em apreço.

Não há quem não veja que, numa longa consulta de tal gênero, possam dar-se ligeiros incidentes de toda espécie, que impeçam o cliente de perceber um estado passageiro de “ausência psíquica” do interlocutor que, ao demais, poderia ter saído e entrado de novo, para uma consulta ao seu arquivo, ou para uma necessidade de outra natureza, ou que o cliente poderia ter estado, durante algum tempo, absorvido pela leitura de um documento, ou por um cálculo de algarismos, circunstâncias todas estas muito insignificantes para não se apagarem prontamente da memória de quem a elas esteve sujeito, sobretudo se só houvessem de ser evocadas um ano depois. Seja como for, também a esse propósito assinalo que no caso em questão os clientes não foram consultados. Postas as coisas nestes termos, como se poderia afirmar que na brevíssima duração das duas manifestações, à distância, Górdon Davis se achasse em condições de autêntica vigília e não num estado passageiro e imperceptível de “ausência psíquica”?

E aqui, comprovando a possibilidade de estar-se, no caso de que se trata, em presença da “irrupção de um elemento psíquico, posto em liberdade”, da personalidade consciente de Górdon Davis, cabe reproduzir este trecho do relato do Prof. Soal:

“Importa notar que o Górdon Davis que se manifestou nessa sessão não parece ser o Górdon Davis que eu conheci, como menino de colégio, mas o Górdon Davis de 1916. A acentuação das palavras e o modo característico de exprimir-se, reproduzidos na sessão, não me lembravam o Górdon Davis que eu conhecera na escola, porém o outro, com quem me encontrei quando era cadete militar. E é muito de notar-se que, quando Davis alude às recordações da sua existência de menino, usa expressões de moderníssima feitura, como a de Brighter Geography. Duvido muito que esta última expressão fosse usada sequer no ano de 1916, o do meu encontro com Górdon Davis.”

Afigura-se-me que este parágrafo contém dados que na sua aparente insignificância são eloquentíssimos como demonstração da presença, no local, de uma fração autêntica da personalidade psíquica de Górdon Davis, qual era no momento em que se comunicou e não qual existia nas recordações mais ou menos antigas do Prof. Soal.

Devo observar que nas minhas classificações se encontram outros nove casos (cinco dos quais ocorridos com William Stead), em que aparece a circunstância presumível do estado de vigília nos vivos que se comunicavam; mas, ao mesmo tempo, assinalo que em nenhum deles se pode afirmar isso com segurança. Dentre esses casos, o mais interessante é o que foi narrado pelo arquiteto e arqueólogo Bligh Bond, que o obteve pela mediunidade da Sra. Margery Crandon, caso que, por muito instrutivo, merece integralmente transcrito. Escreve Bligh Bond:

“Passo a relatar um caso de comunicação mediúnica de um vivo, em que se apresentam manifestos os sinais da sua natureza verídica, ou porque o comunicante logrou identificar-se a si mesmo, ou porque confirmou a exatidão dos dados fornecidos, o que imprime caráter de certeza absoluta, no que concerne à gênese do fenômeno. Ao mesmo tempo, também desta vez o vivo que se manifesta mediunicamente demonstra não ter plena consciência de si no momento. Dir-se-ia que apenas uma porção da sua personalidade se acha em função e que tal se dá por intermédio do elemento onírico da subconsciência. Como quer que seja, o fato é que ele se manifesta precisamente sob as modalidades de alguma outra personalidade mediúnica, de sorte que, se não fossem as provas convergentes, demonstrando-lhe a identidade, o caso resultaria um dos muitos que os metapsiquistas ortodoxos classificam como “dramatizações subconscientes”, oriundas de pormenores tomados telepaticamente à mentalidade do consultante.

Na noite do primeiro do ano de 1926-27, às 21:30, ocorreu-me fazer uma experiência de escrita automática com a médium Sra. Margery Crandon. Ela segurou o lápis entre os dedos e eu pousei ligeiramente a minha mão sobre a sua, como sempre faço nas minhas experiências. Nada tendo de especial em mente, disse: “Ponderemos a quem se manifestar que nos dê informações sobre o que bem lhe pareça.” – Foi ditado:

“És gentil; assim farei... Os velhos amigos já não são esses e outro tanto se pode dizer dos costumes de certa época... Para vós, esta será uma árida noitada de Ano-Bom... Toma os mais miseráveis destes mendigos e decepa-lhes a cabeça no alto de Tor... Assim como aconteceu ao último Abade.”

De todas estas frases, a médium Margery nada podia entender. Expliquei-lhe que se tratava de uma burlesca alusão ao triste fato que se dera com o último Abade de Glastonbury. “Tor” é a colina que domina a Abadia.

Continuou assim a mensagem:

“Mas, se os monges pudessem ver os teus paus sujos, chorariam lágrimas de sangue. Refiro-me às estacas que plantaste para marcar o espaço ocupado pela antiga Abadia... E pensar-se que és um arquiteto! Vai enforcar-te nas moitas de amoras...”

Mas, quem era esse comunicante que protestava com tanta vivacidade contra as estacas alcatroadas que eu mandara plantar, como marcas das fundações por mim descobertas naquele local? As “moitas de amoras” têm um significado histórico que, naturalmente, a Sra. Margery não podia conhecer. A personalidade que se manifestava ditou outras frases chistosas e, respondendo a perguntas do mesmo gênero, informou que era um amigo a quem eu muito conhecia. Respondi que nenhuma idéia tinha sobre a sua identidade e, quando lhe perguntei o nome, disse:

“Querido Bond, isto constituirá um enigma com que principiarás o ano... Nada mais me perguntes, se não quiseres que eu responda com mentiras...”

Todavia, o amigo que se manifestava deixou-se persuadir a revelar o seu nome, que não me é permitido publicar aqui, pelo que recorro a um pseudônimo. Ele escreveu:

“Sou originário da Ilha das Maçãs e tomei a mim vigiar os teus passos.” (Assinado: Flohr).

É bem de ver que a Sra. Margery ignorava que, com a denominação de “Ilha das Maçãs”, se designava “Avalon”, isto é, a Abadia de Glastonbury, no Somerset.

Flohr continuou assim: “A Ilha bendita de Avalon. Sobre um paul os frades construíram um convento... Sou o monge teu amigo e me conheces muito bem.”

Tentei novamente obter o nome exato do comunicante, com detalhes de identificação. Ele então escreveu: “Flower” (Flor).

Este era o nome de um homem com quem eu trabalhara longo tempo na localidade indicada. Assim, ponderei-lhe: Caro Flower, tu então te manifestas durante o sono? – Respondeu: “Não é bem isso.” – Repliquei: “De todo modo, neste momento, és transportado muito longe em sonho... Ouve-me, pois: Desejo que, quando despertares, te recordes de todas as particularidades deste teu sonho atual, porquanto, neste momento, sonhas com um fato que é real. Toma nota: tens que te lembrar de todas as coisas. Prometes?...”

“Farei como pedes.”

“Neste instante tens consciência de que vieste ter comigo?”

“Aqui estou realmente.”

“Tens consciência de que teu corpo se acha mergulhado em sono?”

“Isso não sei.”

“Fará o necessário esforço para não olvidar?”

“Fá-lo-ei, se puder.”

“Escreve de novo o teu nome. A médium que empunha o lápis não te conhece. Quero que te assines com o teu nome e sobrenome, por intermédio da sua mão, pois, dessa forma, terei a certeza de que és tu mesmo e não outro quem se manifesta.”

A médium escreveu lentamente, traçando letras longas e inclinadas, o nome (substituído aqui por um pseudônimo) “Harold A. Flower”.

Nome e sobrenome perfeitamente corretos, parecendo-me característica do indivíduo a caligrafia.

Transcrevi a comunicação inteira, reproduzi exatamente o traçado da firma e enviei tudo a meu amigo Flower. Respondeu-me o seguinte:

“Recebi regularmente a tua carta com a comunicação mediúnica, que me interessou imensamente, pois que, no momento em que era ditada a mensagem, estava eu a discutir com meu cunhado, se bem já fosse noite alta, sobre a nova arquitetura norte-americana e o teu nome foi mencionado várias vezes durante a conversação. Querendo certificar-me com relação a esse ponto, pedi a meu cunhado que me reproduzisse o de que se lembrasse acerca da nossa discussão naquela noite e ele confirmou de modo preciso o que eu guardara na memória.

“Devo ao demais te dizer que, com grande espanto meu, verifiquei que a minha firma, qual a consignaste, é de tal maneira o fac-símile da minha firma qual eu a grafava há muitos anos, que, à primeira vista, julguei que a houvessem copiado de algum documento meu daquele tempo. Atualmente, assino-me com uma caligrafia notavelmente diversa, em que o M maiúsculo já não é o mesmo.

“Observo, finalmente, que meu nome “Flower”, pronunciado Flohr, como foi ditado à primeira vez, corresponde ao modo pelo qual o pronunciavam os familiares de meu pai. Isto, provavelmente, tu o ignoravas, como o ignoravam todos em Glastonbury... Quanto aos “paus sujos” a que alude a mensagem, são sem dúvida as tuas “estacas alcatroadas”, que eu, é certo, não admiro, salvo pela utilidade que têm. Tudo bem ponderado, considero notabilíssimo o incidente, visto que naquele momento eu, indubitavelmente, pensava em ti e na tua viagem à América para estudo da arquitetura americana... E tanto mais notável é o episódio, quanto, bem o sabes, sou infenso às vossas doutrinas espiritualistas...”

(Assinado): Har. A. Flower.

É absolutamente verdade que o meu amigo Flower não simpatiza com as pesquisas psíquicas. Bem poucos temos discutido esse assunto. Mas, as ruínas da Abadia de Glastonbury e a sua histórica antiguidade lhe haviam impressionado a imaginação, o que, reflexivamente, aumentara de muito as simpatias que me tinha, porquanto eu era o principal ilustrador de algumas ruínas históricas.

Levada em conta a diferença de longitude, verifica-se que, na noite em questão, ele com o seu cunhado se empenharam em discutir até às primeiras horas da madrugada, donde se pode inferir que, terminada a discussão, foram logo dormir, Em conseqüência, como os pensamentos do meu amigo estivessem orientados para a minha pessoa, de certo modo me alcançaram, porquanto não se recorda absolutamente da singular peregrinação que uma fração subliminal da sua mentalidade realizou através de três mil milhas de oceano, para apresentar ao seu amigo os votos de Ano-Bom.

Além do fato importante da correta grafia da sua assinatura qual ele a traçava dois ou três anos antes, é de acentuar-se o outro fato notabilíssimo da revelação da sua genealogia tedesca no primeiro nome que escreveu. Tenho como certo que no ambiente que ele freqüentava ninguém havia que se achasse a par disso. Eu apenas sabia que ele estivera, ou sua família, na Austrália e que desde alguns anos se estabelecera no nosso distrito para praticar o comércio. Ainda é jovem e, conquanto tenhamos sido sempre bons amigos e houvéssemos realizado entre nós algumas transações, não posso dizer que fôssemos, nalgum tempo, amigos íntimos. Como quer que seja, parece que de certo modo a sua personalidade se imprimiu na minha, ou que a minha se imprimiu na sua, dando lugar a uma espécie de “sintonização” subconsciente, que se manifestou sob algumas inesperadas modalidades, fornecendo-me abundante alimento intelectual para as minhas reflexões filosóficas. Há, porém, uma consideração que se sobrepõe claramente a todas as outras e é que se não houvesse dado o incidente do amigo Flower, que se afirmou capaz de grafar a sua firma por intermédio da mão de Margery, o caso teria parecido um desses muitos episódios que os “metapsiquistas ortodoxos” consideram produto de sugestão inconsciente da parte do consultante, visto que se conservaria ignorada, por detrás da comunicação mediúnica, a autêntica personalidade de um vivo.” (Psychic Research; 1929, página 267).

Este episódio é idêntico, em tudo, ao de Górdon Davis, exceção feita da particularidade premonitória, que, aliás, carece de importância do ponto de vista que nos interessa. Afora isso, deparam-se-nos as mesmas circunstâncias de manifestação, a começar pelo fato de se tratar, em ambos os casos, de pessoas não ligadas entre si por especiais sentimentos afetivos e que, no momento em que se manifestavam à distância, se achavam em estado de vigília e tomavam parte numa conversação. Faço notar, ao demais, que de ambos os casos ressalta a particularidade importante de fornecerem os vivos que se comunicavam detalhes pessoais ignorados pelo experimentador. Por fim, é de notar-se que, se no caso Górdon Davis o experimentador reconhece o timbre vocal do amigo na voz direta pela qual ele falava, no outro caso se verifica que o vivo que se comunicava reconhecia a autenticidade da sua assinatura, com o detalhe interessante de ser a inicial maiúscula do nome próprio escrita na forma em que ele a escrevia noutros tempos.

São, portanto, episódios teoricamente idênticos e penso que, dada esta circunstância, não se pensará em trazer à baila a “telemnesia”, mediante a qual se deveria presumir que os pormenores verídicos que se obtiveram foram extraídos, pelo médium, da subconsciência do amigo distante, para, em seguida, “dramatizá-las numa conversação fantástica”, explicação inconciliável com a circunstância de não poderem os detalhes de que se trata ser desarticulados da conversação havida, porquanto foram fornecidos em resposta a perguntas formuladas no momento. Isto demonstra que se tratava de verdadeira conversação, a desenvolver-se no presente, entre a personalidade integral subconsciente do vivo distante e o experimentador, por via da médium Margery Crandon.

A propósito, assinalo que Bligh Bond pondera que, nos casos de tal natureza, “o indivíduo que escreve não se acha presente na plena consciência de si, que presente apenas está uma fração da sua personalidade, a qual se manifesta por meio do elemento onírico subconsciente”. Ora, esta é também a hipótese de Myers e é a única que se concilia com os fatos, porquanto ajuda a explicar os erros e as falhas que com freqüência se notam assim nas comunicações dos vivos, como nas dos defuntos. Atente-se, contudo, em que, no caso vertente, o comunicante não cometeu o erro de crer-se defunto, como sucedeu a Górdon Davis.

Quanto à questão de um vivo em condições de vigília manifestar-se mediunicamente à distância, viu-se que Bligh Bond supõe, a seu turno que, como era noite alta, o vivo que se comunicava e o amigo com quem ele conversava deviam achar-se “ambos sonolentos ao findar a conversação”, o que corresponde às minhas conclusões. Por isso, repito, se assiste razão aos opositores para fazer grande caso do estado de vigília em que se encontrava Górdon Davis, porque, não se conciliando esse pormenor com a sua intervenção real na manifestação mediúnica que se produziu, o mesmo pormenor justificaria as conclusões a que eles chegam, no sentido de que tudo se deve atribuir às faculdades “oniscientes” da subconsciência; se lhes assiste razão para assumir essa atitude, o fato, nada obstante, é que, do ponto de vista científico, achamo-nos muito mais no direito de observar que o caso Górdon Davis está longe de provar que o vivo que se comunicava se encontrava realmente em condições normais de vigília, sobretudo se se considerar que a análise comparada de numerosos episódios análogos demonstra não haver casos que o provem de maneira cientificamente hábil. O caso aqui referido também não o prova, se atender a que basta um minuto de semi-adormecimento, ou de “ausência psíquica” no vivo, para legitimar a hipótese do êxodo de elementos psíquicos subconscientes, bastante individuados, para representar, à distância, a personalidade do mesmo vivo.

Recapitulando: Vimos que Bligh Bond acentua que, se não fosse o incidente que ocorreu, de o comunicante reproduzir a sua assinatura com identidade caligráfica, o caso pareceria aos “metapsiquistas ortodoxos” um simples caso de “personificação subconsciente”, consecutivo a um incidente de sugestão por parte do consultante, quando, em realidade, o que havia era a manifestação mediúnica de um vivo. Contrariamente, vimos que, mal grado a provas de identificação pessoal de todo eficientes, o Professor Soal prefere conservar-se “metapsiquista ortodoxo”, declarando que no caso Górdon Davis “não há senão vestígios de provas positivas tendentes a apoiar quem sustentasse que o vivo Górdon Davis haja tomado parte ativa nas manifestações produzidas”, porquanto “sabemos que, em ambos os casos, a sua consciência pessoal se achava, no momento, ocupada em conversar com os clientes seus” (pág. 561). Parece-me, entretanto, haver demonstrado que bem longe se ficou de ter verificado em que condições psíquicas se achava Górdon Davis nos dois fugitivos momentos em que se manifestou mediunicamente, pois que o único elemento disponível de prova consiste num canhenho de consultas dos clientes, do qual nada de preciso se pode extrair, sobretudo depois de transcorrido um ano das aludidas consultas, sem contar que os clientes não foram inquiridos a respeito.

Afigura-se-me que nas considerações expendidas está o quanto basta para invalidar as conclusões do professor Soal, com grande vantagem para as conclusões muito mais legítimas de Bligh Bond, as quais correspondem às idéias de Myers sobre o assunto e concordam com tudo quanto se conhecia acerca das múltiplas modalidades de exteriorização, parcial, total, onírico-verídica, sob as quais consegue manifestar-se, à distância, a personalidade integral subconsciente.

É, porém, tempo de concluir.

Se bem, no presente resumo, eu tenha tido que me limitar a discorrer sobre uma só das sete categorias em que classifiquei os fenômenos em questão, os poucos episódios analisados foram suficientes para demonstrar que as comunicações mediúnicas entre vivos constituem a fundamental base fenomênica das pesquisas metapsíquicas, uma vez que somente por meio de tais comunicações se chega a penetrar na gênese da fenomenologia supranormal, visto que assim se fica em condições de considerar a um tempo a causa e o efeito, o agente e o percipiente do fenômeno que se tenta investigar.

Do nosso ponto de vista, observarei, antes de tudo, que só com o auxílio das manifestações dos vivos se adquire a certeza científica da existência de uma personalidade integral subconsciente, capaz de entrar em relação com outras personalidades integrais de vivos, ou conversando telepaticamente a uma distância já existente ao estabelecer-se a relação psíquica, ou exulando-se, no todo ou em parte, do organismo somático (“bilocação”), circunstâncias fenomênicas de suprema importância, porquanto fornecem as provas experimentais de ser o espírito humano independente do organismo corpóreo e da transcendência das faculdades supranormais subconscientes, duas condições de fato, estas, indispensáveis à demonstração científica da existência e sobrevivência da alma, donde decorre uma confirmação ulterior da tese aqui considerada, que o Animismo prova o Espiritismo.

Acresce que, por lei de analogia, as manifestações mediúnicas dos vivos concorrem a ministrar a prova indireta, mas igualmente eficaz, da autenticidade das manifestações mediúnicas dos defuntos, visto que, se com as primeiras se obtém a certeza científica de que, então, nos achamos diante de autênticas personalidades de vivos e não diante de efêmeras personificações sonambúlicas, em sentido idêntico se deve concluir com referência às manifestações mediúnicas dos defuntos que provem a sua identidade, prestando informações pessoais cientificamente apropriadas a esse fim.

Não ignoro que a tais conclusões ainda se poderia opor uma única objeção, segundo a qual, mesmo que as conversações mediúnicas entre vivos se produzam em forma de conversação entre duas personalidades integrais subconscientes, não ficaria excluído que os médiuns possam tomar, a pessoas distantes, sob esta ultima forma, os dados que forneçam em nome dos pseudo-espíritos de defuntos. A semelhante objeção respondo fazendo ver que, antes de tudo, cumpre se tenha em conta a grande lei da relação psíquica, que já discuti no capítulo precedente, e dentro de cujos postulados é impossível se estabeleçam relações de tal natureza com pessoas distantes que o médium e as pessoas presentes desconheçam. Isto bastaria para eliminar esta última objeção, com respeito à classe mais importante dos casos de identificação espirítica. Em segundo lugar, acrescento que, se a objeção em apreço tivesse fundamento, então o automatismo psicográfico – desde que é automático – deveria escrever inevitavelmente as respostas obtidas das personalidades informantes, de vivos conservados à distância, como acontecia nas experiências de William Stead. Nesse caso, surgiria a forma dialogada da conversação mediúnica havida e se obteria assim a prova da invasão real das comunicações entre vivos, nos supostos casos de identificação espirítica. Mas, como tal fato nunca na prática se deu, ou seja, como nunca se verificou que “na outra extremidade do fio” estivesse uma personalidade integral de vivo a fornecer ostensivamente informações relativas a terceiras pessoas defuntas, segue-se que esta última circunstância de fato exclui a objeção que estamos examinando. Assim sendo, forçoso se torna deduzir que, uma vez demonstrado pelos fatos que não existem diferenças de manifestação mediúnica entre os casos de identificação pessoal dos defuntos e os casos de identificação pessoal dos vivos, o que se segue logicamente é que, se de uma parte se afirma provada experimentalmente a autenticidade das manifestações dos vivos, de outra parte, também se tem que considerar provada cientificamente a autenticidade das manifestações dos defuntos.

Noutros termos: repito mais uma vez que a questão essencial, do nosso ponto de vista, consiste em que a característica de uma conversação entre duas personalidades espirituais se revela fundamental em ambas as categorias de manifestações aqui consideradas. Desse modo, se a característica de que se trata corresponde a um fato cientificamente comprovado nas manifestações dos vivos, não é possível se deixe de concluir que também corresponde a um fato igualmente real e comprovado com relação às manifestações dos defuntos, sempre, porém, bem entendido, sob a condição de que, em ambos os casos, as informações ministradas a título de identificação pessoal sejam cientificamente apropriadas ao objetivado fim.

O que fica exposto torna quase supérfluo ponderar que tudo isso equivale a afirmar que, cientificamente falando, deve-se excluir, de maneira categórica, a possibilidade teórica de explicar-se, por meio da clarividência telepática a confinar na telemnesia, os casos em que os defuntos que se comunicam fornecem informações pessoais que todos ignoram e com exclusão de objetos psicometrizados. Essa possibilidade teórica deve ser afastada pela razão de que não existem manifestações supranormais de natureza análoga que a confirmem, ao passo que existem numerosas manifestações do mesmo gênero que a contradizem; também deve ser excluída por se mostrar inconciliável com as modalidades sob as quais se produzem as manifestações em causa; enfim, deve ainda ser excluída porque se mostra igualmente inconciliável com a lei imprescindível da relação psíquica. Tanto basta para a demolição de qualquer hipótese.

Em virtude das comunicações mediúnicas entre vivos, chega-se a uma quarta importantíssima conclusão teórica, demonstrativa da existência e da sobrevivência do espírito humano, conclusão que, conjugada a outras já formuladas, concorre para formar um formidável conjunto de dados científicos concretos, que confirmam, de diversos pontos de vista, um postulado fundamental em metapsíquica. Esse postulado é que o Animismo e o Espiritismo são complementares um do outro, porquanto esses dois fatores têm por base única o espírito humano que, operando encarnado, provoca os fenômenos anímicos e, operando desencarnado, determina os fenômenos espíritas. E tanto é certo isto que, se se pretender excluir um ou outro dos dois fatores que constituem a questão a resolver-se, impossível se torna explicar o conjunto dos fatos.


Capítulo IV
Dos fenômenos de bilocação

Pela denominação genérica de “fenômenos de bilocação” se designam as múltiplas modalidades sob as quais se opera o misterioso fato do “desdobramento fluídico” do organismo corpóreo. Daí vem que os fenômenos de “bilocação” revestem fundamental importância para as disciplinas metapsíquicas, porquanto servem a revelar que as manifestações anímicas, conquanto inerentes às funções do organismo físio-psíquico de um vivo, têm como sede um certo quê qualitativamente diverso do mesmo organismo. Assumem por isso um valor teórico resolutivo, para a demonstração experimental da existência e sobrevivência do espírito humano.

Por outras palavras: os fenômenos de “bilocação” demonstram que no “corpo somático” existe imanente um “corpo etéreo” que, em circunstâncias raras de diminuição vital nos indivíduos (sono fisiológico, sono hipnótico, sono mediúnico, êxtase, delíquio, narcose, coma), é suscetível de afastar-se temporariamente do “corpo somático”, durante a existência encarnada. Inevitável, pois, a inferência de que, se o “corpo etéreo” é suscetível de separar-se temporariamente do “corpo somático”, conservando íntegra a consciência de si, forçoso será concluir-se pelo reconhecimento de que, quando aquele se separar deste definitivamente pela crise da morte, o espírito individualizado continuará a existir, em condições apropriadas de ambiente, o que equivale a admitir-se que o fato da existência imanente de um “corpo etéreo” no “corpo somático” e, por conseguinte, a de um “cérebro etéreo”, demonstra que a sede da consciência, da inteligência, da memória integral das faculdades de ordem supranormal é um “corpo etéreo”, que vem a ser o invólucro sublimado e imaterial do Espírito desencarnado.

Já no ano de 1910 eu publicara longa monografia dedicada aos fenômenos da “bilocação”; mas, como se fossem acumulando em grande número os fatos dessa natureza, decidi recentemente publicar da referida monografia uma segunda edição muito aumentada.[ii] Acho-me, portanto, em condições de poder discutir com conhecimento de causa esse tema importantíssimo.

Naquele meu trabalho, tomei por ponto de partida o chamado fenômeno da “sensação de integridade nos amputados”, fenômeno em que às vezes o senso da integridade da parte amputada é tão real, que, se se distrai a atenção do operado, ele experimenta a sensação que o membro inexistente experimentaria, se ainda existisse. Que ali exista, com efeito, um membro em estado fluídico, pode deduzir-se do fato de os “sensitivo-videntes” afirmarem que o vêem. Lembrei a esse propósito o interessante caso narrado pelo Dr. Kérner, no famoso livro sobre a “Vidente de Prevost”, em que esta, quando topava com uma pessoa a quem faltava um membro, via sempre o membro inexistente, ligado ao corpo em forma fluídica. No mesmo trabalho, também referi um caso recente em que o membro que faltava fora engenhosamente fotografado por meio de um “espectroscópio” que projetava o feixe luminoso sobre um anteparo em que apareceram, não apenas traços, porém formas de mãos e outros membros fluídicos.

Como se vê, mediante estas últimas experiências, achamo-nos em presença de provas de fato, demonstrativas da existência real, sob forma fluídica, de membros amputados, os quais, entretanto – conforme se verifica pelas sensações que experimentam os próprios amputados –, “se vão gradativamente encurtando e aproximando do coto, até ao momento em que desaparecem dentro da cicatriz”, “qual sombra que penetra no corpo”, segundo a feliz expressão de um deles. Nenhuma dúvida há, portanto, de que os fenômenos de “sensação de integridade” nos amputados contribuem admiravelmente para demonstrar a existência de um “corpo etéreo” imanente no “corpo somático”, donde a importância que assumem os aludidos fenômenos para a demonstração científica da existência e sobrevivência do espírito humano.

Em seguida aos casos dessa natureza, são considerados, na monografia a que me reporto, os casos afins de “desdobramento incipiente”, nos atacados de hemiplegia, os quais, por vezes, percebem, do lado paralítico, uma secção longitudinal do seu próprio fantasma e afirmam que essa secção goza da integridade sensória que lhes falta a eles. (É este um fato que se não pode explicar por meio da teoria “cinestésica” do Dr. Sollier, porquanto, nos atacados de hemiplegia, longe de deparar-se com uma exageração do senso cinestésico, há supressão deste sentido).

Seguem-se os casos de desdobramento “autoscópico”, em que o paciente percebe o seu próprio fantasma, conservando, porém, plena consciência de si mesmo. A esse respeito, demonstrei que, se a hipótese “psicopática”, formulada pelo Dr. Sollier, para dar uma explicação do conjunto dos fatos, podia considerar-se legítima antes do surto das pesquisas metapsíquica, agora já não é assim, porquanto, do mesmo modo que as pesquisas sobre a “telepatia” demonstram que nem todas as alucinações são falsas, também as pesquisas sobre os fenômenos de “bilocação” demonstram que nem todos os episódios de “autoscopia” são psicóticos.

Passei daí a analisar casos em que a consciência do paciente se transfere para o fantasma, que se vê a si mesmo diante do seu corpo exânime, casos altamente sugestivos, em que já se esboçam as faculdades de natureza supranormal.

Depois, analisei outros setores importantes dos fenômenos de “bilocação”, aqueles em que o desdobramento se dá por ocasião do sono natural, do sono provocado, do delírio, da narcose, do coma e, sucessivamente, os casos em que o fantasma desdobrado de um vivo, durante o sono, é visto por terceiros, para, afinal, chegar aos casos em que o fenômeno de “desdobramento fluídico” se produz no leito de morte. Esta última categoria de manifestações é a mais importante de todas e, num dos casos que citei, o fenômeno foi constantemente observado durante muito tempo por uma enfermeira vidente, ao passo que com freqüência é observado coletivamente por todos os presentes e também por muitas das pessoas que acorrem à cabeceira de um moribundo. Por fim, relatei episódios em que os presentes observam o fenômeno em todas as suas fases evolutivas, até à reprodução perfeita de um simulacro do “corpo somático” do moribundo, simulacro esse não só animado e vivo, como assistido por entidades de defuntos, que aparentemente intervêm, para tal efeito, junto daquele que está a morrer.

Com referência a estes últimos e importantíssimos fenômenos de “desdobramento fluídico no leito de morte”, muito insisti justamente sobre a particularidade teoricamente resolutiva de que todos os videntes, qualquer que seja o povo a que pertençam – civilizado, bárbaro, selvagem –, descrevem o desenvolvimento do fenômeno em termos substancialmente idênticos, o que demonstra que eles, os videntes, descrevem um fenômeno positivamente objetivo, pois, a não ser assim, possível não seria que coincidissem as descrições de todos com relação às mesmas fases do fenômeno, no qual há pormenores tão novos e inimaginados que, dentro da hipótese alucinatória, de certo não se reproduziriam idênticos em todos os alucinados. A esse propósito, citei o seguinte caso concernente a tribos selvagens, narrado por um missionário que regressara do arquipélago de Taiti (Polinésia). Escreveu ele:

“... Eles crêem que, no momento da morte, a alma se concentra na cabeça, a fim de aí sofrer um lento e gradual processo de reabsorção em Deus, de quem ela emanaria... Curioso e interessante o fato dos taitianos acreditarem na saída de uma substância real que tomaria a forma humana e o crêem por fé nalguns deles dotados de clarividência, os quais afirmam que, apenas o moribundo deixa de respirar, se lhe desprende da cabeça um vapor que se condensa pouco acima, a pequena distância do corpo, e permanece ligado a este por uma espécie de cordão formado da mesma matéria. Essas substâncias – afirmam eles – aumenta rápido de volume e ao mesmo tempo se torna semelhante ao corpo donde emana. Quando, afinal, este último fica gélido e inerte, dissolve-se o cordão que a ele prendia a alma e esta, libertada, voa para o alto, aparentemente assistida por mensageiros invisíveis...” (The Metaphysical Magazine, outubro de 1896).

Temos aqui uma descrição que corresponde, nos mínimos detalhes, às dos videntes modernos. Diante disso não parece lógico, nem sério pretender-se explicar tão impressionantes concordâncias por meio da hipótese das “coincidências fortuitas”. Por outro lado, como os taitianos não podem ter ido buscar suas crenças junto aos povos civilizados, nem estes tão-pouco podem haver tirado as suas das dos taitianos, forçoso será reconhecer que de tais concordâncias ressalta uma valiosíssima presunção em apoio da objetividade do fenômeno, que os videntes de todas as épocas hão assinalado, no seio de todos os povos.

Como já se disse, os fenômenos de “bilocação”, em geral, mas, sobretudo, aqueles em que a consciência que de si mesmo tem o indivíduo é transferida para o seu fantasma, se produzem em múltiplas graduações, durante os estados de diminuição vital das pessoas, quais são os de sono fisiológico e do sono produzido pela absorção de substâncias anestésicas, as fases sonambúlico-hipnóticas, o delíquio, o coma, as crises de convalescença, de esgotamento nervoso, de abatimento moral. Raramente se dá em condições fisiológicas e psicologicamente normais, caso em que só se produzem estando o corpo em absoluto repouso, porém muito especialmente no período que precede ou sucede ao sono. Nestas últimas circunstâncias, o sentido do desdobramento é mais ou menos vago, impreciso e de curtíssima duração.

Entre as mais notáveis características dos casos em questão, uma das que se destacam parece consistir no fato de que, se o “fantasma desdobrado” perambula à distância, quase sempre ocorrem incidentes vários, de percepções verídicas de coisas ou situações longínquas (lucidez, telestesia), o que também se verifica algumas vezes nos casos em que o fantasma desdobrado não se afasta do seu corpo.

Psicologicamente falando, merece profundamente meditado o fato de o indivíduo sentir que existe pessoalmente, na plenitude das suas faculdades sensientes e conscientes, fora do corpo e defronte do corpo. Trata-se de um sentimento dificilmente redutível a fórmulas elucidativas, deduzidas da psicologia universitária. Porque – veja-se bem – o fenômeno difere radicalmente dos de “autoscopia”, em que o Eu pessoal consciente, permanecendo com sede no organismo, divisa, à distância, o seu próprio fantasma, fenômeno esse análogo a outros citados nas obras de patologia mental e, a rigor, redutível a um fato de alucinação pura e simples. Aqui, ao contrário, nos achamos em presença do fenômeno inverso, constituindo caso especial que não deixa cabimento algum para a hipótese alucinatória, dado que, do ponto de vista psicológico, há um abismo insuperável entre a sensação de alguém ver o seu próprio “duplo” e a de achar-se consciente fora do corpo, alheio ao corpo, defronte do corpo.

Se é certo que, combinando-se a hipótese alucinatória com a da “desagregação psíquica”, conseguem-se resolver complexos problemas psicológicos, quais os das “personalidades múltiplas”, isto não implica que, mediante a mesma combinação e com os postulados da psicologia, se chegue, ainda que de longe, a explicar o sentimento acima indicado, o qual, repito, é coisa muito diversa, visto que os fenômenos das personalidades múltiplas, quer simultâneas, quer alternadas, têm sua sede no corpo e não fora do corpo, diferença que, psicologicamente, assume enorme importância, denotando que, neste último caso, se encontra em jogo o sentimento do ser, que é o mesmo que dizer um estado de consciência primordial e irredutível, fundamento de todos os estados de consciência, do qual ninguém pode duvidar sem pôr em dúvida também a nossa existência e sem renunciar, por conseguinte, a todo conhecimento e a toda ciência, sentimento que se impõe à razão como realidade apodítica e que psicologicamente adquire valor de imperativo categórico.

*

Agora, desejando proceder à escolha de algum episódio com o qual ilustre as considerações expendidas, encontro-me num curioso embaraço, não devido à deficiência, mas à superabundância de casos importantes a citar. Vem daí que os primeiros dois casos que me limito a referir não os escolhi porque apresentem especial valor intrínseco, mas porque me facultarão ensejo de discutir algumas objeções que formulou, sobre o tema, um homem de ciência competentíssimo noutros ramos da metapsíquica.

Este primeiro caso tiro-o do Journal of the S. P. R. (1929, pág. 126). É um episódio da Grande Guerra. O próprio protagonista o comunicou ao professor Oliver Lodge que, a seu turno, o transmitiu à direção daquele órgão.

Narra-o assim o protagonista:

“... Deixamos Monchiet à tarde e, depois de horrível marcha por uma estrada em que se escorregava continuamente, pois não havia um palmo de terreno que não fosse lama misturada a neve derretida, chegamos a Beaumetz, já noite. Brevíssima parada e de novo em marcha para Wailly, uma linha de fogo. Aí penetramos numa trincheira de comunicação, patinhando na água lodosa. Era comprida de uma milha aquela trincheira e nos pareceu interminável. O lodo líquido nos chegava ao joelho, ao mesmo tempo em que um chuvisco gelado nos flagelava implacavelmente o rosto, enregelando-nos até aos ossos. Chegamos, afinal, à linha de fogo, onde substituímos um batalhão francês. Encontramo-nos na pior das trincheiras. Desde muitos meses, nenhuma reparação sofria. Em vários pontos estava desmoronada e não protegia ao fogo inimigo as nossas cabeças; achava-se por toda parte transformada numa gamela de estrume liquido. Eu e H. fornos imediatamente mandados a montar guarda. Estávamos tão extenuados, que nem para maldizer da sorte tínhamos forças. O corpo estava exausto, encharcado, regelado até à medula pelo chuvisco implacável que nos flagelava; morríamos de fome, sem qualquer espécie de alimento. Não tínhamos meio de acender fogo, nem marmitas para nos realentarmos, ao menos, com água quente. Nem uma polegada de terreno onde nos sentássemos, nem um palmo quadrado de parapeito atrás do qual fizéssemos calar a fome com uma cachimbada. H. e eu concordamos em reconhecer que jamais houvéramos crido possível que a tal extremo pudessem concentrar-se os sofrimentos inelegíveis a uma criatura humana. Entretanto já tínhamos conhecido não poucas noites de inaudito martírio.

Muitas horas transcorreram naquela horrenda situação, quando, de súbito, tudo mudou para mim. Tornei-me consciente, certissimamente consciente de achar-me fora do meu corpo. Comprovei que o meu Eu real, consciente, o espírito – pouco importa o nome – se havia totalmente libertado do organismo corpóreo e, de fora deste, eu contemplava aquele mísero corpo vestido de cinza-verde, que era o meu, mas olhava-o com absoluta indiferença, pois que, embora cônscio estivesse de que o aludido corpo me pertencia, já não havia laços que me prendessem ao seu martírio e o considerava como se de outrem. Sabia que ele havia de estar sofrendo de maneira horrível; porém eu, isto é, o espírito, não sentia coisa alguma.

Enquanto estive naquela condição de ser, o fato me parecia natural; só quando entrei de novo no corpo me convenci de que passara pela mais maravilhosa experiência da minha vida... Nada nunca poderá abalar a minha convicção íntima e profunda de que naquela noite de inferno o meu espírito se separou temporariamente do meu corpo...”

A propósito desta última declaração do infeliz protagonista de tão doloroso episódio, importa notar que, em face da minha classificação dos fenômenos de “bilocação”, se evidencia que todos quantos hão passado pela solene experiência aqui considerada guardam inabalável a convicção de terem assistido ao fato de seus espíritos se separarem dos respectivos corpos e, por conseguinte, conservam, também, inabalável, a certeza de que o espírito sobrevive à morte do corpo. Assim sendo, é natural se mostrem intolerantes para com as afirmativas negativistas dos representantes da ciência oficial, os quais, nunca tendo passado pela grande aventura de se reconhecerem a existir, com as suas personalidades conscientes, sensientes e inteligentes, fora de seus corpos, estranhos aos seus corpos, em presença de seus corpos, não se acham em condições de formar opinião justa do valor prático e positivo de uma convicção fundada em experiência de tal natureza.

*

O Dr. Eugênio Osty publicou e comentaram pela Revue Metapsychique (1930, págs. 191-193) três casos análogos em tudo ao precedente. Agora, porém, me limitarei a citar o que apresenta maior interesse, do ponto de vista em que me acho colocado. Trata-se de um episódio cujo relato foi enviado ao professor Richet, pelo Sr. L. H. Hymans, em data de junho de 1928. Diz assim o relator:

“Julgo conveniente informá-lo de um fenômeno que se deu comigo duas vezes e que parece provar que a consciência pode funcionar independentemente do cérebro.

Duas vezes, em estado de plena consciência, vi distante de mim e inanimado o meu corpo, com a sensação precisa de que este, naquele momento, era um objeto exterior ao meu ser. Não pretendo tentar explicar como haja podido ver sem olhos. Apenas comprovo um fato.

Da primeira vez que este ocorreu, achava-me na cadeira de um dentista. Durante o período que passei sob a ação do clorofórmio, tive a sensação de haver despertado e estar flutuando no ar, próximo ao teto, de onde contemplava, com grande espanto, o dentista a cuidar da minha dentadura e a seu lado o cloroformizador a me vigiar. Via o meu corpo inanimado tão distintamente como qualquer dos objetos existentes no local. Durou poucos segundos esta experiência. Perdi a consciência e me achei de novo na cadeira completamente desperto, mas conservando nítida a impressão de tudo o que sucedera.

Da segunda vez, achava-me em Londres, numa hospedaria. Certa manhã, acordei adoentado (sofro de fraqueza do coração) e, pouco depois de haver despertado, tive uma síncope. Com grande espanto meu, achei-me suspenso no ar à altura do teto, donde contemplava, presa de terror, o meu corpo inanimado e de olhos fechados. Tentei, mas inutilmente, entrar de novo nele e me convenci de que devia estar morto. Pus-me a pensar na impressão que receberiam os donos da hospedaria, na dor dos meus parentes e no desgosto dos amigos. Perguntava a mim mesmo se ordenariam algum inquérito acerca da minha morte; porém, o que, sobretudo, me preocupava eram os meus negócios. É absolutamente certo que eu nada perdera da minha memória e da minha consciência. Via o meu corpo inanimado como um objeto à parte e contemplava tristemente o seu semblante, que se tornara lívido. Verifiquei, no entanto, que não me fora possível sair do aposento; sentia-me, por assim dizer, acorrentado àquele lugar, imobilizado no canto onde me encontrava.

Transcorridas uma ou duas horas, percebi que batiam à porta (fechada à chave) e que batiam repetidamente, sem que eu pudesse dar sinal de vida. Pouco depois, vi aparecer na janela o porteiro da hospedaria, que ali subira por uma alta escada. Entrou no quarto, mirou-me ansiosamente o rosto e abriu a porta. Logo entraram o gerente e outros empregados da casa; em seguida, veio um médico e vi que me sacudia a cabeça; depois, inclinou-se por cima de mim, colocou o ouvido sobre o meu coração e por fim me introduziu na boca uma colher. Nesse instante perdi consciência de mim como espírito e despertei repentinamente na minha cama. É de notar-se que esse fato se prolongou por cerca de duas horas.”

A narrativa que se acaba de ler é muito interessante, principalmente o segundo episódio, em que se nos depara o fato nada comum de o indivíduo desdobrado permanecer assim, plenamente cônscio de si, a observar tudo o que se passava ao derredor do seu corpo, durante duas horas consecutivas. É uma circunstância esta teoricamente notabilíssima, porquanto elimina toda possibilidade de qualquer sofisma baseado na fugacidade das impressões desse gênero. Aí, o indivíduo desdobrado se conserva fora do corpo, com plena consciência do seu estado, por duas horas seguidas.

É também digna de nota a observação do protagonista, de não poder sair do quarto, como se estivesse acorrentado ali, indício manifesto de que, se ele não se apercebeu da existência de um cordão fluídico que o prendia ao corpo, por outro lado não lhe escaparam as conseqüências inevitáveis desse mesmo vínculo.

Observarei, finalmente, que ele, como tantos outros, tira, das suas próprias experiências, a lógica dedução de que a consciência pode funcionar independentemente do corpo.

Assinalado isso, passo a expor e comentar as conclusões a que chegou o Dr. Osty, com relação aos casos por ele publicados, conclusões que naturalmente encabeçam uma interpretação alucinatória dos ditos casos. Diz ele:

“Quem quer que se ache bem decidido a não exorbitar dos limites da psicologia clássica será levado a presumir que os nossos três visionários, durante a crise alucinatória em que se viram a si mesmos, tenham tido também uma percepção normal de tudo quanto lhes ocorria ao derredor, com a conseqüência de que a imaginação deles haja reunido num só bloco a alucinação e a realidade, conferindo ao todo uma homogeneidade aparente... É lícito, ao demais, perguntar se, em casos tais, não vem à baila também um fenômeno de visão telepática das pessoas e do ambiente, o que explicaria suceder que, à alucinação de ver-se a si mesmo, se junte o fenômeno supranormal da consciência de tudo o que acontece... Ainda outras explicações podem conceber-se, inclusive a que se deveria formular pela norma da psicologia clássica, isto é, que quando os fenômenos da visão de si mesmo chegam ao grau extremo alcançado nos episódios referidos, eles são apenas simples criações da imaginação, se bem que involuntárias, ou, por outras palavras, maravilhosas ilusões e nada mais.” (Loc. cit., pág. 196-7).

Assim se pronunciou o Dr. Osty que, como todos sabem, é um poderoso e genial investigador das faculdades supranormais subconscientes e que tem contribuído, mais do que qualquer outro, para elucidar o formidável problema da clarividência no passado, no presente e no futuro. Dir-se-ia, entretanto, que, em se tratando de fenômenos de “bilocação”, ele já não se encontra em campo metapsíquico de sua competência. Noto que começa declarando que “quem quer que se ache bem decidido a não exorbitar dos limites da psicologia clássica” será levado a raciocinar conforme ele raciocina. Esse seu ponto de partida, conquanto imprudente e pouco ponderado, pede servir-lhe de atenuante para a invulgar superficialidade dos seus argumentos, todos inteiramente gratuitos, visto que, por um lado, são destituídos de qualquer base experimental que os justifique e, por outro lado, não levam em consideração múltiplas circunstâncias de produção do fenômeno, o que torna insustentáveis e absurdos os ditos argumentos. Assim é por exemplo, no que concerne aos fantasmas “bilocados” no leito de morte e que são vistos simultaneamente ou sucessivamente por várias pessoas, assim como pelo que toca a outra circunstância, a das descrições pormenorizadas que os “videntes” fazem do fenômeno que observam, descrições que se verificam idênticas em todos os tempos e no seio de todos os povos: civilizados, bárbaros, selvagens.

Isto posto, dever-se-á reconhecer que, nos limites do misoneísmo que se impôs voluntariamente a si mesmo, ele outra coisa não podia fazer, senão argumentar aereamente, como o fez, o que não obsta a que um critico lhe observe que, no tocante aos fenômenos de “bilocação”, ele raciocina à maneira de um psicólogo que, tudo ignorando de metapsíquica, emitisse juízo sobre os fenômenos telepáticos, classificando-os em massa como fenômenos alucinatórios. Em tal caso, o Dr. Osty certamente o declararia em erro, porquanto a metapsíquica demonstra que, a par das visões patológicas de fantasmas inexistentes, há visões verídicas de fantasmas de vivos, denominadas visões telepáticas. Entretanto, quando, a seu turno, o Dr. Osty se mete a discutir sobre os fenômenos de “bilocação”, dos quais nada sabe, comete a não pequena imprudência de incidir no mesmo erro, olvidando o preceito fundamental de qualquer pesquisa científica, segundo o qual não se deve pronunciar juízo sobre uma dada ordem de fenômenos, sem que primeiro se haja posto em prática um laborioso processo de análise comparada, que abranja toda a gradação fenomênica em que eles se produzem. Quer isto dizer que, no nosso caso, devera ter começado pelos casos da “sensação de integridade nos amputados”, para terminar pelos casos importantíssimos das “visões coletivas e sucessivas dos fantasmas desdobrados dos moribundos”. Em face dessas contingências, não teria, de certo, asseverado que os fenômenos em causa são explicáveis, nas suas múltiplas formas, pela teoria alucinatória.

Noutros termos: o Dr. Osty repete o erro em que caiu o eminente Lavoisier, com relação aos aerólitos, sentenciando: “Não há pedras no céu; logo, do céu não podem cair pedras.”

Repete o erro em que caiu o eminente filósofo Herbert Spencer, acerca da telepatia, quando disse: “Assim como não podem existir fantasmas de chapéus e de bengalas, é claro e indubitável que os chamados fantasmas telepáticos são, em massa, alucinações patológicas.”

O Dr. Osty, por sua vez, conclui, em substância, deste modo: “Assim como não podem existir fenômenos de “bilocação”, porque estariam em desacordo com a psicologia clássica, é claro e indubitável que as chamadas “visões de si mesmo” são, em massa, alucinações patológicas.”

O que, entretanto, é claro e indubitável, para quem quer que não tenha a mente obnubilada por preconceitos de escola, é que a classificação que publiquei dos casos dessa natureza basta para demonstrar, com fundamento nos fatos, que os fenômenos de “bilocação” existem, da mesma forma que no céu existiam pedras e que na Terra aparecem fantasmas telepáticos. Segue-se que o Dr. Osty devera reconhecer que cometeu solene imprudência, exprimindo-se como o fez, tal qual as duas eminentes personagens mencionadas acima.

*

Constrangido pelos limites do espaço, citarei um só exemplo em que o fantasma desdobrado começa a exercitar as faculdades de tipo supranormal.

Meu amigo, o engenheiro José Costa, em seu interessante livro De lá da Vida (pág. 18), narra o seguinte episódio com ele próprio ocorrido:

“... Era uma noite abafada de um tórrido junho, em que eu me preparava intensamente para os exames do liceu. Conquanto me achasse escudado por indômita vontade de resistir à fadiga opressiva que me trabalhava a mente, tive que me submeter, completamente extenuado, a uma imperiosa necessidade de repouso e atirei-me desmaiado, mais que adormecido, na cama, sem apagar a lâmpada de petróleo que continuou a arder sobre a mesinha de cabeceira. Provavelmente com um movimento brusco do braço, fiz que entre a cama e a mesinha caísse a lâmpada, que não se havendo apagado, começou a desprender uma fumaça densa, por tempo suficiente a encher o quarto de negra nuvem de gás acre e pesado. A atmosfera se tornava cada vez mais irrespirável e, provavelmente, na manhã seguinte, o meu corpo seria achado exânime, se não se houvesse produzido singular fenômeno. Tive a sensação nítida e exata de achar-me, apenas com o meu Eu pensante, no meio do quarto, separado completamente do corpo, que continuava jazendo sobre a cama. Via, se é que posso dar essa denominação à sensação que eu experimentava, as coisas que me rodeavam como se uma irradiação visual atravessasse as moléculas dos objetos sobre os quais demorava a minha atenção, como se a matéria se dissolvesse ao contacto do meu pensamento...

Via o meu corpo perfeitamente reconhecível em todos os detalhes, no seu perfil, no semblante, mas com os feixes venosos e nervosos a vibrarem qual luminoso formigueiro... O quarto se achava na mais completa escuridão, pois que a chama da lâmpada caída não chegava a espalhar luz além da manga de vidro enegrecida. Eu, entretanto, via os objetos, ou, melhor, via-lhes os contornos quase fosforescentes a desvanecer-se, o mesmo acontecendo com as paredes, logo que sobre umas e outras se concentrava a minha atenção, deixando-me ver de igual maneira os objetos dos quartos contíguos. O meu Eu pensante carecia de peso, ou, antes, não sentia a impressão da força de gravidade e não tinha noção de volume ou de massa. Eu já não era um corpo, visto que o meu corpo jazia inerte em cima da cama: era como que a expressão tangível de um pensamento, de uma abstração, capaz de transferir-se para qualquer parte da Terra, do mar, do céu, mais rapidamente do que um relâmpago, no instante mesmo em que formulasse esse desejo e, por conseguinte, sem a noção de tempo, nem de espaço.

Se dissesse que eu me sentia livre, leve, etéreo, nem longinquamente exprimiria a sensação que experimentava naquele momento de ilimitada liberação. Mas, não era uma impressão agradável; eu me sentia como que presa de angústia inexprimível, tendo a intuição de que só poderia fugir-lhe, tirando o meu corpo material da situação que o afligia. Quis, portanto, apanhar a lâmpada e abrir a janela; não conseguia, porém, efetuar a ação material que para isso era necessária, como não conseguia mover os membros do meu corpo, que me parecia só poder movimentar-se ao sopro da minha vontade espiritual. Pensei então em minha mãe, que dormia no quarto ao lado. Vi-a perfeitamente através da parede que separava os dois aposentos, a repousar tranqüilamente na sua cama. Mas, o seu corpo, ao contrário do meu, parecia irradiar uma luminosidade, uma fosforescência luminosa. Afigurou-se-me não ser preciso nenhum esforço para fazê-la aproximar-se do meu corpo. Logo a vi descer precipitadamente da cama, correr para a janela e abri-la, como se agisse sob o influxo do último pensamento que eu concebera antes de chamá-la; vi-a sair em seguida do quarto, andar pelo corredor, entrar pela porta do meu aposento e aproximar-se, tateando, do meu corpo, com os olhos fechados. Parece-me que o seu contacto teve a faculdade de fazer que o meu Eu espiritual entrasse novamente no corpo. Achei-me desperto, com a garganta seca, as têmporas a me martelarem, a respiração opressa e o coração como a querer escapar-se-me do peito.

Posso afirmar ao leitor que, até àquele momento, eu nada lera, nem ouvira falar acerca das teorias espíritas, dos fenômenos de “bilocação”, dos desdobramentos da alma e do corpo. Eram-me completamente desconhecidas as experimentações mediúnicas e as sessões de Espiritismo: posso, portanto, afastar, em absoluto, a idéia de que se tratasse de um fenômeno de sugestão. Tão-pouco podia tratar-se de um sonho, dada a enorme diferença entre as sensações que sobrevivem na recordação das imagens que o sonho desperta e as sensações, extremamente dessemelhantes, quanto à impressão que produzem, experimentadas por mim naquele instante. Com efeito, não se me deparava em tais recordações aquela nebulosidade, aquela indistinta sensação de quimera e de realidade que revestem as impressões do sonho. Antes, eu jamais tivera a sensação de existir de modo tão real, como no momento em que me senti separado do corpo. Interrogada por mim pouco depois do acontecido, minha mãe confirmou que primeiro abrira a janela do seu quarto, como se ela própria se sentisse sufocada, antes de correr em meu auxílio. Ora, o fato de eu ter visto aquele seu gesto através das paredes, permanecendo inanimado o meu corpo na cama, exclui, sem mais, a hipótese da alucinação ou do incubo durante um sono sobrevindo em excepcionais circunstâncias fisiológicas.

Excluídas, portanto, as hipóteses da sugestão, do sonho, da alucinação e do incubo, não me restava outra dedução lógica, senão supor que o meu Eu pensante houvesse agido fora do corpo e que, nessas condições, dotado de faculdades transcendentais, houvesse podido ver o que estava do outro lado das paredes e reclamar para o meu corpo a assistência de minha mãe, a fim de que me socorresse. Terei tido, nesse caso, a mais evidente prova de que minha alma se destacara do corpo durante a sua existência corpórea. Terei tido, em suma, a prova da existência da alma e também da sua imortalidade, pois que, se era exato que ela se libertara por efeito de circunstâncias especiais, do invólucro material do corpo, agindo e pensando fora deste, com mais forte razão deverá achar-se, pela morte, na plenitude da sua liberdade e livre de qualquer vínculo que a prenda à matéria.”

É particularmente interessante este episódio, porquanto o protagonista, meu amigo, é pessoa muitíssimo culta e, também, verdadeiro homem de ciência, de modo que logrou descrever minuciosamente suas próprias impressões, com rara penetração analítica, apresentando aos estudiosos um quadro completo e altamente sugestivo das sensações que experimentou na fase de desdobramento. Reveste-se de inegável valor metapsíquico cada um dos períodos por que passou e que descreveu, a começar da observação de que a sua visão espiritual “penetrava através das moléculas dos objetos, como se a matéria se dissolvesse ao contacto do seu pensamento”, tornando-lhe evidente o que significam as hodiernas descobertas científicas acerca da “imaterialidade da matéria”.

Notável igualmente o fenômeno de “aloscopia”, por virtude do qual ele via, à distância, no interior do seu corpo, “os feixes nervosos a vibrarem como um formigueiro luminoso”. É de notar-se também que, tendo visto, através da parede, sua mãe a dormir, ele faz ressaltar uma circunstância interessante, a de que do corpo dela emanava uma “fosforescência radiosa”, ao passo que o seu corpo não irradiava coisa alguma, evidentemente porque a vitalidade e o espírito o haviam momentaneamente abandonado. Importa, finalmente, notar a eficácia sugestiva da sensação, que ele experimentou, de “estar livre, leve, etéreo, qual a expressão tangível de um pensamento, de uma abstração, capaz de transferir-se para qualquer parte da Terra, do mar, do céu, mais rapidamente do que o relâmpago, por ato da própria vontade”.

Doutro ponto de vista, cumpre acentuar o fato de haver ele chegado a “telepatizar” o seu próprio pensamento para sua mãe, de maneira a despertá-la e conseguir que viesse em seu socorro, salvando-se assim de uma morte certa.

Observarei, por último, que, neste caso, como em tantos outros, o que ocorreu leva o protagonista à convicção inabalável de ter assistido “ao fato de a sua alma destacar-se do seu corpo”, e o leva a adquirir a certeza da existência e sobrevivência do espírito humano. Essa concordância de opiniões é a tal ponto racional e legítima, que se nos afigura ocioso assinalá-la de novo. Todavia, cumpre insistir nisso, em vista do grande número dos que negam, de boa fé, a sobrevivência e em vista, sobretudo, da eficácia que adquire a opinião cumulativa daqueles que, por haverem assistido ao ato de seus espíritos se separarem dos respectivos corpos, são, no fundo, os únicos competentes para julgar do fenômeno, o que não se dá com os cientistas que das suas cátedras sentenciam gratuitamente que se deve considerar tudo isso um conjunto de objetivações alucinatórias, determinadas por perturbações da cinestesia.

*

Sempre atento em não exorbitar da índole deste trabalho, que é fazer uma síntese das minhas pesquisas no campo do Animismo, deixo de referir casos em que terceiros percebem o fantasma desdobrado, de um vivo adormecido, a perambular em outros sítios, à guisa dos fantasmas “molestadores”. Deixo de fazê-lo, porque o valor teórico de tais casos ainda se apresenta discutível, uma vez que eles se podem explicar, mais ou menos verossimilmente, pela hipótese telepática, se bem existam casos em que se verificam particularidades inconciliáveis com essa hipótese. Mas, discuti-las nos levaria longe, quando para a tese aqui considerada não se faz mister nos socorramos dos casos de tal natureza.

Passo, pois, a citar um de outra categoria, que é mesmo a que reúne maior número dos de “bilocação”, sendo também, ao mesmo tempo, a mais importante, pois que se constitui dos fenômenos de “desdobramento no leito de morte”, observados por sensitivos e, freqüentemente, por pessoas que não se podem considerar tais. Como já fiz notar, todos descrevem as mesmas fases na produção do fenômeno, embora a maioria dos percipientes nunca se haja ocupado com as pesquisas psíquicas e ignore que fatos análogos outros têm observado. Esta circunstância já constitui por si só uma ótima presunção a favor da realidade objetiva dos fenômenos observados, sobretudo se se ponderar que certas particularidades complexas, assim como dificilmente imagináveis, peculiares à produção dos fenômenos em questão, não poderiam explicar-se pela hipótese das “coincidências fortuitas”, apresentando-se estas idênticas centenas de vezes. Acrescente-se, ao demais, que bom número de casos desse gênero foram observados coletiva e sucessivamente por diversas pessoas, o que concorre eficazmente para lhes demonstrar a natureza positivamente objetiva.

Referirei, em primeiro lugar, um caso que figura num grupo de outros em os quais o “desdobramento” é incipiente e rudimentar, observado coletiva e sucessivamente por várias pessoas, circunstância que assume alto valor probante no sentido da objetividade do fenômeno. Faço notar que são sumamente instrutivos os casos dessa ordem, porquanto representam a fase inicial dos fenômenos de “bilocação no leito de morte”, pelos quais se assiste à saída de uma substância fluídica, em estado de difusão, do “corpo carnal”, substância que, depois de repetidas flutuações, motivadas por sua reabsorção parcial pelo organismo durante algum tempo (em correspondência com as flutuações da vitalidade no enfermo), acaba por integrar-se, em sobrevindo o momento extremo, num “corpo etéreo, vivo e animado”.

Decorre daí que os casos apenas incipientes não revestem menor importância do que os outros em que o desdobramento é completo, uma vez que aqueles servem para instruir com relação às fases iniciais da produção do grandioso fenômeno, na hora suprema da libertação do “corpo etéreo”. Bem se compreende que, para lhes realçar toda a importância e extrair deles os devidos ensinamentos, seria necessário analisar e comparar bom número de casos, que aqui não me é possível reproduzir.

O episódio que se segue, no qual foram oito os percipientes, foi publicado pela Light (1922, pág. 182).

Miss Dorothy Monk enviou ao diretor dessa revista, Sr. David Gaw, o seguinte relato do que ocorreu junto ao leito de morte de sua mãe, falecida a 2 de janeiro daquele ano.

“No nosso ambiente familiar, fomos testemunhas de extraordinário fenômeno, junto ao leito de morte da minha adorada mãe, que faleceu a 2 de janeiro. O fenômeno impressionou-nos grandemente a todos, pelo que peço sobre ele esclarecimentos à vossa experiência.

Após longa enfermidade, agravada por um ataque de influenza gástrica, minha mãe veio a morrer de fraqueza do coração... No seu último dia de vida, mostrou-se em penosa agitação e, à medida que a noite avançava, repetia os nomes de seu pai, de sua mãe, de suas três irmãs e também o de um meu irmãozinho, que morrera antes de eu nascer... Ficamos a velá-la a noite inteira e éramos oito: meu pai, um irmão e seis irmãs... Ao anoitecer, começamos a divisar brilhantes luzes azuladas a vagar pelo quarto, as quais com freqüência se aproximavam da enferma. Víamo-las durante alguns segundos apenas e, quase sempre, éramos duas a vê-las. Eu observava atentamente o fato e, por três vezes em quatro, verifiquei que, quando via uma delas ao lado de minha mãe, esta se agitava e tentava falar; mas, já não se achava em condições de poder fazê-lo. Mais tarde, eu e três de minhas irmãs percebemos simultaneamente uma luminosidade azul-malva pairando sobre o corpo da doente, luminosidade que se foi intensificando gradualmente até se transformar em brilhante cor purpúrea, tão densa que quase impedia se visse o rosto da moribunda. E essa luminosidade se difundia por todo o leito como névoa purpurina, revelando-se mais densa entre as pregas do cobertor. Uma ou duas vezes minha mãe moveu os braços e a luminosidade colorida lhe acompanhou o movimento.

Tão maravilhoso nos pareceu o espetáculo, que chamamos as duas irmãs que se achavam ausentes, para verificarmos se elas, a seu turno, observariam o fenômeno. Com efeito, assim foi. Uma delas viu passar entre duas cadeiras uma coluna cinzenta, alta de três pés, e deslizar para baixo do leito. Eu me achava sentada naquele ponto, porém nada vi. No momento, também estava presente uma velha amiga da mamãe, a qual disse que não via a nebulosidade purpúrea, concluindo daí que os nossos olhos, cansados da longa vigília, necessitavam de repouso. Chamamos a atenção para as brilhantes luminosidades circulares que então pairavam sobre os travesseiros e ela declarou que as via, mas ponderou que, provavelmente, eram reflexos do fogo da lareira, ou da chama do gás. Pusemos imediatamente um anteparo contra as duas fontes de luz e os círculos permaneceram. Ela então percorreu o quarto virando contra as paredes os quadros e fotografias emolduradas e cobrindo o espelho, sem que qualquer alteração se produzisse. As luzes continuaram a brilhar. Colocou, finalmente, as mãos sobre os círculos luminosos, sem conseguir obscurecer em nada. Feita esta última prova, sentou-se e não pronunciou mais uma palavra.

Depois, já noite fechada, as duas irmãs que antes tinham visto a coluna acinzentada simultaneamente se voltaram para aquele lado e exclamaram que a viam de novo. Ainda dessa vez, eu nada vi. Elas, porém, a tinham visto indubitavelmente, pois que as suas descrições combinavam em todos os pontos. A irmã que primeiro a observara via agora uma grande luz azul, de forma globular, pousada sobre a cabeça da mamãe, porém nenhuma outra das pessoas presentes a via. Acrescentou ela que no interior da dita luz notava uma vibração intensa; depois, anunciou que a luz se tornara vivamente purpúrea; finalmente, que se dissipara.

Pelas sete horas, a enferma, em estado de coma, abriu a boca e, desde esse momento, todos observamos uma nuvem branca a formar-se sobre a sua cabeça, alongando-se até ao espaldar do leito. Saía da cabeça, porém se condensava mais fortemente do lado oposto da cama. Permanecia suspensa no ar, como densa nuvem de fumo branco, parecendo às vezes tão opaca, que impedia. se visse o espaldar do leito. Entretanto, variava continuamente de densidade, chegando a ponto de não percebermos o menor movimento naquela nuvenzinha. Estavam comigo minhas cinco irmãs e todas contemplávamos o extraordinário fenômeno. Chegaram, afinal, meu irmão e meu cunhado, os quais, a seu turno, observaram o que estávamos vendo. Uma luminosidade de cor azul listrava o ambiente e dela, de quando em quando, se desprendiam vivas centelhas de luz azulada.

Observamos que a mandíbula inferior da moribunda continuara a abrir-se lentamente. Por algumas horas não houve alterações notáveis no fenômeno, exceto a formação de uma auréola de raios luminosos amarelados em torno da cabeça da moribunda. Contamos sete desses raios, cujo comprimento variava de contínuo, estendendo-se de doze a vinte polegadas. Por volta da meia-noite, tudo se dissipou, conquanto a mamãe só tenha morrido pouco depois das sete da manhã. As seis e um quarto dessa mesma manhã, uma de minhas irmãs, que repousava noutro quarto, ouviu uma voz que lhe sussurrou: “Mais uma hora de vida! Mais uma hora!” Ela se levantou impressionada e foi assistir aos últimos instantes da mamãe que, efetivamente, exalou o último suspiro uma hora e dois minutos depois que minha irmã ouvira a voz premonitória... Rendemos graças a Deus, por haver permitido observássemos a partida de uma alma, tirando às nossas lágrimas a amargura de um adeus para sempre.”

Assinado: Dorothy Monk.

Não há quem não veja quão importante e sugestivo é o episódio acima, assim do ponto de vista metapsíquico, como do espiritualista, tanto mais que, pelo lado probante, ele se revela invulnerável, por ser de data recentíssima, ter sido relatado de pronto pelos percipientes e haver ido o diretor do Light, Sr. David Gaw, à casa da relatora para discutir com as testemunhas dos fatos e haver trazido de lá as melhores impressões relativamente à capacidade de observação dos oito percipientes, que ainda se encontravam sob a impressão inapagável de que presenciaram a partida de uma alma.

Do ponto de vista das complexas manifestações produzidas, nenhuma dúvida pode subsistir, dado que a fase final das mesmas manifestações, a mais importante, foi coletivamente observada por todos os presentes.

As outras manifestações, anteriores e variadas, foram, a seu turno, percebidas também coletivamente, conquanto nem sempre por todos, sendo que duas dentre elas resultaram decisivamente “eletivas”. Quer isto dizer que as manifestações coletivamente observadas eram emanações “ectoplásmicas”, pelo que visíveis a olhos normais, ao passo que a aparição de uma coluna como de fumaça acinzentada, perceptível apenas a duas pessoas, e o globo luminoso, perceptível a uma só pessoa, eram de natureza qualitativamente diversa e, por conseguinte, perceptíveis unicamente a olhos de sensitivos. Nessa conformidade, dever-se-á inferir que o fenômeno da coluna fumosa, alta de três pés, e o de um globo luminoso a pairar sobre a cabeça da moribunda representariam a exteriorização incipiente do “corpo etéreo” e do “corpo mental” da enferma, ainda não integrados e fundidos num só fantasma.

A este propósito, farei notar que nas minhas classificações estão registrados alguns casos em que, no momento da morte, os assistentes viram sair da cabeça do moribundo um “globo luminoso” que, elevando-se rapidamente, desapareceria através do forro do aposento, sendo por demais sabido que o Dr. Baraduc conseguiu fotografar análoga aparição de um globo luminoso, ao morrer sua própria esposa.

De outro ponto de vista, observarei que as brilhantes luzes azuladas que vagavam pelo quarto e se aproximavam com freqüência da moribunda, mostrando esta ter consciência delas pelo agitar-se e esforçar-se para falar, eram presumivelmente de origem exterior. Quer dizer que aquilo que para as sensitivas videntes eram brilhantes luzes azuladas, para a moribunda eram as formas espirituais de seus parentes defuntos, o que explica a circunstância de estar ela a proferir insistentemente os nomes de seu pai, de sua mãe, de suas irmãs e de um filhinho seu, morto pouco depois de haver nascido, ao mesmo tempo em que se presta a explicar o outro incidente ocorrido com uma irmã da narradora, a qual ouviu uma voz a lhe sussurrar o verídico aviso: “Ainda uma hora de vida! Ainda uma hora!”

É de notar-se que essa interpretação da verdadeira natureza das luzes azuladas que vagavam concorda com o que sucedia a William Stainton Moses, para quem, médium que era, aquilo que os experimentadores viam como colunas luminosas a deslocar-se pelo quarto representava as formas espirituais, perfeitamente contornadas, dos seus espíritos-guia.

Restaria abater uma dúvida concernente à fase final das manifestações observadas, fase em que a exteriorização fluídica, depois de levar cinco horas seguidas a desenvolver-se, desapareceu instantaneamente, havendo, no entanto, o enfermo vivido mais sete horas. Por que o fenômeno não se conservou perceptível até ao instante da morte? – Parece-me que a esse respeito eu poderia reportar-me a tudo quanto ponderei anteriormente acerca da probabilidade das manifestações dessa natureza somente serem perceptíveis a olhos normais quando, a par da essência sublimada do “corpo etéreo” em via de exteriorizar-se, emanem do “corpo somático” fluidos de ordem física (ectoplasma). Nesse caso, deverá inferir-se que o fato de o fenômeno cessar sete horas antes da morte da enferma se explica pela suposição de que, com a total emersão do “corpo etéreo”, cessou a irradiação de fluidos vitais, donde a desaparição do fenômeno para olhos normais, embora, plenamente constituído e a sobrepairar o “corpo somático”, o “corpo etéreo” tenha assim permanecido, mas perceptível somente a olhos de sensitivos ou de médiuns.

Como quer que seja, as dúvidas relativas às modalidades sob as quais se produzem os fenômenos de “bilocação” nada têm de comum com a questão vertente sobre a realidade objetiva dos mesmos fenômenos. Desde que se classifiquem, analisem, comparem todas as várias modalidades sob as quais se operam os fenômenos em apreço, a começar do fenômeno eloquentíssimo das “sensações de integridade nos amputados”, para terminar nos casos dos videntes que presenciam a reintegração e o desaparecimento de um “corpo etéreo” perfeito, vitalizado e animado; assistido, ao demais, por entidades de defuntos que aparentemente intervêm para esse fim, junto ao leito dos moribundos: desde que – digo – se tenha a agudeza científica de julgar com base no conjunto dos fatos, as dúvidas que restem perdem todo valor teórico, em sentido neutralizante, pelo que se é levado a deduzir, com o apoio dos fatos, que já se conhece o bastante, com referência aos fenômenos de “bilocação”, para se poder concluir, sem receio de errar, que eles são, por si sós, suficientes a demonstrar experimentalmente a existência e a sobrevivência do espírito humano.

Nessas condições, o caso acima considerado é de molde a oferecer matéria para reflexões profundas, não só aos cultores das pesquisas psíquicas, como também aos psicólogos, aos fisiólogos e aos filósofos. Em verdade, quem quer que leia o relato do episódio que estamos apreciando e possua cultura no assunto e senso filosófico bastante para haver sentido alguma vez a imperiosa necessidade de meditar sobre o mistério do ser, não poderá deixar de deter-se a refletir acerca do raio de luz que os fenômenos aqui apreciados projetam sabre as trevas que envolvem o destino humano. Em suma, quem quer que possua um intelecto imune de preconceitos de escola não poderá deixar de reconhecer que tem diante de si fatos verificados, que prometem fornecer-nos, em futuro não distante, a “chave” que permita se decifre o grande enigma. Dia virá em que todos o compreenderão e nesse dia terá começo um novo ciclo glorioso para a evolução social, moral e espiritual do gênero humano.

*

Baseado em tudo quanto aduzi com relação ao caso que vem de ser exposto, em que todas as pessoas presentes perceberam coletivamente as fases finais de um fenômeno de “bilocação incipiente”, coisa que é de presumir-se, porquanto o processo de exteriorização do “corpo etéreo” foi acompanhado de emissões de fluidos vitais perceptíveis a olhos normais, é de inferir-se que há de ser extremamente raro o perceber-se, de modo coletivo, o “corpo etéreo” plenamente constituído, vivo, animado e, também, depurado de qualquer emanação ectoplasmática. Assim é com efeito. Nas minhas classificações apenas se encontram quatro casos desse gênero, observados simultaneamente por duas ou três pessoas; mas nestes, dado o exíguo número dos percipientes, poder-se-ia presumir que todos eram sensitivos. Ao demais, são casos esses dos quais prefiro não me valer para este trabalho de síntese, por se tratar de narrações feitas com insuficiência de dados.

Decido-me, pois, a referir um em que houve percepção coletiva de um fenômeno de “bilocação” ocorrido alguns dias antes da morte do enfermo. Trata-se ainda de um fenômeno de “desdobramento” espontâneo e transitório de pessoa viva e não da emissão final dessas emanações vitalizantes do organismo humano, que concorrem para a exteriorização permanente do “corpo etéreo”.

Há uma diferença entre as duas ordens de fenômenos, porém, no fundo, essa diferença é mais teórica do que prática.

Este caso tiro-o dos Annales des Sciences Psychiques (1891, pág. 193-203). É um episódio que nada deixa a desejar do ponto de vista da documentação. Foram três os percipientes e cada um fez o seu relato em separado dos outros. Limito-me a reproduzir o do principal dentre eles, o doutor em medicina Isnard, amigo pessoal do Dr. Dariex, diretor daquela revista. Ei-lo:

“Corria o ano de 1878 e eu morava em companhia de minha mãe e de duas irmãs, à rua Jacob, 28.

Gravemente enferma, minha mãe se achava de cama, havia quatro meses. Na noite de 9 de maio, sentindo-se um tanto melhor, manifestou o desejo de assistir, da cama, à ceia da família. Chegou um amigo – o senhor Menon – que aceitou o convite para cear conosco...

O tempo estava brumoso e absolutamente calma a atmosfera. Sentamo-nos à mesa por volta das 21:30 horas, a conversar sobre os assuntos do dia, com ânimo isento de qualquer preocupação, tanto mais quanto nossa mãe dissera sentir-se bem. Afinal, como, ao que parece, a nossa conversação animada a estivesse fatigando, pediu fechássemos a porta, pois desejava repousar. Encostamos as duas folhas da porta e continuamos a conversar em voz baixa.

De súbito, a porta do corredor se abriu, ao mesmo tempo em que as duas folhas da porta do quarto de minha mãe bateram com estrondo uma contra a outra, para em seguida escancarar-se, fazendo-se então ouvir o lamentoso uivar de um vento inexistente. Fiquei estupefato: um golpe de vento com todas as janelas fechadas? Como explicar isso? Olhei para o aposento de minha mãe e dei com um fantasma à sua entrada, enquadrado nas cortinas que guarneciam a porta. Era a sombra de uma mulher baixa, curvada, com a cabeça pendida, o braço cruzado no peito. Um como véu cinzento e espesso lhe cobria o rosto. Dir-se-ia uma monja. Avançou lentamente pela sala, deslizando sobre o assoalho e conservando sempre a mesma atitude. Não se lhe podia, porém, distinguir o semblante. Passou a meu lado, dirigindo-se para a outra porta e penetrou no corredor, em cuja penumbra desapareceu. Outro golpe de vento se produziu, fechando ambas as portas. Breve tempo durara o fenômeno.

O que então experimentei não foi medo, mas uma sensação de solene perplexidade, partilhada pelos demais. Os três viram o mesmo fantasma, mas ninguém ousava abrir a boca. Minha irmã parecia muito impressionada e o amigo Menon voltou-se para ela e disse: “Não é nada; acalme-se. Foi um jogo de sombras.” – Minha irmã murmurou: “Conheci uma família russa, cujos membros afirmavam que, quando uma sombra saiu do quarto de um enfermo, este morrerá no mesmo dia, ou dentro de brevíssimo tempo.”

E, acabando de dizer isso, levantou-se e correu à cabeceira da minha mãe. Eu e meu amigo permanecemos pálidos nos nossos lugares.

Minha irmã mais moça estava, no momento, em outra parte da casa. Ao voltar, contei-lhe o que ocorrera. Ficou fortemente impressionada.

Meu amigo levantou-se para se retirar e eu o acompanhei. Voltando pouco depois, encontrei minhas irmãs à cabeceira de nossa mãe. Disseram-me que ela tivera uma crise de sofrimento e, de fato, achei-a muito abatida, fraquíssima, mal podendo responder com voz sumida às minhas perguntas.

O que até hoje me espanta é o fato de que nós três, que tínhamos visto, evitávamos falar do que víramos, se bem trouxéssemos a mente obsidiada pelo que se passara. Foram dos mais tristes os dias que se seguiram, agravando-se sempre as condições da enferma.

Transcorrida uma semana, estava eu só com minha mãe, que se levantara da cama para sentar-se numa poltrona na sala de jantar. Minhas irmãs tinham saído... Minha mãe se ergueu e fui tomado de espanto ao ver-lhe a atitude. Era a reprodução exata da do fantasma que observáramos: baixa, curvada, cabeça pendida, avançou lentamente para a porta do corredor. Um xale lhe cobria os ombros e a cabeça; não se lhe percebia o rosto e tinha os braços cruzados no peito.

A 26 de janeiro, pelas 9:30 horas, morria.

Estes os fatos, de cuja explicação me abstenho.”

(Assinado): Dr. M. Isnard – Boulevard Arago, 15.

Seguem-se os dois outros relatos, ambos muito interessantes, porém extremamente longos para serem aqui reproduzidos. Cingir-me-ei, pois, a transcrever os trechos que se referem à aparição do fantasma desdobrado da enferma.

Escreveu a irmã mais velha:

“... A porta do corredor, fechada apenas com o trinco, se escancarou violentamente, ao mesmo tempo em que as duas folhas da porta envidraçada do quarto de minha mãe bateram com estrondo. Surpreendida com aquele golpe de vento, estando a atmosfera absolutamente calma, olhei para a porta que batera e, com imenso espanto, vi no limiar uma sombra de mulher que, destacando-se das cortinas, deslizava sem pressa em direção ao corredor. A princípio, eu a vi imprecisamente, depois com muita nitidez, quando se aproximou da parede. Chegada ao ângulo formado naquele ponto pelas paredes, avançou pela sala, dirigindo-se sempre para o corredor. Aí a figura se tornou nitidíssima sobre o fundo branco da porta aberta e eu a vi de maneira precisa e distinta. Era o fantasma de uma mulher, mais substancial do que transparente; porém, ao mesmo tempo, me pareceu diáfana, como às vezes se dá com as nuvens. Era de pequena estatura, curvada, trazia abaixada a cabeça e os braços cruzados sobre o peito. Do conjunto da sua atitude transpirava um não sei quê de recolhimento e resignação. Cobria-lhe a cabeça e os ombros uma espécie de véu acinzentado, que impedia se lhe divisasse o semblante. Dir-se-ia uma monja. Entrou no corredor, avançou e desapareceu na obscuridade. Segundo golpe de vento, menos violento do que o primeiro, fechou a porta atrás do fantasma, ao mesmo tempo em que a outra, a do quarto de minha mãe, se fechou sem rumor...”

O Sr. Menon Cornuet escreveu:

“... Vi uma sombra deslizar da porta do quarto onde jazia a enferma para a outra porta que comunicava a sala com o resto do apartamento. Ela atravessou assim um ângulo do aposento. Era a sombra de uma mulher, de estatura mais baixa do que a normal; levava denso véu sobre o rosto, à moda de certas ordens de monjas, a cabeça abaixada... Pareceu-me que se tornava menos distinta à medida que avançava e, quando chegou ao limiar da outra porta, desapareceu. Dir-se-ia ter-se sumido pelo assoalho, Nesse instante, as duas portas, que se tinham aberto brusca e simultaneamente para dar passagem ao fantasma, fecharam-se de novo, brusca, e simultaneamente, mal o fantasma desaparecera, produzindo rumor bastante forte...”

Nos seus comentários, o Dr. Dariex procede à análise penetrante dos três relatos feitos pelos percipientes e conclui nestes termos:

“Insisto sobre este ponto, isto é, que a ligeira diversidade no modo pelo qual as três testemunhas viram o fantasma corresponde às posições que elas ocupavam com relação ao trajeto que aquele percorreu, porquanto esse fato depõe a favor da objetividade do mesmo fantasma.

Seja como for, não ouso concluir que este fosse efetivamente objetivo e que os três percipientes tenham visto o “duplo fluídico” da enferma. Todavia, entendo que devo assinalar à meditação dos competentes as seguintes proposições:

1° – Um fenômeno tão imprevisto quão singular foi observado simultaneamente, de maneira idêntica, e complementar, por três pessoas presentes, que tiveram a atenção chamada para a dito fenômeno por uma rajada de vento inexistente.

2° – Logo depois, a senhorita Isnard correu ao leito da enferma e a encontrou mergulhada em profundo sono.

3° – O fantasma visto se assemelhava à enferma e lhe reproduzia a atitude e o andar.

4° – Logo depois, a enferma se sentiu muito mal; suas condições se agravaram progressivamente e ela morreu passados alguns dias.

5° – É impossível que uma sombra projetada por qualquer luminosidade exterior houvesse podido percorrer o caminho que o fantasma seguiu.

6° – A rajada de vento, que chamou a atenção dos presentes, fazendo se abrisse a porta por onde devia o fantasma passar, produziu-se com tempo calmo e estando fechadas todas as janelas. Por outro lado, as testemunhas verificaram que o ar não se achava agitado, quando ouviram o uivo lamentoso de um vento que não existia...”

Assim o Dr. Dariex; e a mim me parece que, em face dos argumentos eruditos e ponderados de um metapsiquista circunspeto qual ele era, se deve considerar demonstrado tratar-se, com efeito, do desdobramento do “corpo etéreo” da enferma, o qual se tornou perceptível a olhos normais, porque saturado de substância ectoplásmica. A este respeito cumpre se atenda à circunstância muito sugestiva de escancararem-se espontaneamente as duas portas, antes da passagem do fantasma, para depois se fecharem de novo, também espontaneamente, mal se dissipou o fenômeno. Foi como se tal se desse a fim de permitir a passagem de um fantasma por demais substancioso para poder passar através da madeira das portas, como de ordinário sucede nos casos de aparições puramente fluídicas.

Noto ainda que o fato de as portas se escancararem subentende uma intencionalidade a dirigir a manifestação, ao mesmo tempo em que a forma que a aparição tomou e a atitude que assumiu, uma e outra reproduzindo exatamente a forma e a atitude com que, alguns dias depois, a enferma se apresentaria a seu filho, confere à manifestação o valor de premonição de morte daquela. Assim sendo, também ganha um significado a circunstância de o fantasma ter aparecido coberto por um véu, como se quisesse evitar que os filhos se impressionassem excessivamente com o acontecimento de morte que lhes sobrepairava, desejando apenas predispô-los para esse acontecimento, com o lhes suscitar um estado de benéfico temor, a fim de lhes atenuar as dolorosas conseqüências, o que, como é sabido, constitui uma característica comum a grande parte das premonições de morte.

Aqui, no entanto, surge a formidável interrogação Se é verdade – como indubitavelmente é – que todas as particularidades com que se desenrolou o caso em apreço concorrem para fazer se presuma uma intencionalidade a dirigir a manifestação verificada, então a quem se lhe há de atribuir a gênese? À subconsciência da enferma? À intervenção dos defuntos? Quem o sabe!

Finalmente, quanto ao aparecer vestido o fantasma, ponderarei que esta circunstância não deve embaraçar o critério do leitor, pois é o que se dá nas experiências de “fotografia do pensamento”, em as quais aparece na chapa fotográfica o objeto em que intensamente pensa o experimentador. Muitas vezes, nem mesmo é preciso que este último alimente o propósito de impressionar a chapa com o seu pensamento, dado se trate de alguma coisa que seja habitual na existência cotidiana do sensitivo que “posa” diante do aparelho e que essa “alguma coisa” exista – por assim dizer – presente no limiar da consciência do mencionado sensitivo. Assim, por exemplo, na minha monografia Pensamento e Vontade, forças plasmadoras e organizadoras, refiro o caso clássico da senhorita Scatcherd que, solicitada pelo reverendo arcediácono Colley a deixar-se fotografar, consentiu de bom grado; mas, no momento de “posar” lembrando-se de que estava em trajes caseiros, pensou que seria mais conveniente achar-se com uma sua elegante blusa ornada de rendas. Pois bem: na fotografia apareceu a sombra da referida blusa, sobreposta à que ela efetivamente vestia. Aquele reverendo publicou essa fotografia na revista Light (1913, pág. 350), onde se vê muito distintamente o desenho diáfano da blusa não vestida.

Cumpre, portanto, não esquecer que o pensamento é uma força modeladora e organizadora, o que explica o fenômeno, aparentemente embaraçoso, de aparecerem sempre vestidos os fantasmas dos vivos e dos defuntos, ou envoltos em mantos brancos. Dá-se isso pelo simples fato de eles pensarem em si com vestes.

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Os casos de “bilocação” aqui expostos, em que o fantasma é percebido coletiva e sucessivamente, demonstram de maneira incontestável que, em tese geral, se tem de excluir, com relação a eles, a explicação alucinatória. Digo – “em tese geral” – porque ninguém contesta que podem dar-se casos presumidamente do mesmo gênero, mas que são simples alucinações nascidas em indivíduos predispostos, casos esses que, todavia, serão sempre de ordem individual, jamais de ordem coletiva. Lembro que os professores Charles Richet e Henrique Morselli, ambos fisiologistas e psiquiatras de fama mundial, declararam explicitamente nas suas obras que não existem exemplos de alucinações coletivas, determinadas por um fenômeno de transmissão do pensamento, da parte de um indivíduo alucinado, enquanto que, ao contrário, se dão às vezes alucinações coletivas por sugestão verbal (o que é infinitamente diverso), conforme ocorre entre os loucos fanatizados por contágio místico. E é quanto basta.

Tendo, pois, demonstrado convenientemente a minha tese, quer com exemplos de ordem coletiva, quer com as provas cumulativas ressaltantes das concordâncias que existem entre as várias modalidades sob as quais se produzem os fenômenos em foco, passo a referir alguns casos que, pela sua natureza, não são comprováveis, visto que se trata de manifestações no leito de morte observadas e descritas por um único vidente. Como já assinalei, os casos de visão do “corpo etéreo” liberto do “corpo carnal” e pronto a ascender às esferas espirituais equivalem às visões congêneres de “espíritos desencarnados” propriamente ditos e são, por conseguinte, reservados a olhos sensitivos ou de médiuns, donde se segue serem raríssimos, nesse gênero, os casos de ordem coletiva. Entretanto, mesmo quando observados por um só vidente, eles se mostram merecedores de estudo, dado que são comprovados por ótimas provas indiretas, quais as visões sucessivas e coletivas de casos análogos, mas de ordem incipiente, ou a impressionante concordância entre as descrições dos videntes em questão e as dos percipientes em todos os outros grupos de manifestações congêneres, como as que se produzem pouco antes da morte, ou no sono fisiológico, hipnótico, mediúnico, ou nos outros estados transitórios de diminuição vital, especialmente nos de delíquio e narcose. São, todas estas, provas indiretas que, na monografia que aqui resumo, foram por mim aduzidas em adequada proporção.

Explicado isso, entro a referir alguns casos desta última interessante categoria de manifestações, que também são mais ou menos freqüentes. Assim, quem quer que se decida a lhes aplicar os processos da análise comparada encontrará à sua disposição abundante material de estudo, donde ressalta uma derradeira e eloqüente prova indireta para a demonstração da existência objetiva das aludidas manifestações.

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No episódio seguinte, um sensitivo de primeiríssimo quilate assiste à progressiva, mas muitas vezes intermitente e regressiva emissão da “essência espiritual” constitutiva do “corpo etéreo”, até à total formação deste, percebendo ao mesmo tempo a presença de entidades de defuntos, vindos para acolher o recém-chegado ao plano espiritual.

O relator-percipiente foi o Rev. William Stainton Moses e o fenômeno se deu junto ao leito de morte de seu pai. O relato foi por ele publicado imediatamente na revista Light (9 de julho de 1887), da qual era então diretor. Escreveu:

“Recentemente e pela primeira vez na minha vida, tive ocasião de estudar os processos de transição do Espírito. Tantas coisas aprendi dessa ocorrência, que julgo ser útil aos outros, narrando quanto vi... Tratava-se de um próximo parente, velho de quase oitenta anos, que se avizinhava do túmulo, sem contudo ser para aí levado por qualquer enfermidade especial... Percebi, por certos sintomas aparentemente insignificantes, que vinha próximo o seu fim e cuidei de cumprir para com ele o meu último e triste dever...

Com auxílio dos sentidos espirituais que possuo, pude ver que em torno e acima do seu corpo se ia acumulando a “aura” luminosa com que o Espírito tem de formar para si um corpo espiritual. Verifiquei que ela aumentava gradativamente de volume e densidade, se bem sujeita a variações contínuas para mais ou para menos, conforme as oscilações que a vitalidade do moribundo experimentava. Dessa maneira, foi-me dado notar que, às vezes, um alimento leve que ele ingeria, ou um influxo magnético provindo da pessoa que se lhe aproximava tinham por efeito reanimar momentaneamente aquele corpo, fazendo voltar a ele o Espírito. Por conseguinte, aquela “aura” parecia em contínua função de fluxo e refluxo. Assistia esse processo durante doze dias e doze noites e, se bem já no sétimo dia o corpo desse mostras positivas de iminente dissolução, persistia imutável a maravilhosa flutuação da vitalidade espiritual, em via de exteriorização. Entretanto, mudara a coloração da “aura” que, além disso, ia assumindo formas cada vez mais definidas, à medida que se aproximava, para o Espírito, o momento da libertação. Somente vinte quatro horas antes da morte, quando já o corpo jazia inerte, com as mãos entrelaçadas sobre o peito, notei o aparecimento de “Espíritos guardiões”, que se acercaram do moribundo e, sem nenhum esforço, retiraram daquele corpo exausto o Espírito.

Nesse instante, as pessoas da família declararam que o referido corpo estava morto. Talvez assim fosse; de fato, o pulso e o coração nenhum sinal davam de vida, nem o espelho se embasava com o hálito. Contudo, os “cordões magnéticos” ainda retinham preso ao corpo o Espírito e se conservaram assim por 38 horas. Acho que se, nesse período, se realizassem condições favoráveis e sobre o cadáver houvesse atuado uma vontade potente, o Espírito seria chamado de novo ao corpo. Não terá sido nessas circunstâncias que se deu a ressurreição de Lázaro?... Quando, finalmente, os “cordões fluídicos” se romperam, o semblante do defunto, onde se liam os sofrimentos experimentados, se tornou completamente sereno e tomou uma expressão inefável de paz e repouso.”

Este caso é interessante sobretudo porque dá conta de todas as fases do processo pelo qual o “corpo etéreo” se desdobra do “corpo carnal”, até à sua perfeita formação, e da visão sucessiva de entidades de defuntos, vindas para assistir o Espírito recém-nato.

Notável a circunstância de os “cordões magnéticos” manterem o “corpo etéreo” ligado ao “corpo somático” por 38 horas depois de ocorrida a morte do enfermo, circunstância bem rara nas descrições dos videntes, que, quase sempre, observam a dissipação do cordão fluídico, mal se verifica o trespasse. Nos poucos casos por mim colecionados, em que o vínculo magnético perdurara mais ou menos tempo, um se destaca, ocorrido num país tropical (Ilha de Cuba), em que o vidente observou a persistência do cordão fluídico durante quase três dias, pelo que concitou os parentes a não enterrarem os despojos, que se conservaram incorruptos até quando o sensitivo viu dissipar-se o aludido cordão, momento em que rapidamente se manifestou a decomposição dos mencionados despojos.

Passo a referir outros dois casos do mesmo gênero, extraindo-os de um livrinho áureo intitulado: The Ministry of Angel, cuja autora é a Sra. Joy Snell, sensitiva de educação e cultura muito elevadas, que um revés da fortuna constrangeu a ganhar a vida exercendo a profissão de enfermeira. Pois bem: é altamente


[i] Sobrevivência: Minha Contribuição.

[ii] Fenômenos de Bilocação, Tip. “Dante”. – Città della Pieve.

 

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